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A corda bamba entre a brincadeira e o assédio

Limites nas universidades:

a corda bamba entre a brincadeira e o assédio

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O choque, o trauma e o medo que as vítimas sentem ao olhar para seu assediador é um drama recorrente nas instituições

“F oi um longo período de assédio, que durou do segundo ao décimo segundo período. Eu procurei o professor, porque tinha interesse na especialidade em que ele trabalhava e comecei a acompanhá- -lo em diversas atividades, junto com mais duas colegas.Claramente, desde o início, ele dava preferência a mim, falava mais comigo e me oferecia mais oportunidades. Eu o admirava muito… Mas logo ficou evidente que o interesse dele era diferente do meu.

Um dia ele falou: “Sabe, se uma garota achasse que está sendo assediada e decidisse falar para a direção, ninguém acreditaria, porque seria a palavra dela contra a de alguém com muito mais importância”. Eu sabia que era de mim que ele falava, mas fiz cara de desentendida.”

Esta é uma parte do relato de Aline*, uma médica que, para proteger a própria imagem, decidiu não se identificar.

Entre murmúrios inquietos e vozes abafadas, ouve-se falar em assédio nas universidades do país, sejam as vítimas homens ou mulheres. Todo mundo, ou quase todo mundo, já teve a oportunidade de conhecer alguma história que não teve um final feliz.

“Eu tinha uns 19 anos quando tudo começou e ele devia ter mais de 60. Era casado, tinha filhas quase da minha idade. Ele me oferecia caronas, ligava bastante e convidava para sair, para jantar… começou a encostar, chegava sempre muito perto de mim e também fazia massagem nos meus ombros enquanto eu escrevia o que ele mandava. Como eu o admirava muito profissionalmente, achava que só podia ser culpa minha, que eu devia ter de alguma forma me insinuado sem querer e, por isso, nunca consegui ser muito incisiva em me afastar. Me sentia muito culpada mesmo, mas eu queria tanto os estágios. Aos poucos, ele se sentia mais à vontade para tocar minha cintura. Um dia, dentro da sala de aula, passou a mão nas minhas costas por baixo da blusa. Eu fiquei paralisada. Acho que alguns

* Nome fictício

colegas perceberam o que ele tinha feito, mas, a essa altura, todos sabiam parte do que acontecia e imagino que até achassem que eu gostava disso”, lembra Aline.

No dicionário Michaelis, assédio se refere à “insistência impertinente, em relação a alguém, com declarações, propostas e pretensões”. Enquanto a expressão assédio moral significa “ a) exposição do trabalhador a situações humilhantes, geralmente repetitivas e prolongadas, durante a jornada de trabalho, por parte de seu superior hierárquico, que o ridiculariza e hostiliza, provocando constrangimento, insegurança”, o assédio sexual é a “insistência inoportuna com intenções sexuais; b) constrangimento em alguém com o intuito de obter favorecimento sexual, prevalecendo o agente de sua condição de superior hierárquico”.

“Eu nunca entendi bem o que aconteceu. Ninguém falava em assédio há 15 anos.” - Aline, médica

Talvez agora você entenda os números a seguir.

A equipe de reportagem da CDM aplicou um questionário nas redes sociais e obteve resposta de 68 mulheres participantes. A pesquisa foi aberta para ambos os públicos, masculino e feminino. Desse número total, 49 delas (72,1%) afirmam ter sido assediadas durante a graduação. Dos 49 casos de assédio, em 21 deles o assediador foi o professor; 17 foram praticados por outros estudantes e, em 11 casos, o assédio veio tanto de docentes quanto de colegas.

Esta reportagem foca no assédio contra mulheres, que são o grande público atingido, mas é certo de que desse mal poucos escapam: ninguém escolhe ou quer ser vítima. Seja dentro da sala de aula, no câmpus ou nas festas, o assédio existe e se torna um drama recorrente nas universidades brasileiras - sem exceções. Um dia você fica sabendo de uma história aqui,

Mais de uma opção 22,4%

Estudante 34,7%

outra ali, mas nunca vai imaginar que aconteça com alguém ao seu lado e, acredite, muitas vítimas de assédio nem imaginam que a mesma situação possa estar acontecendo com alguém tão próximo.

“Até hoje não sei o que não deixava me afastar completamente. Acho que era a sensação de culpa e a imensa admiração que eu tinha. Em nenhum momento pensei em denunciar, nem mesmo fui incentivada pela terapeuta a denunciar. Eu nunca entendi bem o que aconteceu, ninguém falava em assédio naquela época”, finaliza Aline.

Quem é que tem coragem de falar em assédio em universidade? O ambiente hierarquizado e com limitadas possibilidades de punição, acabam abafando escândalos e histórias de assédio entre professores e alunos, que, muitas vezes por medo de serem prejudicados durante a graduação, preferem se manter calados. Outras vítimas até denunciam, mas nem sempre as denúncias avançam.

