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V. Salvador, janeiro de 1865

V

salvadoR, JaneiRo de 1865.

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ana descia as escadas como se repetisse os passos do dia do funeral de Isidoro. Sabia que encontraria os três filhos, os irmãos e outros parentes, todos reunidos no salão. Estavam aguardando por ela.

Isto não é um domingo! Isto é uma sexta-feira de azar e mau agouro! Tenho que ter fé e esperança! Meu olhar deve ser de esperança…! Não posso ceder às minhas fraquezas, uma mulherzinha tola, não, não! Chegarei bem, sorrindo mesmo que meu coração esteja batendo desacelerado! Vamos? Vamos!

E ela entrou na sala repleta de gente. – Mas isto aqui é uma festa? – brincou, animada.

Falou e os olhos percorreram ávidos por todos os cantos, olhou a todos num átimo, em velocidade de angústia e viu dois filhos: Justiniano e Isidoro. Os olhos procuraram o outro, sim, o outro: Pedro Antônio. Onde estava? Cadê Pedro Antônio? E tanta gente! Será que toda a Bahia está aqui? Maurício havia dito que seriam somente as famílias mais próximas, os familiares envolvidos com

a nossa família, que os filhos também seguiriam para a guerra… então conhecemos toda a Salvador, não é mesmo? – Mãe! Mãe!

Ana estacou. Reconheceu a voz. Era Pedro, estava atrás, entre casais se divertindo em conversa alta. – Tô aqui, mamãe! – falou ternamente o rapaz.

A mulher se voltou rápida e feliz. Correu ao encontro: – Pedro! Pedro, meu querido, por que não estava junto de Justiniano e Isidoro?

Abraçaram-se. Ela logo passou a mão no rosto do filho. – Lindo! Meu bem! – Calma, mãe, calma! Todos estão olhando. Calma que não vou escapar. Me dá o braço. Vamos! Um instante que saí, para respirar, veja como isso está abafado. Tio Maurício exagerou trazendo tanta gente! Fui respirar um pouco lá fora. – Sim, tá bom, já achei você. Vamos pra perto deles. Quero todos perto de mim.

A grandiosa casa do major Maurício recebia os convidados: famílias e todos os envolvidos na iminente guerra contra o Paraguai.

Esta reunião estava sendo realizada para fortalecer os ânimos, provocar o bem-estar entre pais e filhos, que partiriam para um confronto arriscado, porquanto finalidade de amenizar o clima de tensão e dúvida que pairava no ar: o Brasil tinha capacidade de entrar em confronto bélico e obter resultados positivos? Esta e

outras dúvidas afligiam o Império e, principalmente, a viúva Ana Néri.

Tenho que manter o sorriso. Não é assim? Parecer despreocupada. Se não vou logo, logo abrir a boca em pranto medonho… Vamos, vamos, são meus filhos. Minha vontade era correr feito louca por este salão, gritando: meus três filhos vão à guerra! Quem me salvará?! Que provação esta! Ah! Arthur está ali com os dois, como tá bonito, sempre foi. Que sobrinho bonito! Vai pra guerra também? Meu Senhor e Deus, que não restarão os homens da família Ferreira!

Justiniano se adiantou com desenvoltura. Era alto, corpo definido, rosto de traços firmes, olhos negros e grandes que lhe davam um ar encantador, mas era a voz, sim, a voz que atraía a todos. Voz possante, viril, em tom grave que envolvia quem se interessasse a lhe falar. – Mamãe, mamãe, aonde ia com tamanha pressa? Procurava o seu queridinho? Achou? Voltou com ele… – falou em tom jocoso, Justiniano. – Não fale assim, filho, gosto de todos.

Justiniano piscou os olhos para Isidoro, dizendo: – Mas o Pedrinho é o caçulinha, não é mesmo?

Ana parou, olhou os três filhos e avançou: – Mas é ciúme? Deixe disso, Justiniano, que coisa!

A mãe então se sentou. Os três filhos se aproximaram. Isidoro se sentou mais próximo, o rosto assustado. Voltou-se para a mãe com aflição. – Dentro de três dias embarcaremos, mãe. Nós temos que ir, mas…

– … o quê? O quê, meu filho? – E a senhora ficará como?

Justiniano se intrometeu, nervoso. – É… mãe… fazer o quê? – Temos que ir! – confirmou Pedro.

Ana abriu os braços, compreensiva. – Não tenho mais o pai de vocês, meu irmão vai, o Arthur… vocês três… Que coisa ruim aqui no peito…

Isidoro se jogou chorando nos braços da mãe.

