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Discussão sobre literatura: linguagem e gênero

da frente de operações. Voltou à sua cidade natal após o término da guerra e foi condecorada com a Medalha Geral de Campanha e a Medalha Humanitária de primeira classe. Ela morreu na cidade do Rio de Janeiro aos 65 anos, em 20 de maio de 1880. Outras homenagens foram feitas a ela postumamente: em 1923, a primeira escola oficial brasileira de enfermagem de alto padrão foi batizada com seu nome; em 1938, Getúlio Vargas instituiu o dia 12 de maio como o “Dia do Enfermeiro”, devendo nessa data ser prestadas homenagens especiais à memória de Ana Néri em todos os hospitais e escolas de enfermagem do país; e, em 2009, ela foi a primeira mulher a entrar para o Livro dos Heróis e das Heroínas da Pátria.

Uma das manifestações artísticas do ser humano, a literatura é chamada de arte das palavras, pois representa comunicação, linguagem e criatividade em prosa e verso. Por intermédio da literatura, a realidade é recriada de modo artístico com o objetivo de proporcionar mais expressividade, subjetividade e sentimentos ao texto. “O texto repercute em nós na medida em que revele emoções profundas, coincidentes com as que em nós se abriguem como seres sociais”, conceitua Domício Proença Filho, em seu livro A linguagem literária. 1

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1 PROENÇA FILHO, D. A linguagem literária. São Paulo: Ática, 2007. p. 7-8.

Mas nem todo texto possui linguagem literária. Uma reportagem, por exemplo, pode contar uma história que provoca reações e reflexões no público. Ela usa, porém, linguagem jornalística e seu conteúdo se limita aos fatos apurados pelo repórter. Ou seja, a função do texto é informativa e não literária. “O que faz de um texto literatura é o tratamento que a ele se dá”, explicam Cinara Ferreira Pavani e Maria Luíza Bonorino Machado, em seu livro Criatividade, atividades de criação literária. 2 “Uma mesma frase pode expressar o que suas palavras indicam, literalmente, ou ir além, sugerindo significados que exigem um ato interpretativo por parte do leitor.”

Como existem vários tipos de produções literárias, os especialistas decidiram agrupá-las de acordo com suas características em comum. São os chamados gêneros literários. Entre eles, estão biografia, teatro, poema, novela, história em quadrinhos. Ou seja, um fato pode ser contado sob formas diferentes, dependendo do gênero que se utiliza para contá-lo.

No caso de Ana Néri, trata-se de uma história que se baseia em fatos reais, mas imaginada, sendo classificada, portanto, como obra literária. Essa afirmação se fundamenta no fato de que o texto recria uma realidade, fazendo para tanto uso de lirismo e subjetividade. Um exemplo dessa característica pode ser notado no trecho da página 64:

2 PAVANI, C. F.; MACHADO, M. L. B. Criatividade, atividades de criação literária. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2003.

Ana se jogou nos braços da outra, chorava convulsivamente. Não conseguia falar, deixou-se ir pela dor, pela saudade que lhe parecia torcer as entranhas: seus intestinos estavam como que à mostra.

Recriar uma realidade torna a obra literária e, neste caso, impede sua classificação como biografia, gênero usualmente escolhido para contar a vida de uma pessoa. É o que fez o livro Elisa Lynch: mulher do mundo e da guerra, 3 que se utilizou do gênero biografia para contar a história de outra personagem feminina importante na Guerra do Paraguai. A mesma guerra também foi retratada em formato de conto no livro Guerra do Brasil: contos da Guerra do Paraguai, 4 que apresenta nove contos, cada qual abordando um recorte biográfico ou episódio da guerra, inclusive um deles dedicado à citada Elisa Lynch. Neste livro, a história de Ana Néri foi contada utilizando o gênero novela, que é definido como uma forma intermediária entre o conto e o romance. Ele é caracterizado, em geral, por apresentar uma narrativa de extensão média, na qual toda a ação acompanha a trajetória de poucos, mas elaborados, personagens em torno de um único conflito. Outras características desse gênero são: possuir elementos típicos de uma narração (narrador e foco narrativo; núme-

3 BAPTISTA, F. Elisa Lynch: mulher do mundo e da guerra. São Paulo: Civilização Brasileira, 1986. 4 BACK, S. Guerra do Brasil: contos da Guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: Topbooks, 2010.

