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Oposição x Recursividade

36. André Leroi-Gourhan, Gesture and Speech (Cambridge: MIT Press, 1993) p. 114. T.M.

37. Ibid., p. 114

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38. Ibid., p. 113

 Evolução da faca, dos primeiros estereótipos de pedra do Paleolítico até a faca moderna. Copiado de Leroi-Gourhan (1993), p. 303 diante a emissão do sinal, toda possibilidade de conhecimento sobre eles é inviabilizada. O gorila não pode, com seus sinais, falar sobre a presa, sobre o inimigo, para os gorilas ausentes: ele não pode lhes comunicar o que são cada uma dessas coisas sem que elas se apresentem para eles conjuntamente ao sinal.

Pode-se dizer que o lógos pelo qual Platão advogava não era, portanto, tão distinto assim da ‘protolinguagem’ espontânea demonstrada pelos gorilas. Como observou o paleontólogo André LeroiGourhan, em Gesture and Speech (1964), O traço característico da ‘linguagem’ e das ‘técnicas’ dos grandes símios é que elas são solicitadas espontaneamente em resposta a estímulos externos e são, de forma igualmente espontânea, abandonadas, ou deixam de ocorrer, caso a situação material que as provoque deixe de existir ou não aconteça36 A condição de surgimento da episteme, a condição mesma do que tradicionalmente temos por “ser humano” jaz, contrariamente ao que quis Platão, na possibilidade do signo. Todo signo, falado ou escrito, é uma forma de prótese, de memória-auxiliar. Em termos linguísticos, o signo é a forma perene do sinal: é, por exemplo, a palavra “inimigo” que surge não apenas para re-presentar o inimigo ausente, mas igualmente para antecipar a possibilidade da sua presença. Um animal dotado de signos será portanto capaz de, acoplando-os a si como próteses, rememorar e antecipar a realidade, ou então, conceituá-la. E dessa montagem entre ser e signo o que irrompe é precisamente o conhecimento, a episteme, ou o próprio “humano”. Mas por “signo” (ou então símbolo) entenderemos não apenas os instrumentos da linguagem, mas, de forma ampla, tudo aquilo que o ser humano “excreta” para além de seu corpo biológico e que é capaz de se conservar e sedimentar no tempo, podendo ser sucessivamente “retomado” e desenvolvido pelos ausentes e pelas gerações futuras. O signo é indistinguível de qualquer outra ferramenta ou objeto técnico. De novo, segundo Leroi-Gourhan, (...) as operações envolvidas na fabricação de uma ferramenta antecipam as ocasiões de seu uso, e a ferramenta é preservada para ser usada em ocasiões futuras. O mesmo é verdadeiro para a diferença entre sinal e palavra, a permanência de um conceito sendo comparável àquela da ferramenta37 A identidade entre o signo linguístico e a ferramenta se dá para muito além da simples analogia. Na verdade, como Leroi-Gourhan observou, as capacidades de construir ferramentas e símbolos dos seres humanos “derivam do mesmo processo, ou melhor, do mesmo equipamento básico do cérebro”38. Entretanto, a condição biológica para a fabricação de símbolos e ferramentas não é, como por muito tempo sugeriu a concepção “cerebralista” do humano, a existência de um aparelho cognitivo suficientemente desenvolvido, ou a preexistência de uma “episteme”. Pelo contrário, o desenvolvimento cerebral

dos hominídeos não era, para Leroi-Gourhan, senão um resultado de sua habilidade de produzir símbolos e ferramentas: a episteme emergindo originalmente da tekhne, e não o contrário.

