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Monumento infraestrutural

85. Larkin, B. (2013), p. 333

86. Anand, N. et. al., (2018), pp. 20-1

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87. Larkin, B. (2018), p. 182 88. Ibid., loc. cit.

 Obras de retificação do Rio Tietê, em São Paulo. 1938 ← Still do filme "Bye-Bye Brasil" (1979), de Cacá Diegues. A cena mostra a companhia de circo Caravana Rolidei percorrendo a Rodovia Transamazônica, atraídos por rumores e promessas de glória da região amazônica descreve muito precisamente uma relação na qual as infraestruturas nos “formam enquanto sujeitos (...) através da mobilização de afetos e sentimentos de desejo, orgulho e frustração, sentimentos que podem ser bastante políticos”85. Anand et. al também descrevem a promessa das infraestruturas em termos similares: As infraestruturas são lugares críticos através dos quais a política se traduz de uma racionalidade para uma prática (...). Elas são um terreno material e aspiracional de negociação para as promessas e éticas da autoridade política, e para a construção e desconstrução de sujeitos políticos. Porque as infraestruturas distribuem recursos vitais que as pessoas necessitam para viver – energia, água, informação, alimento – elas frequentemente se tornam lugares de negociações ativas entre agências de estado e as populações que elas desigualmente governam86 Lembremos, por exemplo, daquilo que implicam os “atos de fala”, dentre os quais a promessa pode ser isolada como um tipo interessante. Uma promessa, como todo ato de fala, é mais do que um fato comunicacional: é uma ordem de produção. A promessa é uma espécie de “monumento” no sentido tradicional; ela envolve o emissor da promessa, a promessa em si e o receptor da promessa numa relação contratual – uma “negociação” – da qual emerge um certo estado de coisas, sujeitos, histórias e expectativas. A promessa, como o monumento, é também um artifício de temporalização: primeiro porque ela tem algo de um marco histórico co-memorativo (“lembre-se do que você me prometeu...”), mas também porque ela representa e conserva suspenso um certo tempo futuro; a promessa produz uma antecipação, um desejo, uma expectativa que tem o poder de motivar e transformar os sujeitos aos quais ela é endereçada.

Dizer que infraestruturas são promessas, nesse sentido, significa que elas se inserem sempre em um determinado arranjo afetivo e disciplinar entre sistemas técnicos e as populações que interagem com eles. Uma promessa infraestrutural pode surgir para apaziguar ou prorrogar conflitos urbanos, arrecadar capital político, construir identidades coletivas, e até mesmo para criar desejos antes inexistentes (o “marketing urbano”). No caso relatado por Larkin sobre a infraestrutura de rádio na Nigéria colonial, a promessa era a de expor uma população vista como “retrógrada” a “modos alternativos de vida que teriam o efeito cognitivo de libertá-los de seus tradicionais mundos-da-vida [lifeworlds]”87. A infraestrutura, enquanto promessa, “era uma máquina que operava sobre a cognição das pessoas, forjando novos sujeitos sociais”88. Da promessa infraestrutural emergem o que podemos chamar de sujeitos infraestruturais: os produtos de uma

“relação afetiva” entre Estado, população e infraestrutura moldada por “noções de futuridade”89 .

Mas a promessa da infraestrutura não é simplesmente um artifício representacional. Ainda que ela se refira à possibilidade de realização de um estado futuro das coisas (como um “destino” moderno), ela é ainda assim vivida no presente. A promessa das infraestruturas é uma realidade material e estética assim como representacional. Larkin descreve essa realidade não só como a assimilação consciente de um discurso político ou de uma representação, mas como “uma experiência encarnada governada pelos modos com os quais as infraestruturas produzem condições ambientes de experiência (...). As infraestruturas criam um senso de modernidade, um processo pelo qual o corpo, tanto quanto a mente, apreende o que é ser moderno, mutável, progressista”90 .

A nossa ideia de um “sujeito infraestrutural” descreve, portanto, um processo de subjetivação que não ocorre simplesmente no nível dos discursos e das representações que envolvem os objetos infraestruturais, mas no plano da experiência que o funcionamento dessas infraestruturas solicita dos sujeitos. Para atravessar uma ponte urbana ou percorrer uma via expressa, por exemplo, é preciso que nos tornemos um tipo específico de sujeito, um que se desloca a 90km/h, que vive a promessa na pele; que ritualiza cotidianamente a velocidade, o desimpedimento, a eletricidade, o ar-condicionado e os sons do rádio como atributos inalienáveis do seu modo-de-ser; um sujeito que já não é mais simplesmente humano e tampouco não-humano, mas uma montagem concreta entre ser, automóvel e infraestrutura.

