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VI. Salvador, maio de 1865
by UDL Educação
VI
salvadoR, maio de 1865.
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a caRRuagem paRou defronte à casa. Carruagem de madeira forte, vistosa; os adornos adequadamente em alto-relevo; coisa de pessoa importante, endinheirada, pois os cavalos que conduziam eram, na verdade, robustos corcéis.
Todos os olhares: dos negros, das mulheres às janelas, dos homens brancos em quitandas, bares e armazéns da rua se voltavam para a portinhola do veículo que estacionou defronte à casa de dona Ana Néri.
Quem era? O que veio fazer em Salvador? Por que tal visita em casa de mulher reclusa, solitária, somente frequentada por duas ex-escravas e o robusto Leléo, negro de rosto indômito, traços bonitos, principalmente a boca, mas que deixava grande impressão pelo andar vigoroso, voz possante e enormes olhos negros, negros?
Leléo era um gigante, porquanto protetor de Ana Néri.
Então o cocheiro desceu e rápido abriu a portinhola, enquanto imediatamente surgiu Bárbara muito bem
trajada e com gestos afetados. Metida, cabeça erguida arrogantemente. – Vamos! Vamos! Que calor infernal! Que lugar é este, por aqui? Pois tudo parece a derreter com tamanho calor! – E assim falando, atravessou a pequena calçada, empurrou a porta de ingresso da casa e gritou: – Ana! Aninha! Adivinha quem chegou? Ufa! Que viagem, purifiquei-me de todos os meus pecados! – falava séria, olhando a longa e sinuosa escadaria na vastidão da requintada sala, que adentrou sem pedir a permissão.
Olhava e falava, quando Ana surgiu no parapeito do corredor superior. Cabelos desgrenhados, em roupas de dormir. – Quem é, ora? Que não para de gritar com esta voz irritante!
Bárbara se calou imediatamente. – Sou eu, minha amiga – falou em tom baixo e de polidez. – Quem? Não me recordo a voz e não estou enxergando nada, nada cá de cima.
Intimidada, Bárbara lembrou: – Ana, minha querida, sou tua amiga, lá de Porto de Cachoeira!
A dona da casa crispou a mão direita que se apoiava no corrimão. A boca abriu lentamente, enquanto a cabeça se inclinou numa tentativa de os olhos enxergarem quem ela já sabia. – Bárbara…?! Bárbara?!
– Sim, sou eu mesma!
Ana se precipitou em passos rápidos pelos degraus que a separavam da amiga.
Abraçaram-se efusivas, os extremos do entusiasmo cessaram ao se tocarem. O abraço recolheu em ambas a fraternidade, o toque de respeito e solidariedade que sintonizou o sofrimento de Ana ao carinho de Bárbara.
Permaneceram abraçadas por um curto tempo. O tempo do silêncio que fala, daquele gesto de comunicação interior.
Então se olharam, cara a cara se viram. Ana baixou os olhos, envergonhada. – Sei tudo que está passando, por isso vim aqui para ficar! – disse Bárbara. – … e o teu marido? Como ficarás sem ele? – Ana, não arredarei o pé daqui até o dia que acreditar que assim deve ser!
Ana fitou Bárbara. As mulheres se olharam convictas. – Bem, sim, pode ser, preciso mesmo de alguma companhia… mas devo também dizer que a tristeza é minha! – Claro! Sim, Ana, tua e minha. Nossa tristeza! – Tá bom. Sim, desisto. Pode ficar.
Bárbara, logo que ouviu, puxou-a pela mão, em instantes Ana estava no terreiro, em meio ao sol. – Olha! Repara! – O quê? O quê?!
– Repara este sol, este céu lindo! É nosso, por isso devemos nos alegrar, retirar a tristeza – falava Bárbara enquanto ainda puxava a amiga pela mão.
Ana estava absorta, ofuscada pela claridade. Dias e dias esteve confinada em seu quarto, entre o desgosto e a morbidez do entristecimento. Seus pensamentos eram direcionados aos filhos, ao irmão… ao sobrinho… Como aguentar sem lágrimas e sensações de desfalecimentos uma guerra que arrastava filhos, sobrinhos e irmão?! Como?! Ana estava destroçada… – O quê?! Que cara é esta, Ana?! Por favor. Atravessei terras e léguas para te encontrar um lixo?!
Ana se voltou à amiga e se deixou abraçar. – Bárbara, Bárbara, tu estás sempre animada. – Não devo? – Não está sendo fácil para mim…
Bárbara aconchegou-a: – Mas… mas, ora, quem está dizendo isso?