Leroi-Gourhan explicou essa teoria realocando a divisa evolutiva que tradicionalmente separava o humano do não-humano: ela não estaria mais no momento da consolidação do aparelho cognitivo do Homo sapiens, mas muito antes, no momento em que os primeiros hominídeos adquiriram a postura ereta. A conquista do bipedismo, que significava o libertar das mãos, daria início a um fascinante processo evolutivo que culminaria, apenas muito tempo depois, na consolidação do aparelho cerebral “humano” como o conhecemos. Ele defendia, portanto, que a partir do momento que os hominídeos puderam pela primeira vez pôr-se em pé, eles já eram essencialmente humanos: pois manter-se ereto significava liberar as mãos, e liberar as mãos significava a capacidade de fabricar ferramentas, ou a capacidade de exteriorização do indivíduo para além dos limites biológicos. Conforme apontou Stiegler, citando Leroi-Gourhan: O elemento arqueológico determinante é o Zinjanthropus39, descoberto em 1959, ‘acompanhado por seus implementos de pedra, (...) um homem com um cérebro muito pequeno, não um super-antropoide com um grande crânio (...). Essa descoberta requer uma revisão do conceito de ser humano’ (Leroi-Gourhan, 1993, p. 18), porque a consequência direta é a que o humano não começou com o cérebro, mas com os pés, e que na dinâmica geral então inaugurada – tanto antropológica quanto tecnológica – ‘até certa medida, o desenvolvimento cerebral é um critério secundário’. A postura ereta determina um novo sistema de relações entre esses dois pólos do ‘campo anterior’ [do corpo]: o ‘libertar’ da mão durante a locomoção é também o libertar da face de suas funções de agarrar. A mão necessariamente solicitará as ferramentas; as ferramentas da mão necessariamente solicitarão a linguagem da face40 O fato de o Zinjanthropus ter ‘liberado’ suas mãos, podendo então fabricar as célebres ‘pedras lascadas’ que ele utilizaria para caçar, possuiria profundas implicações evolutivas. Ele não mais precisaria de uma grande mandíbula, uma vez que não mais a empregaria para matar, mas apenas para processar presas previamente caçadas com o auxílio de suas novas próteses de pedra. Por isso mesmo, os sucessivos estágios de sua “hominização” envolveriam um encolhimento progressivo do aparelho mandibular, liberando espaço para o desenvolvimento do cérebro (e especialmente do córtex pré-frontal, a área responsável pelas ações coordenadas do aparelho facial e das mãos). Inaugurava-se uma espécie de “ciclo virtuoso” onde, quanto mais esses hominídeos produziam instrumentos, menos serventia tinham seus aparelhos mandibulares e, consequentemente, mais se desenvolviam seus córtices, responsáveis por suas aptidões manuais e faciais. LeroiGourhan argumenta que, para além da emergência da fabricação de

39. O Zinjanthropus bosei (ou Paranthropus bosei) foi uma espécie de Australopithecus que viveu há cerca de 2 milhões de anos na África. 40. Stiegler, B. (1998), p. 145. T.M.

41. Leroi-Gourhan, A. (1993), p. 113. T.M.

42. Ibid., p. 134 instrumentos, esse estágio evolutivo teria sido igualmente o momento da aparição das primeiras formas de linguagem, ou dos primeiros símbolos orais. Embora ainda escassos e representativos de situações “concretas”, esses símbolos já se diferenciavam dos simples sinais dos primatas por serem socialmente disponíveis, compartilháveis e reiteráveis na ausência daquilo que eles representavam.

“Os humanos”, segundo Leroi-Gourhan, “apesar de terem começado com a mesma fórmula que os primatas, podem construir ferramentas assim como símbolos, ambos os quais derivam do mesmo processo, ou melhor, recorrem ao mesmo equipamento no cérebro”. De forma que “não apenas a linguagem é tão característica dos humanos quanto são as ferramentas, como ambas são a expressão da mesma propriedade intrinsecamente humana”41. A aparição da linguagem, e portanto a possibilidade mesma do lógos, estaria profundamente atrelada ao surgimento dos primeiros objetos técnicos, uma vez que ambos os processos se originariam dos mesmos mecanismos de “exteriorização” da memória, ou melhor, de criação de próteses.

A teoria de Leroi-Gourhan parecia, portanto, apontar para uma noção do “ser humano” descrita como uma espécie de aparelho híbrido e descentralizado, muito anterior ao Homo sapiens: uma montagem produtiva entre esqueleto, cérebro, próteses (ferramentas e símbolos) e milieu. Um sistema sob um processo constante de diferenciação e “disseminação” do biológico em direção ao não-biológico, da memória genética à memória não-genética, do interior ao exterior. Um sistema que colocaria em cheque as tradicionais concepções essencialistas sobre um “espírito” humano que não se associa ontologicamente com os objetos técnicos.

Se, portanto, o sentido de “ser humano” não admite mais ser mediado pelas fronteiras entre interior/exterior, episteme/tekhne; se não mais o primeiro termo antecede e controla o segundo, mas surge coextensiva e reciprocamente a ele, então a discussão sobre os fatos e os objetos da técnica – em qualquer área que seja – deve necessariamente ser deslocado das tradicionais relações de conflito que ela geralmente suscita. A técnica – a “tecnologia”, se quisermos – não está nem em uma relação de servidão com os seres humanos (ou com a “ciência”), e tampouco em estado de insurreição contra eles. A técnica, como tão bem definiu Stiegler, é a invenção do humano; uma proposição que imediatamente produz a ambiguidade com a qual ela deve sempre ser interpretada: “’Quem’ ou ‘o quê’ produz a invenção? ‘Quem’ ou ‘o quê’ é inventado?”42

Oposição x Recursividade

A ideia de “objeto técnico” com a qual trabalhamos, portanto, nos remete à questão da invenção do humano pela técnica: uma invenção

operada pelos instrumentos, símbolos e por todas as outras próteses que ele cria e que, em troca, o constituem enquanto humano. Ou então: à ideia de que os objetos técnicos são irredutíveis à condição de instrumentos animados apenas por uma intenção a priori, ou imediatamente subservientes a uma função ou um desígnio externos pelos quais eles são “originalmente” concebidos.

