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Infraestrutura monumental

61. Brian Larkin, “Promising Forms: the Political Aesthetics of Infrastructure”, in: Nikhil Anand, Hannah Appel, Akhil Gupta (eds.), The Promise of Infrastructure (Durham: Duke University Press, 2018), p. 178

62. Keller Easterling, Extrastatecraft: The Power of Infrastructure Space (Nova Iorque: Verso, 2014), p. 10 – “superestrutural”. Como observou Brian Larkin, em Promising Forms: the Political Aesthetics of Infrastructure (2018), As infraestruturas possuem uma afinidade eletiva com essa concepção [materialista], na medida em que elas são frequentemente vistas como uma tecnologia primária sobre a qual a forma é construída. (...) Existe aqui uma relação linear. A infraestrutura é primária; a forma, secundária61 Além do mais, a condição urbana das grandes cidades contemporâneas parece cada vez mais desafiar a tradicional interpretação de um espaço infraestrutural distinto e subordinado a um espaço figural. O acúmulo infraestrutural (a variedade e a densidade das “camadas” infraestruturais que irrigam um sistema urbano, da fibra ótica ao transporte ferroviário) não apenas parece se intensificar em um ritmo muito superior ao da demografia dos “objetos arquitetônicos”, como a paisagem infraestrutural que resulta desse acúmulo cada vez mais se confunde com a paisagem “figurativa” da cidade: a infraestrutura se torna a forma urbana por excelência.

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Como muito se falou nas últimas décadas da crítica arquitetônica, dessa espécie de “reversão” hierárquica parece resultar, de um lado, uma progressiva homogeneização dos aspectos formais e expressivos das cidades (dado o caráter genérico e padronizado dos sistemas infraestruturais), e de outro, uma gradual destituição dos tradicionais agentes “discursivos” da produção urbana (sobretudo arquitetos e planejadores) de sua autoridade sobre a paisagem das cidades. Como escreveu Keller Easterling, o espaço infraestrutural contemporâneo se torna o mais novo “assassino” da arquitetura e do urbanismo: Agora, não apenas edifícios e parques corporativos, mas cidades globais inteiras são construídas de acordo com uma fórmula – uma tecnologia infraestrutural. Nós não construímos mais cidades acumulando obras-primas singulares de edificação. Ao invés, a fórmula mais prevalente [é a que] replica Shenzen ou Dubai em qualquer lugar do mundo com uma bateria de arranha-céus genéricos. (...) a infraestrutura não é, nesse caso, a subestrutura urbana, mas a estrutura urbana em si – os próprios parâmetros do urbanismo global62 Mas mesmo quando não falamos exatamente do fenômeno das cidades globais (onde a ideia de “espaço infraestrutural” sugere, acima de tudo, tendências de homogeneização e padronização), uma consideração profunda de qualquer fato “infraestrutural” requer uma reorientação crítica e um distanciamento das tradicionais oposições entre infraestrutura e arquitetura, fundo e figura, objetos técnicos e monumentos etc., que há muito tempo mediam a discussão sobre as cidades. Em outras palavras, é preciso operar, nos estudos urbanos, um exercício

analítico que nas últimas décadas tem sido chamado de “inversão infraestrutural”.

Segundo Penny Harvey et. al., “a inversão infraestrutural [tem] como objetivo abordar a tendência das infraestruturas de permanecer como panos de fundo invisíveis para a ação social, suas características sendo [comumente] explicáveis em função das forças, interesses e ideologias sociais que convergiram para criá-las”63. Trata-se de, nos termos mesmos do planejamento urbano, de uma reversão da tradicional relação “figura-fundo” segundo a qual, via de regra, as infraestruturas urbanas são compreendidas como reflexos de condições culturais preexistentes.

