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“Nunca ninguém morreu
from CDM 59
O momento mais especial da vida de muitas mulheres, dar à luz é lembrado como trauma por muitas devido à violência obstétrica
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Isabelle Almeida Jéssica Pretto e Nathalia Brum “Para de gritar!”,”Cala a boca!’’, “Nunca ninguém morreu de dor de parto!”,
“Na hora de fazer, tava bom né?”.
Frases como essas foram ouvidas por muitas mulheres durante o trabalho de parto, e resumem a humilhação e violência que sofreram neste momento de vulnerabilidade.
Laissa Loraine conta que, durante seu trabalho de parto, molhava a boca escondida na torneira, pois estava de jejum há mais de 23 horas, imposto pela equipe médica, sem poder tomar nem água. “Sofri todo tipo de violência. Indução sem aviso prévio, toque de hora em hora pelo médico e por mais um monte de residentes, enfermeira empurrando minha barriga e mandando eu calar a boca.”
Bruna Aliane C. de Carvalho
Violências que também a afetaram no pós-parto. “Tive depressão e, por pouco tempo, culpava meu filho por me sentir assim.”
A violência obstétrica é a prática de procedimentos e condutas que desrespeitam e agridem fisicamente ou psicologicamente a mulher na gestação, no parto, no nascimento ou pós-parto, além de tratamentos inapropriados sem comprovação científica de eficácia.
“A relação entre médico obstetra e ginecologista e a mulher é de muita intimidade e confiança, eu brinco que a mulher conta pra gente coisa que não
conta para o marido, para mãe, para ninguém”, explica Marcelo Rodrigues, médico ginecologista e obstétrico, especializado em gravidez de alto risco. Segundo ele, muitas vezes o momento mais especial da vida de uma mulher é o parto e, por isso, o médico obstetra precisa torná-lo o melhor possível, de forma humanizada.
Infelizmente, nem sempre o melhor possível acontece. Uma ampla pesquisa, desenvolvida pela Fundação Perseu Abramo e pelo Sesc, revelou que aproximadamente uma em cada quatro mulheres no Brasil sofreu com algum tipo de violência durante o parto. Outra pesquisa, realizada pela Fiocruz, chamada “Nascer no Brasil”, apontou que 37% das mulheres já tiveram algum profissional pressionando sua barriga durante o parto. A técnica não é recomendada, e pode causar lesões graves tanto para a mãe quanto para o bebê.
Relatos nos quais muitas vezes a enfermeira sobe na gestante para praticar manobra de Kristeller (empurrar a barriga para baixo, para o bebê “descer”), são comuns. Fernanda De Oliveira conta que a enfermeira subiu em cima dela e empurrou sua barriga com tanta força que ficou com medo que o bebê fosse se machucar. Além da dor que aquele procedimento gerou nela e provavelmente no seu bebê, ela ainda relata que se sentiu invadida, sem controle do próprio corpo.
“Meu pesadelo começou quando entrei em trabalho de parto. No hospital fui tratada da pior forma pela médica que estava de plantão, ela disse que minha dor era psicológica e que eu fiz o bebê e tinha mesmo que aguentar”, conta Georgia Castellon, que teve seu primeiro parto em um hospital particular de Curitiba, está grávida novamente
e planeja um parto domiciliar humanizado. Ela conta que sofreu diversas intervenções, como a episiotomia, corte feito para supostamente facilitar a saída do bebê. “Eu falei que não queria, mas o médico fez. Meu psicológico ficou abalado por tempos, e eu sentia muita dor na cicatriz do corte”, relata.
A episiotomia é um procedimento que deve ser feito com cautela e não rotineiramente, segundo a OMS. Porém, dados da pesquisa “Nascer no Brasil” mostram que mais de 50% das mulheres sofrem com essa prática. Ana foi uma delas e conta que sentiu muita dor e a sensação de ser rasgada. “Enquanto o médico dava os pontos, ainda falou que daria mais um ponto de presente pro meu marido, para ficar bem apertadinha”, conta.