Essa conversa, no entanto, não nos parece nova: é a discussão mesma do phármakon platônico, da linguagem que “fala” o autor, do trabalho maquínico, da insurreição robótica ou, mais recentemente, das catástrofes anunciadas do “Antropoceno”, intensificadas pela progressiva “autonomia” dos sistemas técnicos organizados. Aporias teóricas que sempre nos alertaram sobre a falácia da unilateralidade instrumental entre seres humanos e tecnologia. Conceitualmente análogas, essas histórias se diferenciam apenas no que diz respeito ao nível de gravidade das calamidades que anunciam, ou aos graus de iminência do “limite” a ser transgredido.

Em todas elas, subjaz a ideia de uma fissura entre aquilo que originalmente se diz sobre os benefícios da tecnologia, e a toxicidade constatada naquilo que os objetos técnicos efetivamente fazem ao entrar em funcionamento. De outro modo, trata-se de algo como um conflito entre o discurso humano (de forma ampla, o ato de “comandar” um conjunto de signos – ou próteses – segundo uma intenção pré-estabelecida, originada na episteme) e uma espécie de discurso não-humano (aquilo que os objetos técnicos parecem nos “responder”, segundo uma “intenção própria” que se forma em campo, e independentemente do desígnio humano). Somando-se a esse conflito a percepção de que o “humano” é cada vez mais dependente do “técnico”, o que se produz na maioria dos casos é o anúncio de uma crise, de uma “desumanização” operada pela tecnologia ou, como escreveu Stiegler, de “um divórcio, se não entre cultura e técnica, ao menos entre os ritmos da evolução cultural e os ritmos da evolução técnica. A técnica evolui mais rapidamente do que a cultura”43 .

O que queremos argumentar é que, na maioria desses casos, o real conflito não decorre de uma situação de “inversão” entre objetos técnicos e seres humanos, entre “cultura” e “tecnologia”. Na verdade, o que se lança efetivamente em crise é o conceito mesmo de humanidade, ou melhor, a ideia de “ser humano” que insistimos, a qualquer custo, em conservar.

A história do discurso sobre a relação entre seres humanos e tecnologia é a história de uma oposição conceitual em desequilíbrio, onde um dos termos é submetido a uma evolução exponencial enquanto o outro, acometido por um profundo estado de negação, insiste em se conservar em um estado “originário”. O perigo, então, não é propriamente a artificialização do humano, no sentido de um suposto “desenraizamento” operado pelo não-humano, mas muito

43. Stiegler, B. (1998), p. 14. T.M.

44. Benjamin Bratton, The Terraforming (Moscou: Strelka Press, 2019), p. 15. T.M mais a artificialidade do conceito de “ser humano”, conforme mantida historicamente pelas cosmovisões do antropocentrismo. Trata-se do perigo mesmo de conceber a tecnologia como um “monumento” no sentido tradicional: um veículo unilateral de discurso e autoridade epistêmica; a projeção de uma imagem e um desígnio humanos que desejamos que se conservem intactos em seu interior. A “monumentalização” da técnica, nesse sentido, pressupõe a representação, no objeto técnico, de um ser humano já bem-definido que narra e produz para si mesmo um destino planejado. Como escreveu Benjamin Bratton, em The Terraforming (2019), (...) a representação é, por vezes, revestida de um status especial, por meio do qual ela é percebida como a causa da coisa representada mais do que causada por ela. Disso se segue a noção de que as tecnologias sempre refletem, absorvem, ou então representam discursivamente a cultura humana mais do que moldam o contexto no qual a cultura opera44 Essa é precisamente a condição do desencanto: como é que podemos projetar uma imagem pré-determinada sobre a máquina, fazer dela um monumento à memória e ao desejo humanos, se as dinâmicas que governam o seu real funcionamento parecem fazer dela um ente cada vez mais indeterminável por funções e desígnios específicos? Como o signo de Derrida, a máquina se afasta cada vez mais de seu referente, da função representacional que ela originalmente cumpre e monumentaliza: seu curso evolutivo é necessariamente um acúmulo de indeterminações, pelo qual ele se torna indiferente (e diferente) a qualquer determinação discursiva específica.

