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Muito além do papel
from CDM 59
Isadora Vargas, Raissa Micheluzzi, Rebeca Trevizani e William Zaramella
Com o aumento da digitalização de textos, novas formas de acesso à leitura e a literatura têm se popularizado.
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Temos nossas vidas nas mãos através de telas, de vários tamanhos e formatos. Hoje é praticamente impossível viver sem um computador ou celular. Essas transformações tecnológicas mudam nossos hábitos de consumo a cada dia que apresentam inovações. A leitura e a literatura não fogem a essa nova forma.
Ler um livro impresso, folhear desde a capa até sua última página é quase um ato religioso. Uma prática que ultrapassou séculos e hoje se apresenta de uma nova forma. Agora não folheamos, mas deslizamos os dedos em tablets e kindles. As estantes nos cômodos da casa viraram pastas e aplicativos que guardam, em um espaço medido em polegadas e gigabytes, inúmeros títulos. Desde os que tiveram sua clássica origem no papel e foram digitalizados até os novos formatos, que são desenvolvidos exclusivamente para o ambiente digital com infinitos mecanismos que transformam a experiência literária.
A estudante de pilotagem Izabella de La Vega sempre teve uma vasta rotina de leitura e acabou se encontrando prejudicada pela questão financeira. Nem sempre comprar um livro físico era possível por conta do valor. Para ela, migrar para plataformas como o Kindle, além de priorizar a praticidade na leitura, foi um alívio para o bolso. Izabella também aponta as vantagens da leitura digitalizada, “Gosto da maneira como eles disponibilizam diversas ferramentas para tornar a leitura o mais confortável possível para o leitor, além da iluminação que não cansa os olhos, dá pra ler horas e horas a fio.”
Comemorando seu primeiro ano em funcionamento de maneira digital, o programa Curitiba Lê, integrado ao Curitiba App, oferece acesso gratuito a mais de 200 títulos da literatura. Além de obras literárias brasileiras e internacionais, o aplicativo também oferece uma pasta chamada “Estante Curitiba”, contendo livros de autores curitibanos. A iniciativa da prefeitura com a digitalização de obras literárias têm cooperado para a democratização da leitura na cidade. A literatura digitalizada já se faz popular e acessível, diferentemente de uma forma de literatura analisada desde a metade dos anos 1990, mas que ainda está voltada para perspectivas acadêmicas, a literatura digital. Ela consiste em produções literárias que propõem uma estratégia diferente para a leitura, pois seu formato não se dá de forma alguma no papel ou reproduz uma perspectiva de leitura nele.
Para o professor de literatura brasileira da Universidade Federal de Santa Catarina Alckmar Santos a literatura digital “é uma criação literária que lança mão do elemento verbal, da escrita, mas tem outros elementos.” Ele aponta que podemos falar de uma criação semiótica, ou até mesmo multissemiótica por conseguir divergir som, imagem, movimentos e a criação verbal.
Alckmar pesquisa e explora desde 1995 uma experiência literária que não se dá no papel e que se utiliza de inúmeros instrumentos. Ele diz que apesar de anos explorando essa área, a literatura digital ainda não é acessível e se dá primordialmente no ambiente acadêmico, estando também distante da comercialização. Em março de 2021, ele lançou em conjunto com pesquisadores do Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística dois ebooks pela editora InVerso, E-migrações e Minhas digitais vol 2, que são obras de literatura digital, explorando ilustrações, quadrinhos, animações e música que sustentam a narrativa escrita.
“Eu não vejo a curto prazo nenhuma possibilidade disso tomar conta do mercado, nem que seja em um pequeno nicho. A curto prazo não vejo o público leitor atento a isso.” Santos afirma não conhecer nenhuma estratégia mercadológica que possa sanar o problema. A parceria com editoras se dá com o objetivo de utilizar canais de divulgação através desta. Com essa iniciativa, além de divulgar, também é possível popularizar esses materiais, usando também elementos comuns como histórias em quadrinhos para aproximar esse nosso formato de uma narrativa mais comum.
