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IV. Salvador, dezembro de 1864

IV

salvadoR, dezembRo de 1864.

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os músicos tocavam suavemente. O som dos violinos era o mais saliente e se espalhava pela casa luxuosa do major Maurício Ferreira, enquanto os convidados para a ceia de Natal aguardavam, elegantemente trajados, o frei Rubião.

A Missa do Galo foi extraordinariamente antecipada por conta das tempestades dos dias anteriores. A cidade alagou-se tremendamente, prédios e casas foram inundados e as ruas estavam intransitáveis: lamaçal, animais feridos e mortos, além de desabrigados.

No andar superior da casa grande e assobradada, sentada diante do grande janelão, defronte à sacada, Ana Néri olhava o céu entre nuvens e estrelas.

O abafamento que anunciava forte chuvarada inquietava bastante os baianos.

Ana ouvia os músicos tocando “Noite Feliz” numa alternância entre violino, piano e flauta. Estava encostada à parede, na sacada frontal do segundo andar. Ouvia distraída. Gostava bastante do Natal, das celebrações,

das visitas, trocas de presentes, principalmente porque podia ter os três filhos juntos a si.

A música enchia a casa, o burburinho dos convidados e parentes também preenchiam tudo de alegria e de uma comoção agradável, afinal era Natal, fim de ano… e a tempestade se avolumava no abafamento forte de fim de tarde.

As crianças agora corriam agitadas, brincalhonas pelo salão, e as escravas tentavam sossegá-las.

Tudo ouvia Ana enquanto olhava o céu escuro de Salvador. Agora, absorta em pensamentos desconexos.

A porta se abriu e entrou o irmão Maurício acompanhado da mulher. – Que faz aqui, minha irmã, escondida? – falou e imediatamente a tomou em seus braços, beijando-a de maneira afetuosa.

Ana correspondeu e deixou permanecer, abraçando-o mais estreitamente. – Que tens, Ana? Preocupada? – Sei não… coisas minhas…

A cunhada permanecia distante, olhando-os. – Que coisas, minha irmã? Estás doente? O que houve?

Ana se desvencilhou dos braços do irmão e se pôs a andar lentamente pelo quarto. – Não sei o que é… Durante a semana comecei a ter uns pressentimentos, uns sobressaltos… Certa preocupação esquisita, como que perdida em pensamentos ruins.

– … com os filhos…? – Sim… também… – falou pesarosa.

A cunhada, então, avançou animada, com voz vivaz. – Bem! Bem! Vamos acabar com isso, vamos, sim! Temos o Natal… ao menos o Cristo para nos animar! – disse a mulher e pegou o marido e Ana pelos braços, retirando-os do quarto.

No corredor, Maurício estacou repentinamente. – Após a ceia devo comunicar algo para a família! – O que é tão importante? Pelo modo que fala… – perguntou Ana, curiosa.

A cunhada se pôs diante dos dois. – Mas pelo amor do Natal, deixemos as dificuldades para o tempo certo. Por Deus! – exclamou irritada.

Obedeceram e seguiram silenciosos. – O Pedro Antônio também virá. Chegou cedo, pela manhã – disse Ana um pouco mais animada. – Ótimo! Ótimo! Não sobrará comida. Nada de desperdício em minha casa! – Quer dizer que meu filho é um guloso? – Não. Mas que, quanto mais gente, menos desperdício!

Subitamente um trovão ribombou. A cunhada soltou um grito e voltou correndo para abraçar o marido. – Que horror! Que susto, meu Pai! – horrorizou-se.

Ana sorria. Os trovões, relâmpagos e tempestades a agradavam deveras. Eram um encanto íntimo os baru-

lhos e as luzes nos céus. Em vez de se afastar, corria às janelas para melhor ver e ouvir.

Andavam juntos e a música vinha-lhes ao encontro. O vozerio, o grito das crianças, tudo convidava ao Natal em família, festivo.

A tempestade desceu vertiginosa, uma fúria entre águas torrenciais e trovões escandalosos. Mulheres e crianças vez por outra estremeciam, algumas se abraçavam, medrosas.

Ana, à mesa, observava animada os movimentos de espanto aos relâmpagos, que via brilharem intensos e fulgurantes pelo clarão na janela, e logo aguardava o ribombar que assustava tremendamente a muitos. – Santo Deus! – Que noite de Natal! – Ave Maria! – Que horror de ventos…!

