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Desenho e acidente: algumas conclusões

118. Ibid., loc. cit.

119. Rem Koolhaas, Nova York Delirante (São Paulo: Cosac Naify, 2008), p. 107

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120. Ibid., p. 109 extremamente improvável que elas funcionem de acordo com os planos de qualquer um em particular118

Mas embora produza novas emergências culturais e formas urbanas a cada dia, essa propriedade “acidental” dos sistemas infraestruturais não é um fenômeno novo, e os desafios que ela impõe para arquitetos e planejadores estão há bastante tempo anunciados.

Se, até agora, identificamos a “fragmentação” como um modo de se olhar para o espaço infraestrutural como um acidente logístico-administrativo altamente consequencial para o espaço urbano e para o trabalho dos planejadores, resta ainda pensar o “acidente” em função das próprias tendências técnicas destes sistemas. Podemos nos questionar, então: de que modo a performance das infraestruturas, seu funcionamento real e frequentemente imprevisível, dá forma às cidades? E qual é a arquitetura, quais são os monumentos que emergem destes acidentes intrínsecos ao funcionamento das infraestruturais?

Rem Koolhaas, em Nova York Delirante (1978), observou que a paisagem da metrópole novaiorquina resulta, em boa parte, de alguns dos mais consequenciais “acidentes” da tecnologia infraestrutural na modernidade. A invenção do elevador de passageiros em 1852 (ocorrida na própria cidade), conjugada ao posterior surgimento da estrutura de aço, faria de Nova York o laboratório para o surgimento de uma série de novas configurações urbanas, arquitetônicas e sociais impensáveis por qualquer modelo cultural preexistente. A consequência imediata do elevador, implicada em sua própria tendência técnica (a conquista do deslocamento vertical irrestrito), era a de que “qualquer área poderia ser multiplicada ao infinito para criar a proliferação do espaço em andares que chamamos de arranha-céu”119. Mas a acidentalidade do arranha-céu, enquanto tipologia arquitetônica, não se resumia apenas ao fato de ter sido, ao invés de planejada por arquitetos, induzida pela tendência técnica interna ao mecanismo do elevador. Na verdade, o arranha-céu era, ele mesmo, um proliferador de novos acidentes. É que a própria tendência técnica do arranha-céu (em sua capacidade de replicar uma área urbana genérica, sem destinação particular) fazia dele, por natureza, um dispositivo de indeterminação: Em termos de urbanismo, essa indeterminação significa que um terreno deixa de corresponder a uma finalidade predeterminada. Daqui em diante, cada lote metropolitano acomoda (...) uma combinação instável e imprevisível de atividades simultâneas, o que faz com que a arquitetura já não seja tanto um ato de antevisão e que o planejamento seja um ato de previsão bastante limitada. Tornou-se impossível ‘demarcar’ a cultura120 À maneira do objeto técnico de Simondon, a tipologia do arranha-céu surgia de um processo quase autônomo de “concretização”: um acúmulo cada vez maior de funções (elevador: deslocamento vertical irrestrito; estrutura metálica: planta livre, etc.) integradas em um

único sistema, fazendo dele uma “máquina aberta” com propriedades emergentes e resultados muitas vezes imprevistos. O arranha-céu como objeto técnico “concreto” significava que ele poderia conquistar um número indeterminado de funções, sem no entanto se especializar em nenhuma delas. Seu espaço era composto por terrenos abstratos, dissociados de qualquer determinação geográfica, cultural ou programática, que podiam ser multiplicados indefinidamente uns sobre os outros e em qualquer lugar do mundo. Como cada um desses terrenos deve encontrar seu próprio destino programático particular – para além do controle do arquiteto –, o arranha-céu é o instrumento de uma nova forma de urbanismo incognoscível. Apesar de sua solidez física, ele é o grande desestabilizador metropolitano: promete uma instabilidade programática perpétua121 Essa propriedade desestabilizadora significava que os “subprogramas” intrínsecos à forma do arranha-céu possuíam implicações para muito além do interior arquitetônico (libertado do arquiteto), mas se estendia a todo o conjunto da cidade, agora emancipado do urbanista. O arranha céu se tornava uma das principais matrizes da megalópole (ela mesma um fenômeno novo, “emergente”), um dos principais protocolos organizacionais de uma urbanidade acidental.