Há diversos modos de se conceber uma inversão infraestrutural. Se a entendemos como um esforço analítico de “visibilização” das infraestruturas urbanas, ela pode, por exemplo, tornar a atenção para as relações de recursividade entre sistemas técnicos e sociais, revelando como, no funcionamento muitas vezes “invisível” das infraestruturas, “cadeias complexas de relações materiais reconfiguram corpos, sociedades e também conhecimentos e discursos de modos muitas vezes despercebidos”64 .

Ou então, como fez Brian Larkin, torna-se possível problematizar as infraestruturas não apenas a partir de seu funcionamento “de ↑ Aqueduto romano em Segóvia, na Espanha, construído no séc. I d.C. Gravura de J. C. Armytage (1847) 63. O conceito de “inversão infraestrutural” foi criado em 1994 por Geoffrey C. Bowker, que dedicou sua obra ao estudo das implicações sociotécnicas de diversos tipos de sistemas infraestruturais. Ver: Harvey, P., Jensen, C.B., Morita, A. “Infrastructural complications”, in: Harvey, P.; Jensen, C.; Morita, A. (eds.). Infrastructures and Social Complexity: a companion (Londres: Routledge, 2017), p. 3. T.M. 64. Ibid., loc. cit.

65. Larkin, B. (2018), p. 176. T.M. Grifo meu

66. Ibid., p. 175 fundo”, mas igualmente em função de suas propriedades formais e representacionais, voltando a atenção para uma certa vocação monumentalizante da produção infraestrutural. Ou seja, nos modos com que, na presença das infraestruturas urbanas, “racionalidades políticas são formadas, fazendo-se palpáveis, e disseminadas por veículos semióticos e estéticos orientadas a destinatários”65 .

Nosso objetivo será investigar dois desses modos de “inversão infraestrutural”, de forma a delinear alguns dos principais desafios enfrentados pela arquitetura e pelo planejamento em contextos urbanos cada vez mais condicionados por dinâmicas infraestruturais. Posteriormente, tentaremos esboçar, partindo da noção de espaço infraestrutural de Keller Easterling, algumas diretrizes para uma prática de arquitetura menos resignada e mais comprometida com os problemas suscitados pelos novos modelos de cidade inaugurados pela ubiquidade desses sistemas.

Infraestrutura monumental

“No estudo das infraestruturas”, escreveu Larkin, “a forma é algo ubiquamente visível e, ao mesmo tempo, ausente da consideração analítica”66. Ou seja, muitas das análises que tomam a infraestrutura como objeto central de investigação costumam ainda pressupor que a invisibilidade é uma propriedade essencial desses sistemas. Talvez por isso mesmo elas tendam a se limitar, quase sempre, à análise de suas propriedades estritamente “técnicas” ou funcionais, concebendo as infraestruturas como sistemas imateriais de relações, mediações e finalidades entre coisas, pessoas ou formas propriamente ditas, estas últimas representando a parte “visível” da análise. Mesmo quando são mais imediatamente percebidas como “coisas” delimitáveis, por exemplo ao se falar de uma ponte, a forma das infraestruturas é quase sempre relativizada: a presença formal, os aspectos materiais e semânticos dessa ponte são fatos secundários em relação às coisas e agentes externos que ela permite interligar, relacionar e movimentar. Por analogia com os fatos linguísticos, as infraestruturas parecem pertencer muito menos ao universo dos signos e dos enunciados do que ao das regras morfossintáticas de uma “gramática da cidade”; quando muito, elas são algo como conjunções, advérbios ou outros elementos secundários de ligação. Os aspectos formais da infraestrutura, portanto, são geralmente dissociados e subordinados aos seus aspectos funcionais e logísticos; de forma que, mesmo quando efetivamente visíveis, as infraestruturas costumam estar sujeitas a uma prática de invisibilização.

