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VIII.Salvador, agosto de 1865
by UDL Educação
VIII
salvadoR, agosto de 1865.
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no cais de salvadoR, as três amigas se abraçavam e a efusão não deixava de tocar também a escrava Justina, que, acompanhando o grupo, era vista pelos outros de maneira diferente. – Escreverás, Ana, por favor, quando chegar ao Rio de Janeiro? – quis saber, preocupada, Bárbara. – Sim, claro, escreverei. – Não se esqueça de mim, minha amiga! – falou, com voz embargada pelo choro, Manuela.
Ana se voltou para Justina e percebeu que ela seguia acompanhada da filha, Sebastiana. Olhou-as com atenção e se aproximou. – Justina, minha querida, cuida bem da Tiana, porque quando retornar do terror, que por ora é para onde me dirijo, te buscarei para que fiques comigo! – disse ternamente. – Sinhá, Sinhá! Xá comigo que tomo conta! – respondeu a pobre escrava, intimidada.
Ana encaminhou-se em direção a Manuela. – Queres me agradar muito bem, Manu? Queres mesmo? – perguntou. – Claro, querida! – Pois bem. Cuida daquelas duas por mim, sei que são tuas, mas conversaremos quando eu retornar…!
Manuela olhava espantada a amiga, jamais pensou que o último pedido de Ana seria o cuidado com duas escravas. – Venha cá, minha cara! – pediu Ana, abraçando-a fortemente. – Obrigada! Obrigada por tudo que fez por mim!
As três mulheres se abraçaram e começaram a chorar. Justina deixou uma lágrima rolar pela face. Sebastiana observava, atenta.
Ana desvencilhou-se dos braços das duas amigas com força. – Deixem-me ir! Deixem-me… jamais pensei que sairia um dia de minhas terras, de minha casa… Vou não sei para onde, não sei por quê… Mas vou com meus filhos, meu irmão, meu sobrinho Arthur… vou…
Andou, andou, subiu as escadas e não se voltou uma única vez para acenar às amigas, a Justina… a Sebastiana. Forte, passos firmes, segurando sua própria mala.
Ana somente saiu de seu compartimento no navio quando percebeu que estava em alto-mar, sem a vista das terras baianas. Não queria ficar dividida entre os sofrimentos. Qual deles seria o pior: deixar a terra ou ir à guerra?
Sentia-se pesada ou mesmo assustada. Viajar sozinha entre tantos homens e pouquíssimas mulheres – quase não as via –, rumo ao desconhecido. O que fazer? – Que beleza é o mar! Que coisa encantadora! Oh! Esse vento na cara… tanta água, parece um tapete que se mexe vez por outra… Que coisa espetacular, vou ficar por aqui e olhar, olhar, olhar! Que bom!
De súbito alguém lhe tocou levemente no ombro. Voltou-se e viu-se diante de um rapaz franzino sorrindo como que a querer dizer algo, mas que nada falava, apenas sorria. – Oi, filho, fala!
O rapaz se fez sério e se afastou rapidamente.
Ana ficou parada, vendo-o se afastar, sem entender nada. – O que ele queria comigo, o coitado?
Ao olhar o convés, percebeu os marinheiros ocupados em suas tarefas pesadas, então se aproximou da amurada. Apoiou-se nela para admirar o mar, o mar grande… e os seus pensamentos se alargaram como a extensão e a profundidade do oceano.
O que fiz comigo? É isso mesmo a fazer? Agora aqui e aqui estou… sozinha, uma solitária indo para a guerra!
Que me una a Pedro, Isidoro e Justiniano! Que me una a esses meus filhos!
E olhava o céu e olhava o mar. Olhava: porque tudo era como uma única coisa: solidão. A mulher solitária em busca de conforto entre feridos e mortos de guerra!
Suspirou profundamente.
Voltou-se, então, resoluta: Tenho que encontrar o rapazinho que veio a mim; ele parecia aflito. O que será que ele tem?, e, enquanto pensava, tentava localizá-lo.
Bem, terei de andar pelo navio. Não me é permitido ficar andando, mas encontrarei o garoto!