Mas o caso da Nova York “concreta” não evidencia apenas como a evolução dos sistemas técnicos repercutia no surgimento de novas arquiteturas e modelos urbanos acidentais. Na verdade, desse acúmulo de acidentes infraestruturais não emergiam apenas novas formas, mas igualmente novos tipos de cidadãos, novos sujeitos e novas monumentalidades imprevistas. Podemos dizer, por exemplo, que se o arranha-céu é o subproduto do elevador, graças ao qual “o edifício se torna um empilhamento de privacidades individuais”122, então o habitante metropolitano é ele mesmo um subproduto do arranha-céu; ele mesmo aquilo que é empilhado. Um sujeito residual, resultante das possibilidades e contradições intrínsecas ao funcionamento dessa nova tipologia arquitetônica.

De um lado, o arranha-céu produzia a possibilidade inédita da completa desarticulação entre o individual e o coletivo: não só cada um de seus patamares era “tratado como um terreno virgem, como se os outros não existissem”123; como quanto maior o afastamento do chão, maior o desinteresse pela dimensão pública da cidade, e mais os patamares eram habitados como cidades em si mesmas. Por outro lado, essa mesma lógica do empilhamento que intensificava o individualismo era aquela que ocasionava, contraditoriamente, o superadensamento populacional. O preço da máxima individualidade e desarticulação entre as partes é, portanto, o da condenação dessas partes a uma coexistência cada vez mais intensa: uma dimensão

121. Koolhaas, R. (2008), p. 110

122. Ibid., p. 109

123. Ibid., p. 108

“pública” que consiste, na verdade, em uma multidão de individualidades desarticuladas.

O arranha-céu é algo como o monumento infraestrutural para o paradigma urbano que Koolhaas chamou de “manhattanismo”, ou “cultura da congestão”. Um monumento retroativo, resultante dos progressivos acidentes aos quais foram expostos os modelos e promessas do “cosmopolitismo” que haviam originalmente fundado a cidade.

Desenho e acidente: algumas conclusões

Implícito aos termos “projeto”, “plano”, “modelo” ou “desenho”, tão comuns à cultura do planejamento, está o pressuposto de que os produtos da arquitetura e do urbanismo devem conservar – tal qual os monumentos tradicionais – a memória de uma matriz ou uma intenção prévias, dos quais eles são a expressão fiel e inviolável. O projeto antecipa, prevê o objeto; o objeto rememora e reflete o projeto: o círculo perfeito do planejamento.

Tradicionalmente, o trabalho do arquiteto acaba no instante em que emerge o edifício, com o encerramento dos perímetros que compõem a forma do objeto. Ele acredita que, daí em diante, seu objeto estará encarregado de, por si só, conservar as intenções e programas ao qual foi destinado. O objeto planejado é uma lápide, um monumento inerte: de fato, tudo aquilo que parece estar vivo, que se move e que funciona, está completamente fora da jurisdição da arquitetura, não é um “objeto”. Aquilo que se move não tem lugar, não parece se deixar encerrar por nenhum limite ou programa.

O “limite”, para o planejamento, designa portanto a restrição ou a impossibilidade da ação. O objeto arquitetônico ou urbanístico possui limites claros porque não se move, porque possui uma “forma” bem definida, porque é feito de tijolos e concreto, e porque certamente estará lá amanhã, no mesmo lugar que o construímos etc. O problema do “limite”, no entanto, é que ele confunde, ingenuamente, o objeto com a sua imagem, com um perímetro visível e aparente do qual ele – teoricamente – não escapa. Talvez por estarem há séculos debruçados sobre desenhos, diagramas, modelos, mapas e fotografias, os arquitetos e urbanistas tenham se acostumado demais a pensar com imagens. O resultado natural desse hábito é que o planejamento desconsidera todo e qualquer movimento ou recalque, todo e qualquer atrito ou acidente, todo fator de traição entre desígnio e realidade. Tudo aquilo o que, em suma, acontece no meio entre o projeto e o objeto, ou então tudo aquilo o que ocorre após o objeto.

Arquitetos e urbanistas são tradicionalmente treinados, portanto, para conceber o espaço e os produtos do seu planejamento em termos meramente instrumentais: eles pensam em desígnios e finalidades, e

geralmente tratam os meios como instâncias neutras e factuais a serem desconsideradas. Isso talvez explique a tão frequente perplexidade dos arquitetos e urbanistas diante da condição das cidades contemporâneas, e do “espaço infraestrutural” no geral: um espaço que lhes parece desprovido de qualquer modo tradicional de “desenho”, de quaisquer limites ou finalidades, mas inteiramente saturado pelos meios que eles costumam desprezar.

