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I. Rio de Janeiro, janeiro de 1880
by UDL Educação
I
Rio de JaneiRo, JaneiRo de 1880.
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– deixa… deixa eu ver? – O quê? – Deixa eu ver a medalha, filha?
Sebastiana pôs as mãos na cintura, confusa. Olhou em volta e foi à penteadeira, viu a caixinha. – Esta, senhora? É esta?
Ana sorriu, erguendo-se da cama, resoluta. Foi até a mesa de cabeceira, do outro lado do quarto. Caminhava sorrindo, quando passou diante da janela, a cortina tremulou, suavemente, e a lufada suave do vento da tarde bateu-lhe no rosto, no corpo. Fechou os olhos e vislumbrou… estacou e, parada, imaginou-se, no campo, na batalha, caída entre dois soldados, na vala, protegida pelos rapazes. Um deles a cobria com o corpo e lhe tapava os ouvidos, a cabeça. Voltou. Um arrepio lhe percorreu a espinha, tal qual uma dor. Abriu os olhos e caminhou pelo longo quarto.
– Tiana, já lhe pedi que não me chame de senhora! – Como não, senhora…? Chamar como? – Apenas Ana. Sim, Ana, porque gosto do meu nome. Agora venha ver a medalha que o Imperador me concedeu.
A criada foi ao seu encontro, animada. – Xá ver, senhora, então.
Ana tinha a grande medalha na mão, estendida, orgulhosa. – Aqui está. Veja, Tiana!
Que eu não admire essa coisa assim… Como olhar isso sem me lembrar dos perigos e medos; quantas aflições suportadas… e os tiros? A lástima de viver…! Eu vivi pelos meus filhos, pela minha família…, pensou e fechou a mão.
Tiana se assustou, recuou. A mulher abriu a mão, envergonhada pelo gesto involuntário. – Viu, tô velha e boba, fechei a mão à toa – disse sem graça, agora o rosto sério.
A outra apanhou a medalha e pôs-se a mirá-la contra os raios de sol, que entravam festivos pela grande janela. Ainda ventava, e as mulheres eram cúmplices, tão próximas. – O Imperador, Sinhá? Foi ele que deu? – Sim, Tiana, porque voltei viva do campo das mortes. – Credo, Sinhá! – Benzeu-se a criada. – Credo! Que campo da morte?
– De onde vim… onde estive para ficar perto de meus filhos e cuidar de outros homens!
Tiana voltou-se, fixou o olhar no rosto da outra, encarou séria. – O campo da morte? – Sim, só da morte, minha filha!
Ouviu-se, então, um alvoroço no andar de baixo. – Chegaram, Sinhá! Ouviu? São eles! – animou-se Tiana, abandonando a medalha sobre a mesa de cabeceira. – Sim, chegaram. Que bom! A casa ficará mais animada.
Tiana não respondeu, desapareceu lépida. Não viu Ana pegar a medalha e apertá-la contra o peito. – Mas fiz o que tinha de ser feito – murmurou e guardou a medalha.
No andar térreo, cansados da longa viagem, encontravam-se o filho Pedro com a mulher e seus filhos.
Ana desceu as escadas apressadamente. Queria ver a nora, queria ver os netos. Tiana seguiu a senhora com os cuidados generosos de que ela necessitava: eram duas mulheres que moravam na casa confortável, contudo eram somente elas, as habitantes absolutas.
Pedro Antônio, capitão do Exército, aparecia vez por outra para visitar a mãe. Permanecia na casa por horas a fio, acompanhava a mãe ao jardim nos fundos da residência. – Vocês chegaram! Que bom! – gritou ao pôr os pés no último degrau. Os braços abertos, feliz, apanhando os dois netos em grande abraço.
– Mãe…! Mãe, somente uma mãe pode rever um filho após percorrermos os terríveis Estados do Brasil, do Rio de Janeiro…! – disse o filho, nervoso, com mãos trêmulas. – E as crianças correm… como se nada tivessem sofrido – dizia Ana, contente, agarrada aos netos.