Mas essa dimensão concreta da experiência infraestrutural, pela qual a promessa da modernidade é vivida empiricamente no presente, nos coloca diante de novos problemas. Pois o que é particular das promessas – assim como das infraestruturas – é que, na realidade, elas estão constantemente sendo quebradas. Tomemos, por exemplo, os efeitos práticos relatados por Larkin sobre a implantação do rádio na Nigéria: A operação técnica do rádio foi dramaticamente afetada pela vida física que ele levava na Nigéria, onde ele interagia com cupins, umidade e com a poeira do harmatão, o que frequentemente fazia com que os componentes de rádio falhassem. Essas operações materiais não estavam sob o controle do desígnio humano, mas eram parte das contingências inesperadas de tudo aquilo que pode acontecer com máquinas na vida real91 Toda promessa está sujeita a uma série de eventualidades da realidade concreta, em função das quais ela se dá como cumprida ou frustrada. Ela está exposta a tudo aquilo que pode acontecer quando essa promessa é situada, posta à prova, deslocada da sua pureza discursiva. Em outras palavras, a toda promessa se sucede uma espécie

89. Anand, N., et. al. (2018), p. 27 90. Larkin, B. (2013), pp. 336-7

91. Larkin, B. (2018), p. 183

92. Trecho do romance Mister Johnson (1939), de Joyce Cary (Londres: Michael Joseph, 1961), p. 169. T.M. Disponível online no site gutenberg.ca. de efeito feedback que nunca pode ser inteiramente previsto por quem a profere. Essa constatação é importante porque, se queremos compreender as infraestruturas urbanas enquanto fenômenos discursivos e simbólicos, devemos compreender, para além do “o quê” das infraestruturas, tudo aquilo que emerge do “como” de seu funcionamento real – exatamente como quando falamos, anteriormente, das indeterminações semânticas a que estão sujeitos os signos em um sistema social concreto.

As próximas páginas serão dedicadas a essa dimensão retroativa – ou, como tem sido chamada, recursiva – da interação entre desígnio e realidade, sistemas epistêmicos e sistemas técnicos, seres humanos e infraestruturas.

Monumento infraestrutural

A própria estrada parecia falar com ele. ‘Eu esmagarei a velha Fada – eu mudarei tudo e todos dentro dela. Eu abolirei os velhos modos, as velhas ideias, a velha lei; eu trarei riquezas e oportunidades para o bem e para o mal, novos poderes para os homens e portanto novos conflitos. Eu sou a revolução (...). Eu sou a sua ideia. Você me fez’ – Joyce Cary92

Quando nos referimos anteriormente às infraestruturas monumentais, entendemos como as infraestruturas podem se comportar à maneira dos “monumentos”, no sentido tradicional do termo. Dissemos, portanto, que as infraestruturas são frequentemente concebidas pelo Estado da mesma forma com que ele produz monumentos (de fato, ambos infraestrutura e monumento são tradicionalmente tecnologias de Estado): elas são instrumentos representacionais e “poéticos” que, para além de uma função estritamente “técnica”, operam discursivamente sobre seus usuários, solicitando deles um engajamento afetivo e ideológico com as mensagens veiculadas por elas. Nesse caso, a ideia de “monumento” descreve mais especificamente um objeto programado para materializar racionalidades políticas: diz respeito, portanto, ao conjunto de intenções (discursivas, representacionais, políticas) que confluem na concepção da infraestrutura monumental.

Mas esta é apenas uma das perspectivas, e talvez a mais usual, pelas quais podemos interpretar os objetos que dizemos ter qualidades “monumentais”. O viés pelo qual queremos abordar essa questão, por outro lado, e à luz de nossas considerações sobre as infraestruturas, dirá respeito menos a o que é um monumento e mais ao modo como os monumentos funcionam e àquilo que eles produzem.