A “cidade informal”, que tanto preocupa arquitetos e urbanistas, não é só o espaço urbano desprovido de planejamento ou regulamentação, mas um espaço que não conhece limites ou formas fixas. É “informal” porque não tem forma, apenas movimento e contingência. Não tem “pé” nem “cabeça”, apenas meios. A “cidade informal” é tanto a favela quanto o business park. É a própria “forma” de uma cidade sem autoria; de um espaço que, como escreveu Koolhaas, “não tem autor, contudo é surpreendentemente autoritário”124 .

Easterling propôs uma metáfora que resume bem essa aporia: para ela, a arquitetura e o planejamento urbano produzem “objetos únicos – como seixos dentro d’água – enquanto um fluxo constante de fórmulas espaciais repetíveis constrói um mar de espaços urbanos”125 . Mesmo quando tem por objeto de consideração aquelas formas menos propriamente “arquitetônicas” como as infraestruturas urbanas, essa visão de planejamento parece ainda demasiadamente atada ao domínio das formas, perímetros, áreas e outras qualidades extensivas, ou inertes, do espaço. Para empregar uma distinção proposta por Easterling, a arquitetura e o urbanismo estão, tradicionalmente, muito mais preocupadas com as chamadas “formas-objeto” – imagens, “signos”, silhuetas, monumentos – do que com as “formas ativas”. As formas ativas não são propriamente “objetos”, tampouco coisas que se movem, mas as relações, intensidades e parâmetros que regem, “com o poder e a vigência dos softwares”, as dinâmicas de produção do “espaço infraestrutural” que hoje dá forma à arquitetura e às cidades. O espaço infraestrutural é uma forma, mas não do modo com que um edifício é uma forma; ele é uma plataforma atualizável que se desenvolve no tempo para lidar com novas circunstâncias, codificando a relação entre edifícios ou ditando logísticas. Existem formas-objeto, como os edifícios, e formas ativas, como os bits de código que organizam a edificação. A informação reside nas atividades, muitas vezes não declaradas, desse software – os protocolos, rotinas, cronogramas e escolhas que ela manifesta no espaço”126 Easterling observa que as mais consequenciais transformações urbanas da atualidade não estão sendo operadas nas tradicionais linguagens da arquitetura e do urbanismo; suas “formas-objeto” são, quando muito, os aspectos isolados ou residuais de uma “confusa matriz de detalhes e fórmulas repetíveis que gera a maior parte do espaço no mundo”127. São esses detalhes e fórmulas que Easterling

124. Koolhaas, R. (2014), p. 56

125. Easterling, K. (2014), p. 10. T.M.

126. Ibid., pp. 10-11. T.M.

127. Ibid., p. 9

 Vista aérea do primeiro subúrbio de Levittown, construído entre 1947-51 no estado de Nova Iorque, Estados Unidos. chamou de “formas ativas”: formas que devem ser interrogadas muito mais em termos de um “como” do espaço infraestrutural, do que dos “o quês” declarados pelas histórias, discursos e monumentos que costumam dissimular seu real funcionamento. Em outras palavras, o domínio das formas ativas nos remete muito mais à performance dos objetos – sua atividade associativa com outros objetos e agentes em um meio dinâmico – do que às suas qualidades formais, estéticas ou simbólicas.

Compreender as formas ativas em jogo nas dinâmicas urbanas é, talvez, o primeiro passo para entender a natureza dos acidentes dos quais emerge a cidade contemporânea. Um acidente, afinal, é a crise entre aquilo que é declarado, anunciado, projetado e aquilo que de fato acontece. Interrogar os acidentes arquitetônicos e urbanísticos do espaço infraestrutural passa, portanto, por identificar aquilo que essas formas de fato fazem, para além do que elas dizem. As rodovias, originalmente promovidas por histórias sobre liberdade e movimento ininterrupto, possuíam uma lógica organizacional que, na realidade, causava congestionamento. (...) Os subúrbios produzidos em massa venderam singulares casas de campo, mas entregaram produtos virtualmente idênticos organizados em linha de montagem. O Facebook, uma plataforma criada para o relacionamento social num campus universitário,

revelou mais um potencial inicialmente não-percebido quando, na Primavera Árabe, foi empregado como um instrumento de dissidência. (...) Em todos estes casos, alguns dos resultados políticos mais consequenciais do espaço infraestrutural permanecem não-declarados nas histórias dominantes que o retratam128 O caso dos (hoje mundialmente familiares) subúrbios habitacionais norte-americanos do pós-guerra – um fenômeno, como o arranha-céu, resultante de diversos acidentes infraestruturais, bem como o causador de muitos outros – é recordado por Easterling para exemplificar o funcionamento e as tendências das “formas ativas” no espaço infraestrutural. Ela descreve a primeira experiência dessa emergente tipologia suburbana – o empreendimento Levittown, de 1947 – não tanto como o produto de um planejamento, mas o resultado de uma espécie de equação com diversas variáveis, de cujas interações surgiam não apenas os subúrbios em si, mas também os seus respectivos fenômenos socioculturais.

