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XI. Humaitá, Paraguai, março de 1868

XI

humaitá, paRaguai, maRço de 1868.

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sob uma toRRencial chuva, Ana e outras voluntárias e freiras vicentinas atravessaram, silenciosas, as ruas encharcadas. O medo intimidava os passos e os estrondos dos trovões perturbavam o grupo, porque não sabiam se eram tiros de canhão ou trovões repetitivos da borrasca que caía violentamente sobre a cidade já fustigada pela guerra – uma guerra de alianças entre povos vizinhos, que avançava lenta e ferozmente contra o povo paraguaio.

O Imperador d. Pedro ii, ciente dos perigos, decidiu ir pessoalmente para o front e levou como ajudante de campo o bravo marquês de Caxias.

Guerra que era um celeiro de feridos e mortos, e uma incógnita em estratégias de ataques e cercos: o Paraguai contra os três aliados – Brasil, Argentina e Uruguai – mostrava-se deveras articulado e estrategicamente mais bem equipado com armas, soldados e oficiais destemidos.

O marquês de Caxias trouxe então o fôlego necessário para os brasileiros e aliados suspirarem mais aliviados

após tamanhas trapalhadas do comandante anterior, o vice-almirante Joaquim José Inácio.

Caxias, como comandante-geral, suspendeu as investidas, treinou os soldados, revistou os equipamentos bélicos e adquiriu outros novos, melhorou as unidades médicas e a higiene das tropas e, sobretudo, aproximou-se de todos ao transmitir bastante confiança.

Ana entrou no grande casarão transformado em hospital e, sem se alimentar, dirigiu-se aos feridos de uma sala contígua.

Um soldado estendeu o braço, impedindo-a de passar. Ela não entendeu e prosseguiu. O homem se postou diante dela dizendo: – Senhora, não pode atravessar, são feridos paraguaios, não são brasileiros! – disse, com rigidez na voz. – Como?! – Estacou, confusa. – Senhora, neste recinto estão os feridos inimigos, os paraguaios e os aliados blancos do Uruguai.

Ana olhou firmemente para o soldado. – Filho, sou enfermeira e devo cuidar desses homens também! – anunciou, avançando.

O soldado se surpreendeu com a atitude e estendeu o braço com a mão direita espalmada. – Alto, senhora! Obedeça!

– Devo obedecer antes à minha consciência de enfermeira, que deve acudir aos que sofrem… e estão doentes, feridos… – disse, caminhando, num confronto com o soldado.

Outros soldados se agruparam; também se juntaram médicos, enfermeiras e até os oficiais superiores. Todos olhavam perplexos: a ordem de não cuidar dos doentes e feridos inimigos era do comandante e chefe, o marquês de Caxias, Luís Alves de Lima e Silva. – Não ouse me impedir! – gritou a mulher.

O rapaz desceu o braço obediente e recuou ante a autoridade na voz de Ana. Ela prosseguiu com passos pesados, quando uma nova voz masculina preencheu o ambiente: – … fui eu quem ordenou que ninguém cuidasse desses doentes!

Ana estacou, mas não recuou.

O homem prosseguiu: – Senhora! – Senhor, a tua autoridade não pode me impedir de cuidar de feridos durante a guerra!

Os homens e mulheres presentes aquietaram-se. O silêncio era grande no corredor abarrotado de curiosos. – Mas são ordens, e a senhora pretende infringir…?!

Ela, então, voltou-se ao seu interlocutor: – Senhor, qual ordem é maior que aquela de cuidar de doentes, sejam eles quem foram em suas vidas? Eu

estou aqui para cuidar de feridos e doentes, e não sabia que se escolhiam doentes para serem cuidados!

O homem que se confrontava com Ana Néri era o marechal Caxias. Ele estava com o rosto vermelho e a sua voz parecia irritada. – Senhora… – Ana Néri, senhor, Ana Néri! – interrompeu. E prosseguiu, olhando-o firme nos olhos: – Se eu ali entrar, serei presa? – A senhora está me desafiando?! – Não, senhor, nada disso. Sou obediente, mas a esta ordem eu não obedecerei! – E, como para demonstrar sua convicção de estar com a consciência tranquila, deu-lhe as costas e encaminhou-se ao alojamento dos feridos inimigos.