Ora, mas a história mesma da “hominização”, como vimos, é também a história da condenação humana a uma indeterminação evolutiva, a uma progressiva “desespecialização”, ou à sua emancipação de funções genéticas e biológicas específicas e determinadas a priori. Aquilo mesmo que, para Leroi-Gourhan, constituiu o rompimento da inércia biológica que inaugurou o “ser humano” – a liberação das mãos – define precisamente essa tendência de acúmulo de indeterminações que costumamos atribuir à performance dos objetos técnicos. Pois o que era o “libertar das mãos” se não o rompimento com uma determinação funcional prévia que, programada pela memória genética, fazia das mãos órgãos especializados unicamente para a sustentação e a locomoção?

A partir do momento em que as mãos se “libertavam” da determinação quadrúpede, insubordinando-se ao apriorismo genético, elas adquiriam muitas outras funções imprevistas: “desespecializar” as mãos significava permitir a elas que acumulassem uma série de outras funções (como a produção de ferramentas e símbolos), sem no entanto se comprometer inteiramente com nenhuma delas. A “insubordinação” que emerge da evolução dos objetos técnicos em

funcionamento nada mais é do que o reflexo de uma propriedade bastante humana.

Esse processo de acumulação funcional, desespecialização e diferenciação dos objetos técnicos corresponde ao que Simondon chamou de processo de concretização. Para Simondon, a única via realmente produtiva para se pensar o objeto técnico deve ser, ao invés de classificá-lo segundo estas ou aquelas funções, usos ou desígnios pré-determinados, a que considera esse objeto como um indivíduo inserido em um processo histórico de evolução e diferenciação. Atribuir a essência de um objeto técnico a uma classe particular de funções humanas que ele supostamente “cumpre” se torna uma tarefa ilusória, pois o critério da função pode reunir, sob um mesmo rótulo, um conjunto heterogêneo de objetos essencialmente distintos uns dos outros, e ao mesmo tempo separar em classes diferentes objetos tecnicamente correlatos. (...) um motor a vapor, um motor a gasolina, uma turbina, um motor movido a molas ou a peso são, igualmente, motores. No entanto, há mais analogia real entre um motor a molas e um arco ou uma balestilha do que entre esse mesmo motor e um motor a vapor; um relógio de pêndulo possui um motor análogo a um guincho, ao passo que um relógio elétrico é análogo a uma campainha ou um vibrador45 Segundo Simondon, “as espécies técnicas existem em número muito mais restrito do que os usos a que se destinam os objetos técnicos”46 . Enquanto as necessidades e os desígnios humanos podem variar ao infinito ao longo do tempo, a tendência evolutiva dos objetos técnicos está sempre orientada para um estado de progressiva convergência funcional, onde um único tipo técnico tende a acumular cada vez mais funções em si mesmo. Simondon classifica essa tendência como a passagem progressiva de um estado abstrato (ou “analítico”, querendo dizer um estado de separação e independência entre partes) a um estado concreto (ou “sintético”, um estado de convergência e interdependência entre as partes) do objeto técnico.

Em seu estado mais primitivo (abstrato) de evolução, o objeto técnico é composto pela combinação de elementos completos, em si mesmos autossuficientes, cada um deles altamente especializados em uma única função dentro da performance geral do objeto. Já no estágio concreto, considerado por Simondon o mais avançado, as partes do objeto técnico são inteiramente dependentes umas das outras no funcionamento geral do sistema. Nesse caso, não se pode mais falar em uma “montagem” de elementos autossuficientes, cada qual performando uma função particular, mas de um sistema de subconjuntos funcionalmente “superdeterminados”, isto é, onde cada um deles reúne uma pluralidade de funções.

Um exemplo de concretização seria observável, segundo Simondon, quando comparamos um motor de automóvel de 1910

45. Simondon, G. (2020), p. 55

46. Ibid., p. 60

47. Ibid., p. 58 48. Ibid., p. 57

49. Ibid., p. 75

50. Ibid., p. 65 a um motor moderno. “No motor antigo, cada elemento intervém num certo momento do ciclo e, depois disso, supõe-se que não age mais sobre os outros elementos; as peças do motor são como pessoas que trabalham alternadamente, sem se conhecerem”47. No motor moderno, por outro lado, “cada peça importante é tão ligada às outras por trocas recíprocas de energia, que não pode ser diferente daquilo que é. A forma da câmara de explosão, a forma e as dimensões das válvulas, a forma do pistom, tudo isso faz parte de um mesmo sistema, no qual existe uma multiplicidade de causas recíprocas”48. O motor moderno não é mais uma montagem de elementos independentes, mas um único elemento que reúne diversas funções anteriormente separadas.

“A concretização do objeto técnico”, escreveu Simondon, “pode ser traduzida como um traço de simplificação”49: o objeto técnico concretizado promove uma espécie de síntese, regido por um princípio de eficiência (mais com menos). E porque o objeto técnico concreto reúne uma pluralidade de funções, ao invés de uma única função especializada, ele tende a se tornar uma “máquina aberta” passível de ser empregada para um número indeterminado de usos. A concretização, no que ela reduz a especialização dos objetos técnicos, tende a aumentar a margem de indeterminação e as possibilidades funcionais desses dispositivos.