As casas de Levittown não eram obras de arquitetura (a despeito do que diziam seus discursos promocionais), mas um tipo particular de formas ativas que ela chamou – empregando um termo da cibernética – de “multiplicadores”, dando entender que o empreendimento era, literalmente, o produto de um tipo de software espacial. Levittown era o resultado de uma linha de montagem: a composição e multiplicação de uma “população de commodities” tecnológicas, desde os insumos de construção (todos comercialmente catalogados) até as televisões e máquinas de lavar inclusas nos imóveis – além, é claro, as próprias casas, elas mesmas os parâmetros geradores de uma emergente composição sociotécnica. Nenhum de seus componentes eram propriamente “objetos”, mas informação: “a casa não era um objeto singularmente elaborado, mas um multiplicador de atividades”129 .

Levittown é um caso paradigmático de um “espaço infraestrutural” que não se limita mais à parcela da cidade ocupada pelas formas típicas da infraestrutura urbana, mas que passou a ser a própria matriz do espaço “figural” – arquitetônico, monumental etc. – da cidade, anteriormente uma instância do planejamento. Mas não só isso: emergências espaciais como a de Levittown, que há décadas tiram o sono de arquitetos e urbanistas, sinalizam também a relutância histórica desses agentes em compreender as dinâmicas “extra-espaciais” ou informacionais que configuram o espaço infraestrutural, bem como a sua incapacidade de intervir nele com suas tradicionais ferramentas de projeto. Redesenhar uma única casa, ou a forma-objeto da casa no contexto do subúrbio, pode não ser tão poderoso quanto interpelar a sua forma ativa – nesse caso, o multiplicador. Um projetista que intervém nos campos repetitivos do espaço suburbano com uma única casa causará pouco impacto. Mas projetar algo para ser

128. Easterling, K. (2014), p. 56. T.M.

129. Ibid., p. 58

130. Ibid., loc.cit.

131. Ibid., p. 57

132. Ibid., p. 67 multiplicado em uma população de casas tem o potencial de recondicionar o espaço suburbano maior, ou hackear o software suburbano. Por exemplo, quando o carro chegou no subúrbio, ele era um multiplicador que exigia que garagens fossem anexadas a todas as casas; hoje, recalibrar ou redesenhar o carro e sua garagem multiplicaria e difundiria mudanças espaciais ao longo de todo um território de casas130 Easterling faz um apelo para que as disciplinas da arquitetura e urbanismo reconsiderem o modo com que foram historicamente programadas para compreender a produção do espaço, segundo o qual os “espaços e organizações urbanas são normalmente tratados não como atores, mas como coleções de objetos e volumes.”131 Pensar em termos de “formas ativas” – forma como ação – ao invés de “formas-objeto” – forma como objeto – é a condição para que eles possam compreender e intervir, em níveis mais significativos, nas reais dinâmicas de produção do espaço contemporâneo, das quais eles se vêem progressivamente isolados.

Para Easterling, as formas ativas do espaço urbano são os marcadores do que ela chamou de “disposição”, querendo dizer as atividades, tendências e propriedades que emergem da performance dessas formas quando associadas umas às outras em um dado contexto. O conceito de “disposição” serve para deslocar certos pressupostos instrumentalistas, na arquitetura e no urbanismo, que tendem interpretar as dinâmicas urbanas como produtos de funções ou desígnios concebidos como atributos fixos dos objetos.

Ainda que o termo “função” aluda a “funcionamento”, ele é frequentemente empregado para designar propriedades inerentes de uma forma, independentemente de sua performance real, ou incidente. De modo que, quando essas formas, uma vez postas em funcionamento, não respondem às funções a que foram designadas, ou então revelam funções e tendências acidentais, não antevistas, o resultado tende a ser interpretado como um mero “erro”.

Pensar a “disposição” desses objetos, pelo contrário, é considerá-los de acordo com as associações e trocas concretas que eles estabelecem com outros objetos e formas ativas, ou seja, em seu contexto de atividade. É pensá-los não como detentores de qualidades “internas” (função, significado, etc.), mas qualidades relacionais, dispositivas: uma forma é aquilo que ela faz, não aquilo que acreditamos que ela seja.