O marechal permaneceu imóvel por instantes, sem graça. Com a cabeça baixa, dirigiu-se ao interior da casa. Seus passos firmes e barulhentos revelavam o quanto estava contrariado. – Mulher! Tenho que saber quem é essa Ana Néri! – murmurou entredentes, desapontado.

Dias depois, Rozendo avistou Ana saindo da Capela. Apressou os passos e a alcançou. Ela andava a passos rápidos, não se demorava de uma ala da enfermaria à outra.

– Olá! Está tudo bem por aqui?

Ana se voltou, surpreendida; reconheceu o estudante e avançou alguns passos vacilantes. – … Rozendo, você aqui…? – Mal conseguiu terminar sua fala, perdeu os sentidos. O rapaz, num pulo, segurou-a com força nos braços. – Acudam! Acudam! Dona Ana Néri passou mal! Desmaiou! – gritou, aflito.

Imediatamente inúmeras portas se abriram e várias pessoas acudiram ao apelo. Ana foi pronta e seguramente transportada, inconsciente, a uma das alas das enfermarias. Um enfermeiro a carregou e a colocou na cama.

Era a exaustão falando mais alto. Finalmente o corpo esgotado não suportou mais as noites maldormidas; o corre-corre de atendimentos de múltiplos doentes; a alimentação parca e às pressas; e o sofrimento constante de assistir a amputações, aos moribundos e aos desesperados. Enfim o grito do mortal atacado pela estafa.

Instantes depois, cercada por amigos e curiosos, Ana reanimou-se. Ao abrir os olhos, tinha sobre si o semblante gentil de Rozendo. – Dona Ana, a senhora deve descansar… – pediu, quase num sussurro.

Ana o fitou e sorriu. Todos sorriram e se retiraram, mas não sem antes acenar-lhe carinhosamente. – Quanto tempo devo ficar deitada, inutilmente, meu filho? – quis saber.

Ela falava com voz cansada. O rosto demonstrava realmente o cansaço físico. Ana estava doente. – Bem, a senhora conseguiu se estafar. Tudo precisa de reparo e repouso absoluto, e nada de aflições. – Quanto tempo? – perguntou novamente e continuou, quase impaciente: – O que é tudo em reparo?

Rozendo sentou-se à beira da cama. Olhava para Ana Néri com respeito e carinho. Inclinou-se mais ainda, afirmando: – Minha boa senhora, estás em minhas mãos. Estás doente e muito, por isso não determinarei o tempo… observarei tudo, durante todos os dias, e em algum momento lhe darei alta – falou e ergueu-se, calmo. – … estou em tuas mãos?! – repetiu Ana, perplexa.

Estava tão fraca que logo adormeceu. Um adormecer diferente, confortável, humano. Ela, que somente repousava no máximo quatro horas por noite, quando assim se permitia.

A convalescença foi longa, durante os meses de março, abril e princípios de maio. Primeiro, um tratamento nos órgãos vitais, exames frequentes no coração, pulmão e estômago. Mais que sentada, tinha que permanecer deitada.

Era observada durante todo o dia, tarde e noite, por vários voluntários: médicos, enfermeiras, voluntários e até sacerdotes – todos queriam colaborar na recuperação daquela chamada Mãe dos Brasileiros. – Isso mais me chateia que agrada! – reclamou.

Rozendo e ela estavam nos jardins dos fundos do hospital. – Mas não estamos aqui para atender opiniões de enfermos teimosos! – retrucou, brincalhão, o acadêmico. – Não sou teimosa, sou dedicada! – E brava! Até do marquês de Caxias, o marechal, a senhora desrespeitou as ordens!

