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(que Costa assume em 1937 como diretor da Divisão de Estudos e Tombamentos), eram do período colonial. A campanha de Costa à frente do SPHAN apontava, por isso, não apenas para a valorização histórica da arquitetura colonial, mas para o esquecimento sistemático das vertentes burguesas dos séculos XIX e XX, como o Ecletismo e o Art-Nouveau. 12. Lucio Costa, “Muita Construção, Alguma Arquitetura, e Um Milagre”, in: Revista-Catálogo do III Congresso Interamericano da Indústria da Construção (Rio de Janeiro, 1962), p. 42

 Cruzamento dos eixos Monumental e Rodoviário em Brasília  Croquis do Plano Piloto de Brasília, de Lucio Costa Lucio Costa pela arquitetura colonial – proporcional ao seu desprezo pela “sucessão desconexa de episódios contraditórios, justapostos ou simultâneos, mas sempre destituídos de maior significação”12 que via no período eclético e nas arquiteturas importadas da Nova República – encarnava agora um discurso oficial.

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Como bem concluiu Arantes, o “milagre” da arquitetura moderna brasileira, epitomizado em Brasília, era sobretudo um milagre historiográfico: uma fábula tão bem contada que se tornava por fim um fato concreto, material e visível. Nem o mais vasto financiamento e nem qualquer conjuntura técnico-econômica davam conta de explicar a emergência da nova capital num país onde tudo parecia ainda “por fazer”. Tampouco bastou a vontade política de um ou dois líderes populistas para que a miragem do oásis se abrisse no serrado. Foi sobretudo a ideia, tão bem construída por tantas mãos ao longo de nossa história, de que Brasília sempre esteve lá, que fez com que ela efetivamente se materializasse.

Uma ideia tão obstinada que, em 1956, era rememorada pela Revista Cruzeiro como A Batalha de 200 anos: traçada até 1789, quando os Inconfidentes incluíram em suas reivindicações a interiorização da capital brasileira, a ideia teria perdurado informalmente durante todo o Império até que fosse oficializada pela Constituição de 1891. Demarcada pela Missão Cruls, que em 1894 divisaria no mapa do país aquele estranho quadrilátero no Planalto Central que mais tarde

conheceríamos como o mapa do Distrito Federal, a ideia pela primeira vez ganhava seus contornos de miragem: O quadrilátero de Cruls que, durante mais de meio século excitou a curiosidade dos colegiais brasileiros, foi também uma interrogação para o garoto Juscelino Kubitschek, desde os seus primeiros contatos com a Geografia, em Diamantina. Lembra-se o presidente de que conhecer a explicação daquela figura geométrica, intrometida no mapa de Goiás, tinha pelo menos a virtude de revelar a aplicação dos alunos, para quem, no entanto, aquilo não era mais que o símbolo de uma ideia tão velha quanto o próprio país13 À época da candidatura de JK, o discurso já estava muito bem ensaiado; um senso geral de predestinação histórica e uma vontade coletiva de “renovação” rondavam, como um espectro, a psique brasileira. Àquele estranho quadrado de Cruls – ainda um esquema arbitrário e impreciso, ainda a expressão elusiva de um fantasma, uma cartografia do porvir – faltava no entanto a construção. Mas não a construção pura e simples. Me refiro a uma engenharia mais ampla: a de nomear uma multiplicidade de enunciados, historicamente dispersos e pouco articulados, por meio de uma imagem-de-mundo. A configuração do cânone: uma espécie de arquivo simbólico, um conjunto enunciável de formas rituais para a perpetuação do mito brasileiro. Uma engenharia simbólica da qual a cidade “em si” não era, senão, um mero vestígio, pois Brasília revelava-se como um mundo inteiro de imagens, palavras e discursos: a forma do avião, o semblante surrado do candango, o austero prisma branco, a luz da alvorada, o automóvel brilhante, o sujeito miscigenado, a expedição bandeirista, o minério de ferro, a marca da cruz, os relógios IBM, as montanhas da Guanabara, o pau-a-pique e o concreto armado, enfim, um sem-número de encantamentos que, devidamente organizados, fariam brotar do deserto aquela cidade messiânica.