ro limitado de personagens; tempo, espaço e enredo bem definidos) e estrutura bem organizada, dividida em quatro grandes momentos (introdução, desenvolvimento, clímax e desfecho), a agilidade dos acontecimentos na trama e os conflitos narrativos (único no caso de novela). Nesse sentido, destacaremos alguns exemplos que justificam a classificação do livro como novela. Mostraremos a seguir alguns exemplos que justificam a classificação do livro Ana Néri – a mãe sitiada no citado gênero literário. O foco da obra é contar como Ana Néri foi para a Guerra do Paraguai, ou seja, esse é o único conflito da obra. Na primeira parte, conhecemos a personagem já mais velha, como mostra o trecho da página 12:

A casa, que se mantinha silenciosa, casa de mulher velha, solitária e cansada, agora berrava, agitada com os jovens visitantes. […] Ana tinha uma mão segura no neto e olhava para a criada numa expectativa alegre, satisfeita com a chegada do casal e dos filhos, um contentamento a olhos vistos.

Mas sabemos também que já era renomada, como mostra o trecho nas páginas 18 e 19, que narra o encontro dela com a Princesa Isabel:

Quando Ana atravessou o salão acompanhada de Manuela, olhos atentos e furtivos a observavam. Ana era o modelo de mulher e mãe naqueles anos difíceis do Império brasileiro. A Princesa Isabel levantou-se e apressou-se ao encontro de Ana. Disse com voz baixa, quase sussurrante: – Minha senhora Ana, gostaria que sentasses comigo! Ah! Como quero ter a honra de me sentar ao vosso lado!

A primeira parte nos conta também que ela estava com a saúde debilitada e termina com sua partida:

Mal pronunciou essas palavras e Ana tombou nos travesseiros, imersa em uma forte dor. Tiana acudiu. – Ai! Ai! O que tem, Nhá? Ana apertou-lhe as mãos. As duas se olhavam, mãos estreitadas e olhar severo. Súbito a dor cessou. Assim como veio, assim se foi. – Mais uma desta… e parto! – arfou Ana. […] Ana Néri tinha a cabeça inclinada para a esquerda e o rosto tranquilo, e segurava o retrato firmemente nas mãos.

– Pai nosso que estais nos céus… – iniciaram em murmúrios respeitosos. Eram 16h30. Tiana chorava num canto, com as mãos cobrindo o rosto. Nhá, minha mãe, vai em paz, sussurrava entre o choro contido e o horror de ver morrer quem amava.

A partir daí, sabemos que o restante da história acontecerá no passado. Apesar de a narrativa não seguir uma linha temporal linear, as idas e vindas cronológicas funcionam para apresentar melhor os personagens, evidenciando, assim, outra característica importante do gênero novela. Nas páginas 40 e 43, por exemplo, ela relembra o dia do casamento e o funeral do marido:

– Volta quando? – perguntou Ana. – O quê? Pra onde? – Volta pro mar, quando? Isidoro se apoiou no cotovelo direito e se debruçou quase em cima de Ana. – Casamos hoje, dia 15 de maio de 1838, e você me quer longe já? – falou Isidoro, sério. – Não! Não, claro que não, meu querido! O contrário… – E se agarrou a ele. – Por mim, não sairia nunca desta casa!

[…] Mas quando Ana surgiu na rua com passos lentos, segurando as mãos dos filhos caçulas, Isidoro e Pedro Antônio, e à frente, segurando um buquê de variadas flores, o mais velho, Justiniano, todos os olhos se voltaram a ela, que vinha pesarosa, com os amigos e parentes próximos. Meu Deus! Meu Pai! O que será de mim com três filhos homens e pequenos? Meu coração está arrasado…! Tenho que fazer alguma coisa… ai! Meu coração que não aguenta! A multidão abriu e Ana passou lenta e tristemente. Que calvário! Por que não fujo daqui! Que eu me acabo, sim, me acabo! Ver Isidoro morto e ainda levar os filhos para que vejam e… bem! Ana estacou diante do caixão, toda a sua dor extravasou em silêncio. Tinha que interpretar, ou melhor, ser forte, muito forte, diante dos filhos.

É também nessa parte do livro que ela fica sabendo que seus três filhos irão para a guerra:

– Tenho três filhos… e homens! Todos vão pra guerra e eu ficarei aqui sem marido… e filhos! – lamentava-se. Maurício entrou no quarto esbaforido.

– O que há, Ana? Deixa, deixa disso! – pedia. – O quê? Não chorar meus três filhos que vão para a guerra? – falou em tom bravo. O irmão calou-se. Não tinha argumentos ou força para amenizar a dor de Ana Néri.