Então ficaram silenciosas, quietas, enquanto se olhavam, enternecidas. – Vamos! Vamos! – falou Ana. Prosseguiu mais animada: – Vamos fazer um lanche, comer alguma coisa. Deves estar esfomeada. – Sim, sim, não como bem há dias – confirmou a outra, adiantando-se apressadamente em direção à casa.
No dia seguinte, Bárbara estava sentada diante de Ana. As duas mulheres estavam na sacristia da Igreja São Francisco das Chagas.
Ana buscava consolação, algum conforto, além do carinho da amiga. Queria conversar, ouvir algo da boca do frei Rubião, algo que confirmasse seus propósitos de partir para a guerra… e saber dos filhos, do irmão, do sobrinho… que fazer? Que aflições e que tamanhas angústias! Que bom que a presença alvoroçada de Bárbara a distraía deveras.
Nem sei que fazer de mim. Estou perdida! Não tenho marido, não terei filhos, parentes, ninguém! Meu Deus poderoso, que queres fazer de mim?! Já estou destroçada. Meu querido e bom São Francisco, rogai, rogai, rogai por mim. Rogai por eles, meus filhos, meu irmão… o Arthur, tão novinho! Ai!
E aí se mexeu, Bárbara se ergueu apreensiva. – O que tens? O que tens, Ana, tão quieta…? Fala! – Nada… nada, estou bem, minha querida – falou e sorriu, mas o coração em descompasso, taquicardia constante e um peso enorme no corpo, como se dois elefantes a esmagassem com os seus medonhos corpos. Enlouquecendo? Talvez, em breve. Os pensamentos surgiam involuntários, espontaneamente, sensação de morte… um pressentimento de horror e algo mórbido feito um calafrio, algo gelado que a envolvia e o corpo por completo se arrepiava, e, para não gritar, pronunciava os nomes dos filhos: Isidoro…
Pedro… Justiniano, então se acalmava enquanto a escuridão súbita, que lhe toldava o brilho dos olhos, desaparecia também.
Louca? Amargurada? Uma desgraçada… e desamparada. – Pretende mesmo ir à campanha? Seguir a guerra?
A voz de Bárbara ecoou distinta naquela sacristia espetacular em arte de decoração. Era um teatro? Estava interpretando uma peça teatral? Qual nome? Quem é o dramaturgo? Mas estava no silêncio de uma sacristia, lugar de preparação, primeiro recinto na igreja onde o sacerdote partia para a celebração do culto. – Sim, Bárbara, estou certa! Farei isso, é o melhor. – Melhor? Como, o melhor? Estás partindo para o desconhecido, o horror da fome, medo… morte!
Ana ergueu a cabeça. Bárbara estava em pé, diante da outra. – Meus filhos estão entre os bons e os maus, preciso estar entre eles, Bárbara – replicou e sorriu. – Mas também podes morrer, e eles perderão a mãe. – Tanto melhor, tanto melhor. A ordem natural são os filhos enterrarem os pais, não quero ver um filho morto em meus braços.
Ana falou com tamanho ardor que Bárbara emudeceu. As duas se entreolharam e se compreenderam. – Quero te abraçar, minha amiga, mulher de coragem! – elogiou Bárbara.
– A mim?! Eu, tão medrosa e inconstante – zombou de si, Ana, erguendo-se prontamente e se encaminhando à outra.
Bárbara avançou entusiasmada, dizendo: – Ora, ora, ainda tens cuidado em ser humilde.
E se abraçaram, aconchegando-se intimamente. – Ana, Ana, parta mesmo ao encontro de teus filhos! É o que deves fazer e o melhor – sussurrou, ao ouvido da amiga, Bárbara. – Obrigada! Obrigada pelo apoio e compreensão, Bárbara – falou emocionada a mãe desolada. – O que é isto?! Eu quem devo me desculpar por meus comentários egoístas e nada maternais! Mil e mil perdões – pedia, com lágrimas nos olhos, Bárbara.
E entrou no grande espaço frei Rubião. O homem apareceu em uma maltrapilha veste de frade. A roupa humilde contrastava com a riqueza do recinto. – Aqui estou, minhas senhoras.
Bárbara olhou-o admirada pelas vestes paupérrimas.
Ana avançou silenciosa, mas com os passos apressados, ansiosa. – Frei! Meu frei, que bom que poderei ter tuas palavras por agora! – Sei, filha, sei, que bom que a aparência ficou melhor.
Ana estacou, voltou-se e apontou para a amiga. – Sim, graças a Bárbara, minha amiga de Cachoeira, de Porto de Cachoeira, que veio se hospedar em minha
casa. Ela é muito generosa em querer frequentar uma viúva, sem filhos, reclamona e muito chata – apontava e se encaminhava à outra.
