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Aqui, não

Quando o racismo se manifesta na religião, as crenças de matriz africana sofrem com a intolerância e o desrespeito. O candomblé é a mais afetada delas Aqui, não!

Talita Laurino

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O carro estava acelerado e, quando a candomblecista e pedagoga Ludmila Freitas olhou para frente, ele já havia arrebentado a cerca do terreiro. Parafilha decidiu abrir um barracão e seguir a própria fé. A mãe carnal de Ludmila também é a mãe de santo do terreiro e não se sente segura há algum tempo.

“A mão do ódio contra a gente pesa com violência e sangue.”

Candieiro, coordenador de Igualdade Racial da Prefeitura de Curitiba

lisada atrás de um vaso de cimento, o automóvel que se aproximava dela vinha com cada vez mais velocidade, até que o motorista finalmente avançou para cima da professora. Por algum milagre dos orixás, o carro foi barrado pelo vaso e não encostou em sequer um dedo na religiosa.

Ludmila sobreviveu ao quarto ataque do mesmo homem ao seu barracão. As primeiras vezes em que ele apareceu, as agressões foram mais sutis, pelo menos quanto ao grau de violência. Tentava a todo custo criminalizar a abertura do terreiro em Paranaguá. Chamava a polícia durante os cultos e alegava baderna. “Eu só perguntava aos oficiais se um aglomerado de 15 pessoas numa festa de aniversário mobilizaria a guarda urbana também”, lembra a candomblecista.

A sorte é que em todas as vezes nas quais algum policial apareceu era negro e acabava sensiblizado pela história da velhinha preta, que com sua Essa história a pedagoga contou na frente de pessoas importantes. Foi na 2ª convocação geral, durante o fórum de religiões de matriz africana, que líderes políticos escutaram casos de intolerância sofridos por umbandistas e candomblecistas.

Após ouvirem a fala de Ludmila, o coordenador de Igualdade Racial da Prefeitura de Curitiba, Adegmar José da Silva, o famoso Candieiro, levantou a voz. “A mão do ódio contra a gente pesa com violência e sangue. A mão do ódio contra a gente mata. Não estamos falando aqui de comentários maldosos, estamos falando de morte e de racismo.”

Depois de muitos aplausos, eles voltaram a dialogar sobre estratégias de enfrentamento à crescente onda de intolerância. O objetivo era sair dali com ferramentas de promoção ao respeito inter-religioso. “A luta é longa. Mas só passo de elefante nasce grande, o resto é tudo conquistado

Arquivo pessoal, Senff e Marchesine

devagarinho”, finalizou seu discurso Candieiro. Na mesma semana, os filhos do terreiro do Portão se reuniram para a festa de Ogun, orixá da casa. Na celebração, espíritas, católicos, evangélicos e budistas participaram. A associação contra intolerância que a mãe de Santo Isabel Cristina integra faz questão de promover o trânsito entre fiéis pelas casas santas.

Mas nem sempre reinou essa paz por lá. Em fevereiro de 2019, a cantiga da casa que foi interrompida não era feliz. A batida do atabaque e os rostos inchados de tanto chorar indicavam que havia se perdido alguém importante. Em dia de axexê, ritual fúnebre do candomblé, o canto não pode parar a madrugada toda. E o pai de santo da casa, vítima de um câncer de estômago, merecia uma passagem digna.

Mas, depois de alguns tijolos jogados no barracão, o pai convidado para conduzir o ritual não aguentou. Parou a cerimônia e foi falar com os homens que estavam do lado de fora do terreiro: “Iansã tá vendo o que estão fazendo e eu vou mandar ela atrás de cada um se continuarem”, alertou. Nenhum pouco intimidados com as ameaças do mundo espiritual, os vândalos continuaram as agressões.

Enquanto isso, todos os filhos de Iansã estavam virados no santo. Elizabeth Ceballos, uma das crias do orixá, só recorda-se do barulho de latões batendo e de pessoas gritando. Quando tudo parou, lembra-se do medo que sentiu ao achar que a telha ia cair.

“A gente podia morrer. Lá o teto é frágil, a casa não recebe nem incentivo do Estado para sobreviver, como a Igreja Católica. Ia sair tudo do nosso bolso, se não acontecesse coisa pior.”

O axexê precisou continuar. “O rito é importante para a casa e não pode parar, não vamos nos deixar abater”, disse o pai. Superando o medo e a intolerância, o terreiro resistiu.

Essa não foi a primeira vez que o barracão do Portão passou por algo assim. No dia de candomblé da Elizabeth, o clima ficou ainda mais tenso. A morena de 24 anos e estudante de Direito decidiu se converter para a religião há dois anos, quando problemas de saúde a fizeram recorrer à soluções espirituais.

Isolada por 12 dias no rocó, quarto interno do terreiro que abriga àqueles em iniciação, era finalmente chegada a hora de Elizabeth sair de lá, raspar a cabeça e dar luz ao seu orixá. A ansiedade tomava conta, até que a danada da Sandra fugiu. “Dizem que não se pode dar nome para bicho que ele foge. Dito e feito”, debocha de si mesma Elizabeth.

A cabritinha que seria sacrificada na festa aproveitou a distração do pessoal para escapar pelas grades. A vizinhança assistiu ao movimento e ligou para polícia, que bateu no terreiro por conta de uma denúncia de maus tratos.

Deu o que fazer para os oficiais não entrarem. O que os livrou de complicações com a justiça, ironicamente, foi a própria lei. Segundo o Decreto número 2.848, artigo 208, é proibido impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso. Sendo assim, eles foram embora, e a danada da Sandra voltou. “É muito difícil explicar para a sociedade que não matamos os bichos por mau trato. Toda carne usada é santificada e muito respeitada”, explica a garota.

O advogado Flávio Parisi ainda complementa que o artigo 5º da Constituição brasileira assegura que é inviolável a liberdade de consciência e de crença humana. “O livre exercício dos cultos religiosos é garantido, na forma da lei, bem como a proteção aos locais de culto e suas liturgias. É imprescindível que haja uma aceitação.” Candieiro, o coordenador de Igualdade Racial da Prefeitura de Curitiba, discorda. Para ele, a razão do ódio tem raízes antigas e negras. Os números mostram que as denúncias de discriminação contra adeptos de religiões de matriz africana aumentaram 7,5% em 2018 no Brasil. Elas foram feitas pelo Disque 100, serviço de atendimento 24 horas do Ministério de Direitos Humanos. Ao todo, contabilizam-se 71 denúncias do tipo feitas de janeiro a junho de 2018, contra 66 da mesma época no ano anterior.

Talita Laurino

No entanto, há uma diferença entre aceitação e respeito, de acordo com o teólogo e pastor da Igreja Evangélica, Edson Tedesco. “A Bíblia é clara quanto ao fato de que só há um Deus. Muitos acabam deixando outros deuses e passam para a religião evangélica, porque se identificam mais com ela, assim como também acontece o contrário. Esse trânsito não é um preconceito contra o candomblé, as pessoas têm o direito de mudar de pensamento”, argumenta.

Ele ainda defende que o ódio é um sentimento que deriva do fanatismo religioso. E que o candomblé incomoda fiéis por apresentar características que não conferem com aquelas ensinadas por Deus, como a reencarnação e os sacrifícios de animais, por exemplo.

“A religião é muitas vezes procurada para fazer trabalhos bons e ruins. Isso, é claro, cria uma certa indiferença e desprezo nas pessoas em relação a sua conduta. Evidentemente que cada um tem o seu direito de escolher qual caminho seguir, mas dentro desses

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