Simondon observa que há duas condições distintas que influenciam na evolução dos objetos técnicos, ou seja, no seu processo de concretização. A primeira ele atribui aos fatores “econômicos” que incidem sobre o seu desenvolvimento. Trata-se de imposições sociais exógenas, como a exigência de diminuição das quantidades de matéria-prima, trabalho e energia empregados em seu funcionamento. Entretanto, embora esses fatores econômicos correspondam geralmente a critérios de eficiência, Simondon argumenta que nem sempre as imposições de natureza externa produzem um efeito positivo sobre a evolução do objeto, podendo até mesmo retardar ou fazer regredir seu processo de concretização. Podem haver, por exemplo, motivações sociais, políticas ou comerciais que induzem o objeto a se “fixar” a formas e funções predeterminadas, ou então a se diferenciar segundo critérios alheios à sua tendência técnica. Um exemplo desse “retardamento” técnico seria, para Simondon, o automóvel individual: um “objeto técnico carregado de inferências psíquicas e sociais”50 que tem seu desenvolvimento condicionado muito mais por tendências discursivas externas (como os ritmos da moda, a arte, a ideologia e os demais paradigmas “monumentalizantes” da cultura) do que por critérios propriamente técnicos.

O segundo fator de concretização do objeto técnico seria, para Simondon, o que produziria os avanços mais significativos: trata-se das necessidades que emergem “internamente” do objeto técnico

no curso da experiência de seu uso. “O princípio desse progresso é a maneira pelo qual o próprio objeto se causa e se condiciona a si mesmo em seu funcionamento e nas reações de seu funcionamento ao uso”51 .

No nível de sua tecnicidade interna, o objeto técnico em funcionamento parece sugerir, retroativamente aos paradigmas científicos e culturais que o solicitaram originalmente, algo como um caminho, ou uma vocação técnica nem sempre antevista e planejada. Nesse caso, são os sistemas de necessidades e usos externos que acabam por se conformar ao sistema do objeto, “que assim adquire o poder de moldar uma civilização. O uso torna-se um conjunto talhado sob medida conforme o objeto técnico”52 . (...) no objeto concreto, cada parte já não é apenas aquilo cuja essência é executar uma função desejada pelo construtor, e sim parte de um sistema em que se exerce uma multiplicidade de forças e no qual se produzem efeitos que independem da intenção de quem o fabricou53 Aqui, o que irrompe do objeto técnico não é apenas o vetor de sua diferenciação evolutiva, mas a possibilidade mesma de um conhecimento não intuído ou deduzido a priori. Ao invés de ser um produto de conhecimentos científicos aplicados ou, de forma geral, o veículo para funções e desejos sociais pré-concebidos, o objeto técnico se torna ele mesmo um operador da episteme, uma força “não-humana” capaz de, no limite, reconfigurar os modelos epistemológicos que o possibilitaram. Nas palavras de Simondon, os objetos técnicos concretos “já não são apenas aplicações de certos princípios científicos anteriores. (...) O estudo dos esquemas de funcionamento dos objetos técnicos apresenta um valor científico, pois esses objetos não são deduzidos de um único princípio; antes, testemunham um modo de funcionamento e uma compatibilidade que existem de fato e foram construídos antes que fossem previstos. Essa compatibilidade não estava contida em cada um dos princípios científicos separados que serviram para construir o objeto técnico. Ela foi descoberta empiricamente”54 As dinâmicas da concretização do objeto técnico nos trazem de volta ao problema de uma “vontade interna”, ou o que Simondon chamou de uma intenção profunda do objeto técnico, gerada independentemente do planejamento humano. Um problema que, quando interpretado pelo tradicional discurso “humanista” sobre a tecnologia, geralmente dá margem às costumeiras representações do “autômato” subversivo.

Quando levado a sério, entretanto – quando assimilado por uma “consciência técnica” defendida por Simondon – o que esse problema revela é menos uma situação de “inversão” da tradicional relação instrumental entre humanos e objetos técnicos, e mais o que podemos

51. Simondon, G. (2020), p. 66

52. Ibid., p. 62

53. Ibid., p. 76

54. Ibid., p. 93. Grifo meu

55. Originalmente designado pelo nome A-4 (de Aggregat, termo alemão para designar uma espécie de montagem ou mecanismo mecânico) em 1937, o foguete balístico foi posteriormente renomeado pelo governo nazista para fins de propaganda política. classificar como uma dialética de recursividade entre os campos da episteme (a ciência, a cultura, o pensamento em geral) e da tekhne.