Ela inclinava a cabeça satisfeita, sorria animada.

Que coisa boa. Isso me alegra e satisfaz. Como posso gostar tanto de um vendaval assim? Abafado... tava abafado. Que bom, bom mesmo! Que frescura de chuva. O cheiro, o cheiro. Ganhei um dia de Natal muito bom ali! Bom.

O irmão vez por outra a observava. O homem estava inquieto, mas ela percebia que algo estava acontecendo.

Meu irmão esquece que sei como é ele, ora! Como está esquisito! Deve ser algo ruim, só pode. E que fazer? Agora vou sorrir. Estão me olhando. Ele também me olha fixo, depois desvia o olhar. Caramba! O que há? Vamos ver isso!

Se Antônio não estivesse aqui, logo pensaria que algo lhe aconteceu… mas tá aí bonito, bonito me olhando. Vou rir pra ele. Filho querido, que saudade, vou abraçar logo, logo você. Muito, muito.

E os pensamentos de Ana se enchiam de novidades enquanto a chuva caía, agora mansa, uma aragem branda. O furor havia cessado. A sala com os seus convidados estava impregnada pelo vento fresco, suavidade advinda após o turbilhão de águas torrenciais, trovões e relâmpagos.

O frei finalmente chegou e a animação trazida por ele contagiou a todos. O major se aproximou de seu convidado, sorrindo: – Demorou-se, frei… isso são horas? – disse jovialmente o anfitrião.

Ana, logo atrás, avançou alguns passos. – Abençoe-nos, frei! Abençoe-nos por este Natal do Senhor! – disse com voz forte.

Frei Rubião era um homem de altura boa, voz possante e com um rosto bonito, mesmo que marcado pela gravidade. Um franciscano com seus gestos expansivos. Homem de penitências… no meio das pessoas se mostrava sociável, mas um quê denotava que era reservado, de poucas palavras. Sabia se dar ao convívio. Contudo, o bom observador percebia que não ficava totalmente à vontade. – Pois bem, abençoarei a todos! – disse, traçando o sinal da cruz e, enquanto todos se inclinavam, Ana falou em voz alta:

– Sim! Sim! Amém!

A mulher do major puxou o frei do meio dos convivas. Trouxe o homem às pressas para a sala do banquete. Todos seguiram, animados. Os músicos calaram os instrumentos. – Cantem! Toquem! Vamos – gritava Ana, alegremente.

Quando o frei se deparou com a comprida mesa abarrotada de comida, entre frutas, frangos, porco, pães e muitas outras guloseimas e pratos diversos, o homem segurou a barriga e exclamou estupefato: – Minha santa pobreza, mas o que é isso?! – Frei Rubião, abençoe, por Deus, que estamos mortos de fome! – disse aflita a mulher do major.

Mais uma vez o frei traçou o sinal da cruz com os olhos esbugalhados por ver tanta comida e coisas boas em grande quantidade!

Apenas terminou o gesto, abaixou o braço, as crianças e os jovens avançaram ruidosos, esfomeados, e a ceia do Natal foi abocanhada entre gritos de satisfação e a felicidade da fartura.

Os músicos tocavam uma polca.

Na manhã seguinte, nas primeiras horas em que o sol encheu o jardim da casa, o major Ferreira abriu a porta da cozinha e se encaminhou com passos firmes

às mesas e cadeiras acobertados pelo caramanchão. Lugar fresco, acolhedor, onde se podia tomar o desjejum agradavelmente entre mussaendas rosas e brancas e o cantar dos diversos pássaros, que davam ao ambiente certo recolhimento peculiar. Um refúgio tranquilo, fora do falatório dos salões da casa.

Ferreira parou por instantes, pôs as mãos na cintura e se sentou pensativo.

Ele não sabia que era observado por Ana, da janela de seu quarto, por detrás da grossa cortina.

Que aconteceu? Por que está no jardim, sozinho, pensativo? O que aconteceu a meu irmão? Devo perguntar? Ele disse ontem que tem algo a contar… que será? O que houve? Pois bem, devo perguntar… algo preocupa ele. O que fazer? Vamos, Ana! Vamos logo!

E assim pensou e assim se retirou do quarto a irmã.

Encontrou o irmão mais compenetrado. As mãos cobrindo o rosto, o tronco dobrado, em severa reflexão. – Maurício, que há? O que tens? – falou em voz baixa.