Como podemos definir um “monumento”, da forma mais ampla possível, em função do modo com que ele funciona e daquilo que ele produz? O que faz um monumento? E por fim, o que queremos

dizer por “monumento infraestrutural”, e no que ele difere da “infraestrutura monumental”?

De forma genérica, o monumento existe numa relação produtiva de comunicação entre um agente particular e uma coletividade; uma que nem sempre se reduz à comunicação de significados ou representações. Um monumento, como sabemos, pode sim funcionar segundo um desígnio semântico, como nas tradicionais obras memorialísticas, onde o que é veiculado é sobretudo um significado ou representação histórica (passada ou futura). Ele pode, além disso, servir a um desígnio predominantemente estético, donde, como observou Françoise Choay, o monumento parece comunicar muito mais “o poder, a grandeza, a beleza: compete-lhe explicitamente afirmar grandes desígnios públicos, promover estilos, dirigir-se à sensibilidade estética”, ou então causar “a admiração ou o espanto que provocam a maestria técnica e uma versão moderna do colossal”93. Neste último caso, o monumento se torna um objeto que nos “interpela no instante, trocando seu antigo estatuto de signo pelo de sinal”94 .

Mas em ambos esses casos, independentemente do desígnio pelo qual foi concebido ou de sua natureza semiótica, o monumento se inscreve numa relação produtiva da qual emerge um certo estado das coisas e um certo tipo de sujeitos. Dizer que os cidadãos produzem monumentos não é mais correto do que dizer que os monumentos produzem certos cidadãos, certos sujeitos e coletividades históricas. Por isso, toda relação produtiva da qual podemos dizer que emergem certos coletivos e subjetividades, certos modos de estar-no-mundo e na história, denominaremos monumental. Monumentos podem ser obras de arquitetura ou infraestrutura, romances ou decretos legislativos, cosmogramas ou panfletos imobiliários etc., desde que produzam um efeito monumental, por menor que seja.

O nosso foco estará, portanto, naquilo que o monumento produz, nos resultados de seu funcionamento num meio social, ao invés dos desígnios (semânticos ou estéticos, memoriais ou promissivos) para os quais ele foi originalmente concebido. Essa constatação é importante porque nos permitirá deslocar a ideia de “monumento” de sua concepção tradicional (sob a qual ele aparece como “instrumento” para certas racionalidades políticas, ideológicas ou tecnológicas), para dá-lo um estatuto mais amplo. Deveremos, dessa forma, poder pensar o monumento menos como um “artifício”, ou como o fiel produto de um planejamento, e mais como um fenômeno, um efeito que tem o poder de produzir subjetividades históricas, comportamentos e epistemologias. Um fenômeno que, sobretudo, nem sempre corresponde a uma intenção originária, e que pode dar forma a resultados imprevistos. O monumento, para nós, é portanto muito mais aquilo que ele produz do que aquilo que ele anuncia ser. Essa concepção abre margem para que admitamos, em oposição ao monumento “ideológico” (semântico

93. Françoise Choay, Alegoria do Patrimônio (Lisboa: Edições 70, 2014), p. 19 94. Ibid., loc. cit.

95. Concebemos livremente a ideia de um “monumento ideológico” apenas para reassociar a tradicional distinção de Riegl entre os “monumentos intencionais” e os “monumentos históricos”. Ainda que correspondam a diferentes modos de mobilização da história social (o primeiro, concebido segundo uma intenção comemorativa a priori; o segundo por meio de um consenso social a posteriori), ambos monumentos volível e não-volível podem ser reunidos sob a ideia de um “monumento ideológico”. Isto é, entendendo que ambos são concebidos por uma intenção discursiva. 96. Em Latour, cada um dos agentes (humanos e não-humanos) envolvidos na realização de uma tarefa possui um subprograma: um “roteiro”, uma tendência intrínseca. Isso é verdade tanto para o ser humano que, por exemplo, opera uma máquina segundo um objetivo específico, quanto para a própria máquina, ela mesma dotada de subprogramaspróprios. A relação humano/não-humano, portanto, é sempre uma negociação entre subprogramas: uma dialética na qual, sobretudo, nenhum deles é inteiramente cumprido, pois o que emerge do contato entre humano e não-humano é um terceiro agente, uma montagem associativa com um programa de ação próprio que não se resume a nenhum dos subprogramas que o compõem. 97. Bruno Latour, Pandora’s Hope: Essays on the Reality of Science Studies (Cambridge: Harvard University Press, 1999), p. 191. T.M. ou estético, “volível” ou “não-volível”)95, a existência de algo como um monumento acidental.