O conceito de “disposição” nos permite acessar os modos pelos quais “uma organização lida com variáveis no tempo – como ela absorve ou deflete as formas ativas que se movem dentro dela. A disposição não descreve uma constante, mas conjunto variável de ações a partir das quais se pode constatar ações, potencialidades e capacidades”132, para além de simples “funções” originalmente programadas. A disposição não emerge, como a “função” para os planejadores, da previsão das

atividades e comportamentos futuros de um objeto. Pelo contrário, ela surge de um exercício de engajamento ativo com as performances e resultados reais de um sistema, a despeito das funções inicialmente atribuídas aos seus elementos.

Dizer que uma tipologia arquitetônica qualquer, digamos, a casa unifamiliar, corresponde a uma função determinada – nesse caso, a função “morar” – é uma planificação grosseira, resultante de uma concepção abstrata da “casa” que só existe na mente do arquiteto. (Até porque, como sabemos, “morar” se tornou apenas uma das inúmeras funções acumuladas no interior da habitação contemporânea). O que é, exatamente, o morar? O morar em uma casa suburbana é o mesmo que o morar em uma casa em um bairro urbano central? O que a função “morar” nos diz da realidade de cada uma dessas casas, para além de uma categorização genérica?

De fato, muito pouco. Se seguirmos, ao invés, aquilo que o termo “função” implica – o funcionamento – veremos que nem mesmo duas casas perfeitamente idênticas e situadas a poucos quarteirões de distância uma da outra funcionam da mesma forma. Digamos que uma delas está situada numa tranquila rua local, e a outra margeia uma movimentada avenida arterial na divisa do bairro. Se entrevistássemos os respectivos habitantes dessas casas, certamente cada um deles nos forneceria relatos completamente distintos do “morar” em suas casas – ao passo que um arquiteto ou urbanista, sentado diante de uma planta-tipo ou um plano geral, do conforto de seu escritório, dificilmente saberia distinguir entre elas. Nesse caso, a diferença é que, enquanto os habitantes dessas casas as descreveriam nos termos de suas disposições, os planejadores o fariam de acordo com uma função identificável apenas pelos atributos formais ou extensivos do tipo “casa”.

A disposição, portanto, é aquilo que emerge da performance real de um objeto em seu meio de atividade, onde ele interage com uma série de “formas ativas”, compondo com elas um sistema com propriedades emergentes que não podem nunca ser inteiramente premeditadas. O teórico da arquitetura Stavros Kousoulas escreveu que a dificuldade das disciplinas de planejamento em identificar essa disposição nas organizações espaciais decorre de seu condicionamento ao que ele chamou de “falácia do input-output”. Segundo ele, a cultura arquitetônica está acostumada a pensar por meio de “caixas-pretas”: um mecanismo de compreensão do espaço que “recebe inputs” – modelos, desígnios, funções – e produz a “manifestação, causalmente linear, quase mágica, dos outputs”133 – os objetos arquitetônicos. Uma concepção que, em outras palavras, concebe o pensamento e a prática da arquitetura “como um mero regime de projetar, representar e anotar ‘propriamente’ aquilo que será posteriormente executado”134 .

133. Stavros Kousoulas, “Shattering the Black Box: Technicities of Architectural Manipulation”. In: International Journal of Architectural Computing, vol. 16 (Nova Iorque: Sage, 2018), p. 295. T.M 134. Ibid., loc. cit.