O homem estava absorto, mergulhado em seus pensamentos. Não a ouviu, tampouco a viu se aproximar. Ana tocou-o, dizendo: – Meu irmão, fala comigo! – pediu. – Hã?! O quê…? Ana? – assustou-se. – Sim, Maurício, sou eu. O que está acontecendo? – quis saber. A voz mais forte, persuasiva.

O homem se ergueu, buscando atitude mais firme. Estava surpreso com a presença de Ana. – Nada, minha irmã! Nada que não se resolva! – Ih! Então é sério e quero saber agora, e não ser a última a saber. – O quê?! Como é isto, Ana? – Vamos! Vamos, Maurício! Não arredo meus pés daqui sem saber tudo. Fala!

Ele sabia como era a irmã. Mulher de palavra, cumpriria o que havia dito.

O major coçou a cabeça, preocupado. – Eu falaria, Ana, mas é tudo tão preocupante… – O quê? Fala logo, Maurício! – interrompeu. – Aconteceu algo com um de meus filhos? Qual deles? – Mas… mas… Ana…! – O quê? Aconteceu? – Não. Claro que não, minha irmã!

Ana pôs as mãos na cintura, avançou uns passos. Voltou-se dizendo: – Pombas! O que te aconteceu, então, homem?

O major se empertigou e caminhou em direção à irmã. Olhavam-se aflitos.

Que ele vai me contar, Pai do céu?! O quê? Preciso ouvir isto? O que tá acontecendo, ó vida?

Coitada de minha irmã! Quando lhe falar, desejará que a terra se abra aos seus pés e a engula num trago só! – Ana… Uma guerra…! – sussurrou, em voz quase inaudível.

– Ah! Hã? Quê? – perguntava com os olhos, a boca aberta, sem entender.

Maurício avançou, ficou defronte à irmã, segurou-a pelos ombros, fortemente, dizendo: – Ana, estamos em guerra. O Brasil vai lutar contra o Paraguai…! – falou e olhou-a fixamente.

Ana percebeu que o seu corpo amoleceu, a voz do irmão se tornou fraca, voz sumida. O que tá acontecendo? O que é isto? Os olhos pareciam embaçados… Tá chovendo? O que me impede de enxergar? Misericórdia?! É um desmaio? Tô desmaiando?

O homem amparou a irmã em seus braços, ela que principiou a cair como um saco pesado, algo sem vida.

Ana não tinha sentidos, um corpo flutuando no ar quando amparado pelos braços ágeis.

Desacordada.

Acudiram prontamente aos gritos de Maurício a mulher e as escravas domésticas. Outros ficaram distantes, olhando. – O que houve? O que houve, Maurício? – perguntava aflita a mulher.

Ele olhava, entristecido, Ana e murmurou entredentes: – Contei que estamos em guerra…

Ana, no entanto, desmaiada, sonhava. Estava no dia de seu casamento, diante do marido, planejavam o futuro.

O casal estava acomodado em sua alcova, tranquilo. – Enfim, pensei que jamais ficaríamos sozinhos! – disse Isidoro. – Estou exausta! Recebi tantos cumprimentos, beijos e abraços nos últimos três dias que me sinto dolorida pelo corpo todo – falou Ana, rindo.

Ambos se olharam, atentamente. Sorriram. – Ufa! Merecemos agora estar sozinhos, não? – animou-se o homem. – Pois é! Sim, estamos…!

Aconchegaram-se animados. Isidoro era um homem de grande estatura. Farta cabeleira, rosto vigoroso com dois grandes olhos negros.

Como ele é bonito… Que boca e olhos belos este Isidoro tem pra mim. Como me agradam seus abraços e beijos…! Homem bom e alegre, parece gostar de minha companhia, daqui a pouco volta pra fragata e eu fico sem ele. Ah! É a vida, e eu fico por aqui. – Volta quando? – perguntou Ana. – O quê? Pra onde? – Volta pro mar, quando?

Isidoro se apoiou no cotovelo direito e se debruçou quase em cima de Ana. – Casamos hoje, dia 15 de maio de 1838, e você me quer longe já? – falou sério, Isidoro. – Não! Não, claro que não, meu querido! O contrário… – E se agarrou a ele. – Por mim, não sairia nunca desta casa!

Ele se deixou agarrar, curvou-se para beijá-la levemente nos lábios.