Essa concepção parece, ainda, por demais atada à metáfora marxista da formação social, onde “infraestrutura” designaria um conjunto imaterial e imutável de relações produtivas sobre os quais

se assentariam as operações propriamente formais ou “superestruturais” da política e da ideologia. Mas em se falando de infraestruturas urbanas, a analogia com a metáfora marxista atinge limites bastante claros. Isso porque a “ontologia peculiar” das infraestruturas, escreveu Larkin, “reside no fato de que elas são coisas e também uma relação entre coisas”67. O domínio das infraestruturas urbanas não é apenas o das relações, mas também o domínio dos objetos. Larkin defende, além do mais, que a forma da infraestrutura não diz respeito apenas aos seus atributos estritamente “visíveis” de coisa, mas se estende igualmente aos seus aspectos relacionais e funcionais. “A forma é (...) uma relação entre humanos e tecnologia assim como uma coisa em si mesma; é o meio onde infraestrutura e usuário se encontram. Não pode haver técnica sem forma”68 .

Nas infraestruturas, forma é a relação de interface entre sujeito e objeto técnico: uma relação que não pode ser abstraída à condição de simples “processos materiais”, pois na medida em que envolve sujeitos, ela adquire disposições necessariamente estéticas. Torna-se impossível, dessa forma, pressupor no contexto da cidade a existência de um “espaço infraestrutural” de objetos técnicos em oposição a um “espaço figural” de objetos arquitetônicos. Todo objeto ou sistema técnico, tal qual o “objeto estético”, solicita uma forma.

A dimensão da forma nos diz que a atenção ao tema da infraestrutura não deve interessar apenas ao trabalho dos planejadores ou dos analistas técnicos, mas deve ser estudado também a partir de suas implicações antropológicas e políticas: a forma, afinal, é o encontro mesmo entre o humano, o não-humano e o político. Na introdução de The Promise of Infrastructure (2018), Nikhil Anand et. al. discutem, por exemplo, sobre o valor etnográfico dos estudos infraestruturais. Entendendo que “a política não é formada e constrangida apenas por práticas jurídico-políticas, mas toma forma também em um terreno tecnopolítico constituído de tubulações, grids energéticos e banheiros”, o estudo das infraestruturas “providencia um novo suporte para desfamiliarizar e repensar o político”69. A dimensão estética das infraestruturas, entendida de forma ampla pelo conceito de “interface”, diz respeito a esses modos pelos quais as determinações políticas são vividas pela população no contato cotidiano com esses sistemas técnicos.

Não falaremos, portanto, de um espaço “visível” em oposição a um espaço “invisível”. Na verdade, nem mesmo há tal coisa como uma pura “invisibilidade” infraestrutural: mesmo os sistemas majoritariamente ocultos (pensemos, por exemplo, numa rede de fibra ótica) possuem aflorações, ou interfaces estéticas entre seres humanos e infraestruturas (um conjunto de aparelhos domésticos conectados a uma rede de fibra ótica representam essas aflorações estéticas do sistema). Quando falamos da paisagem urbana, a questão da “invisibilidade” se torna uma suposição ainda mais contestável, uma vez que a

67. Brian Larkin, “The Politics and Poetics of Infrastructure”, in: Annual Review of Anthropology, vol. 42 (Palo Alto: Annual Reviews, 2013), p. 329. Grifo meu 68. Ibid., loc. cit.

69. Nikhil Anand, Hannah Appel, Akhil Gupta, “Temporality, Politics and the Promise of Infrastructure”. In: The Promise of Infrastructure (Durham: Duke University Press, 2018), p. 4