Justiniano se ergueu aflito. Aproximou-se da mãe e dos irmãos, compadecido. Todo ele tremia, as mãos unidas. Parou e disse: – Mamãe, acalme-se! Olha pra mim, mamãe, nós voltaremos, não vamos morrer no Paraguai! Olha! Olha pra mim, mamãe! – falou resoluto, em tom forte, bravo.

Ana olhou-o, viu o filho diante de si, homem, corajoso, bonito, seu filho. O que será de mim? Tenho que ser forte, nada de mulher fraca, boba. Olhe firme pra ele e sorria. Como está bonito este meu filho! Aqui estamos em dores: eu, a mulher das dores sem marido, agora sem filhos, que vão pra guerra. Sinto que um… um… um deles não voltará. Tô angustiada e ele me olha tão firme. Quem ensinou ao Justiniano como ser assim tão envolvente, tão sério, um homem, meu filho?! – … mãe?! Mãe, tá me ouvindo, mãe? – perguntava Justiniano, agora inclinado, diante de Ana. – Sim, Justinho, tô sim; já me acalmei, fiquei confusa… tô mais calma. Deus sabe de tudo e a tudo

providencia – disse as últimas palavras alterando a voz, com firmeza.

Justiniano puxou a mãe de encontro a si, dizendo: – Minha mãezinha, fique bem calma, cada um de nós cuidará um do outro. Estaremos próximos ou ao menos sabendo notícias… – Prometa! Prometam – retrucou Ana. – Vamos! Pedro e Isidoro, levantem-se, fiquemos de pé e prometamos que cuidaremos um do outro!

Os irmãos se abraçaram diante da mulher, apertados, cabeças erguidas e com os olhos fixos na mãe. – Sim, prometemos! – falaram juntamente.

Ana deu um passo. – Ah! Pensei em uma coisa… Hã, não, nada, não… que coisa! – Fale, mãe! – incentivou Pedro. – Nada, é coisa que me passou pela cabeça, sei lá, nada não… – Mas fale mesmo assim, por que não? – incentivou Pedro.

Os três olhavam a mãe, silenciosos, atentos. – Sei não, sei não, será que não poderia acompanhar vocês ao Paraguai? – perguntou e abaixou a cabeça, sem graça.

Os três rapazes se entreolharam bastante surpresos. Parecia que não haviam entendido o que a mãe dissera. – Mamãe, não entendi… – falou Justiniano.

Ana ergueu a cabeça.

– Quero acompanhar vocês ao Paraguai, também fazer algo bom!

Os rapazes avançaram em passos rápidos, mas a expressão no rosto era de espanto. – A senhora, minha mãe, quer ir à guerra?! – perguntou Justiniano.

Ana não respondeu, mas encarou a cada filho com paciência e um leve sorriso no canto da boca. – … mas o que é isso, mãe?! Isso é sério? Não acha que seja perigoso, mortal? – desabafou Pedro Antônio, dando passadas ruidosas ao redor da família. – Me respeite! Não sou louca! Por que não poderei partir também? – … é uma guerra… – falou alto Justiniano. – O que me importa?! Se meus três filhos vão ao Paraguai, não tenho nada mais que me prenda por aqui… vou também! Quero ser útil.

Os filhos se sentaram abismados, confusos.

Ana observa-os atentamente, feliz por ter três filhos amáveis. – Sim, eu tentarei todas as maneiras possíveis! Se vocês partirão, eu também irei!

Falou, olhou-os mais uma vez, foi-lhes ao encontro, beijou-os nas frontes e disse claramente: – Deixem-me ir, devo ajudar também na arrumação de alimentos e suprimentos. Daqui a pouco conversaremos mais.

E partiu em rapidez de quem quer ajudar.

– Ouvimos isso mesmo: nossa mãe pretende ir também à guerra? – falou, perplexo, Isidoro. – Sim, irmão, dona Ana Néri, nossa mãe, pretende nos acompanhar…

E os três rapazes olhavam o vaivém das pessoas, muitas, mas seus olhos não viam, tão assustados estavam com a informação dada pela mãe.

Mamãe conseguirá? Será? Sei que procurará todos os meios. Oh, meu Deus! Como será isso? Proteja-a! Guarde-a! Sei que não desistirá, pois não terá mais nada a perder depois que embarcarmos ao sul, assim pensava Justiniano, mais consolado.