135. Ibid., p. 299

136. Ibid., p. 296

137. Ibid., p. 298. Grifo meu

138. Ibid., p. 297. Grifo meu

Em lugar desse pensamento, Kousoulas defende que a arquitetura siga o caminho inverso: são os outputs – os resultados, as performances – do espaço que devem condicionar a produção de hipóteses, premissas e modelos da arquitetura, e não o contrário. Ao invés de se restringir aos chamados processos dedutivos (a produção de inferências com base em juízos e modelos a priori) e aos processos indutivos (inferências baseadas em dados estatísticos prévios) que costumam orientar a produção arquitetônica, Kousoulas defende que ela deva se orientar por aquilo que Charles Sanders Pierce chamou de raciocínio abdutivo. A abdução, ao contrário da dedução e da indução, é aquilo que faz de nós organismos ativamente testadores da realidade. De acordo com [o teórico das mídias Steven] Shaviro, [os organismos] estão sempre envolvidos na testagem de seus ambientes com ações variáveis e ininterruptas para, apenas depois, avaliar o feedback sensorial. Esse é o exato oposto do modelo do input-output. É o output que vem antes, modulando a atividade persistente e contínua de sondagem realizada pelo ente135 Para explicar o processo abdutivo, Kousoulas recorre à distinção, feita pelo filósofo Gilbert Ryle, entre o “saber que” (um conhecimento propositivo) e o “saber como”, um tipo de conhecimento emergente que só pode ser acessado por meio da manipulação ativa de um sistema em funcionamento. “Não se pode aprender a nadar”, diz Kousoulas, “lendo um manual: é preciso entrar em uma composição [assemblage] com a água e tentar diferentes modos de propulsão por meio do movimento corporal”, para então adquirir o saber emergente do como nadar136 . Kousoulas defende que a única forma de compreender sistemas de atividades complexas – antes mesmo que tenhamos modelos para explicá-los – é intervindo ativamente sobre eles por meio de processos abdutivos. Em sua leitura do filósofo Reza Negarestani, ele descreve o que seria essa espécie de razão manipulativa: Negarestani observa que, se desejamos examinar o que um sistema é, então não podemos fazê-lo sem estudar o que o sistema pode fazer. Além disso, aquilo que um sistema é nunca se esgota na aparência daquilo que ele parece estar fazendo. (...) Deve-se ativamente intervir em múltiplos níveis, e então intuir a afetividade recíproca das ações no sistema, não apenas em relação àquele que intervém, mas igualmente em relação aos próprios níveis organizacionais específicos do sistema. De forma mais simples, para examinar um sistema é preciso manipulá-lo. Compreender tendências materiais [de um sistema] envolve a aplicação de uma epistemologia que é, ao mesmo tempo, heurística e manipulativa137 Diferentemente da dedução e da indução, (que “nunca inventam: apenas repetem, predizem e reproduzem dados quantitativos”138) a abdução é o princípio mesmo da invenção: é uma operação interrogativa (“e se...?”), e não propositiva (“se X... então Y”). Uma invenção não descreve apenas – embora certamente inclua – a ideia de um “salto” abdutivo,

uma eureca. Podemos chamar de “invenção” toda composição que emerge de uma manipulação ativa – tentativa e erro – de um sistema que nunca pode ser inteiramente conhecido de antemão. No exemplo que citamos há pouco, o corpo que nada é a invenção, a disposição que surge das trocas recíprocas entre o corpo e seu meio, a água.

Para empregar um exemplo da arquitetura, podemos dizer que a invenção do arranha-céu não partia de nenhum modelo a priori, mas era o resultado empírico do encontro entre formas ativas (o elevador, os perfis de aço, o sistema viário, os códigos de obra, os engenheiros civis e diversos outros eventos do ambiente metropolitano), bem como das disposições que essa associação revelava acidentalmente. Uma associação da qual emergiam, em troca, não apenas o arranha-céu e toda a “cultura da congestão” modulada por ele, mas igualmente a conquista epistemológica que é a própria crítica desse fenômeno.

“Cultura da congestão” não era o nome de um modelo imposto à cidade, e sim a constatação abdutiva de uma emergência, de um fenômeno que só foi conhecido após ter sido ativamente experimentado. Koolhaas certamente teria dito que Manhattan aprendeu fazendo: ao citar a proeza realizada pela equipe de engenheiros liderada pelo construtor Theodore Starret (que, em 1911, era o responsável por metade dos arranha-céus da ilha), Koolhaas nos lembra que, ali, não havia nenhum modelo ou manual, nenhum manifesto, nenhum debate arquitetônico, nenhuma lei, nenhum planejamento, nenhuma ideologia, nenhuma teoria (...) apenas – o arranha-céu (...). Não havia ‘desenho’, apenas a extrapolação dos temas e das tendências irreprimíveis de Manhattan; não por acaso, não havia arquitetos na equipe”139 A lição para arquitetura – ao invés de seu decreto de falência – deve ser, portanto, o reconhecimento de que o puro e simples projeto não nos salvará das emergências constantes que assolam a cidade contemporânea. Não se por “projeto” entendermos a pura e simples aplicação de modelos e teoremas, ao invés do que deveria ser o princípio fundamental da atividade arquitetônica: uma “prática de indeterminação espacial”140, um engajamento ativo e recíproco com o ambiente no qual deixamos esses modelos se proliferarem, bem como um acesso crítico a tudo aquilo o que volta, tudo o que ricocheteia do funcionamento necessariamente acidental dessas composições.