A casa, que se mantinha silenciosa, casa de mulher velha, solitária e cansada, agora berrava, agitada com os jovens visitantes.
Tiana, parada com a mão na cintura, em meio ao grande salão de entrada, sorria, ainda se acostumando com a agitação nova. – Vamos, Tiana, aprontar o jantar, sei lá, alguma coisa de comer, não? – convidou Ana. – Sim, Nhá. Vamos, sim!
Ana tinha uma mão segura no neto e olhava para a criada numa expectativa alegre, satisfeita com a chegada do casal e dos filhos, um contentamento a olhos vistos. – Mãe! Mãezinha querida, deixa disso. Sabemos nos ajeitar – falou Pedro, desculpando-se. – O quê?! Não custa nada, vamos todos lá pra dentro – pediu Ana, animada.
Todos se entreolharam e obedeceram, rumaram para o interior da casa.
Três dias depois, Ana estava a gritar no topo da escadaria. – Tiana! Tiana, cadê você?
A moça saiu esbaforida de um dos quartos, atarantada. – Sim, Nhá? O que quer, Nhá?
Ana surpreendeu-se com a saída estrepitosa da criada, conteve-se para não rir. Disse: – Arrume-se! Vamos ao cemitério em meia hora!
Pedro apareceu à porta de seu quarto. – Bom dia, mamãe! A sua bênção. – Deus te abençoe, Pedro. Bom dia! – Vai ao cemitério? Alguém faleceu? Quem?
Ana juntou as mãos e deu dois passos para trás, escondendo-se do olhar do filho. Pedro avançou, curioso. – Mãe? O que foi?
A mulher não respondeu. Voltou-se, abriu a porta do quarto e a fechou, guardando-se no cômodo. O filho encaminhou-se até lá e bateu à porta. – Mãe?! O que aconteceu? Abra a porta! Por que não me responde? – E batia com força.
No interior do quarto, Ana estava sentada na borda da cama, cabisbaixa, os olhos marejando lágrimas, com as mãos nervosas, juntas, apertando-as quase aflita. – Mãe, abra! Quem morreu? – queria saber Pedro.
Ana sacudiu a cabeça, mexeu com força, desalinhando os cabelos já penteados. Cobriu o rosto com as mãos e chorou um pranto sentido. Choro de mãe;
dor sentida de mulher e mãe. O que fazer? Lançar-se janela abaixo ou arrancar fio a fio os cabelos da cabeça? Controlou-se, enxugou o rosto, ergueu a cabeça, engoliu em seco e, em voz terna, com um quê de carinho, respondeu ao filho: – Oi! Pedrinho? – Mãe, sou eu. – Um instante, filho, já abro a porta.
Levantou-se e com passos firmes encaminhou-se à porta. Abriu-a. O filho precipitou-se no quarto. – O que há, minha mãe? Por que se trancou e não me respondeu?
Ana sorriu contra a vontade. Não ousou mentir. – Nada, não, Pedrinho… é que… – Mãe, fala comigo!
A mulher adiantou-se e se jogou nos braços do filho, o corpo pesado, um bloco de mármore de peso esmagador caiu sobre Pedro. Ele teve que sustentá-la, firme, nos braços. – Então, mãezinha…
Ana soluçava, somente isso. A dor era maior. Sabia se conter, guardar para si.
Mirou nos olhos do filho. Os dois cara a cara: mãe e filho, sérios, aflitos, fitando-se fortemente. – O que foi, mamãe? – insistia o homem. – Quando a dor aperta, vou ao Francisco Xavier; caminho por lá, rezo na capela e recordo teu irmão,
meu querido, perdido na guerra: Justianinho… meu filhinho…
Pedro calou-se e afagou a cabeça da mãe, estreitou-a mais e mais nos braços. Um confortava o outro, o abraço que fala mais que as palavras. – Irei também, minha mãe. Acompanharei…