A ideia ou o desejo entrou no espírito de Ana e assim desabrochou. Inquieta, no dia seguinte retornou à casa do irmão. Encontrou-o à mesa do desjejum, tranquilo, nem parecia que no dia seguinte embarcaria rumo à província do sul, acompanhado de quatro sobrinhos, além de Justiniano, Antônio e Isidoro, filhos de Ana, e Arthur, outro sobrinho; uma família rumo à Tríplice Aliança!

O que provocou tal situação? Ou significava uma guerra no sul das Américas? Por que Argentina, Uruguai e Brasil se uniram contra o Paraguai?

O Uruguai tinha lutas entre os partidos Blanco e Colorado, uma guerra civil na qual o Brasil se intro-

meteu e o ditador paraguaio Solano Lopes não gostou, contrariou-se e não se fez de rogado para que o Império brasileiro notasse seu aborrecimento.

Solano aproveitou a deposição de Atanásio Aguirre, seu aliado, do Partido Blanco e, contrariado em seus interesses, aprisionou no porto de Assunção, em 11 de novembro de 1864, o barco a vapor brasileiro Marquês de Olinda, que transportava o presidente da Província do Mato Grosso, Frederico Corrientes, entre outros brasileiros distintos e oficiais da Marinha.

Solano Lopes era um homem ambicioso, de olhos expansionistas e desejos largos, possuía material bélico moderno e se sabia que pretendia alargar em territórios outros, como os da Argentina, do Brasil e do Uruguai, regiões que abrangeriam as áreas de Correntes e Entre Rios (Argentina); Rio Grande de Sul e Mato Grosso (Brasil); Uruguai e o próprio Paraguai.

O Brasil do século xix era um Império incômodo com fronteiras republicanas.

O governo de Solano instituiu aos paraguaios o serviço militar obrigatório, organizou todo o exército com oitenta mil homens, arregimentou a Marinha e estabeleceu indústrias bélicas.

O coronel Carneiro de Campos, que tinha em sua embarcação rumo à Província do Mato Grosso o médico Antônio Antunes da Luz, além de outros passageiros e a tripulação, viram-se sós, desemparados, antes tão rápida e insólita prisão!

Solano Lopes estava tão certo da vitória e do sucesso que logo invadiu o sul do Mato Grosso e deixou os prisioneiros brasileiros sucumbirem à fome e aos maus-tratos.

Tais acontecimentos trágicos chegaram aos ouvidos do Imperador d. Pedro ii, que, com o seu ministério, estavam estupefatos ante tamanha ousadia e arrogância do ditador paraguaio.

O governo imperialista brasileiro devia ficar atento ao que ocorreria no sul de Mato Grosso e como deveria reagir ao aprisionamento do general Carneiro e dos outros com ele aprisionados.

O Brasil não estava preparado para uma guerra, mas os esforços ou orientações deveriam convergir primeiro para o Rio de Janeiro, onde os oficiais do Exército e da Marinha receberiam instruções e, em seguida, partiriam ao Rio Grande do Sul.

Atenta por demais, Ana ouvia os boatos e procurava saber notícias certas do conflito.

Mas como? Uma viúva e na Bahia?! Como saber? Quem confiaria em mulher, viúva e baiana? Que notícias poderiam ser autênticas ou falsas? Como saber? Como filtrar? Ter certeza? Somente no conflito! Lá entre homens, soldados, paraguaios, uruguaios, argentinos… brasileiros: sobrinho, irmão, filhos; o Arthur, o Maurício, o Justiniano, o Isidoro, o Pedro. Valei-me, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Anjo da Guarda! Minha família toda numa guerra e morrerão todos?!

Sobressaltada, Ana acordava no meio da noite entre latidos distantes de cães e o canto de galo alheio, banhada de suor, com as mãos no coração, afogueada. Minha Nossa Senhora, mãe de Jesus!

Acordava e, com os olhos esbugalhados, fitava amargurada a escuridão, numa tentativa de enxergar o teto do quarto e se agarrar num desespero avassalador, que a fazia levantar da cama, abrir as janelas e ficar até o amanhecer com a cabeça apoiada na travessa, na persiana de madeira, absorta, fora de si, entre um estado de tristeza profunda e imperiosa vontade de correr desatinada pelas ruas de Salvador, gritando feito louca: “Parem! Parem! A guerra cessou! Meus filhos devem voltar pra cá! Pra mim!”.

E não mais sabia se delirava ou vivenciava um estado de loucura. Não comia bem, vomitava sempre e desejava a morte, antes de receber uma notícia funesta.

E os meses avançaram, quando recebeu a visita inesperada da amiga de infância.

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