À arquitetura, no entanto, coube a tarefa última de nomear essa miríade de eventos discursivos, até então mais ou menos dispersos, sob a ordem de um único símbolo, de uma narrativa-mestra: uma “síntese”, como bem queria JK. Havia nesse valor de montagem arquitetônica, de cidade, algo além da soma de muitas partes; uma propriedade emergente irredutível, de sentido próprio, impossível de ser observada em suas frações constituintes. Pois o que o evento arquitetônico de Brasília reivindicava era uma imagem integral e coesa de um domínio cosmológico: a de um Brasil que se estava compondo e que só poderia ser observado na inteireza de um objeto-síntese: o plano piloto, ou a palavra mesma “Brasília”.

Brasília não era inaugurada como qualquer cidade é inaugurada, mas como uma espécie de mapa, um cosmograma do Brasil moderno. Daí, talvez, tenha decorrido o insight fundamental de Lucio Costa, com toda o simbolismo atribuído ao plano piloto, sobre o qual projetou as imagens civilizatórias da cruz e do avião14. É que o plano, isto é, o

13. “Brasília nasceu em um comício em Jataí”. In: Diários Associados: O Jornal Estado de Minas, Folha de Goiaz e Correio Braziliense. 21 abril de 1960, p.3

 Still da videomontagem"A Cristalização de Brasília" (2019), de Guerreiro do Divino Amor, retratando S. João Bosco, o "profeta" da capital, sobrevoando o mapa de Brasília 14. Le Corbusier também era fascinado na relação entre o avião e o plano. Em seu livro Aircraft (1935), publicado seis anos após sua viagem à América Latina,

o franco-suíço via no avião o “símbolo de uma nova era”. No que soa como um prenúncio da construção de Brasília, Corbusier escreve: “O avião escrutiniza, age e vê rapidamente, e não se cansa – com seu olho de águia, penetra a miséria das cidades (...). Assim são as grandes cidades do século dezenove: inquietas, cruéis, sem coração e gananciosas. O avião instila, sobretudo, uma nova consciência: a consciência moderna. Cidades, em sua miséria, devem ser desmanteladas; devem ser amplamente destruídas e, no lugar, devem ser construídas novas cidades”. Ver: Le Corbusier, “Aircraft” (Londres: Trefoil, 1987), p. 12. T.M. mapa, é o cosmograma por excelência: ele não apenas “armazena” e “preserva” o mundo; ele efetivamente o nomeia e o produz.

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O que queremos dizer quando afirmamos que o plano de Brasília foi concebido como um “cosmograma”? Um ponto de partida seria dizer, retornando a um termo de nossa preferência: o cosmograma é um símbolo. Isso significa, como vimos, que ele é simultaneamente um recipiente, capaz de armazenar memória e significado, e uma espécie de dispositivo: um objeto produtivo, que funciona segundo uma finalidade, que está referenciado a um certo estado possível das coisas. Em outras palavras, o cosmograma – como o símbolo – possui um estado de reflexão (no que reflete e registra; no que ele é determinado por uma causa produtiva, pelas coisas que ele representa, e por tudo aquilo que lhe é externo e anterior), e um estado de produção (no que ele, enquanto uma coisa em si mesma, possui uma capacidade produtiva). Mas se dizemos que Brasília é um cosmograma, não estamos nos referindo a um símbolo qualquer, pois de muitas