Frei Rubião permaneceu onde estava. Percebeu que Bárbara não se agradou de si. – Bem… reclamona, chata, mas generosa também, porque pretende ir aos locais de guerra. Não vejo mães ou esposas solicitando isso aos governos provinciais.
Ana puxou Bárbara da cadeira e sussurrou: – Ora, levante-se! O que há? Vamos, cumprimente o frei!
Bárbara foi ao encontro do homem; ele a olhava fixamente e disse com voz calma: – Ana, Ana, deixa tua amiga à vontade. É rica, bem trajada, não reconhece as pessoas com trajes como os meus, que são os pobres, os miseráveis, os escravos, coitados!
As mulheres estacaram frente ao homem. Ele continuou: – Cuidado, Ana, você quer ir à guerra, nos confins deste Brasil, por conta de teus filhos, mas o amor deve encher o teu coração, porque não verás talvez teus filhos, mas muita pobreza, miséria, injustiças e crimes presenciarás! Cuidado para não morrer de desgosto, mais que de saudades dos filhos.
Quando terminou de falar, Bárbara caiu-lhe aos pés, enternecida.
– Perdoa-me, frei, perdoa-me. A vaidade, o orgulho me tomam a vida. Perdão!
E não esperando palavras de frei Rubião, segurou-lhe as mãos, beijando-as com emoção. – Basta! Basta, filha, levante-se, vamos daqui ao claustro para conversarmos melhor sobre o horror dessa guerra.
As mulheres seguiram silenciosas pelos corredores longos do templo. Frei Rubião à frente, andar rápido enquanto a solidão invadia o coração de Ana, que olhava atenta os adornos e as imagens esculpidas com esmeros pelos artistas brasileiros.
A Igreja São Francisco das Chagas trazia em sua arquitetura e nos detalhes de entalhes a exuberância do apogeu do barroco português. Andar pelo interior do templo, pela sacristia e pelos corredores que se interligavam por inúmeras dependências era esbarrar com o sagrado pungente, um grito de fascínio e estupor diante de obras-primas em esculturas e pinturas.
Nem sei o que será de mim! O que faço? Como avançar? Devo retroceder? A cada passo que dou, eu me desmorono… que doida que estou eu, hein!
Adentraram o claustro, na parte que mulheres podiam permanecer. Frei Rubião se voltou solícito. Mostrou-se animado, pois desconfiava que a conversa seria tensa. – Pedirei que sirvam um cafezinho, uns biscoitos por aqui. Aguardem.
– Frei, não precisa se incomodar conosco. Estamos bem. Fique! – Não, não, vamos beber e comer; a conversa se torna mais interessante! – disse e saiu rapidamente.
Bárbara ficou diante da amiga. – O que tens? Parece que vais desmaiar! O que tens, Ana?! – perguntou aflita.
Ana se jogou nos braços da outra, chorava convulsivamente. Não conseguia falar, deixou-se ir pela dor, pela saudade que lhe parecia torcer as entranhas: seus intestinos estavam como que à mostra: Reparem! Vejam! Há dor maior que uma mulher assistir à partida de seus três filhos para a distância violenta da guerra? Este é o meu grito e não há quem escute. Por isso exponho aqui as minhas vísceras, porque assim lastimarão com horror a sorte que me foi confiada!, chorava e pensava Ana, amparada por Bárbara.
Frei Rubião retornou e se comoveu diante do que via e se acercou de ambas com solicitude fraterna. – Venham. Sentem-se aqui. Sentem-se! Vamos agora mesmo resolver toda essa lástima e aflição – falava animado, com voz suave, compreensivo.
Ana, amparada pela amiga, sentou-se mais reconfortada. Ao se sentar, puxou de encontro a si a outra e deixou sua cabeça apoiada no ombro de Bárbara. – Frei… – Fala, filha, estou aqui para escutar… e te reconfortar.
– Frei, não sei se sinto vergonha por isso… raiva, porque me mostrei fraca, ou se sou uma boba, mulher estúpida que chora em demasia…
Frei Rubião estava de pé diante de Ana, então se curvou respeitosamente e falou em voz baixa: – Vergonha? Frouxa? Como isso? A senhora está sendo natural, uma grande mulher, porque é mãe. Não está chorando a ausência de um filho, mas de três, todos os três filhos foram embora… para a guerra! Ter vergonha? Sentir vergonha? Como é isso? – falava o sacerdote com os olhos fixos nos de Ana.
A mulher então enxugou com as mãos as lágrimas, que lhes enchiam o rosto. Reanimou-se, a cara enrijeceu e, quando falou, a voz tomou-lhe uma impostação clara e firme. – Frei, então, pelo amor de Deus, me ajude! – pediu a mãe desolada.
O homem se empertigou. O olhar de Ana inflamado desconcertou-o. – Ajudar? Sim, claro, por que não?