Se podemos concordar que toda atividade arquitetônica envolve alguma forma de invenção, então ela é, também – gostemos ou não – a produção de alguma forma de emergência. Não se pode, para usar

139. Koolhaas, R. (2008), pp. 113-15

140. Kousoulas, S. (2018), p. 299

141. “Os arquitetos nunca conseguiram explicar o espaço; o espaço-lixo é o nosso castigo pelas suas mistificações. (...) O espaço lixo é um Triângulo das Bermudas de conceitos, uma placa de Petri abandonada”. Koolhaas, R. (2014), p. 42 142. Paul Virilio. The Original Accident (Cambridge: Polity Press, 2007), p. 10

143. Ibid., p. 5 144. Ibid., p. 6

145. Ibid., pp. 23 uma expressão de Koolhaas, abandonar a placa de Petri141: é preciso, eventualmente, voltar para enfrentá-la.

‘Não existe uma ciência do acidente’, Aristóteles advertiu muito tempo atrás. Apesar dos estudos de riscos, que acessam riscos, não há uma acidentologia, mas apenas um processo de descoberta fortuita, uma invenção arqueotecnológica. Inventar o veleiro ou o navio a vapor é inventar o naufrágio. Inventar o trem é inventar o acidente do descarrilhamento. Inventar o automóvel familiar é produzir o engavetamento na rodovia142 Em The Original Accident (2005), o arquiteto e filósofo Paul Virilio nos diz que toda nova invenção tecnológica não apenas soluciona um problema prévio como, necessariamente, produz novos problemas, novos tipos de acidente. Embora não se trate de uma constatação nova – como ele observou, desde Aristóteles o acidente é aquilo que “revela a substância”, no que a invenção é “um modo de ver, de ler acidentes como signos e oportunidades”143 – Virilio nos diz que estamos ainda longe, enquanto “cultura”, de desenvolver uma inteligência do acidente. Ou então, uma “inteligência da crise da inteligência”144, uma acidentologia.

Ademais, essa carência ocorreria precisamente num momento histórico em que os acidentes do “Progresso” moderno se multiplicam de tal forma que, contraditoriamente, se tornam o atributo mais característico e corriqueiro – a própria paisagem – da vida contemporânea. A ubiquidade dos acidentes contemporâneos não descreve a frequência e magnitude cada vez maiores com que ocorrem, mas também pela assiduidade com que somos ativamente expostos a eles.

Para Virilio, as mídias de massa e seus operadores – ele dá ênfase ao telejornal, com sua “programação do escândalo” (a Internet não era, ainda, o que é hoje) – nos submeteram à condição de espectadores cotidianos do acidente em tempo real. Não apenas somos superexpostos a acidentes e catástrofes sem que sequer precisemos vivenciá-los “materialmente”, como a instantaneidade do regime televisual nos condicionou a engajar com o acidente de forma inteiramente a-histórica, uma vez que a história, agora, é aquilo que se passa ao vivo diante de nossos olhos.

Em outras palavras, “uma sociedade que irrefletidamente privilegia o presente, real time, em detrimento do passado e do futuro”145 , é também incapaz de rememorar ou antecipar – e por isso obrigada a reproduzir – o acidente. Ela está condenada a eternamente experienciá-lo. Submetidos aos sobressaltos e espantos ininterruptos da condição de espectadores, somos incapazes de pensar o acidente, de

conceber a própria ideia de acidente, e de situá-lo historicamente como um marcador cada vez mais constitutivo da atual condição humana.

Em lugar desse regime de superexposição, Virilio defende uma política de engajamento crítico com o acidente. Ao invés de sermos expostos a ele – uma situação onde só o que pode emergir é o pânico ou a apatia – deveríamos assumir “a abordagem oposta, que consistiria em expor o acidente – exibi-lo – como o grande enigma do progresso moderno”146 . Ele propõe, dessa forma, um Museu do Acidente: uma espécie de museografia dos desastres (assim como dos “acidentes felizes”) congênitos à evolução técnica, que tenha o poder de nos deslocar da vivência casual da catástrofe em direção à sua reflexão e assimilação.

Assim como toda invenção ou descoberta científica é o resultado cognitivo que se sucede à manipulação de um sistema em funcionamento do qual nunca temos total controle, um “museu do acidente” surgiria, similarmente, como a emergência benigna de uma cultura inteiramente imersa no acidente. O que é particular do museu de Virilio é que a invenção que emerge do acidente não é, imediatamente, a solução – e o decorrente esquecimento – de um problema. O que se inventa é a própria ciência do problema, uma vigília do acidente.