“O parto humanizado é quando a parturiente tem suas vontades, autonomia, tempo e corpo respeitados”, descreve Émile Eni, que é doula, profissional responsável pelo suporte físico e emocional à gestante. Ela conta que são feitos encontros pré-natais, nos quais são ouvidas as dores, dúvidas, e traumas da paciente. Com um atendimento respeitoso
Camilly Pereira
e humanizado, Émile defende que apenas benefícios são levados para a família, além de reduzir a taxa de mortalidade materna e neonatal, aumentando a confiança da mulher e o seu conhecimento sobre seu próprio corpo e limites.
Segundo a OMS, a presença de um acompanhante é recomendada, pois garante segurança à mulher, aumentando os níveis de ocitocina e ajudando o trabalho de parto fluir. Mas a doula questiona a falta de preparo dos hospitais para um parto mais humanizado. “Começa quando muitas maternidades proíbem a entrada de acompanhantes desde o início do trabalho de parto, descumprindo completamente a lei 11.108/2005,
permitindo a entrada apenas após os 8cm de dilatação.”
Foi o que passou Camilly Pereira, quando a entrada de seu namorado foi proibida pelo hospital. “Eu sentia muita dor, me contorcia, gritava, estava com sede, e as enfermeiras não me deram nenhum suporte. Me senti sozinha, abandonada”, desabafa.
No Brasil, os hospitais já melhoraram bastante sua estrutura para atender mulheres que desejam o parto humanizado, é o que observa o obstetra Marcelo Rodrigues. Para ele, os hospitais estão mais preparados do que estavam há quatro anos e o SUS, ao contrário do esperado, oferece atendimento de humanização de parto melhor do que a rede particular. Isso acontece porque os hospitais particulares e de convênio têm dificuldade em colocar suas estruturas para funcionar, por mais completas que elas sejam, explicou.
“Os hospitais hoje estão investindo em centros de parto. O centro de parto é um quarto individual, que tem uma bola para a paciente fazer uma massagem, que tem um chuveiro para ela tomar banho no momento do trabalho de parto. O SUS já tem tudo isso, eles já são montados para isso, então a humanização começou pelo SUS”, afirma Rodrigues.
Para que o parto humanizado aconteça, é necessário a presença de uma equipe multidisciplinar que engloba necessariamente: médico obstetra, pediatra, anestesista, enfermeira obstetriz e uma técnica de enfermagem para auxiliar no atendimento. Outros profissionais podem estar presentes de forma opcional, a escolha da gestante, como fisioterapeuta, doula e nutricionista.
A mãe de Alícya Ellie sofreu logo ao chegar ao hospital. Ela foi obrigada a assinar um documento que permitia a episiotomia e seu plano de parto humanizado não foi aceito. Pouco depois, ela descobriu que sua doula
Laissa Loraine
não viria e a notícia a abalou, já que, mesmo que ela não fosse responsável pelo parto, seria a pessoa que prestaria apoio emocional. E como se não pudesse piorar, teve a presença de estranhos durante o trabalho de parto, sem consentimento. “Às 16h30, entrei na fase expulsiva, e parece até que foi anunciado no hospital inteiro. Porque entraram, sem brincadeira, umas seis pessoas, sentaram no chão e ficaram olhando eu parir. Me senti um bicho numa jaula e um monte de gente olhando.”
Durante o atendimento, a violência se
repetiu. Sua bolsa foi estourada com uma espécie de agulha quando tinha apenas 6 cm de dilatação, e a médica orientou para que a medicassem ocitocina sem consentimento. “A médica torturadora entrava, era grossa, enfiava o dedo na minha vagina e lá dentro rodava e abria o colo do útero à força, colocando a ocitocina, sem eu pedir. Mandava eu botar a perna aqui e acolá. Eu fazia tudo, até que decidi que não deixaria mais ela me tocar”. O parto da mãe de Alícya terminou em cesariana, o oposto que esperava para o dia que sua filha nasceria, e ela ainda teve que esperar a médica realizar as cesáreas que estavam agendadas antes de fazer a sua.
Para Rodrigues, algumas violências praticadas por médicos na hora do parto são resultado de uma formação antiga, em que o médico se colocava no papel principal do momento e conduzia-o da melhor forma para ele. Por isso, para ele, é muito importante formar médicos preparados não apenas profissionalmente, mas como ser humano. “Eu sou de uma época em que eu escutei os meus chefes falarem esses absurdos como ‘Na hora de fazer não tava doendo’ ou ‘Pare de gritar!’. É desumano falar algo assim para uma paciente, um absurdo. Mas graças a Deus isso tem diminuído bastante, porque a gente tem formado médicos diferentes.”