70. Larkin, B. (2018), p. 186

71. Ibid., p. 176

→ Torre de TV de Brasília, 1990 (próx. pág.) → Complexo viário em Lagos, Nigéria, 1979 (próx. pág.) tecnosfera infraestrutural é responsável por boa parte da experiência estética e afetiva nas cidades, podendo por vezes assumir uma presença bastante ostensiva. (...) as infraestruturas não são normativamente invisíveis, sendo trazidas à visibilidade [apenas] por algum tipo de ato excepcional. Visibilidade e invisibilidade não são propriedades ontológicas das infraestruturas; ao invés, visibilidade ou invisibilidade acontecem como parte de processos técnicos, políticos e representacionais. É por isso que a distinção entre infraestruturas espetaculares e mundanas não deve figurar uma relação de oposição, mas representando diferentes estilos de visibilidade70 Há ainda um segundo sentido que Larkin atribui à ideia de “forma” na infraestrutura. Trata-se da forma entendida como um veículo para discursos e racionalidades políticas que tomam forma nessas infraestruturas. As infraestruturas, tais quais os objetos artísticos, “são feitas de desejo assim como de concreto ou aço, e separar estas dimensões significa deixar escapar os poderosos modos pelos quais elas são consequenciais para o nosso mundo”71 . Para Larkin, as infraestruturas urbanas são os marcadores privilegiados do que ele chamou de “estética política”, ou os modos pelos quais os desígnios políticos são enformados, discursiva ou não-discursivamente, e trazidos à experiência e à subjetividade da população. A infraestrutura se torna, por assim dizer, a “textualização”, ou a materialização de racionalidades políticas e modos de governança.

O problema da “estética política” nos conduz a uma primeira aproximação com o que podemos chamar de infraestrutura monumental. De fato, a ideia de que as infraestruturas urbanas podem cumprir (para além de funções puramente técnicas) objetivos políticos, representacionais e discursivos, descreve um fato tão antigo quanto a própria história das civilizações humanas. Dos milenares aquedutos romanos às modernas autopistas expressas, as infraestruturas urbanas sempre tendem a ser muito mais do que objetos técnicos: elas são, como observou Larkin, objetos conceituais que promovem, além de fluxos energéticos e materiais, também trocas simbólicas, cognitivas e ideológicas que são parte indissociável dos mecanismos de poder.

A construção de infraestruturas, uma operação historicamente mediada pelo Estado (ou suas instituições correlatas), sempre foi uma operação bastante similar – e por vezes indissociável – à construção de monumentos. Não apenas pelas transformações estéticas e geográficas imediatas que a implementação de infraestruturas, tal qual a de monumentos, impõe à paisagem das cidades, mas igualmente por seus aspectos representacionais e discursivos.

Segundo Larkin, a ideia de “infraestrutura” possui raízes conceituais no pensamento liberalista do Iluminismo, que reivindicava “um

mundo em movimento e aberto à mudança onde a livre circulação de bens, ideias e pessoas criava a possibilidade de progresso”72. Não há como dissociar a construção de infraestruturas dos efeitos co-memorativos que ela mobiliza: não só porque a própria natureza das infraestruturas faz delas objetos de práticas sociais cotidianamente ritualizadas, como porque os discursos de “modernidade”, “evolução” ou “progresso” tecnológico que costumam envolver esses empreendimentos produzem sempre modos coletivos de relação com o tempo histórico.

Se, tradicionalmente, as práticas “monumentais” de Estado eram geralmente restritas à construção de edifícios, obeliscos e outros monumentos referenciados numa história sobretudo passada, a noção de “progresso” cultivada a partir do Iluminismo e das revoluções industriais envolveria não apenas uma reorientação do impulso historiográfico em direção ao futuro, como também a emergência novas tipologias monumentais mais adequadas à “vontade” do tempo. Fábricas, ferrovias, rodovias, barragens, aeroportos etc. se tornariam, na modernidade, os principais focos da cognição “monumental” da sociedade em relação à sua história.

Embora tenha se consolidado principalmente nos países industrializados no início do séc. XX, a tendência da infraestrutura monumental adquiriria, ao longo das décadas, contornos especialmente dramáticos nos países emergentes do dito “Sul Global”. Nesses casos, onde a relação social com um passado histórico muitas vezes trágico (ou então recalcado, imaginado como inexistente) costuma mobilizar uma aderência particularmente forte às noções de progresso e modernidade, as infraestruturas se tornaram o principal veículo para a difusão de discursos políticos e representações monumentais.