Sob o olhar de rapazes e homens maduros, Ana andou pelas salas e compartimentos do navio até encontrar o moço. Ele estava retraído, sozinho na cozinha, descascando cebolas e batatas. Aproximou-se. – Qual é o teu nome? O que queria? – indagou Ana diante do rapaz.
O marujo ergueu a cabeça, assustado. Os olhos, a expressão do rosto, de surpresa. – Como a senhora chegou aqui…? Não… pode… – gaguejou.
Ana se aproximou mais e mais. – Bobagem! Estou indo para a guerra! Ficarei entre homens e homens! Por que não poderia estar aqui? Fala! O que queria comigo?
O rapaz abaixou a cabeça, intimidado. O rosto enrubesceu demais. Ficou vermelho e não respondeu. A faca se afrouxou na mão e a cebola caiu da outra.
– Se não falar, ficarei aqui parada. Não arredarei o pé daqui… Acho que até descascarei batatas! Tô cansada de ficar trancada, sozinha!
E assim falou e avançou para se sentar em outro tamborete naquele ambiente quente e abafado.
O moço pegou a cebola que lhe escapou e disse atabalhoadamente: – Senhora… senhora, me chamo José Manuel! – Hummm… novo, um garoto… bem, e quantos anos tem? – Completei dezoito anos, senhora.
Ana estava por demais perto. Estavam tão próximos que ambos ouviam a respiração um do outro. – Sei… – murmurou Ana.
José então ergueu a cabeça e os seus olhos tristes fixaram-se na mulher. Os dois se encararam por instantes de compreensão. – A senhora de longe, quando vi a senhora de costas, me lembrou minha mãe… – falou com voz embargada pela emoção e concluiu: – Sabia que não era minha mãezinha, mas ousei me aproximar; queria ao menos ver a cara da senhora e ter minha mãe perto de mim…! – explicava, já choroso, com as lágrimas rolando pelas faces vermelhas.
Uma agulha ou foi um arrepio que penetrou no coração e no corpo de Ana? Ela titubeou, mas encontrou forças para se manter em pé. Forte, uma rocha lhe enrijeceu as pernas. Firme.
– Não chore, filho! Não chore!
O silêncio de comoção pairou entre mulher e rapaz. – Fique de pé, filho!
Ele obedeceu prontamente, choroso. Ela, admirada, aguentando-se. – Há quanto tempo não vê a tua mãe? – quis saber. – Há mais ou menos um ano, senhora!
Ai! Ai! Meus filhos… este filho! Que eu não me lance ao mar! Que aflição no meu peito! O que é isso que me tortura?! Minha Nossa Senhora!
As pernas fraquejaram, sua mente, no entanto, ordenou ao corpo que se mantivesse firme, vigoroso: … tenho três filhos bravos, e eu sou também a mãe, a brava!
O que fazer agora? Como pude me aproximar dessa senhora? Agora ela aqui está, e nervosa! Que não se queixe ao capitão, meu Deus do céu!
Ana avançou e tomou o rapaz nos braços, animando-o. – Chore, filho! Fique bem, moço!
José prorrompeu em fortes soluços, chorando convulsivamente, abraçando Ana com força. – Meu filho, vamos conversar durante a viagem… Agora, aqui, sou a tua mãe! – disse Ana amorosamente.
O aflito marujo afastou-a em instante de si e falou: – Mil desculpas, minha senhora! Perdão! – O que é isso? Que nada… Sou mãe de três rapazes! – Sim… e onde estão eles? – Na guerra, para onde tô indo, filho!
José Manuel olhou-a admirado, inclinou a cabeça e chorou silenciosamente. – Senhora… – murmurou resignado.
Ana tinha os olhos bem abertos, fixando-o.
Tenho por agora um filho pelos meus filhos!
E durante a viagem assim procedeu Ana, como se fosse a mãe de José Manuel, indiferente aos demais homens e os seus superiores, que não se opuseram ao tratamento dado ao marujo. Mãe e filho adotivos, coisas do coração. A dor mitigada, uma compensação para ambos.