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IX. Porto Alegre, setembro de 1865

IX

poRto alegRe, setembRo de 1865.

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chovia toRRencialmente. As águas desciam barulhentas, num estardalhaço formidável. Chuva volumosa e vento impetuoso. Os trovões ribombavam e os chicotes dos raios iluminavam os céus carregados, como o anúncio do final dos tempos.

O que mais me aflige é esse frio! Que chova, meu Pai, mas me dê o alívio do calor!

Estava na antessala do convento vicentino. Freiras usando grandes chapéus brancos com abas andavam agitadas, um frenesi. O movimento era tamanho que Ana se percebia invisível, encolhida a tremer de frio. Os olhares eram muitos, mas aquelas mulheres estavam por demais ocupadas.

Uma imensa sala e um turbilhão, entre homens e mulheres, vozerio e corre-corre. Então surgiu uma mulher de robusto corpo, ela era a irmã Alfonsina. Vinha feliz, despejando alegria e acenos entusiasmados.

Na multidão, ela conseguia se destacar e vinha entre gestos e sorrisos. Vinha. Caminhava. O chapéu

vicentino, com abas pontiagudas, era um destaque na cabeça de irmã Alfonsina, quase um adereço de pantomima, contudo, por seus traços vigorosos, postura ereta e olhos grandes e brilhantemente azuis, provocava nos seus observadores admiração.

Rapidamente parou diante de Ana. – Senhora Ana Néri? Desculpe-me pela demora! – quase gritava a freira devido ao seu tom vigoroso de voz. – Tanta e tanta coisa… a fazer! – falou a irmã, estendendo a mão.

Ana cumprimentou-a levemente, que logo a puxou para o meio daquele frenesi, exclamando: – Me acompanhe e já perceba o quanto precisaremos de ajuda…! Sou freira, uma catarinense, mas os trabalhos que nos trouxeram e nos trazem aqui são de espantar o próprio demo!

E assim falava, despreocupada, puxando a outra pela mão.

Atravessaram salas e corredores, enquanto Alfonsina mostrava os setores a Ana. Um lugar superlotado de militares, médicos, enfermeiros, freiras, padres, soldados e feridos diversos. E a tudo olhava Ana, atenta, nervosa. – Está com frio? Aqui é diferente da Bahia, não é? – Sim… muito, irmã. Acredito que, mais um pouco, congelarei! – Não! Não será! Ficará tão ocupada que não sentirá mais frio!

Então a freira passou à frente da outra. Ana estacou, surpresa. – A senhora tem conhecimentos médicos? Já cuidou de gente muito doente… feridos graves? – Não. Somente dos meus filhos. – Doentes? – Não, saudáveis. Estão aqui também, nesta luta! – respondeu Ana e olhou firme a religiosa. – A senhora, então… – Vim aqui para aprender! – interrompeu resoluta. Prosseguiu: – A senhora me ensina! Aprenderei muito bem! Sou correta e pronta para obedecer. Vim para ajudar. Servirei?

Alfonsina gostou do que ouviu. Sorriu de maneira amável. – Sim, mas claro, minha querida! Então veio como voluntária pelos filhos… Hummm… Muito correto! Vamos sair daqui e logo darei as primeiras lições, sim? – Irmã! – pronunciou Ana Néri, séria. – Irmã! Não vim para ser um estorvo! Vim para servir e bem!

Irmã Alfonsina avançou prontamente e a abraçou com força.

Ana correspondeu.

Quinze dias após a sua chegada às terras geladas do Rio Grande do Sul, Ana Néri estava acomodada no

convento vicentino. Aos poucos se habituava ao frio intenso e congelante.

Minha alma está dilacerada. Não tenho o que fazer ainda… O que vim fazer por aqui? Estou perdida! À toa e com uma guerra aqui perto! Meus filhos bem perto de mim, e eu sem ver um deles. O que fazer?

Passava algumas horas no jardim, ou melhor, no claustro das freiras vicentinas – ou Irmãs de Caridade. Cuidava das freiras idosas, mas aguardava irmã Alfonsina com as suas lições de enfermagem, ela, que jamais estivera em um hospital, tampouco esteve junto a feridos graves.

Ana Néri, contudo, estava bem arranjada entre as abnegadas Irmãs de Caridade. Tinha seu quarto privado com vista para o claustro, cama dura, de colchão rígido, um roupeiro de duas portas, lamparina e uma poltrona grande, além de uma mesa onde havia um caderno para anotações e uma Bíblia.

No vigésimo dia na capital gaúcha, ainda de madrugada, irmã Alfonsina bateu forte à porta de Ana. – Vamos! Me siga! Preciso da senhora! – disse após a outra mal ter escancarado a porta, assustada. – Vamos, dona Ana, imediatamente!

Obediente, Ana a seguiu pelos corredores frios e escuros da ala de dormitórios do convento. – O que houve, irmã? – perguntou, enquanto abotoava o vestido.

– A senhora verá! Teremos práticas das lições de enfermagem.

As freiras vicentinas foram organizadas por São Vicente de Paulo e Santa Luísa de Marillac durante uma longa guerra civil que assolou a França seiscentista.

O padre Vicente conseguiu trazer conforto espiritual e material aos milhares de pobres, órfãos e viúvas, entre outras classes e condições dos inúmeros desgraçados e miseráveis que pululavam e transitavam pelo solo francês destroçado.