outras coisas podemos dizer que o são: todas as palavras e objetos “culturalmente” concebidos são, também, símbolos. E por mais que de qualquer símbolo possamos traçar, em seu conteúdo histórico e em seu uso social, a natureza de seu pertencimento em uma cosmologia, somente de alguns deles podemos dizer que nomeiam, intencionalmente, esse domínio cosmológico; que organizam uma profusão de outros símbolos e conceitos sob uma unidade central, em uma tecitura coesa do real (textus = tecido). Cosmogramas são objetos poderosos e referenciais para uma cosmologia social; são os meios concretos nos quais ela se permite representar e compreender. Já por “cosmologia”, entenderemos aquilo que o antropólogo John Tresch descreveu: Uma cosmologia é mais do que um sistema de classificação, um mito de origem, ou uma teoria das relações entre o que há no universo; ela também envolve dimensões estéticas e afetivas e um senso de coerência entre as palavras, práticas e objetos característicos de um grupo15 Uma cosmologia, enquanto sistema nocional que rege a nossa interação com a história e com o mundo ao nosso redor, está indispensavelmente ligada a um repertório concreto de artefatos, ou coisas que nos permitem mapeá-la. Ao admitir aos objetos que nos circundam essa referencialidade num sistema cosmológico, Tresch observou nessas “coisas” dois modos de existência: a coisa cósmica e o cosmograma. O termo coisa, como apontou a respeito do famoso exemplo de Heidegger sobre a jarra cerimonial16, adquire aqui um sentido ampliado para além da acepção obtusa do “objeto”: a coisa é um evento. Ela sugere como, por um lado, “um objeto ordinário pode conter um cosmos inteiro” (coisa cósmica) e, por outro, “como um cosmos pode ser tratado como apenas uma coisa” (cosmograma)17 . Conforme sugerido pela etimologia [das línguas germânicas], donde ‘coisa’ significava originalmente ‘ajuntamento’, a jarra, ou uma outra humilde entidade como uma ponte, é um objeto focal para um grupo histórico cujo uso concentra seus modos compartilhados de se relacionar entre si e com todas as entidades no mundo – todo o seu modo de estar-no-mundo. (...) A jarra é uma coisa cósmica18 A ideia de coisa nos diz que um objeto qualquer está sempre associado a uma economia de forças sociais que nele se ajuntam: por trás de toda coisa há a sombra de seu produtor, a presença de uma matéria-prima transformada, seus aspectos ideais (a imagem ou ideia que precede a produção), e o vetor de um uso social, ou seus “fins rituais”. É em consideração a essa trama de causalidades – que em Heidegger correspondem ao princípio das quatro causas atristotélicas19 –, que Tresch cunhou o termo “coisa cósmica”. Mas o que chamamos de cosmograma compreende um outro tipo de coisa; sobretudo, porque ele é uma expressão consciente do cosmos. Em outras palavras, podemos

15. “Brasília nasceu em um comício em Jataí”. In: Diários Associados: O Jornal Estado de Minas, Folha de Goiaz e Correio Braziliense. 21 abril de 1960, p.3 16. “Em seu exemplo [o de Heidegger], uma jarra – uma jarra particular – é o que é não porque possui quatro lados e um fundo; uma coisa é mais do que uma variedade de sensações, um objeto físico, um pedaço de matéria enformada, ou um instrumento útil. Ao invés, a coisa é um evento, um abundante vazio que recebe vinho como parte de um rito coletivo” Tresch, J. (2007), p. 88. T.M. 17. Ibid., p. 86. Grifo meu. 18. Ibid., p. 89.

19. Um aspecto importante da filosofia da técnica de Heidegger é o seu emprego das “quatro causas” aristotélicas como uma forma de “desvelar” a essência de todo objeto ou modo de produção. São elas: “1. a causa materialis, o material, a matéria a partir da qual, por exemplo, uma taça de prata

é feita; 2. A causa formalis, a forma, a figura, na qual se instala o material; 3. A causa finalis, o fim, por exemplo, o sacrifício para o qual a taça é requerida é determinada segundo matéria e forma; 4. A causa efficiens, o forjador da prata que efetua o efeito, a taça real acabada”. Ver: Martin Heidegger, “A Questão da Técnica”, in: Scientiae Studia, v. 5, n. 3. (São Paulo: USP, 2007), p. 377

20. Michel Foucault, Arqueologia do Saber (Rio de Janeiro: Forense, 2008), p. 134. Grifo meu dizer que ele é, essencialmente, um artefato comunicacional, e que nele o cosmos aparece como o objeto central de seu enunciado: ao contrário da coisa cósmica, não se trata de um mundo que se “esconde” por detrás do objeto, mas de um mundo que ele, conscientemente, representa e produz. O cosmograma é mais do que uma coisa: ele é um estatuto. Isso confere a ele, por menor que seja sua esfera de influência, algum poder especial. Pois ele não se contenta, como na jarra cerimonial, em conter silenciosamente o mundo; ao invés, ele quer nomeá-lo como forma de investir diretamente sobre ele.