Mesmo com alguns leitores ainda preferindo a versão impressa, a literatura digitalizada vem permanecendo cada vez mais na rotina de quem prefere uma leitura mais ágil e prática. Com um peso menor e uma locomoção mais adaptável, isso acaba facilitando quem prioriza o conforto de não precisar se preocupar em quantos livros vai carregar. É o que diz a jornalista Vitória Berveglieri que utiliza o Kindle desde o final da faculdade. “Antes eu tinha um preconceito enorme com o livro digital, mas depois que comecei a usufruir mudou totalmente a minha visão e hoje eu não vivo sem.”
Muitos dizem que é interessante ter a versão impressa do livro, por causa das páginas e até mesmo do cheiro. Mas, para Vitória, a sensação e as vantagens de ler digitalmente também contam. “A literatura digital veio para ser mais fácil e mais prática e ler nesta versão dá uma sensação de que a leitura fica também mais rápida.” A jornalista é assinante de uma biblioteca digital e consome em média três e-books por mês. As vantagens da leitura digitalizada vão além de apenas conforto. Na hora da compra há mais agilidade e preços mais em conta, e também a praticidade de compartilhar arquivos no aparelho e mostrar para amigos e pessoas próximas.
Vitória também é youtuber, dona do canalEtc & Tal, no qual faz vídeos sobre este assunto, e diz que ainda há preconceito nas pessoas contra a literatura digital. “Ainda há pessoas à minha volta que relutam um pouco contra a literatura digital, mas conforme você vai falando o quanto é vantajosa, muitas pessoas também acabam migrando para esse lado.” Uma das diferenças entre os dois modelos de consumir literatura é a experiência proporcionada em cada uma. A youtuber também aponta que ler digitalmente vai além de ficar horas em frente a uma tela qualquer cheia de texto, é uma tela feita especialmente para proporcionar conforto para quem está lendo. Possibilitando grifos e comentários sempre que quiser.
O que vimos acontecer com os filmes, depois da chegada das plataformas de streaming, foi a quebra total das videolocadoras. Com este exemplo, cria-se um questionamento se isso pode acontecer também com os livros e a literatura digital: acabar de vez com as bibliotecas. Vitória acredita que pode acontecer depois de muito tempo. “Pode acontecer sim, mas acho que vai demorar. Conheço muitas pessoas que ainda têm muito zelo pelo livro físico e eu também ainda tenho.”
Apesar de plataformas digitais para leitura terem se popularizado, ainda há aqueles que prezam pelo bom e velho livro de papel. Para a estudante de Relações Internacionais Heloísa Baldi, os livros físicos nunca chegarão a um fim por conta do prazer proporcionado aos leitores ao manusearem suas obras literárias favoritas. “Não gosto, também, de não poder segurar um livro, admirar a capa, sentir o cheiro, virar as páginas. Não sei como descrever é uma sensação que só o livro físico te dá.” Independentemente das diferenças de ler digital ou fisicamente, as experiências que a leitura em si geram são ricas. Sempre que houver leitura, haverá vantagem, independente do modelo utilizado.
“Não gosto, também, de não poder segurar o livro, admirar a capa, sentir o cheiro, virar as páginas (...)” - Vitória Martins, youtuber
Escritores online
Rebeca Trevizani
A era digital abrange e influencia não somente leitores ávidos, mas também apresentou novos ares à vida dos escritores. Plataformas como o Wattpad facilitaram a divulgação e interação de histórias, capítulo por capítulo. Para o escritor Matheus Moledo, a magia do meio digital é conectar a todos com infinitas possibilidades de consumir literatura. Ele vem consumindo literatura desde que se entende por gente, e a partir da inspiração e admiração que tem por grandes autores, como J.R.R Tolkien, começou também a deixar a criatividade fluir. “A escrita ocupa uma parte bem importante da minha vida, não vivo para escrever, mas escrevo porque vivo.” Matheus começou a escrever em meados de 2013 e vem publicando suas obras de maneira on-line desde então. O meio digital possibilitou maior democratização do consumo de literatura, possibilitando novos meios de divulgar e explorar os horizontes da escrita e leitura.