O obstetra conta que deixa as suas pacientes à vontade para escolher a posição em que elas querem parir, além de interná-las no momento certo (chamado de ativa no parto), garantir seu acompanhante 24 horas durante todo o processo e, se tiver a possibilidade, contar com a presença de uma doula. Durante o procedimento, o poder de decisão sobre a presença de anestesia é dado para sua paciente e ele não realiza a episiotomia em seus
atendimentos, deixando o bebê nascer o mais natural e humanizado possível.
E com relação ao limite entre decisões da mãe e do médico durante o trabalho de parto, o médico explica que, quando há risco para a mulher ou seu bebê durante o parto, é muito importante que o obstetra, como especialista, explique a situação para a paciente e que ela se posicione sobre a continuidade do atendimento. “Tem coisas que a gestante vai me pedir durante o trabalho de parto que eu como médico e técnico sei que aquele procedimento vai fazer mal para ela ou pro bebê. Não podemos obrigar ninguém a fazer nada ou deixar de fazer, mas a gente como médico pode deixar de fazer alguma coisa que a gente estudou e viu que não é correto na hora do atendimento obstétrico. Por isso, é tão importante a confiança entre a gestante e seu obstetra, para que ela saiba que tudo será feito sempre priorizando o seu bem e do seu bebê”, explica.
O PÓS-PARTO
Coração entristecido, face cansada e deprimida, essa seria a primeira impressão que muitos teriam de Cláudia Vilela após dar à luz, que preferiu manter sua identidade anônima.
Georgia Castellon
A experiência de parto de Cláudia foi “enlouquecedora”, o que desencadeou uma série de angústias e medos que mais tarde se transformaram em depressão. Durante o parto realizaram dois procedimentos sem o seu consentimento, a manobra de Kristeller e episiotomia, o que chegou a afetar o seu casamento. “Fiquei deprimida e não consegui amamentar, me sentia culpada.”
Após muita pesquisa sobre os abusos que sofreu durante sua experiência de parto, Cláudia conta que descobriu que tinha sofrido violência obstétrica, felizmente ela e sua filha não sofreram nenhum dano físico, porém as sequelas psicológicas permaneceram. “O trauma emocional me afetou muito.”
O pós-parto é muito romantizado pela sociedade como um todo, em que mulheres exuberantes e influencers postam fotos de seus corpos perfeitos logo após a chegada do bebê e compartilham sua saúde mental em excelente estado. O que não é realidade para a maior parte das mulheres, que muitas vezes sofrem com a depressão e ansiedade pós-parto. É o que relata a psicóloga Simone Di Pino Aline. “Muitas mulheres acabam entrando em estado depressivo, principalmente aquelas que tiveram uma gravidez não planejada”, diz.
A questão profissional também é afetada durante a licença-maternidade, o que gera inseguranças para a mulher. “Um dos casos que atendi a paciente desenvolveu gatilhos para todas as crises como ansiedade, pânico e depressão, que foi iniciado com a perda de emprego do marido e a pandemia, acrescida de uma gestação não planejada”, relata Simone.
O tratamento com mulheres que desenvolvem alguma doença psiquiátrica crônica como a depressão logo após o parto está se tornando cada vez mais comum, isso se dá pelo acesso à informação sobre o assunto e a quebra de tabus sobre a procura de ajuda psicológica. “O tratamento é iniciado para auxiliar a paciente a lidar com seus medos. Ela é orientada a focar na solução, não alimentar pensamentos ruins, estar sempre na companhia de alguém, evitando ficar sozinha”, acrescenta a psicóloga. “Mas a paciente precisa estar ciente que o tratamento não tem uma previsão de término, que isso depende do tempo interno de cada indivíduo. Além da rede de apoio, tem que ter força de vontade para sair dessa, com muito amor, carinho por ela mesma e com a ajuda dos demais.”
Saiba mais
Cartilha de recomendações da OMS sobre cuidados pré-natais para uma experiência positiva na gravidez.
Bruna Aliane C. de Carvalho