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Lute como uma artista

Conheça as lideranças feministas que lutam contra a discriminação de gênero no mundo da arte

Paula Moran

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Pelos arredores de uma pequena cidade praiana no interior do Rio Grande do Norte, chamada Pipa, é possível ver, em alguns lugares, grafites e lambe-lambes de vulvas espalhadas pelos muros de ruazinhas, que se não fosse por Beatriz Lago, 24, seriam apenas monótonas.

“Dizer o que minha arte representa é muito difícil, porque é, na verdade, tudo o que está acontecendo comigo agora, está tudo em transformação. É a partir de trocas e experiências com as outras manas que também pintam e somam a gente de outra forma, que me inspiro nessas mulheres e tudo isso vai se expressando no meu trampo”, conta Beatriz, mais conhecida como “Bea Lake”.

Para Beatriz, a arte é um instrumento de transformação social. E é por isso que ela retrata o feminismo em seus trabalhos como uma forma de conscientizar as pessoas: “Os temas das minhas ilustrações sempre são mulheres e suas formas reais, não aquilo que a mídia gosta de impor como algo inatingível, que é o corpo feminino hipermidiatizado, padrão. Por isso, gosto de retratar as mulheres em suas mais variadas formas, e tenho adotado a vulva feminina como símbolo da minha arte, junto à outra área que eu gosto, que é o ecofeminismo”, conta a ilustradora, que pinta sempre uma vulva em formato de suculenta e transformou essa imagem em sua marca pelos muros da cidade de Curitiba e outros lugares do Brasil.

GUERRILHEIRAS NA ARTE

Sim, a história sempre foi contada por homens, e para homens. As mulheres ficaram em segundo plano, ou muitas vezes nem apareceram. Silenciadas e ofuscadas pelo patriarcado, as mulheres trilharam seus caminhos sempre à beira de um homem que, por sua vez, e quase sempre, era cercado de privilégios. Felizmente, isso está mudando. Os séculos passaram e hoje já podemos ver pequenas mudanças, mais direitos conquistados e mais espaços alcançados. Infelizmente, a realidade ainda está muito longe da utopia dos direitos iguais e equidade entre gêneros - e como abordaremos, especialmente nesta reportagem, no mundo da arte.

Paula Moran

Grafite de Bea Lake na Rua São Francisco.

Pelo que se pode perceber, a raiz do machismo está em todas as áreas exercidas pelas mulheres. E a arte não escapa disso. Um dos dados mais alarmantes foi apurado pelas Guerrilla Girls, um coletivo de artistas feministas que está atuando há mais de 30 anos para denunciar a desigualdade de gênero e discriminação de mulheres no mercado da arte.

“As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo?” é a frase estampada em uma das obras mais famosas, acompanhada de uma informação muito importante: apenas 6% dos artistas do acervo do Museu de Arte de São Paulo (MASP) são mulheres, mas 60% dos nus são femininos. Isso quer dizer que, mesmo mulheres que obtêm algum sucesso na arte, seja ela brasileira ou internacional, ainda são imensamente ofuscadas pelos homens.

Atrás de máscaras de gorila, as participantes do grupo guardam suas identidades desde 1984. Mais de 55 mulheres já passaram pelo coletivo e ninguém jamais soube ou saberá quem está por trás das máscaras. Seu ativismo está concentrado em denunciar a falta de uma maior valorização de mulheres artistas e a lógica mercadológica de compra e venda de obras de arte, bem como as exposições e os locais que as obras estão inseridas.

“O trabalho das Guerrilla Girls é, justamente, mostrar, em números, como parece que estamos avançando, mas na verdade não estamos. Achamos que pelo fato de estarmos na modernidade não há tanta discriminação como nos tempos em que os homens roubavam as obras de artistas mulheres e assinavam por elas”, explica Carolina Loch, curadora da exposição “O museu é feminista - e outras esperanças para o futuro”, que fez parte do circuito de arte contemporânea da Bienal de Curitiba de 2017 e teve algumas das obras mais famosas do grupo em exibição.

O que parece ser um avanço, na verdade, é só mais uma parte da luta. Para Carolina, achar que na arte contemporânea há mais visibilidade do que a arte de algumas décadas atrás, é quase que um mito: “A gente que está nesse meio, presta mais atenção, a gente que tá estudando sobre o feminismo, é claro que você começa a prestar mais atenção. Essa questão das mulheres estarem mais presentes, parece ser isso porque é um assunto que a gente estuda. Mas, para um público que não tem esse acesso e que não tem essa preocupação com o feminismo, não é algo relevante.” “E é por isso que precisamos de trabalhos de artistas que proponham o feminismo de uma maneira prática”, afirma.