Nos afastemos por um momento das infraestruturas e dos monumentos propriamente ditos, para que possamos esclarecer melhor a ideia do “acidente”. Um acidente é, por definição, o desvio inesperado, a quebra da promessa. Uma emergência: ao mesmo tempo um estado de crise e uma situação de onde emerge uma certa configuração não-planejada das coisas. Um acidente, enquanto emergência, tem o poder de reorganizar todo o conjunto de premissas, funções e objetivos que convergiram originalmente para atingir um objetivo que o acidente aparece para frustrar. A nossa ideia de “monumento acidental” pode ser explicada por aquilo que Bruno Latour, em sua discussão sobre os objetos técnicos, chamou de mediação: um fenômeno onde o modelo “instrumental” que idealizamos em nossa relação com esses objetos se vê subitamente corrompido por ocasião do funcionamento real destes objetos. A ideia de “mediação”, para Latour, descreve por que os objetos técnicos (ou a classe mais geral dos não-humanos) não podem ser compreendidos como meios para certos fins, ou instrumentos para intenções pré-concebidas. Pelo contrário, a “mediação” descreve aquilo que se se encontra, justamente, no meio do caminho da relação instrumental: o obstáculo em um percurso entre uma origem (premissa) e um destino (finalidade) originalmente concebidos, e cuja aparição suscita necessariamente um desvio, ou uma reprogramação de comprometimentos iniciais. Nas palavras de Latour, a ideia de “mediação” técnica (...) serve para designar um entrave, uma protuberância, uma surpresa, um contratempo no funcionamento uniforme dos subprogramas96, como quando dizemos que ‘há um problema técnico a ser resolvido antes’. Aqui, o desvio pode não nos trazer de volta para o caminho principal (...), mas pode ameaçar o destino original inteiramente. [A mediação] técnica não é mais um mero desvio, mas um obstáculo, uma barricada (...). O que deveria ser um meio se torna um fim, ao menos por um tempo, ou quem sabe um labirinto no qual nos perdemos para sempre97 Uma outra explicação da ideia de mediação descreve o modo pelo qual nós “inventamos” soluções e objetos técnicos, ou então os motivos que nos levam a recorrer a soluções e objetos existentes para resolver impasses em nossos objetivos iniciais. Imaginemos esta situação hipotética: quero abrir um coco para beber sua água; para isso, eu o arremesso repetidamente contra o chão. Um impasse sobrevém: o coco se recusa a quebrar, ou então se quebra mas seu conteúdo se espalha por todos os lados. De toda forma, uma crise se instala e me vejo incapaz de atingir meu objetivo inicial apenas com minhas próprias mãos, com meus próprios subprogramas. Sou obrigado, então, a desviar momentaneamente de meu objetivo principal, eventualmente chegando, “seja

por insight ou eureca ou por tentativa e erro”98, a um segundo agente com capacidades e subprogramas próprios, com o qual me associarei para abrir o coco, e que mediará meu objetivo: suponhamos, portanto, que encontro (ou invento algo como) uma faca. A associação entre esses dois agentes produz um terceiro agente, um híbrido entre o eu e a faca, com subprogramas e propriedades emergentes que não existiam individualmente em nenhum dos agentes anteriores: um agente composto capaz de abrir o coco e beber sua água.

Mas aqui poderíamos nos perguntar se essa nossa hipótese, em primeiro lugar, faz algum sentido. Será que eu teria, antes de mais nada, sequer desejado beber a água do coco antes que eu dispusesse dos “meios” para obtê-la? Penso que estaríamos igualmente corretos ao dizer que quem deseja o coco não é nem o ser humano (agente 1), nem a faca (agente 2), mas o terceiro agente, o híbrido entre humano e não-humano que é capaz de abrir cocos. De forma que o desejo de coco ou, digamos, a “cultura do coco” não é uma vontade, uma tendência, um subprograma humano, mas uma propriedade emergente, inventada, composta. A “cultura do coco” é uma consequência da tecnologia de abrir cocos: ela só emerge a partir do momento em que existem agentes híbridos, compostos por humanos e não-humanos, que são capazes – e por isso desejam – abrir cocos. Agentes que querem porque podem, e não que podem porque querem.