Izabella de La Vega Rebeca Trevicani
Representação do mesmo livro, entretante em diferentes formatos sendo um digital e o outro fisíco.
CINDERELAS
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Bruna Colmann Isadora Deip Sabrina Ramos Texto: Brunna Gabardo Ilustrações: Sthefanny Gazarra
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Os contos de fadas, fincados em lições de moral e em um eterno encantamento, carregam uma alegria de meninice em um ritual que faz parte do cotidiano das famílias, inclusive as brasileiras. Também o carinho com que a leitura europeia, geralmente contada pela voz materna, transportava as meninas para um mundo mágico, mas com regras explícitas. Como a clássica Gata Borralheira, serviçal isolada nos quartos dos fundos, com roupas da cor da pele para permanecer invisível aos olhos da patroa.
As Cinderelas brasileiras contam histórias duras de derrota, na maioria das vezes sem final feliz. Para as personagens de Conceição Evaristo, notável professora e escritora brasileira contemporânea, Ana Davenga, Duzu-Querença, Natalina, Luamanda, Cida, Zaíta, suas realidades apresentam a mulher destituída, inferiorizada, violentada, inventando jeitos de sobrevivência para si e para sua família. Conceição também trabalhou como empregada doméstica, babá e faxineira até 1971, quando concluiu o Ensino Médio, assim como sua mãe. Tudo que escreve é marcado profundamente pela condição de ser mulher negra brasileira.
Outra obra na qual é possível enxergar essa realidade, é na série em quadrinhos A Confinada, do ilustrador Leandro de Assis e da escritora Triscila Oliveira. As histórias retratam a relação entre uma influencer e sua empregada no confinamento durante a pandemia do coronavírus. Na edição número 9, a tirinha reflete a música “tristeza não tem fim, felicidade sim”, no qual diz que felicidade de pobre parece a ilusão do carnaval.
Em paralelo, no “mundo real”, a primeira vítima fatal da Covid-19 no estado do Rio de Janeiro foi Cleonice Gonçalves, de 63 anos, empregada doméstica infectada pelos patrões que haviam chegado da Itália. Cleonice era uma mulher negra, diarista, mãe, que foi contaminada em seu local de trabalho: um apartamento no Alto Leblon.
Não deve-se culpar somente o vírus, pois é necessário considerar suas condições de vida, que a mantinham com a necessidade de trabalhar mesmo estando exposta a transmissão. Outra situação, são as mães que precisam levar seus filhos para o trabalho por conta de as escolas ainda permanecerem fechadas. Isso para passear com os cachorros da patroa e, enquanto o filho fica sob seus cuidados, cai do nono andar de um prédio de luxo em Recife (PE) ao ser deixado sozinho.
Embora o direito à saúde e segurança sejam resguardados na Constituição Federal, uma certa administração de corpos ocorre, e a situação da pandemia agrava desigualdades existentes. Mirtes Renata Santana de Souza, mãe de Miguel, e Cleonice, são mulheres de cor, empregadas domésticas e mães de classe média-baixa.
No último conto de Olhos d’Água, “A gente combinamos de não morrer”, não é escrito “viveram felizes para sempre”, mas sim “escrever é uma maneira de sangrar. Acrescento: e de muito sangrar, muito e muito”. Bica, personagem que narra a história, conta que sua mãe separa com violência os dois mundos, e sabe que a verdade da telinha é a da ficção. Deve haver outros caminhos, mas até descobri-los, leremos “palavras caídas, apanhadas, surgidas, inventadas na corda bamba da vida” ao invés de lindas histórias de princesas.