Que moça minha tão meiga! Ana, Ana, você me é um presente! O que seria de mim, homem do mar, na aventura de tantos portos e mares? Agora tenho em quem pensar, quem esperar… Gosto de você! – Amanhã vamos passear pelo rio Paraguaçu e vamos às quedas d’água, à cachoeira, tá bom? – falou animado.

Ana, ainda com os olhos fechados, assentiu.

Os olhos abriram e deram com os olhos do filho Pedro Antônio. Fitou-o desconcertada, tinha mais gente no quarto. – … mãe, que houve? – Sei lá! O que houve? Maurício falou de uma guerra… ai, ai, filho, eu agora sonhava que estava com o seu pai, nós dois abraçados, contentes… – falou as últimas palavras no ouvido do filho.

Apoiou-se nos cotovelos e fez um gesto, aborrecida: – Ah! Ai que eu não morri, foi um leve desmaio! Estou bem… viva! – E fitava fixamente o filho. Então, num gesto impulsivo, agarrou Pedro Antônio com força. – Mãe?! O que é isso, mãezinha? – acalmava o rapaz. – Não! Não! Não me deixe, filho! Uma guerra!

O moço cedeu. Deixou-se ficar preso nas mãos da mãe, enquanto Ana chorava sentida.

– Tenho três filhos… e homens! Todos vão pra guerra e eu ficarei aqui sem marido… e filhos! – lamentava-se.

Maurício entrou no quarto, esbaforido. – O que há, Ana? Deixa, deixa disso! – pedia. – O quê? Não chorar meus três filhos que vão para a guerra? – falou em tom bravo.

O irmão calou-se. Não tinha argumentos ou força para amenizar a dor de Ana Néri. – Mãe, eu ainda tô aqui! Não morri... nem cheguei a lutar!

Ana procurou com os olhos o irmão. – Não tem como impedir que se vão?

Maurício meneou a cabeça, em seguida desviou o olhar e se retirou do recinto. – Isso não está acontecendo! Estou sonhando um sonho mau, é uma mensagem maligna. Não! Não! O Brasil não está em guerra! – revoltava-se Ana e deixou tombar o corpo, desolada.

O caixão com o corpo de Isidoro Néri, marido de Ana, estava exatamente no centro do salão da Câmara Municipal de Villa de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira do Paraguaçu.

Às portas todas abertas, impedindo quem desejava entrar ou sair, uma formidável multidão, entre curiosos e os que admiravam o capitão Isidoro Néri.

Mas quando Ana surgiu na rua com passos lentos, segurando as mãos dos filhos caçulas, Isidoro e Pedro Antônio, e à frente, segurando um buquê de variadas flores, o mais velho, Justiniano, todos os olhos se voltaram a ela, que vinha pesarosa, com os amigos e parentes próximos.

Meu Deus! Meu Pai! O que será de mim com três filhos homens e pequenos? Meu coração está arrasado…! Tenho que fazer alguma coisa… ai! Meu coração que não aguenta!

A multidão abriu e Ana passou lenta e tristemente.

Que calvário! Por que não fujo daqui! Que eu me acabo, sim, me acabo! Ver Isidoro morto e ainda levar os filhos para que vejam e… bem!

Ana estacou diante do caixão, toda a sua dor extravasou em silêncio. Tinha que interpretar, ou melhor, ser forte, muito forte, diante dos filhos.

Ela avançou alguns passos, inclinou-se para ver melhor o rosto do marido morto, inclinou-se mais e o beijou na testa.

Vá em paz! Por que vais embora, querido? Me deixas vazia! Santo Deus! Ampara-me.

Abriu os olhos mais uma vez e deu novamente com os do filho. – Mãe? Mãe?! – gritou Pedro. – O quê?! O que é?

– A senhora desmaiou ou apenas está fingindo? – Fingindo? Eu?! O que é isso? – Mãe, levante-se e vamos daqui para nossa casa. Lá descansará melhor. – Pedro, eu não minto! Tô bem aqui! – E cruzou os braços, aborrecida. – Tá bom! Tá certo. Alguém deve perguntar o que parece estúpido. – Não me importo com essas investigações e conversas fúteis: meus filhos vão para a guerra, e eu tenho que assistir a essa separação cruel, o meu coração…

Pedro pôs o dedo na boca da mãe. – Calma, mãe, tudo tem seu jeito de melhorar! – Aproximou-se e a beijou na fronte. – Sim, meu filho, que o Senhor me dê forças! – conformou-se.

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