A história que a jornalista recém-formada L.B. (a entrevistada pediu que fossem usadas apenas suas iniciais) conta tem relação com hierarquia e aconteceu em uma universidade privada paranaense. A estudante é naturalmente uma pessoa muito simpá

42,9% Professor

Fonte: Pesquisa realizada via redes sociais com um total de 68 mulheres participantes.

tica e espontânea, estudiosa, sempre muito aberta às pessoas. Quando um de seus professores fazia brincadeiras, L.B. entrava na piada e brincava também, mas nunca se sentiu humilhada ou que havia passado do ponto. Era algo normal entre professores e alunos.

Ela conta que, como o professor dava liberdade para brincar, ela brincava, mas ela nunca deu liberdade para

“Se você não está confortável em uma situação é porque ela passou do ponto.” - L.B., ex-estudante

educador algum passar dos limites estabelecidos entre professor/aluno. “Chegou a um ponto em que ele começou a me mandar mensagem de madrugada, tipo às 3 horas da manhã”, explica.

Certo dia, a estudante foi fazer uma prova sobre um livro, obra da qual gostou tanto que, ao fim da avalia-

ção, quando todos já haviam saído da sala, decidiu debater com o professor. Ele começou a agir diferente, elogiar muito e ela, claro, entendeu que ele estava falando dela fisicamente. “Foi aí que eu comecei a me sentir estranha e eu acho que, quando você começa a se sentir assim, você sabe que é assédio. Se você não está confortável em uma situação, é porque ela passou do ponto”, afirma L.B.

De acordo com a psicóloga Andressa Schmidt, assédio é assédio independentemente de quem o comete ou do vínculo que se tem. “O assédio no ambiente universitário não é só sexual, mas uma mão ali na hora de estar aconselhando; é um comentário sobre o tipo de roupa que se está usando, o tipo de postura”, explica a psicóloga.

As brincadeiras e “elogios” foram ficando cada vez mais íntimos e intensos. “Eu demorei muito pra acreditar, ele ultrapassou a liberdade que eu nunca dei a ele.” L.B começou a ter medo de ficar com o tal professor na aula e até chegou a se autossabotar - deixou de finalizar uma prova por medo de ser a última aluna a sair da sala, mesmo sabendo todo o conteúdo pedido.

L.B pediu para que um amigo fingisse ser o seu namorado porque, talvez assim, o professor parasse com as atitudes tomadas até então. O rapaz foi prejudicado - e até foi para exame final -, quando o assediador soube da relação que ele tinha com L.B. Ela também foi prejudicada quando o professor se recusou a ajudar com um trabalho.

“A gente passou um período sem ter aula com ele, mas depois voltou. Ele não dava aula direito e nem ligava para a matéria. E, então, a minha sala decidiu reclamar para a coordenação. Foi quando uma menina começou a contar que havia sido assediada por ele e eu pensei ‘Uau!’, ela também passou por isso e estava bem ao meu lado.”

A atual coordenadora do curso, entretanto, afirmou que naquela época - em que ainda não era coordenadora - medidas foram tomadas contra o professor denunciado.

Das 49 mulheres que já passaram por situação de assédio durante a graduação, 45 delas (93,8%) afirmaram que a universidade não solucionou o problema e nem mesmo acolheu as vítimas, segundo o questionário aplicado pela equipe da revista CDM nas redes sociais.

A relação de superioridade e hierarquia dos professores afronta mulheres

Thaís Mota

O relacionamento entre professor e aluno está cada vez mais distante por conta do medo de assédio.

A universidade acolheu ou solucionou o problema? Depois da graduação, o drama continua

a fazerem denúncia e isso se replica nos diversos moldes e ambientes da lógica patriarcal. O suporte de colegas e dos coletivos feministas universitários e escolares, além do apoio de docentes, entretanto, auxilia a superação desses desníveis hierárquicos, segundo a advogada criminalista, especialista em Direito Público, Juliana Bertholdi. Existem uma série de mecanismos que podem ser acionados em caso de assédio no ambiente universitário – seja ele sexual ou moral. “A primeira instância que pode ser acionada é a administrativa, por meio das chamadas Sindicâncias e Processos administrativos disciplinares (PADs). Nesse caso, deve ser verificado qual o procedimento interno da universidade (Regulamentos e Estatutos) para promoção da representação do discente ou docente assediador. Nesse processo, as consequências para ao agressor condenado costumam navegar em um espectro que se inicia com a advertência e pode culminar na expulsão do agressor, seja este aluno ou professor”, explica Juliana. No questionário realizado, quando perguntadas o motivo de não ter denunciado o assediador, algumas das respostas das vítimas foram: “não tive coragem”; “não tinha apoio da coordenação”; “tive medo de prejudicar meus rendimentos acadêmicos”; “ninguém iria acreditar em mim”;“não sabia que era assédio”, entre outras palavras assustadoras, como “pensei que a culpa fosse minha.” A próxima história traz os relatos de A. F. (iniciais). Tudo começou quando ela terminou a faculdade e postou uma foto falando sobre a gratidão de seu último dia de aula. Um dos professores da universidade lhe enviou uma mensagem desejando felicidades e grandes voos. Conversa vai e vem sobre o fim da graduação, o professor contou sobre uma loja de roupas da qual é dono, pediu opiniões e convidou a ex-aluna para tirar umas fotos para a marca. Ela foi, obviamente estava ali para fazer as fotos, como combinado, e nada mais. O professor começou a puxar papos estranhos sobre como ela era bonita, o quanto ele a observava pelos corredores da universidade e como chamava a sua atenção. “Ele foi me elogiando de um jeito sutil, mas com uma liberdade que eu nunca o dei, e eu também não dava bola para o que ele dizia”, afirma. Um dia, a jovem comprou camisetas da marca e passou para pegar o produto na