A publicitária, de 27 anos, explica que a sociedade está mudando a forma como vê a mulher. Com as novas formas de propor reflexões sobre temas importantes, é possível reescrever a história. “Nós sempre tivemos artistas mulheres, a questão é que elas eram escondidas. Estamos em um processo revolucionário, no qual é possível

“É difícil ser mulher em todos os aspectos, em todas as culturas” Mulheres inventadas

Integrante da mostra Mulheres Inventadas, do Museu Municipal de Arte, em Curitiba, “Meu Corpo Estranho” é uma exposição autoral da artista visual Karla Keiko, que quis, por meio da arte, contar um pouco da sua história como mulher e os processos de desconstrução que a ajudaram a se identificar como uma na sociedade. Ela passou por vários períodos e fases, desde a retirada de suas próteses de silicone, a gravidez e até raspar todo o seu cabelo. Todas as etapas foram importantes para a desconstrução de algo que lhe fora imposto: ser vista como um objeto, e não como mulher.

Guerrilla Girls

mudar a forma como a história foi escrita, destacando sempre os homens, para algo mais democrático.”

QUANDO A ARTE FEMINISTA ENCONTRA SENTIDO

“Acho complicado falar das minhas dificuldades pelo fato de eu ser mulher, eu acho que é uma relação do meio e nem sempre são questões de dificuldades, mas sim do machismo inserido ali”, afirma Maya Weishof, artista visual de 26 anos, integrante da Pivô Arte e Pesquisa, uma associação cultural sem fins lucrativos que atua como plataforma de experimentação artística para artistas, localizada em São Paulo. “Muitas vezes as pessoas, ao verem uma obra, perguntam ‘quem é o artista?’ e já se pressupõe que é um homem. Na arte, têm-se o homem como um gênio e a mulher como um ser totalmente emotivo e passional, e isso é uma coisa completamente estereotipada. Eu retrato corpos não identificáveis justamente para combater isso e desconstruir essa visão.”

PARA A ARTE, NUNCA É TARDE

Jussara Siqueira é uma senhorinha que conheci por meio de minha mãe assim que viemos morar em Curitiba. Somando todos os seus 65 anos de vida, só nos 60

“Você não precisa catalogar ou fazer relações da minha pintura com o fato de eu ser mulher.” Maya Weishof, artista

Durante os últimos anos, Maya, formada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), tem desenvolvido sua pesquisa especificamente dentro do campo da pintura e a relação com a imagem dos corpos e estereótipos que os acompanham durante toda a história da humanidade. “A pintura é um campo muito machista historicamente, que foi ditado e formado por homens por muito tempo. É sempre importante lembrar que não é que as mulheres não estejam produzindo, e sim como essa história é contada”, explica Maya.

Ela acha que o mundo tem uma visão, muitas vezes, da mulher artista, como uma mulher que deve performar feminilidade e ter um trabalho frágil, bem como uma leitura do que é ser mulher. “Já ouvi várias vezes me dizerem que meu trabalho tem uma questão feminina, você não precisa catalogar ou fazer relações da minha pintura com o fato de eu ser mulher.” começou a se dedicar totalmente e exclusivamente à sua arte - mais especificamente, a pintura.

“Eu odiava Carazinho”, repetia ela algumas vezes ao contar parte de sua história. Pergunto o porquê disso e ela simplesmente responde com um “Não sei, só odiava, não tinha nada de mais lá”. Carazinho é um pequeno município localizado na região do Planalto Médio Gaúcho. Com uma população média de 59.300 pessoas, a pacata cidade nunca teve nenhuma grande personalidade, de que se tem registro, nem um grande herói ou um salvador da pátria. A não ser por histórias tão incríveis e escondidas como a de Jussara, a cidadezinha nunca se destacou em nada.

A agora também artista visual Jussara, embora não seja uma artista renomada e expositora de grandes museus, quem a conhece sabe que, apesar de tudo isso, ela é uma das peças-chave para entender a falta de oportunidades que esse mundo engloba.

Jussara precisou batalhar muito na vida para conseguir finalmente fazer o que gosta: pintar. Ela cresceu em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul e nunca teve o apoio de ninguém para seguir o seu sonho. Passou em um concurso do banco e foi ser bancária, por quase toda sua vida. Somente aos 60 anos, ela pôde fazer o curso de Graduação em Pintura da Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP), em Curitiba. “Outro dia eu liguei na Fundação Cultural perguntando o que eu tinha que fazer para fazer minha exposição”, conta, com empolgação, ao ter a esperança de realizar sua primeira mostra. Em meio a algumas pinturas de cidades da Europa ou pássaros em jardins, Jussara pinta, quase que unicamente, mulheres. “Para mim, a mulher é a representação da mulher natureza. É por isso que eu sempre pinto ela como parte dela ou do universo”, “Eu não sei se tem machismo na arte, na minha turma só tinha um aluno homem, o resto era tudo mulher”, conta aos risos. A senhora artista não pensa haver desigualdade até que mostro os dados confirmados pelo coletivo Guerrilla Girls e ela se assusta: “Nossa! Eu nunca tinha parado para pensar por esse lado”.

Faltaram, para Jussara, assim como para muitas outras, oportunidades. Oportunidades de seguir uma carreira estereotipada e que só traz grande sucesso quando se é homem. Sim, o feminismo retratado na arte é capaz de transformar visões, mas assim como para Jussara, ele precisa ser acessível e entendido em todas as suas versões.

Paula Moran

Jussara ao lado de uma de suas obras sem título.

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