Quando Michel Foucault, em Arqueologia do Saber (1969), elaborou o conceito de “formação discursiva”, ele se referia a um fenômeno bastante similar ao que tentamos explicar aqui. Para o filósofo, a condição de existência de qualquer corpus do saber (por exemplo, uma ciência devidamente consolidada) é o acúmulo de uma determinada multiplicidade de enunciados (ou práticas e dizeres) heterogêneos sob a autoridade de um único discurso, de um aparato institucional que os nomeia, ou os corporifica.

Por exemplo, o que explicaria a “ciência médica” não é, para Foucault, um suposto “objeto” único ao qual todos os enunciados historicamente atribuídos à “medicina” se referem; mas sim o fato de todos esses enunciados terem se reunido (mesmo forçosamente) sob uma mesma “prática discursiva”, ou sob um mesmo “conjunto de regras anônimas, históricas, (...) que definiram, em uma determinada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa”. Em outras palavras, não é o objeto “medicina” que determina a priori em que consistirão as práticas e enunciados da “ciência médica”, e sim o contrário. Os enunciados e práticas da “ciência médica” não se associaram por afinidade natural, ou por terem todos um referente comum, mas pelo fato de terem sido nomeados, sob determinadas circunstâncias e forças históricas, por um mesmo signo, por um mesmo discurso. Mostra-se como [pela análise do discurso] os diferentes textos de que tratamos remetem uns aos outros, se organizam em uma figura única, entram em convergência com instituições e práticas, e carregam significações que podem ser comuns a toda uma época. Cada elemento considerado é recebido como a expressão de uma totalidade à qual pertence e que o ultrapassa. Substitui-se, assim, a diversidade das coisas ditas por uma espécie de grande texto uniforme, ainda jamais articulado e que, pela primeira vez, traz à luz o que os homens haviam ‘querido dizer’, não apenas em suas palavras e seus textos, seus discursos e seus escritos, mas nas instituições, práticas, técnicas e objetos que produzem20 Quando nos referimos ao caso de Brasília e, mais amplamente, ao que entendemos por “cosmograma”, é para nomear, de certa forma, esse mesmo fenômeno. É claro que o objeto “Brasília” não diz respeito a uma formação discursiva tão nítida e delimitada quanto uma ciência

(como era o objeto da tese de Foucault). Tampouco se trata de uma instituição no sentido clássico do termo, de uma prática discursiva com certa autonomia e racionalidade próprias. Entretanto, Brasília é ainda assim uma síntese, um corpus, ou algo que podemos classificar como uma unidade de discurso: um único nome, ou símbolo, que faz evocar por força própria uma multiplicidade de enunciados, saberes, práticas e agentes que ele circunscreve.

“Brasília” não surgia como uma ciência: e ainda assim, recorrer a ela é, de certa forma, nomear uma História Geral do Brasil, uma etnografia do “brasileiro”, uma ciência urbana, uma ideologia nacional, uma geopolítica, uma língua compartilhada, uma teologia, etc.

A ideia que faremos do cosmograma, de forma similar à ideia de “discurso” de Foucault, nos diz que um mundo (enquanto multiplicidade, realidade) só se faz reconhecer e constituir por meio da produção de uma imagem-de-mundo: um ato de nomeação, de “ajuntamento” de multiplicidades. Ou, como em Foucault, uma formulação: um “ato individual (ou, a rigor, coletivo) que faz surgir, em um material qualquer e segundo uma forma determinada, esse grupo de signos: a formulação é um acontecimento que, pelo menos de direito, é sempre demarcável segundo coordenadas espaço-temporais, que pode ser sempre relacionada a um autor, e que eventualmente pode constituir, ↑ Quadrilátero divisado no Planalto Central pela Missão Cruls (1892-1894), que daria origem posteriormente ao mapa do Distrito Federal

21. Foucault, M. (2008), p. 134. Grifo meu

22. Deleuze, G; Guattari, F. (1995), Livro 1. p.21

23. Ibid., loc. cit.

24. Ibid., p. 22 por si mesma, um ato específico”21. Em suma, um ato de autoria, de autoridade.

Dissemos anteriormente, para fins ilustrativos, que o cosmograma é um mapa. Mas ainda que muitos dos objetos tidos pelos especialistas como cosmogramas (por exemplo, o mapa-múndi) sejam, de fato, o que conhecemos por “mapas”, o cosmograma não se permite explicar suficientemente por esse termo. Sobretudo porque o ato de mapear é fundamentalmente diferente do que chamaremos de cosmografia, ou a produção de cosmogramas, de imagens-de-mundo. Deleuze e Guattari, no primeiro livro de Mil Platôs, diferenciaram esses dois modos de produção de mundo: chamaram-nos de mapa (no sentido que empregamos aqui) e decalque (ou, para nós, o cosmograma).