E que ela decide que irá para a guerra:

– Quero acompanhar vocês ao Paraguai, também fazer algo bom! Os rapazes avançaram em passos rápidos, mas a expressão no rosto era de espanto. – A senhora, minha mãe, quer ir à guerra?! – perguntou Justiniano. Ana não respondeu, mas encarou cada filho com paciência e um leve sorriso no canto da boca. – … mas o que é isso, mãe?! Isso é sério? Não acha que seja perigoso, mortal? – desabafou Pedro Antônio, dando passadas ruidosas ao redor da família. – Me respeite! Não sou louca! Por que não poderei partir também? – … é uma guerra… – falou alto Justiniano. – O que me importa?! Se meus três filhos vão ao Paraguai, não tenho nada mais que me prenda por aqui… vou também! Quero ser útil.

Na terceira parte, vemos sua partida rumo à guerra, seu aprendizado no ofício da enfermagem no convento e o cuidado com os feridos de guerra – tanto brasileiros quanto paraguaios –, assim como o fim da guerra, com as homenagens prestadas a ela. Seus cuidados lhe garantiram fama no combate, como mostra o trecho da página 106:

– Conheço a senhora. Está famosa! – Eu?! – espantou-se Ana. – Sim, senhora, todos falam da senhora… – Por quê? O que há? Rozendo se aproximou ainda mais. Todos da sala observavam silenciosos, atentos à conversa. Eram médicos, freiras e enfermeiras. – Falam muito, os soldados e oficiais, entre outros, que a senhora é a salvação de todos! – E acentuou as últimas palavras.

Ao longo da história, o autor nos apresenta os pensamentos não só da protagonista como também de outros personagens, evidenciando a presença do narrador onisciente. Temos assim o pensamento do marido de Ana Néri, no trecho da página 41:

Que moça minha tão meiga! Ana, Ana, você me é um presente! O que seria de mim, homem do mar,

na aventura de tantos portos e mares? Agora tenho em quem pensar, quem esperar… Gosto de você!

O pensamento de um dos filhos quando ela decide ir para a guerra, na página 51:

Mamãe conseguirá? Será? Sei que procurará todos os meios. Oh, meu Deus! Como será isso? Proteja-a! Guarde-a! Sei que não desistirá, pois não terá mais nada a perder depois que embarcarmos ao sul, assim pensava Justiniano, mais consolado. E outro pensamento do filho quando a encontra no momento da guerra, na página 123:

Ela tá magra, abatida. Um frangalho de magra, mas é minha mãe! Ela veio mesmo! Mãe…! Mamãe!

Portanto, ao contar a história de Ana Néri, Carlos Alberto de Carvalho criou uma novela que exalta o vigor de uma mulher forte e determinada, que virou símbolo da enfermagem no Brasil. A trama incentiva o leitor a se colocar no lugar do outro, a conhecer seu ponto de vista e suas motivações. Ao trazer ao leitor novos contextos, mundos e realidades por intermédio da leitura, a obra literária proporciona a compreensão das narrativas produzidas ao longo da História a

fim de entender e ressignificar o presente, além de estimular a projeção do futuro. Ela incentiva ainda a imaginação, a criatividade, auxilia na ampliação de vocabulário e na construção de conhecimentos de múltiplas áreas do saber. Há que se notar também a presença de questões atemporais nas entrelinhas da obra, como amor materno, guerra, morte e luto, aspectos que fornecem elementos para uma reflexão mais do que necessária sobre a atualidade. Afinal, como defendeu o antropólogo e filósofo Edgar Morin, a literatura nos oferece antenas para entrar no mundo.

Tipografia Adobe Garamond Pro

Ao ver seus filhos serem enviados à Guerra do Paraguai, Ana Néri não se conformou: seguiu-os ela também. Posteriormente, em razão de sua atuação dedicada no socorro aos feridos das batalhas, ela recebeu diversas homenagens. Ao protagonizar a própria história e desafiar as convenções sociais que lhe impunham passividade simplesmente por ser mulher, Ana Néri trilhou caminhos que se revelaram fundamentais para a história do país e do ofício da enfermagem, ajudando a cuidar e salvar muitas vidas ao longo de sua jornada. Mas quem foi Ana Néri – a mulher, mãe, pessoa? Nesta narrativa envolvente, o autor Carlos Alberto de Carvalho esboça aspectos da personalidade dessa figura histórica e, ao entrelaçar ficção e realidade, traz ao leitor uma perspectiva única, inovadora e humana sobre essa mulher muito à frente de seu tempo.

ISBN 978-65-89370-03-1

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