Embora a nossa discussão, neste trabalho, possa parecer algo marginal em relação à tipologia dos acidentes enunciados por Virilio (ele está sobretudo preocupado com as dimensões ecológicas e planetárias de um “acidente integral”), a discussão por trás de sua museografia do acidente têm muito a contribuir para as disciplinas da arquitetura e urbanismo diante da condição das cidades contemporâneas.

Até porque não há como distinguir, quando falamos de habitat (o objeto de intervenção dessas disciplinas por excelência), entre crises arquitetônicas/urbanísticas “locais” e o domínio “externo” das catástrofes globais (emergências climáticas, geopolíticas, migratórias etc.). Não apenas porque o habitat – a cidade – é o lugar mesmo de onde experienciamos toda e qualquer emergência, local ou global, como porque o próprio problema da cidade não pode mais ser dissociado de qualquer outro tipo de emergência planetária. Afinal, em termos de espaço infraestrutural, “cidade” é aquilo que, hoje, cobre a totalidade da superfície terrestre.

Não há, portanto, arquitetura ou urbanismo simplesmente locais: enquanto fenômenos do “espaço infraestrutural”, qualquer projeto, ou melhor, qualquer forma de invenção arquitetônica ou urbanística será tributária, em algum nível, de uma ecologia global de acidentes. (Qualquer dúvida a respeito disso pode ser sanada pelo exercício de reconstituir os caminhos (genea)logísticos de um componente qualquer em um edifício arquitetônico: traçar a origem e os percursos de uma simples ferragem é descobrir uma rede de acidentes em escala planetária).

146. Virilio, P. (2007), p. 23-4

147. Benjamin Bratton. The Stack: On Software and Sovereignty (Cambridge: MIT Press, 2015), p. 10. Grifo meu

148. Ibid., p. 9

O que seria, portanto, uma museografia do acidente para a cidade contemporânea? Quais seriam os modelos e os monumentos – para além dos que já colocamos em funcionamento e que se mostraram insuficientes – que, recorrendo a um termo de Benjamin Bratton, podem emergir dessa megaestrutura acidental? Como ele mesmo interrogou, Poderia essa ‘cidade’ agregada que envolve o planeta servir como a condição, o referente legítimo, do qual um novo (...) sufrágio universal pode ser derivado e desenhado? Poderia essa cidade-máquina compósita (...) servir como alguma forma de terra natal? (...) Caso ela pudesse, ou caso de alguma forma já seja, então nossas categorias e critérios convencionais falham em descrevê-la corretamente para nós. Isso ocorre, possivelmente, porque ela não é planejada, mas sim um acidente em processo”147 Bratton defende algo como uma tecno-logia – no sentido forte do termo, ao mesmo tempo reflexiva e instrumental – para o acidente. Na mesma chave do Museu do Acidente de Virilio, Bratton descreve esse modelo (que não é propriamente um modelo, e mais um protocolo) como uma abordagem projetual que, ao invés de encontrar no acidente um fim de linha, o antecipa e assume nele sua razão de ser. O acidente se torna não apenas o produto inevitável, como também uma ferramenta de desenho. Às vezes o emergente define o arcaico por oposição, e às vezes ele se torna um colaborador essencial. Nós descrevemos isso como a consolidação de sistemas culturais e técnicos, um realinhamento de instituições e discursos, [que] tenta reconhecer e engendrar seus efeitos e acidentes. Isto é, um horizonte de design (...) que deve ser considerado, simultaneamente, nos termos daquilo que ele conquista enquanto tecnologia ideal e, talvez o mais importante, de como seus acidentes não-desenhados caracterizam seus resultados reais148 Das tabulas rasas às “requalificações urbanas”, a atividade da arquitetura e do urbanismo sempre se alimentou de alguma forma de delírio de controle ou grandeza. Fomos historicamente treinados à doutrina do gesto demiurgo, ou então – para empregar um vocabulário atualmente mais celebrado – à obrigação de encontrar soluções (pensemos em quão constrangedoramente banal é ouvir um arquiteto se referir às “soluções” de tal ou tal projeto).

De certo modo, há algo nesse gesto solene, nessa “solução”, que soa estranhamente familiar à ideia de “monumento” que tentamos, ao longo deste trabalho, criticar. É que a solução é, ao seu modo, ela mesma um tipo de monumento, de lápide: não no sentido daquilo que ela traz à memória mas, ao contrário, de algo que é enterrado, deixado para trás. De fato, assim como a “solução” é o gesto – nobre, monumental – de obliterar o contratempo, aquilo que o monumento parece

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