No Brasil, por exemplo, a ideia de “nação”, sobretudo a que se constituiu ao longo do século XX, se mostrou profundamente associada aos empreendimentos infraestruturais. Todo o período que se estende da Era Vargas, passando pela construção de Brasília, pelo nacional-desenvolvimentismo da ditadura militar, e culminando nos modelos neoliberais da “cidade global” da década de 90, podem ser interpretados como um esforço contínuo de construção identitária inseparável dos grandes projetos de “modernização” infraestrutural. Esses projetos não apenas materializavam novos vínculos geográficos, econômicos e produtivos entre uma multiplicidade de territórios antes dispersos; na verdade, esses gestos de integração infraestrutural correspondiam, em mesma medida, a esforços discursivos de coesão entre os signos que comporiam o sistema ideológico “total” da nação.

Posto de outro modo, as infraestruturas nacionais dos vários períodos do “desenvolvimentismo” brasileiro eram também infraestruturas nocionais: elas serviam não apenas para transportar bens e produtos

72. Larkin, B. (2013), p. 332

 Ponte Octávio Frias de Oliveira, inaugurada em 2008 na marginal do Rio Pinheiros, em São Paulo - SP 73. Brasília, Sinfonia da Alvorada (1959), de Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes, é um poema sinfônico composto para celebrar a inauguração de Brasília, em 1960. ou comunicar populações, mas efetivamente para transmitir ideias, representações e agência política.

Em muitos casos, a construção de infraestruturas se tornava um gesto cosmogônico, fundacional para diversas nações emergentes. Tomemos o caso de Brasília, onde, não por coincidência, o marco-zero da cidade (e, por extensão, da própria “nação” que nascia) é precisamente o ponto de intersecção entre os chamados eixo monumental e eixo rodoviário. Com esse gesto, associado ao contexto discursivo maior da construção de Brasília, tudo indicava que o Brasil nascia ali, naquele ponto mágico onde se instalou a rodoviária de Brasília: ao mesmo tempo infraestrutura, monumento e pedra fundamental. Ainda que boa parte do esforço publicitário do empreendimento recorresse a um antigo repertório de lendas e profecias para justificar um destino histórico inevitável, por outro lado tudo indicava que não havia um Brasil antes de Brasília, antes daquela fatídica rodoviária. “No princípio, era o ermo...”, anunciava a Vinícius em sua Sinfonia da Alvorada: “Não havia ninguém. A solidão mais parecia um povo inexistente dizendo coisas sobre nada”73. Aqui, integração territorial

e integração cosmológica, infraestrutura e nação surgiam como uma coisa só.

A mesma convergência entre impulso monumental e produção infraestrutural se repetiria, uma década depois, com o Plano de Integração Nacional (1970) proposto por Médici, do qual a Rodovia Transamazônica seria o mais significativo fruto. De modo bastante similar à construção de Brasília, o projeto da Transamazônica envolvia muito mais do que a mobilização de recursos materiais e econômicos, pois seu sucesso estava condicionado a um esforço popular de engajamento ideacional com os signos do progresso. “Modernizar”, “desenvolver” e “integrar” eram muito mais do que mandamentos técnico-econômicos aplicáveis por simples atos jurídicos e administrativos, mas ideias que deveriam ser, antes de mais nada, devidamente germinadas no espírito da população.

