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X. Salto, Uruguai, novembro de 1865
by UDL Educação
X
salto, uRuguai, novembRo de 1865.
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Que há comigo? O que faço? Como é isso? O que não sei mais nada de mim sei o quê? O que sei e não sei? Onde estão meus filhos? Até na Argentina estou perdida, louca, esperando que Deus me ampare e proteja!
Andava vagarosamente pela rua escura, a chuva caindo lenta e persistentemente pelos últimos quatro dias. Seu andar era forte, apesar da solidão que invadia seu coração.
Ali estava por conta dos grandes depósitos de sangue. Os acamados eram convalescentes das enormes batalhas ocorridas em Albuquerque, Corumbá e Corrientes.
Na madrugada, Ana já adentrava o grande salão recheado de soldados e oficiais em convalescença. Ali entrava e se demorava até a noite, quase não se alimentando, debruçada ora sobre um aflito, ora sobre um queixoso.
Então numa tarde foi cumprimentada por Rozendo Muniz Barreto, um acadêmico de Medicina.
Encontraram-se pela primeira vez na sala dos médicos; Ana passava rapidamente por ele, sem olhar para os lados. – Senhora Ana! – ele a chamou.
Ela estacou e o olhou firmemente nos olhos. – Senhor… – Rozendo Muniz, também da Bahia.
Ana o olhou atentamente. Era um jovem bem-apessoado, cabeleira farta, cabelos castanhos, olhos grandes, nariz afilado, jeito impetuoso e inteligente. A boca pequena coberta pelo espesso bigode e barba farta, que se abria como um leque, destacando-o por esta peculiaridade. A voz grave e agradável.
E a mulher ficou a fitá-lo, sem nada dizer, quando ele prosseguiu com o seu jeito extrovertido: – Conheço a senhora. Está famosa! – Eu?! – espantou-se Ana. – Sim, senhora, todos falam da senhora… – Por quê? O que há?
Rozendo se aproximou ainda mais. Todos da sala observavam silenciosos, atentos à conversa. Eram médicos, freiras e enfermeiras. – Falam muito, os soldados e oficiais, entre outros, que a senhora é a salvação de todos! – E acentuou as últimas palavras. – Eu?! Ora! Deixe disso, moço! – respondeu prontamente e desviou o olhar, intimidada.
Rozendo se fez sério.
– Estou falando sério, dona Ana Néri!
Ela abaixou a cabeça, envergonhada. Não tinha o que dizer, por isso se esquivou. – Com a licença, senhor, tenho o que fazer! – E retirou-se rapidamente.
Aqueles que permaneceram no recinto entreolharam-se satisfeitos e sorriram. – Exemplar como mulher… e humilde! – falou Rozendo com a voz forte.
Ana não conseguiu cuidar de seus doentes. Correu ao seu quarto e jogou-se na cama.
Eu, hein! Salvadora eu, como é isso? Porque, ai de mim, não tenho notícias dos meus filhos, eu estou sozinha aqui. Onde estão vocês, meus queridos filhos? Cadê? Por que tô assim tão sozinha, meu Pai do céu? Virgem Santa Maria!
E encostou-se à parede, chorosa, olhando o vazio do quarto sem fitar nada.
Tô morta, tô viva… como é isso? O que fazer?
Dias depois, Ana cruzou com o acadêmico Rozendo perto da Capela. Ele adiantou os passos para falar-lhe. – Dona Ana! Dona Ana! Me escute, por favor!
Ana fez um gesto com as mãos e continuou a andar. – Tenho notícias, senhora, de um dos filhos da senhora…
A mulher estacou os passos. Um raio como que a fulminou ali. Por instantes não se mexeu. Voltou-se para o acadêmico como se fosse uma boneca, um fantoche. – Moço, qual dos meus filhos? – perguntou com voz arrastada. Tremia e os olhos estavam arregalados.
Rozendo deu alguns passos, lentamente.
Que escuto? Quem sou? Como é isso? Por que isso? Quem é esse que tá aqui? Estou morrendo, é um vento forte que me carrega junto às águas, estou submergindo. Socorro! Que alguém me salve, salve, salve, meu Pai do céu.
Ficaram demasiadamente próximos e ela pôde atentar para a feia barba do rapaz. Ela olhava, mas nada via, porque os seus ouvidos dilataram-se, era como se toda a alma se abeirasse, crescesse para acolher as palavras a serem pronunciadas. – Senhora, não estive com ele, mas um amigo meu esteve. Foi uma longa conversa até que percebi o sobrenome… e como a senhora é famosa…
Ana levantou a mão displicentemente. – … qual dos meus filhos? Fala! Que demora! Aconteceu algo e não me quer dizer? Fala, rapaz! – gritou Ana as últimas palavras.
Rozendo espantou-se, fez-se sério, abaixou a cabeça e se calou. – O que é?! Não falará?! – O filho é o Pedro Antônio!
Ana juntou as mãos no peito, em seguida, agarrou as mãos do jovem, ansiosa, perguntando aflita:
– Meu Antônio está bem? Em que lugar está?! Ele está bem mesmo? Ai! Que bom saber!