Só se pode falar em “inversão” quando se dispõe de termos mutuamente excludentes ou em relação de dominação, o que sabemos ser incompatível com a história da relação entre seres humanos e objetos técnicos. Trata-se muito mais, então, de um fenômeno de recursividade: aquilo que se estabelece, por exemplo, quando posicionamos um espelho de frente para outro. Nesse caso, o que se produz é um processo recíproco de trocas e diferenças incessantes: um “eu” que se lança sobre um “outro”, que nos lança de volta uma imagem diferente do “eu”, que em troca fabrica um outro “outro”, e assim por diante. Um movimento onde não há oposição entre origens e destinos, operadores e instrumentos, ciência e tecnologia, mas diferenciação e evolução mútuas.

Bratton nos traz um exemplo emblemático, na história recente, no qual os efeitos recursivos da tecnologia moderna se tornam observáveis para muito além de transformações no pensamento “científico”, estendendo-se para o campo propriamente “monumental” dos discursos paradigmáticos da cultura humana. Trata-se da evolução técnica a que foi submetida o foguete nazista V-2 a partir de 1946, no contexto do progresso técnico-científico do pós-guerra. O V-2 (do alemão Vergeltungswaffe 2, ou “Arma de Retaliação 2”)55, projetado em 1937 por Wernher Von Braun a pedido do governo nazista, foi o primeiro foguete guiado de longo alcance, e teve seu desenvolvimento subsidiado com o objetivo exclusivo de bombardear os países Aliados da Europa (o que foi amplamente realizado entre 1944 e 1945). O V era, portanto, de vingança: mas não apenas uma vingança geopolítica, como também um exemplo paradigmático, para o discurso moderno, da sujeição da racionalidade humana ao progresso descontrolado e “irracional” da tecnologia.

Mas como Bratton observou, após o término da Segunda Guerra, tendo demonstrado propriedades notáveis no curso de seu funcionamento, o uso bélico do V-2 se mostraria um mero rudimento do que a sua tecnologia permitiria posteriormente revelar. Este mesmo dispositivo de “desumanização” (originalmente encomendado para, literalmente, matar seres humanos), tendo sido confiscado pelos Aliados, seria posteriormente empregado para fins completamente diferentes.

Em 1946, acoplado a uma câmera fotográfica, o V-2 foi empregado num lançamento vertical que, após cruzar a atmosfera terrestre, retornou não com um saldo de mortes, mas com a primeira fotografia da Terra tirada do espaço. A tecnologia do foguete nazista se tornaria, a partir de então, o gérmen para os primeiros empreendimentos de exploração espacial e sensoriamento remoto da Terra. Em 1972, o foguete tripulado Saturn V, desenvolvido pelo mesmo Von Braun

56. Bratton, B. (2019), p. 11. T.M.

57. Ibid., loc. cit.

 Foguete V2 capturado na Alemanha pelas forças Aliadas, 1945 ← V2 capturado em exposição ao lado da Coluna de Nelson, em Londres (1945) (agora a serviço dos EUA) e a partir do mesmo V-2, produziria a mais famosa fotografia do globo terrestre em sua totalidade. A imagem, batizada de Blue Marble, se tornaria uma espécie de monumento para um humanismo “planetarista” que começava a se esboçar: “Além de providenciar uma identidade visual para o nascente movimento ecológico, ela simbolizava o que Frank White posteriormente cunharia como o ‘efeito de visão geral’ [overview effect]: um efeito numinoso de profunda consciência [awareness], sentido por muitos que haviam experienciado o vôo espacial e visto a totalidade de nosso pálido ponto azul de uma única vez”56 . De alguma forma, um mecanismo originalmente concebido como uma arma de destruição humana adquiria, no curso de sua evolução técnica, novas funções que faziam dele menos um dispositivo de “desumanização” e mais uma espécie de aparelho de reflexão humana. As sucessivas iterações, ou concretizações, que transformavam o V-2 em Saturn V correspondiam a um acúmulo de novas funções pelo qual um simples projétil se tornava um mecanismo de sensoriamento e autoconhecimento humano. Se em 1946 a montagem entre foguete balístico e câmera fotográfica anunciava essa nova tendência técnica, em 1972, ao voltar para o espaço não apenas acoplado a dispositivos de sensoriamento mas tripulado por humanos, o foguete já se tornada algo como uma máquina senciente. Uma montagem recursiva e experimental entre humanos e não-humanos, de onde o que emergia era menos a confirmação de hipóteses e exigências humanas originais, e mais uma proliferação de novas hipóteses sobre a condição humana.