O mapa, segundo eles, “se opõe ao decalque (...) por estar inteiramente voltado para a experimentação ancorada no real”22: ele é um processo coletivo, heterogêneo e contínuo que não acontece no plano da representação, mas numa pragmática inominável de trocas e associações concretas. Mapear um mundo não é partir de um território já conhecido, previamente delimitado, para então reproduzi-lo (conceber o mapa-imagem). Mapear não diz respeito à reprodução de um objeto sabido, ou a um objetivo de mapeamento. Pelo contrário, quem faz o mapa não conhece a princípio a forma total, a extensão ou os limites desse mundo, e nem mesmo tem por intenção o ato de mapear.

Mapear um mundo não é nomear, ou reduzir multiplicidades a um estado nominal e conhecível. É, pelo contrário, conhecer através da multiplicação das incursões, das experiências e descobertas sucessivas num terreno vivido. Os elementos do mapa não se associam por identificação prévia (ou por habitarem sabidamente um mesmo “mundo”), mas se identificam porque se associam, se identificam na diferença. Não há nada a priori que os faça habitar um mesmo mundo, um mesmo nome. “O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente”23 .

O decalque, por outro lado, traduz “o mapa em imagem”24. É um ato de nomeação, de corporificação de uma multiplicidade de coisas que não necessariamente se associam ou complementam. Por exemplo: um monstro cuspidor de fogo que consiste simultaneamente em leão, cabra e serpente, está suficientemente nomeado, corporificado pela palavra “Quimera”, ou então por sua representação pictórica. Ainda que, no “mundo real”, as coisas leão, cabra, serpente e fogo não possuam qualquer vínculo corporativo uns com os outros, isso não impediu que elas fossem ajuntadas pelo discurso mitológico, que a Quimera se tornasse um corpus efetivamente presente e temível para os gregos, que preocupasse as suas mentes e contaminasse suas condutas. O decalque é o cosmograma: é uma imagem-de-mundo, uma ordem de demarcação. Um cosmograma está para o mundo como os nomes

estão para a multiplicidade de coisas que eles nomeiam, representam e contêm: em uma relação de captura e composição. Sua produção não acontece, como no mapa, diretamente no fluxo da experiência concreta, mas num momento determinado de nomeação.

Não quero dizer, com isso, que o cosmograma seja, pura e simplesmente, uma invenção gratuita. Lembremos que, enquanto símbolo, ele está sempre ligado a uma genealogia de iterações passadas: uma imagem-de-mundo é sempre elaborada sobre versões anteriores. Não obstante, o cosmograma é sempre uma coisa, um evento determinável de criação. É esse evento determinável que nos interessa aqui, e que em Brasília identificamos como a sua “síntese”. O momento da “síntese” diz respeito precisamente ao momento em que se desejou reunir, numa montagem retrospectiva, todo um conjunto outrora disperso e anônimo de enunciados, com a intenção clara de dar forma e imagem ao que, a partir daí, tornou-se um “mundo”: um ato de cosmografia, um “faça-se a luz”.

Da forma mais abrangente possível, e sob o risco de profanar um conceito caro à arqueologia e à antropologia contemporânea, podemos definir o cosmograma da seguinte forma: um discurso sobre o real.

O cosmograma se utiliza de um aparato simbólico, verbal ou não, para explicar o seu próprio meio de codificação, o seu próprio contexto de origem: um aparato que produz “mapas”, diagramas, projetos, textos históricos e ficcionais, catálogos, legislações e todos os tipos de artefatos que detêm a autoridade para nomear os aspectos fundamentais do universo a que pertencem.