Sim

6,3%

93,8%

Não

Fonte: Pesquisa realizada via redes sociais com um total de 68 mulheres participantes.

casa do professor, que a convidou para ver o quadro que estava pintando e ela, que adora arte, respondeu que iria em cinco minutos, pois tinha de ir trabalhar.

Os papos voltaram e, dessa vez, pessoalmente. A.F., logo em seguida, já secou as palavras, avisou que tinha namorado, que gosta do professor, mas como uma amizade. “A gente tem uma química legal, o que seu pai acharia se você namorasse um cara mais velho?”, ele perguntou. Ela, novamente, respondeu que não gostou daquela situação, que tinha namorado e que nada a mais ia acontecer entre eles. Era hora de sair dali.

Quando A.F. se virou para ir embora e, de repente, o professor lhe deu um beijo no pescoço. “O que você pensa que está fazendo? Não, isso não é brincadeira, é sério. Eu não te dei intimidade para fazer isso, não admito isso”, ela retrucou.

Ele se fez de desentendido, como a maioria dos assediadores faz, e Ana disse a ele que isso poderia ser considerado assédio sexual. O professor ficou agressivo, muito bravo e se fez de vítima após a a jovem ter dito que aquilo era assédio. Ela foi embora e os dois nunca mais se viram pessoalmente.

O professor acabou sendo demitido, mas não em decorrência deste relato, nunca notificado.

De acordo com o mestre em Direito e doutor em Educação Sadi Franzon, do apoio regulatório da Reitoria da PUCPR, “quando se tratam de questões como o assédio, não há dúvida nenhuma de que a universidade tem todo o interesse em apurar e, sendo o procedente, tomar todas as medidas cabíveis.”

Ele explica que se a situação envolver um docente ou um colaborador (pessoas que têm vínculo de trabalho com a universidade), existem todas as alternativas que a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) prevê para casos os citados na reportagem. “Vai desde uma advertência, uma suspensão, e pode ocorrer o desligamento do funcionário, seja ele sem justa causa ou por justa causa. Essas são as alternativas de tratamento para questões como esta quando estiver, obviamente, comprovado que o fato existiu, com vítima e elementos que levem a essa conclusão”, afirma Franzon.

Quando ocorre uma situação dentro da universidade e ela não vem a conhecimento das autoridades, a apuração e solução dos fatos se torna muito complicada. Por isso, a necessidade de se fazer uma denúncia se torna essencial no processo. A PUCPR possui diversos canais para denúncia de atos ilícitos, começando pela primeira instância, que é a coordenação do curso, passando pelo decano da escola, diretor do campus, e os canais gerais que servem tanto para a comunidade externa, quanto interna, que são o site e o número 0800, um canal direto para a auditoria interna.

Sobre o trâmite do processo, Sadi explica que, “recebendo uma denúncia, ela vai receber um tratamento primeiro internamente e depois em conjunto com o gestor da área correspondente para se fazer uma investigação, porque ela pode ser procedente, como pode ser improcedente. Sendo procedente, é obrigação da universidade tomar as medidas cabíveis de acordo com a lei.” A denúncia pode ser feita anonimamente e com total sigilo pelo telefone e site da universidade, desde que informe detalhes que identifiquem a situação e quem se envolve nela. Quando apurado e iniciado o trâmite de denúncia é possível acompanhar o andamento do processo.

Segundo a advogada Juliana, é possível ainda promover ações judiciais e boletim de ocorrência, mas o ideal, segundo ela, é sempre buscar suporte e orientação de um profissional da Defensoria Pública ou mesmo dos coletivos feministas .

Mas, como tratar o assédio universitário onde há afronta por superioridade e falta de punição? De acordo com Juliana, Debater e conscientizar, demonstrando que o corpo discente não irá fazer vistas grossas a comportamentos inadequados e por vezes até mesmo criminosos é fundamental. Além disso, não obrigue ou julgue alguém que não fez a denúncia por medo ou qualquer outro motivo. Apoie.

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