Ana fez-se séria. – Rozendo, meu filho, aquela ordem não serve para quem cuida de enfermos! A proteção dos feridos de guerra e o cuidado com eles são atitudes dignas e honrosas aos nossos semelhantes! – disse e cerrou os olhos.

Rozendo olhou-a admirado. Sabia que aquela mulher cumpria as palavras ditas.

Ela se calou, mas os pensamentos do rapaz alavancaram-se. Como ficar quieto? A inércia para um médico de guerra é a ruína. A mulher respeitava princípios da humanidade: acudir a quem precisasse, indistintamente. Ela foi aos soldados inimigos e mostrou-lhes amor forte. Outras seguiram seu exemplo, e o marechal Caxias teve de aceitar a atitude de Ana Néri: ela foi aos doentes inimigos.

Ao amanhecer de um junho invernoso, quando já conseguia ter forças para caminhar em seu quarto, Rozendo bateu à porta.

– O que queres, rapaz? Agora tenho certeza de que pensas ser meu pai ou tutor! – falou Ana sem lhe abrir a porta. – Sim, sou o pai! – Não estou dizendo que é confiado! – disse isso, animada, e abriu a porta abruptamente.

Aquilo que seus olhos viram fê-la dar passos para trás. A boca ficou aberta, os braços rentes ao corpo. Queria gritar, correr, sacudir a cabeça, mas as forças lhe faltavam.

Não sei, o que é isso? Como pode? Não estou vendo-o… não é verdade! Meu Pai do céu! Senhor? O que é isso? – Ma-mãe! – pronunciou, emocionado, Pedro Antônio.

Ana deu um pulo, avançou correndo como um jato, em frenesi.

Abraçaram-se mãe e filho. Um elefante gritava à procura do filhote, enquanto um leão observava atento.

Um grito desmoronava com força impetuosa todas as paredes e muros do hospital – forte detonação de energia entre queridos que se enlaçavam num abraço maternal.

Ela não conseguia largar o filho, permaneceu por instantes ligada a ele. Quando Pedro Antônio afastou-se, Ana estava mórbida, então Rozendo a amparou, guiando-lhe até a poltrona frente à janela. Puxou a cortina e a aragem encheu o quarto.

O filho aproximou-se da mulher. Não era mais o rapazinho de modos calmos. Agora estava abatido, os gestos pareciam mecânicos, o olhar perdido, como a querer um repouso, um sossego. Um grito se avolumava em seu interior despedaçado por tamanhas desgraças.

Aproximou-se de Ana e estendeu-lhe a mão esquerda, confortando-a com um toque firme, enquanto sorria feliz por reencontrar a mãe.

Ela tá magra, abatida. Um frangalho de magra, mas é minha mãe! Ela veio mesmo! Mãe…! Mamãe!

Meu filho tão bonitinho…! Tão meu e agora feio, magro… quem é este? Cadê meu filho? Vou-me embora daqui… Pedro… Pedro Antônio!

Ela gritou, então os homens a olharam e, desperta, sentiu forte vontade de se erguer e correr o mundo.

Abriu os olhos e viu. – Pedro, há quanto tempo está por aqui? – Completou um mês no sábado. – Um mês?! – repetiu, espantada, e olhou em seguida para Rozendo.

O acadêmico encolheu os ombros, cínico. – Fazer o quê? Período de convalescença – justificou-se. – Eu sem notícias e meu filho na cidade há um mês…! Eu, hein! Que coisa! – desabafou, nervosa. – Mas estou aqui graças ao Rozendo, mãe!

Ana olhou seu protetor e voltou-se ao filho.

– Entendo, ele impediu que me visitasse para minha melhor recuperação! – falou, compreensiva.

Rozendo sorria, satisfeito.

Ana animou-se. – Quero ficar sentada! A tonteira passou… me ajudem, vamos! – exigiu.