A Transamazônica era uma infraestrutura falada, mítica, que deveria integrar sistemas ideológicos antes de conectar territórios físicos. Nesse sentido, o Plano de Integração Nacional era também um plano de subjetivação nacional, do qual deveriam emergir, antes mesmo das infraestruturas, os sujeitos que a possibilitariam. A Transamazônica, como escreveu Matilde de Souza, deveria ser “a obra de um povo estimulado a desejar, a almejar ser uma nação”74 . Aqui também a infraestrutura se torna a condição de surgimento de uma forma de coletividade que, sem ela, ainda não é “nação”, ainda não entende a si mesma como um “todo coeso”, interligado, compartilhando uma mesma história, as mesmas práticas e os mesmos desejos. A infraestrutura se torna monumento, um objeto reflexivo capaz de inventar uma nação e situá-la no tempo histórico: [A rodovia] aberta na solidão, na infinitude, no semidesconhecido da selva, surge como a possibilidade da travessia: do passado, da tradição, de um ‘estado de natureza’, para o futuro, a modernidade, a história, a cultura; do semidesconhecido para o conhecido, codificado, relatado, civilizado75 Num recorte histórico mais recente, poderíamos destacar, como fez João W. Ferreira, o papel que tiveram as histórias e mitos da globalização, e seus respectivos agentes publicitários, na consolidação da região da Marginal do Rio Pinheiros, em São Paulo, como uma “centralidade global de negócios”76 nos anos 90.

Como observou Ferreira, os grandes empreendimentos públicos de infraestrutura que reconfiguraram a paisagem da região (abertura de avenidas, construção de pontes e estações de trem, obras de drenagem, etc.) com velocidade e eficiência inusuais, pareciam ser menos produtos de demandas materiais e econômicas do que de um amplo esquema privado de “marketing urbano” – uma infraestrutura discursiva – que persistentemente reivindicava para a capital paulista o título de “cidade global”. Somando-se a isso a (já tradicional) exper-

74. Matilde de Souza, “Transamazônica: Integrar para não Entregar”, in: Nova Revista Amazônica, v. 8, n. 1 (Belém: Periódicos UFPA, 2020), p. 140

75. Ibid., loc. cit.

76. João Sette Whitaker Ferreira, São Paulo: o Mito da Cidade-Global (São Paulo: FAUUSP, 2003), p. 8

→ Mundo da Xuxa, parque de diversões que funcionou de 2003 a 2015 dentro do Shopping SP Market, numa zona industrial nos arredores do Rio Pinheiros, zona sul da capital paulista.

tise dos gestores públicos na extração de capital político e simbólico de projetos infraestruturais, a ideia da “cidade global” se tornava a mola propulsora de uma “máquina de crescimento urbano (...) baseada em coalizões entre as elites urbanas locais e o Poder Público”77 . Mas a despeito da intensa campanha em torno da necessidade de reconhecer a capital paulista como um “ponto nodal” em uma rede planetária de cidades do capital financeiro internacional, Ferreira repara que: A observação dos dados empíricos da cidade mostra que ela não apresenta nenhum dos atributos típicos da ‘cidade-global’: ela não se situa na rota dos grandes fluxos da economia global, não sofre de um processo de desindustrialização estrutural nas mesmas proporções do que as cidades desenvolvidas, não vê o ‘terciário avançado’ se sobrepor aos outros setores da economia, etc.78 Não havia, portanto, demandas “concretas” suficientes que explicassem o desenvolvimento vertiginoso (e a proporcional injeção de recursos públicos) da região. O que havia, no entanto, era um eficiente e coordenado empreendimento de incorporação privada, iniciado ainda nos anos 70, que começava a povoar a várzea do Rio Pinheiros com “edifícios ‘inteligentes’ de porte nunca antes vistos”79: obras de arquitetura icônicas que já recorriam a uma certa estética infraestrutural (ou high-tech) antes mesmo das infraestruturas em si. Um projeto de marketing urbano que, com sucesso, atraiu ao longo das décadas seguintes um montante de investimentos e projetos públicos de infraestrutura sem precedentes. A subsequente associação do setor público àquele grande teatro de símbolos faria da marginal do Rio Pinheiros, nas décadas seguintes, um verdadeiro laboratório de infraestruturas monumentais, enclavado em um contexto urbano e político que mal havia abandonado os traços e “as dificuldades impostas por sua herança colonial”80 .