Afinal, com a ajuda de poucas senhoras nobres, dentre elas, Luísa de Marillac, e camponesas, como Margarida Naseau, formou um exército organizadíssimo de mulheres abnegadas e devotadas completamente aos pobres, aos mais necessitados: estes eram o Cristo!

Irmã Alfonsina transpirava tal ideal, porquanto segui-la naquela madrugada friorenta era encontrar trabalho – e pesado.

E foi com o que Ana se deparou quando, à porta do modesto convento, viu sete soldados caídos, gemendo, revolvendo-se bruscamente em suas dores.

Quando o facho de luz da lanterna do oficial iluminou melhor a entrada da casa, Ana Néri recuou dois passos. Não eram sete homens, mas um amontoado de homens sendo socorridos por várias freiras, enfermeiras e médicos.

O chão estava coberto de corpos vivos e mortos e sangue e gritos.

– Venha! Não tenha medo e me observe! – Puxou-a Alfonsina. – Sim, irmã!

E avançaram naquele tumultuado ambiente de dor e aflição.

O sol estava no meio do céu quando Ana Néri recostou-se numa parede, exausta, trêmula. – Senhora! Senhora…!

Ela olhou e nada viu, quem chamava? – Aqui, senhora, estou acenando! – falava um rapazinho no leito, do outro lado da enfermaria. – Passando mal? Sim? – preocupou-se ele.

Ana o olhou bem, na penumbra. Era isso mesmo? Um soldado ferido a chamava e a confortava? Olhou-o melhor e o rapazinho estava apoiado nos cotovelos, acenando: – Minha senhora… – O que é? O que é? – sussurrou a mulher.

E assim respondendo, encaminhou-se ao jovem. – A senhora está cansada, não é? Sente-se aqui perto de mim e conversamos… – falou o rapaz, ajeitando-se mais ao canto, na parede.

Ana foi em silêncio, sentou-se sem falar nada, quieta, cansada; apenas recostou-se à parede e fechou os olhos. – Meu nome é Luiz Tadeu, sou do Rio de Janeiro. – apresentou-se o moço.

Por instantes, Ana permaneceu em silêncio, com os olhos fechados. Abriu-os calmamente instantes depois. – Qual é a tua idade, filho?

– Vinte… vinte anos, dona… – Ana. Ana Néri, filho… tão novo…

E se olharam sérios, mas a mulher sorriu e o jovem sorriu também. – O que houve contigo? – Machucados por bala de canhão… quase perdi a perna. – Deixa-me ver – pediu Ana.

Luiz afastou o lençol. Ana conseguiu conter o espanto quando viu a perna direita em chaga viva… uma ferida longa e profunda. – E você não se queixa, não é? – Não, não, finjo que estou bem!

Ana se aproximou mais e acariciou as faces de Luiz.

Ele segurou a mão, contente. – Sim, senhora, faça isto! Minha irmã caçula toda noite me afagava… tenho saudades dela. – Então, meu filho, hoje e aqui sou a tua irmã…!

Ela permaneceu ao lado do rapaz até que adormecesse, num sono tranquilo, ao lado da pequena irmã.

As lições de enfermagem dadas por irmã Alfonsina foram imediata e prontamente aprendidas por Ana Néri.

Seu quarto era pouco frequentado. Ela passava mais tempo nas grandes e longas enfermarias superlotadas de feridos e soldados moribundos.

Acorria com pressa e cuidados, e buscava também ter notícias dos filhos. Perguntava sempre e procurava confortar a todos e, assim, mostrou-se solícita e cuidadosa ao extremo.

Quando as irmãs ou outras enfermeiras não suportavam mais o cansaço, ela se prontificava imediatamente a substituí-las.

Era incansável, mostrava-se pronta para todos os serviços, fosse no cuidado com os feridos e doentes, fosse na arrumação da enfermaria e dos medicamentos.

Respondia resoluta: “Estou indo, irmã!”, “Deixa comigo!”, “Sim, irei…!”, “Tá bom, tá bom! Tô indo!”, “Ah, meu filho, tudo bem?”, “Coragem! Força!”, “Vamos! Vamos! Por que demoram?”.

E os dias passavam e ela, voraz como mulher dedicada, fazendo jus ao seu cargo de enfermeira; ela, que jamais havia tocado em outros corpos masculinos, que não o do marido e os dos três filhos homens.

Diante dos homens intimidados com a sua presença para os banhos higiênicos, comportava-se dignamente, em especial com os mais moços. Estes ficavam por demais envergonhados; ela dizia de forma amigável: “Meu filho, um deles, um que parece com você, tem também os olhos assim como os seus!”, “Ah! Sou uma senhora, mãe de filhos, vim aqui cuidar de você!”, “Ai! Ai! Como é bom um pouco de água fria, não é mesmo?”. E eles cediam logo ao carisma de Ana.

Ela conseguia-lhe a aproximação de maneira maternal e o seu coração tremia e se rasgava em fendas ao ouvir: “Não, não me deixe, senhora!”, “Cadê? Cadê minha mãe…? MÃE?!”, “Onde está? Onde estão minha esposa e filhos?!”, “Estive no inferno!”, “Tô morrendo… morro, minha senhora?”, “Segure minha mão pelo amor de Deus!”.

E a baiana, silenciosa, confortava.

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