Rozendo observava a agitação da mulher, mas não conseguia responder. Por fim, tapou-lhe a boca com uma das mãos e com a outra segurou-lhe as mãos agitadas. – Dona Ana, calma! Calma! – Sim… – Calma! Vamos nos sentar que te conto tudo!
Ana sossegou prontamente e seguiu o rapaz aos bancos de pedra do jardim. Uma farta mussaenda cor-de-rosa exuberante atraiu o olhar da mãe chorosa. – Que espetáculo esta mussaenda! Para mim, que sofro, é uma maravilha poder vê-la em todo seu esplendor – falou baixo. Apenas Rozendo pôde ouvir o sussurro. E continuou mais esperançosa: – Ao menos posso vê-la em tamanha beleza; eu, que presencio todos os dias a morte de jovens e horrorosas amputações de membros… Fiquemos perto desta mussaenda, quero perceber que estou viva e tenho olhos para contemplar a beleza! – falou, sentando-se, e novamente se voltou para o rapaz. – Meu jovem, então, por favor, me fale como está o meu Antônio!
Ela estava sentada, mas seus sentidos estavam ampliados. Os olhos enxergavam demais; os ouvidos dilatados pareciam escutar o mundo; o paladar tornou-se azedo, como gosto de comida salgada; o cheiro era intenso: sangue, água, os remédios… Então as mãos
crisparam-se – ela apertava uma à outra, nervosa, medonhamente insatisfeita.
Como ele sabe sobre meu filho? Quem era? Como fazer para escapar? O que é isso? Por quê? Quem me protegerá? Tô morta? Tô viva? Quem sou eu por aqui? É verdade que ouvirei o pretexto de um rapaz fácil para amargurar meus dias.
Olhavam-se; queriam se entender: ela, mais velha, mulher voluntária na enfermagem; ele, um médico em formação, um acadêmico. – Fala! Por Deus! – exigiu Ana. – Não conheci bem o filho da senhora, bem, não sei! Talvez…
Ana ergueu-se, surpresa. – Não conheceu? O que faço aqui, cheia de coisa a fazer lá dentro? – gritou, pronta para se retirar. – Senhora, conheci! Apenas não nos tornamos amigos. Claro que jamais poderíamos ambicionar a amizade naquele lugar… – Qual lugar? – interrompeu a mãe de Antônio. – Corrientes…
Ana, que se mantinha de pé, deu as costas para o rapaz. – Como… como meu filho está? – Estão bem, dona Ana.
Ela o encarou, aflita. – … estão? Quem é o outro? – Justiniano…
A mulher rodou o corpo feito bailarina em apresentação. Juntou as mãos, contente. – Somente os dois? – Sim, Antônio e Justiniano. – Ao menos… vivos! – exclamou, resignada.
Rozendo manteve a voz tranquila. Sentia-se bem em falar com Ana Néri. Ele ouvira muitas coisas boas sobre ela; por onde passara, vários elogios e palavras edificantes. Sabia que viera ao campo de batalha para estar junto aos filhos, então ao menos ele seria o porta-voz de boas notícias sobre os filhos da voluntária de guerra, que não media esforços para cuidar de todos os brasileiros que seus braços incansáveis conseguissem alcançar e abraçar. – Sim, vivos e bem! – confirmou o acadêmico. – Antônio e Justiniano estavam em Corrientes? – Sim, estavam… – Um viu o outro? Os três estão juntos, sabe dizer? – indagou, ansiosa. – Estavam juntos. Muitos sabiam deles por causa da senhora. Tomam conta dos filhos da senhora. Todos…
Ana desviou o olhar, contudo não deixou de perguntar: – Cuidam de meus filhos por causa de mim?
Rozendo encaminhou-se à mãe. Tomou-lhe as mãos, beijou-as uma a uma e disse: – Cuidam deles porque a senhora não descansa em cuidar de todos por onde anda!
Ana puxou as mãos. – Ora! Ora! Estou aqui para trabalhar! – proferiu secamente. – Hum… Se todos os médicos, enfermeiras e voluntários se dedicassem como a senhora faz…! – falou o rapaz, firme. – Então – desconversou –, sabe me dizer se continuam juntos…? – Não. Separaram-se. Antônio, Corrientes; Justiniano seguiu para Assunção.
Ana suspirou profundamente, satisfeita. – Agora o senhor procurará saber sobre o meu filho Isidoro! – avisou e sorriu. – Sim, senhora, claro! – respondeu Rozendo prontamente.
A mulher aproximou-se do rapaz, passou-lhe a mão no rosto, ternamente. – Aqui se fala muito! Eu, generosa? Bem, escutei falar também que o senhor escreve bons versos, estrofes de qualidade! Então temos entre nós um poeta e médico?!
O rosto de Rozendo se avermelhou bastante. Ele desviou o olhar, envergonhado. – Nada, uns versos fracos…! – Não é o que eu muito escuto por aí. Parabéns!
E assim falando, deu-lhe uns tapinhas nas costas e se retirou com passos apressados, leves, silenciosamente.
Já chamam a senhora de mãe dos brasileiros! E não falam isso por pouca coisa ou por pouca valia!