A Blue Marble, o produto dessa estranha máquina, se tornava algo como um encontro inesperado com um espelho, onde o olhar projetivo do ser humano se deparava, sem querer, com o problema da sua própria imagem. Uma espécie de monumento acidental: uma representação não-planejada, ricocheteada de um aparelho originalmente concebido segundo os pressupostos instrumentais de um “ser humano” que seria, a partir de então, permanentemente deformado. “Um espelho”, escreveu Bratton, “que poderia despertar um desvio cosmológico para todos que o encarassem e honestamente buscassem sua lição”57 .

O V-2 saía da atmosfera como um monumento norte-americano, lançado em movimento pela ideologia nacionalista da Guerra Fria – e, num nível mais profundo, pelos postulados da tecnocracia humanista – e voltava carregando um estranho cosmograma, uma imagem-de-mundo sem quaisquer linhas demarcatórias, limites de soberania ou títulos de propriedade. E com esse cosmograma, era a ideia mesma de “ser humano” que começava a apresentar indícios de uma dissociação cognitiva, de uma reorganização das tradicionais demarcações cosmológicas e epistemológicas que separavam ser, natureza e técnica.

Bratton identificou o caso da Blue Marble como pertencendo à uma linhagem (ocidental) de “Revoluções Copernicanas”, ou seja, a uma

sucessão histórica de rupturas com modelos cosmológicos que, de Platão a Heidegger, posicionaram o (conceito de) “ser humano”, em um lugar central e canônico de um mundo pensado “por e para o nosso ser”58. De forma similar ao deslocamento operado por Leroi-Gourhan em relação às teorias existentes sobre a singularidade originária do Homo sapiens, que ele só pôde contestar graças ao auxílio das técnicas modernas da paleontologia, a ideia de “Revolução Copernicana” representa uma ruptura com modelos antropocêntricos da realidade que só se efetuam por meio daquilo que a tecnologia nos “devolve” a despeito de nossas intenções iniciais. Posto de outro modo, trata-se de fato de uma operação de “desumanização”: mas uma desumanização que surge como a única possibilidade de um engajamento positivo com a inevitabilidade da condição humana enquanto condição tecnológica. Vale aqui citar uma passagem extensa, mas bastante elucidativa de Bratton: A primeira revolução Copernicana implicava simultaneamente uma desorientação da percepção e interpretação individuais (um sol aparentemente móvel agora percebido como estacionário), um desmantelamento de arquiteturas cosmológicas antropocêntricas (o senso-comum do heliocentrismo), [e] uma mudança disruptiva nas arquiteturas geopolíticas e geoeconômicas que se legitimam com esses modelos (...). Hoje, a revolução Copernicana significa também a reorganização da Terra não apenas como ela ‘realmente é’, mas como poderia ser. (...) nossos modelos cognitivos incluem abstrações narrativas que motivam e mobilizam uma cooperação extraordinária – mesmo quando obviamente arbitrárias –, incluindo a durabilidade e a coesão de instituições que mediam autoridade para impor essa cooperação. Entretanto, à medida em que a nossa cognição e agência se desenvolviam [sic] coextensivamente com as tecnologias, os novos aparatos perceptivos cumpriam as funções desejadas mas, por vezes, nos revelavam também uma realidade totalmente contraintuitiva, em conflito com o modelo de mundo que os havia possibilitado em primeiro lugar (modelos podem implicar a necessidade de máquinas que, quando usadas corretamente, provam que o modelo é falso). A resistência às implicações dessa surpreendente revelação, a fim de proteger a integridade do modelo inicial, é uma teimosa aderência tanto a uma ideia familiar do mundo, quanto à primazia da representação enquanto tal. As representações podem resistir à interferência das coisas representadas59

58. Nesta passagem, Bratton se dirige especificamente a Heidegger, que muitos anos antes das missões espaciais, em 1938, já havia dito que a razão calculativa moderna fazia do mundo humano uma “imagem do mundo”, uma perigosa abstração. Bratton escreveu: “Em ‘Only a God can Save Us’, uma entrevista de 1966 (...), Heidegger celebremente disse: ‘Eu certamente me assustei quando vi as fotografias da Terra tiradas da lua. Nós nem mesmo precisamos de uma bomba atômica; o desenraizamento dos seres humanos já está em andamento’. A que tipo de humanos ele se refere, e que tipo de raízes eles deveriam ter? (...) A Terra que se perdeu para ele [Heidegger] é uma que havia aparecido na aura mistificada de um mundo que é singular, original e central, dado por e para o nosso ser”. Bratton, B. (2019), pp. 12-13. T.M. 59. Ibid., p. 15

A partir daqui, nossa intenção será isolar, da interminável gama de “objetos técnicos” que a nossa discussão poderia abarcar, um tipo que se mostrará particularmente interessante no contexto da discussão