O privilégio de nomear – isto é, simbolizar – conscientemente uma unidade cosmológica qualquer (um universo, uma nação, uma etnia, uma cidade, etc.) faz do cosmograma mais do que um simples objeto vestigial, ou um “subproduto” de nossa relação com o cosmos; pois esse privilégio permite, na verdade, que ele sirva como um estatuto do real. O cosmograma é um enunciado referencial sobre a realidade: ele nos diz do que ela é feita, no que, em troca, internalizamos essa representação e gravitamos em torno dela. Ele está atrelado, portanto, a um processo de autocognição social; aos meios pelos quais uma coletividade faz conhecer e transformar a si mesma.

Enquanto estatuto, o primeiro compromisso do cosmograma é o mapeamento e a descrição de um conjunto possível de objetos e eventos que pertencem a essa unidade de mundo, seja ela qual for. Mas o que significa dizer que ele recorre a um “conjunto possível”? Podemos traçar dessa expressão duas observações (ou melhor, espe-

 Deus Tetzcatlipoca conforme representado no Códice Borgia, um manuscrito pictórico pré-colombiano do séc. XVI contendo cosmogramas, encantamentos e instruções rituais da cosmologia asteca culações) que nos ajudarão a fundamentar o nosso entendimento sobre o cosmograma.

A primeira nos diz que, se um conjunto é “possível”, é porque foi previamente delimitado por uma autoridade ordenadora (mesmo quando sua autoria não é individualizável). Assim, o cosmograma pressupõe um exercício de poder: o gesto de demarcar uma fronteira de soberania, ou uma jurisdição dentro da qual sua autoridade narrativa se mantém coesa, e seu cosmos permanece explicável. O cosmograma é um discurso de situação, funcionando como a demarcação de um lugar, de uma situação no tempo e no espaço sobre a qual ele exerce controle. O conjunto possível que ele confi na dentro dessas fronteiras simbólicas corresponde a um repertório limitado de coisas que podem existir em determinado mundo. Isso incorre em admitir que, no momento em que o cosmograma nomeia e autoriza o possível, ele também sugere e proíbe o impossível – ou seja, tudo aquilo que se encontra do lado de fora de um modelo da realidade, e cuja existência deve ser combatida ou, no mínimo, ignorada. Resumidamente, nossa primeira observação nos diz que os cosmogramas não são mapas, mas estatutos, modelos de mundo.

O que nos leva à nossa segunda observação: como toda norma, a autoridade desse “conjunto possível” se refere também, para além do estabelecimento de fronteiras disciplinares, à sua capacidade de antecipação e previsão do futuro. Não me refi ro tanto a uma “divinação” no sentido teológico (como é o caso em muitos cosmo-

gramas), mas em termos pragmáticos: se a linguagem do estatuto está sempre conjugada no imperativo – ele é uma ordem – então necessariamente o futuro deverá se desenrolar conforme ele prevê: o cosmograma é um projeto.

Se quando, por exemplo, para realizar um certo trajeto pela cidade, sabemos de antemão que a única forma possível de locomoção será necessariamente a dos sistemas viários reticulados, isto é, a do movimento ortogonal, é porque um conjunto restrito de possibilidades foi, em algum momento, antecipado por um plano de urbanização. E se os planos de urbanização, até hoje, invariavelmente recorrem a alguma forma de ortogonalidade, é porque há milhares de anos o grid impera como um esquema epistemológico fundamental a qualquer forma de produção de mundo; um aparato normativo que antecipa e ordena os modos com que representamos, partilhamos e compreendemos a realidade.

O cosmograma recorre, a um só tempo, a um ato de demarcação e a uma ordem de produção. Ele faz inscrever, na matéria, a imagem do domínio territorial de um poder, garantindo-lhe presença e continuidade num meio social. É que a necessidade de assegurar uma relação de poder corresponde precisamente à necessidade de conceber as imagens do mundo sobre o qual ela se estende: pois o poder só se legitima e reproduz na medida em que pode ser simbolizado, materializado, localizado.

A noção que queremos fazer do cosmograma sugere, portanto, que a ideia que fazemos do mundo e o modo como engajamos com ele são sempre produtos de um modelo de realidade manifesto em certos objetos.