Ana se desvencilhou dos braços de Bárbara, atitude decidida, e se pôs de pé, frente ao frei. – Me ajuda a ir também ao sul do Império, à guerra onde estão meus filhos! – falou e juntou as mãos, suplicante.
Frei Rubião se desnorteou. Aturdido ante a resolução de Ana, permaneceu ao menos um minuto em silêncio.
– É isso que realmente quer, minha filha? – indagou responsavelmente. – Sim, frei, é isto: viúva, sem filhos, então me prestarei aos serviços entre os militares, para acudir os feridos e moribundos – respondeu convicta.
Bárbara a tudo ouvia com forte interesse, admirada pela reação dos dois interlocutores. – Preciso saber quem poderá não só me autorizar a ir à guerra, como me dar as cartas de recomendações.
Frei Rubião ouviu, pôs a mão direita no queixo e passou a alisá-lo, preocupado. – Sim, filha, isso mesmo… quem poderá autorizar sua partida e lhe garantir o respeito devido como mulher digna entre diversos homens, das mais variadas procedências.
Bárbara se ergueu, nervosa. – Agora eu também estou aflita. Nem sei em que pensar. Como será isso? Ana, tu tens preparo para cuidar de enfermos, feridos ou agonizantes? – falava atabalhoadamente a amiga. – Bárbara, fiquei viúva aos vinte e nove anos; o Justiniano contava cinco anos e era o mais velho. De repente, fiquei sozinha e com três filhos pequenos… e hoje estão os três no combate – falou séria e com voz firme.
Frei Rubião se sentou pensativo, ficou um momento de cabeça baixa e, em poucos instantes, ergueu-a e os olhos eram setas inflamadas de certeza.
– Tenho um nome. Creio que somente ele poderá te dar cabal autorização e todas as possibilidades ou garantias de mulher numa travessia pelo Brasil rumo à guerra do Paraguai. – Quem, frei? – perguntaram quase gritando as duas mulheres. – Ele é mesmo o único… apesar de ainda jovem, tem articulações boas no governo do Brasil… – Mas quem, frei? Fala, por favor – pediu nervosamente, Ana.
Frei Rubião, diante das duas amigas, pronunciou devagar, quase silabicamente, o nome e a função do promissor protetor de Ana Néri: – O senhor presidente da Província da Bahia, o doutor Manuel Pinto de Sousa Dantas!
Ana e Bárbara se aproximaram silenciosas. – O senhor tem contato com ele, frei? – quis saber Bárbara. Continuou: – É amigo do senhor? – Não, não é meu amigo, mas tenho amigos que o são e poderão ajudar…
Ana bateu palmas, alegre. Frei Rubião se espantou com a atitude. – Perdão! Perdoa-me, frei Rubião, não é adequado tal comportamento aqui no claustro… – Deixa! Deixa disso, dona Ana – falava sorrindo. – Ao menos não vejo mais lágrimas. A esperança já lhe deu alento e contentamento.
Ana sorriu satisfeita.
– O que faremos, então? Como poderemos ser vistas pelo presidente da Província da Bahia, e ele se interessar pela causa de nossa Ana? – falava como pensava Bárbara. – … hummm. Como poderemos ser vistas… – repetiu Ana, feliz. – Pois bem, organizaremos uma festa onde estarão os amigos do frei Rubião e o presidente Manuel Pinto – articulou Bárbara.
Ana e frei Rubião se entreolharam e concordaram com a cabeça, silenciosamente. – Bendita e bendita a hora que me veio visitar, Bárbara – disse Ana, beijando as faces da amiga. – Agora, precisaremos saber quais pratos ele e a mulher mais apreciam – concluiu.
Bárbara fixou o frei. – Ele é casado? – indagou. – Não sei, mas deve ser; fácil de saber… – respondeu o homem.
Ana foi ao encontro de frei Rubião, beijou-lhe a mão direita e agradeceu: – Meu frei, estou satisfeita demais! Organizaremos imediatamente uma recepção. Logo comunicaremos ao senhor, pode ser assim?
Que bom! Que bom que esta mulher forte logo recobrou o ânimo. Veja como está! Contente… há pouco era um abismo de prostração e vazios! Valha-me Deus que permaneça assim sempre! Amém!
– Claro, minha filha. Contem comigo! Hoje mesmo procurarei aqueles que são do relacionamento do presidente.
Quando se fixaram, ambos perceberam a formidável cumplicidade que tramavam. – Vamos tomar um café, então – convidou o frei. – Sim, agora vamos! – retrucou Ana, empolgada.
E as duas se precipitaram à frente do frade, alvoroçadas, o homem andava rápido, mas agora eram elas: Ana e Bárbara.