 "Blue Marble", a célebre fotografia capturada pela missão tripulada Apollo 17, da NASA, com o Saturn V (1972) arquitetônica: a infraestrutura. Naturalmente, por se tratar de um domínio quase tão diverso quanto o campo geral dos objetos técnicos, não nos referimos a qualquer tipo de infraestrutura. Nosso foco estará, principalmente, no universo das infraestruturas urbanas e, mais especificamente, na parcela mais efetivamente “visível” desse conjunto. Ainda que essa seleção esteja longe de esgotar as implicações dos estudos infraestruturais para a arquitetura, ela nos possibilitará algumas reflexões interessantes, principalmente se considerarmos que o registro do visível é um dos pontos de maior identidade (e conflito) entre os “objetos arquitetônicos” e os “objetos técnicos”.

Muito do que conhecemos por “infraestrutura”, na maior parte dos casos, diz respeito a objetos e/ou sistemas muitas vezes “invisíveis” ou de alguma forma periféricos. O próprio prefixo infra, designando “abaixo”, parece descrever justamente o caráter subalterno desses sistemas de objetos técnicos que, em oposição aos objetos “estéticos”, parecem não se apresentar a nenhuma forma de legibilidade, cognição ou apreensão estética em si mesmos. Na discussão arquitetônica, no entanto, o tema da infraestrutura adquire contornos mais particulares. Nesse caso, dada a própria natureza da disciplina, a ideia de infraestrutura parece solicitar, na maioria das vezes, aqueles objetos técnicos mais propriamente “visíveis” da paisagem urbana: pontes e viadutos, ruas, canais, instalações públicas e prediais, etc. Ou seja, todo o estrato infraestrutural visível e, portanto, passível ser observado não

apenas por seu caráter “funcional”, mas igualmente em função de sua interferência formal e estética na paisagem da cidade.

Mas mesmo as infraestruturas efetivamente visíveis, salvo alguns casos interessantes que abordaremos adiante, via de regra estão comprometidas por alguma forma de “invisibilidade”, ou então condenadas a um estado de “mudez” próprio das coisas que classificamos como objetos técnicos. Como vimos anteriormente, a instrumentalidade e a servidão pela qual os objetos técnicos sempre foram caracterizados pelas epistemologias ocidentais descrevem também uma certa condição de invisibilidade, ainda que uma invisibilidade de coisas visíveis. Na arquitetura, ainda que se possa dizer que a relação com os “objetos técnicos” tenha atingido, com o movimento moderno, um estatuto relativamente novo (ainda que breve), a concepção “instrumental” da tecnologia nunca deixou de organizar o pensamento arquitetônico.

Essa tradição está implicada no modo com que os arquitetos são tradicionalmente treinados para interpretar e intervir no espaço, e principalmente no espaço urbano: ela pressupõe que a cidade é organizada por uma hierarquia entre meios e fins, fundos e figuras, objetos de infraestrutura e objetos de arquitetura. Um modo de “ler” a cidade que, ademais, pressupõe que os limites do que os arquitetos se sentem confortáveis para chamar de “arquitetura”, enquanto sua jurisdição particular de autoria (e autoridade), coincidem com o perímetro formal do edifício, ou com o espaço figural da cidade.

O volume “vazio”, ou o fundo da cidade, por outro lado, compreendendo todo o legado consolidado de infraestruturas urbanas e outros objetos “mudos”, aparece como um substrato neutro e factual: sua única função é mediar um sistema de atividades-fim que se encerram no interior das formas arquitetônicas, ou daquilo que Keller Easterling chamou de “formas-objeto”60. A responsabilidade sobre esse espaço infraestrutural costuma, então, ser delegada ao cuidado silencioso dos “técnicos” e experts (agentes versados nos conhecimentos herméticos da tecnologia, mas indignos do privilégio de falar em nome da cidade), para que todos possamos direcionar nosso olhar para coisas mais significativas.

Mas se, por um lado, a ideia de fundo atribuída a esse conjunto “omisso” do espaço urbano composto por infraestruturas de transporte, distribuição, saneamento etc., revela uma hierarquia “textual” onde a camada discursiva ou visível da cidade se sobrepõe a um substrato não-discursivo e invisível, por outro lado uma perspectiva “materialista” da cidade nos permitiria inverter essa relação de subordinação. Poderíamos, então, dizer que a camada infraestrutural é a condição de existência da camada “figural” ou – por analogia com a teoria marxista

60. A ideia de “forma-objeto”, em Easterling, designa um paradigma conceitual do planejamento que tende a considerar o espaço arquitetônico e urbano como uma coleção de figuras, volumes e objetos (ou seja, formas extensivas), ao invés de uma rede associativa e dinâmica de formas ativas (intensivas).

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