Cosmogramas podem assumir muitas formas, ser novos ou antigos, mas serão sempre, invariavelmente, veículos de autoridade epistêmica e suportes para discursos de poder. Quer se trate das ancestrais imagos mundi ou do plano para uma cidade moderna, a discussão sobre o cosmograma deve reconhecer o seu papel, para além de um modo de representação (ou reflexão), de modelo. E todo modelo pressupõe uma ordem de produção – ou reprodução – de um evento ou entidade à imagem de sua matriz: ele orienta uma finalidade produtiva e um uso social.

Como apontou John Tresch em um outro ensaio, “frequentemente, existe num cosmograma um objetivo que vai além da mera descrição ou representação: ele é muitas vezes uma redescrição, no tempo condicional ou futuro – não se trata do mundo tal como ele é, mas do mundo como poderia ser”25. O cosmograma nos remete a uma forma de representação do mundo que pode ser entendida também como uma forma de produção, ou projeto, de um novo mundo. É nesse sentido que dizemos que o cosmograma é um dispositivo: seu valor não

25. John Tresch, “Cosmogram” in: Ohanian, M.; Royoux, J. (orgs.), Cosmograms (São Paulo: Kristale, 2005), p. 74

26. Rebecca Lesses, “Image and Word: Performative Ritual and Material Culture in the Aramaic Incantation Bowls”, in: DeConick, A; Shaw, G. et al, Practicing Gnosis: Ritual, Magic, Theurgy and Liturgy in Manichaean and Other Ancient Literature (Boston: Leiden, 2013), p. 377

27. Ibid., p. 378 decorre inteiramente do que ele permite armazenar ou representar, mas igualmente do que ele permite produzir e transformar.

Tomemos, como exemplo, as tigelas de encantamento aramaicas utilizadas entre os séculos 4 e 8 d.C. pelos povos cristãos, judeus e zoroastras na região da Babilônia, segundo descritas pela antropóloga Rebecca Lesses.

Esses artefatos de barro, muito comuns à época, eram desenhados com inscrições verbais e figurativas sobre as diversas entidades espirituais, de diversas origens religiosas, que povoavam uma cosmologia comum. Essas tigelas, tal qual os pergaminhos e códices antigos, eram suportes sobre os quais se faziam representar e transmitir um conhecimento cosmológico. Eram, certamente, cosmogramas: mas não apenas em razão do que eles “armazenavam” desse conhecimento; na verdade, como apontou Lesses, esses artefatos não serviam ao mero registro de uma memória cosmológica e nem a fins ornamentais, mas eram sobretudo instrumentos mágicos, ou então dispositivos: as palavras e imagens gravadas nelas, contendo encantamentos escritos e figuras de entidades mitológicas, possuíam o objetivo claro de “exorcizar demônios, curar doenças, proteger contra espíritos malignos e salvar uma pessoa e seus filhos de Lilith e outros demônios”26. O mero título de “recipiente”, portanto, é insuficiente para explicar as tigelas aramaicas: pois a sua disposição, ou sua tendência à produção de um resultado material, fazia com que eles fossem usados da mesma forma que qualquer outra ferramenta, fármaco ou objeto tecnológico.

Lesses observa, ainda, que as tigelas eram sempre enterradas em pontos estratégicos de residências e edifícios públicos, frequentemente de acordo com instruções contidas nos próprios artefatos. Esses pontos correspondiam muitas vezes aos quatro cantos de um cômodo, de forma a “selar” o edifício e garantir segurança e salubridade aos seus habitantes. Podemos dizer que essa prática ritual, que constituía uma etapa indispensável para que um edifício se tornasse habitável, em nada diferia de quaisquer outras tecnologias e sistemas de edificação, pois era empregada para os mesmos fins que elementos como fundações, paredes, isolamento térmico e portas, efetivamente escorando e delimitando o ambiente construído. As tigelas eram, literalmente, elementos construtivos daquela arquitetura. As instruções e encantamentos contidos nelas, além disso, funcionavam da mesma forma que um projeto ou uma ordem de produção, no sentido de uma linguagem simbólica empregada para fazer surgir um evento ou uma configuração desejada do mundo.

O simbolismo contido em cosmogramas como a tigela aramaica pode ser descrito segundo a noção de “ato de imagem” (image act) empregada por Lesses, onde “palavras ou imagens não são meramente descrições do mundo, mas, assim como ações físicas, são empregadas para afetar o mundo”27. Projeto, feitiço, discurso e tecnologia

adquirem aqui um território comum: o uso do símbolo como um instrumento de produção do mundo.