Os rapazes avançaram prontamente. Rozendo ajeitou-lhe os travesseiros às costas, Pedro acomodou-lhe o vestido e as cobertas. – Vou deixá-los a sós. Ficarei em minha sala. Qualquer coisa… – justificou-se o acadêmico. – Não precisarei mais! Fique descansado! – interrompeu Ana em tom brincalhão. – Esta velha não cairá mais de susto! – Espero! Tem muito a trabalhar! – ajuntou Rozendo, piscando-lhe o olho.

Ana acenou-lhe, contente. – Obrigada, filho!

O rapaz a olhou por alguns segundos, fez-se sério e então esboçou um sorriso de contentamento. – Não foi nada, senhora – disse e se retirou.

Imediatamente Ana se voltou para o filho. Pedro estava como que alheio; ela percebeu o olhar perdido do rapaz e a magreza excessiva. Sabia que sofria. – Notícias de teus irmãos? Sabe deles?

Pedro aproximou-se e sentou-se na beirada da cama. Permaneceu em silêncio por instantes, enquanto

lágrimas rolavam lentamente pela face. Logo se inclinou, com as mãos no rosto, e chorou convulsivamente.

Ana aconchegou-se num abraço ao filho. Forte, continha-se para que as emoções não aflorassem mais e mais e prejudicassem a conversa, que desejava positiva e agradável. – Como e como senti falta da senhora e dos meus irmãos! – confessou, soluçando. – O inferno foi visitado por mim, mamãe! Não há mais nada neste mundo que me amedronte! – falou, convicto.

Ana afagou o rosto forte do filho. Beijou-lhe a testa e o apertou mais e mais em seus braços. – Estive com Justiniano em Assunção. Ele está bem, até forte, vibrando pela guerra. Se comporta como se nada de ruim estivesse acontecendo. Não vejo o Isidinho há cinco meses. Soube que está em Mato Grosso. Estava bem… todos choraram, nós choramos e nos abraçamos. Prometemos viver… viver, mamãe.

Ana escutava. Seus olhos passeavam pelo quarto. O coração apertado, o sofrimento de ver um filho abatido e ainda não abraçar os outros, tão perto de onde se encontravam.

O que fazer? Como posso?! Isso? O que é isso? A vida! Casar, perder o marido… criar filhos… criei… eduquei e agora aqui estou neste lugar e sem meus filhos… Este, um trapo, mal consegue ficar de pé. Finge que está forte pra mim. Ao menos vejo, sim, vejo, beijo e abraço! Ninguém mais vai tirá-lo de mim. É meu!

Pedro contorceu-se, incomodado. – Mãe, está me sufocando – queixou-se.

Ana afrouxou o braço em torno do pescoço do filho. – Não ouso perguntar… mas… – Pergunte, mãe, pode perguntar… já sei do que se trata… – Sim, filho. Por quanto tempo ficará por aqui?

O rapaz desvencilhou-se dos braços da mãe, caminhou até a janela, em silêncio. Ficou lá, sozinho, a observar a paisagem, tão quieto. – Está vendo a mussaenda rosa, como está em cachos? Como está em todo seu esplendor! Gosto de tocar seus fartos cachos. Linda, não? Fui eu que plantei, filho!

Pedro Antônio voltou-se. – Ficarei somente três dias, mamãe. Hoje e mais dois dias…

Ana abriu a boca, mas palavras não saíram. Os braços caíram desanimados. Olharam-se demoradamente. – Soube que a senhora é exemplar como enfermeira!

Ele desconversava. Tinha missão a cumprir. A guerra continuava com toda a força pelas fronteiras do Brasil, da Argentina e do Uruguai. Os paraguaios detinham estratégias e armamentos que superavam os aliados. – Conversa! Cumpro minhas obrigações, como você cumpre as tuas!

O rapaz avançou, pegou as mãos da mãe. Ajoelhou-se obediente e seus olhos estavam brilhando.

– Mamãe, todos me apontam como o filho de Ana Néri, a mulher que não se cansa de socorrer e ajudar os soldados… Isso me emociona! Graças a Deus tenho a senhora como mãe!

Ana aconchegou o filho contra si, beijando-o com ternura.

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