Todos os casos relatados acima nos sugerem que o problema da infraestrutura nunca pode ser suficientemente interpretado apenas em função dos atributos técnicos, materiais e econômicos que tendem a ser considerados como “específicos” dos objetos técnicos. Até porque não se trata de uma constatação nova: muito do que dizem os mais recentes estudos da “antropologia das infraestruturas” sempre foi bastante familiar ao conhecimento popular, especialmente nos países emergentes. Brasil adentro, são inúmeras as histórias sobre pontes que “levam do nada a lugar nenhum”, obras infraestruturais que buscam resolver problemas técnicos inexistentes, ou que funcionam como moeda de troca entre políticos e suas comunidades eleitoras.

Todas elas parecem descrever o fato de que os sistemas técnicos são sempre, em maior ou menor medida, antecipados, regulados e condicionados por sistemas discursivos e representacionais – ou que se tem mais comumente pelo adjetivo “monumental”. Se retomarmos a

77. Ferreira, J. (2003), p. 8. Grifo meu

78. Ibid., loc. cit.

79. Ibid., p. 92 80. Ibid., p. 8

81. Larkin, B. (2013), p. 335

82. Id., (2018), p. 182

83. Ibid., p. 181

84. Ver: Anand, N. et. al. (2018) Simondon, lembraremos que a forma e o desenvolvimento dos objetos técnicos estão sempre atrelados a condições sociais e discursivas, modelos epistemológicos, premissas científicas e racionalidades políticas externas que podem tanto contribuir positivamente para o funcionamento desses objetos como subordiná-lo a dinâmicas alheias à suas tendências técnicas “internas”.

Brian Larkin, nos termos de sua “estética política” dos objetos técnicos, concebeu de forma bastante similar a ideia de uma poética da infraestrutura, ou o modo pelo qual “a forma é dissociada da função técnica”81. Nesse caso, o funcionamento efetivo das infraestruturas parece se dar muito mais no plano das técnicas representacionais da política do que segundo critérios de eficiência “interna” desses sistemas.

Tomemos, como mais um exemplo, o estudo do próprio Larkin sobre a implementação da infraestrutura de rádio na Nigéria colonial nos anos 40. Apesar das condições extremamente desfavoráveis ao empreendimento – os racionamentos impostos pela Guerra, a urgência por infraestruturas mais prioritárias em uma colônia subdesenvolvida, a ausência de mão-de-obra capacitada e as resistências particulares dos modos de vida do país – os dirigentes da colônia fizeram de tudo para que o projeto fosse assimilado como uma prioridade absoluta para a Nigéria.

Larkin observa que, para que isso fosse possível, toda uma infraestrutura discursiva teve de ser mobilizada; uma que, por meio de “reuniões, minutas, cartas e despachos” oficiais fizesse penetrar em todas as camadas administrativas da colônia o imperativo de uma modernização inadiável. “A expectativa era a de que o rádio pudesse produzir pessoas de mentalidade moderna, despertar as forças do progresso e refazer subjetividades – e assim, desencadear as forças circulatórias do capitalismo liberal”82. As ações dessas lideranças administrativas (...) eram impulsionadas por uma lógica de racionalidade governamental que proporcionava as condições externas para a existência do rádio. Sem elas, o cobre não era importado, os postes não eram erguidos e o pessoal não era treinado. A materialidade do rádio enquanto montagem tecnológica – seus microfones e autofalantes, amplificadores, fios elétricos, postes de telefonia – só se concretizava em razão dos argumentos não-materiais que governavam a existência desses elementos83 Esse modo de existência das infraestruturas, que descrevemos até agora como “monumental”, “poético” ou “discursivo”, tem sido expresso em estudos recentes pela noção de promessa da infraestrutura84 . A ideia de “promessa” é particularmente interessante quando aplicada aos estudos infraestruturais, não apenas porque associa o universo dos fatos discursivos ao dos objetos técnicos, mas porque

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