Mais uma coisa deve ser observada se desejamos atribuir a objetos como a tigela aramaica o título de cosmogramas. Quer dizer, por mais que sejam fundamentais para o desenvolvimento e reprodução da vida ideológica de uma sociedade, os cosmogramas são muitas vezes objetos cotidianos, banais, fragmentários. Esse ponto de vista é, de fato, extremamente contraintuitivo, dado que na maioria das vezes em que o termo “cosmograma” é empregado, é para designar uma classe de artefatos excepcionais e imponentes que parecem exercer autoridade total sobre um “todo” social: é o caso de objetos como os códices maias, as escrituras bíblicas, os mapas-múndi, os tratados gerais da ciência e os planos utópicos para “cidades ideais”. Quero defender, no entanto, que não são atributos como a extensão de seu conteúdo ou a centralidade monocrática que esses artefatos possam empenhar que fazem deles, em essência, cosmogramas.

É comum que associemos o cosmograma – muito em função do peso que a palavra cosmos carrega no senso comum – à ideia de um estatuto fundamental, ou a uma representação integral e absoluta do cosmos em torno da qual se ampara um determinado grupo social (a Bíblia explicaria o mundo cristão; Brasília explicaria o Brasil etc.). Além do mais, essa concepção sacralizante do cosmograma frequentemente sugere que sua produção está detida e associada a uma única figura de autoridade (a Bíblia é um cosmograma elaborado pela vontade do próprio Deus; o plano para Brasília é atribuído às figuras mitológicas de Kubitschek e Costa). Mas essa visão unitarista inutiliza a riqueza por trás da ideia de cosmograma, reduzindo-a a alguns poucos exemplos notórios, da mesma forma com que o conceito de “cultura” frequentemente leva às mais rudes planificações sobre uma realidade social complexa.

São inúmeros os casos, no discurso etnográfico ou no senso comum, onde a realidade de sociedades “exógenas” é frequentemente reduzida a alguns poucos conceitos, mitos, personagens e cosmogramas. Civilizações inteiras, em toda sua diversidade e profundidade histórica, parecem caber em uma única unidade “cultural”, desprovida de espessura e cronologia. Quando voltamos, no entanto, o olhar para nossa própria realidade, qualquer tentativa de “síntese” parece absurda: em torno de quais cosmogramas, exatamente, orbita o “Ocidente”? Ou então, num recorte mais apurado, em que consiste a cosmovisão brasileira? A impossibilidade óbvia de se responder perguntas como essas nos diz que é impossível reduzir um sistema cosmológico a um punhado de símbolos e expressões centrais, e que quaisquer tentativas de esboçar sua totalidade colidirão com uma

Bacia de encantamento do povo judeu-aramaico, séc. 5-6 d.C. Contém encantamentos escritos e pictóricos para a proteção dos limites da casa contra demônios

realidade cosmológica em constante construção e contradição, e povoada por inúmeros cosmogramas e agentes de cosmografia.

Sem que deixemos de reconhecer a devida importância de alguns desses artefatos, no entanto, é preciso dessacralizar o cosmograma, submetendo-o não mais à autoridade de um único mito de origem, mas à ideia de uma operação, ela mesma frequentemente heterogênea mundana, de registro.

O cosmograma é o produto de uma cosmografia: o trabalho, muitas vezes fragmentário e descentralizado, de registro de uma cosmologia. Um trabalho que nem sempre tem por objetivo a explicação “integral” do mundo, podendo ser empregado segundo intenções muito corriqueiras e em registros “pouco” abrangentes. Isso se torna ainda mais evidente em face da heterogeneidade mesma de uma concepção ampliada de “cosmos” ou “mundo”. Um mundo pode descrever qualquer coisa – microcosmos, macrocosmos – que se tenha por uma unidade discursiva suficientemente nomeável: haverá tantos mundos quantos forem os nomes de mundo. É a soma, ou a montagem dessas muitas cosmografias que nos interessa aqui; uma composição que pode ser descrita como uma espécie de infraestrutura nocional, ou cosmológica, irredutível a alguns poucos estatutos isolados, mas compreensível

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