Essa hipótese descreve aquilo que Latour chamou de “translação de objetivos”, ou de composição, designando todo um conjunto de novas possibilidades, objetivos e conquistas (culturais, tecnológicas, científicas, filosóficas) que emergem não de uma vontade humana a priori, mas da associação (muitas vezes acidental) entre seres humanos, não-humanos e seus meios de atuação. A atribuição de um ator para o papel de principal impulsionador do movimento de forma alguma enfraquece a necessidade de uma composição de forças para explicar a ação. É por engano ou por desonestidade que nossas manchetes anunciam ‘Homem voa’, ou ‘Mulher vai ao espaço’. Voar é uma propriedade de toda uma associação que envolve aeroportos e aviões, plataformas de lançamento e balcões de ingresso. Os [aviões de guerra] B-52 não voam, a Força Aérea dos EUA voa. A ação não é simplesmente uma propriedade dos humanos, mas de uma associação de actantes, e esse é o segundo sentido da mediação técnica99 O segundo sentido da mediação está, portanto, na ideia de “composição”: os objetos técnicos não surgem para “mediar” (no sentido dos meios para certos fins) nossos objetivos; na verdade, nossos objetivos só podem existir porque são resultados de uma composição entre nós e eles. Os exemplos anteriores descrevem, portanto, uma relação dialética de onde emerge uma síntese “positiva” entre humanos e não-humanos, no sentido de um terceiro agente que surge, conciliando

98. Latour, B. (1999), p. 191

99. Ibid., p. 182. O termo “actante”, ou “ator”, é central para a Teoria Ator-Rede de Bruno Latour, e serve para designar, indiferenciadamente, todos os agentes humanos e não-humanos que se associam em rede no que ele chamou de coletivo (termo que substitui as noções opostas de “sociedade” e “natureza” por uma rede de associações entre humanos e não-humanos). O actante não é definido pelo que ele é, pelo que ele diz ou acredita ser, mas “pelo que ele faz – sua performance” (p. 303). T.M.

 Diagrama explicativo do fenômeno da mediação técnica, Bruno Latour

100. Harvey, P. et. al. (2017), p. 11. T.M. as propriedades dos dois agentes anteriores, para sanar um estado de crise e criar novas possibilidades de ação. Mas isso não quer dizer que toda mediação técnica seja, por natureza, “positiva”. Na verdade, o esquema da mediação proposto por Latour nos diz que a sequência crise > composição funciona também no sentido contrário. Trata-se do caso em que o funcionamento dos objetos e sistemas técnicos (enquanto composições entre humanos e não-humanos) é menos o resultado ou a solução para um problema prévio do que a própria origem de um impasse, de uma crise, de desvios e resultados inesperados. É talvez esse sentido que mais nos interesse aqui, e que mais nos aproxime dos objetivos deste trabalho. Em relação às infraestruturas urbanas, por exemplo, já mencionamos que elas estão sempre – como promessas – falhando. Segundo Harvey et. al., ainda que, “em razão de sua escala e escopo, [elas] sejam frequentemente retratadas como coisas colossais e difi cilmente modifi cáveis”, a crise infraestrutural parece ainda assim ser um comportamento constante desses sistemas. Isso se deveria ao fato de as infraestruturas serem “constelações emergentes, e muitas vezes instáveis, de entidades heterogêneas”100. Infraestruturas são exemplos claros de associações complexas entre seres humanos e objetos técnicos que, por mais que possam ter sido concebidas para resolver certos problemas, frequentemente dão origem a novas complicações.

101. Ibid., p. 8

102. Não espanta que João Dória, o sucessor de Haddad, tenha sido eleito em 2016, em primeiro turno, com o slogan “Acelera SP”; e que uma de suas principais promessas de campanha fosse, precisamente, o aumento dos limites de velocidade nas vias arteriais – o que ele de fato cumpriu no primeiro mês de sua gestão. ← Alagamento no Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo, 1967. Cidades alagam ou sofrem blecautes (...). As infraestruturas digitais, que não muito tempo atrás eram vistas como arautos de uma nova era de informação aberta e cidadania esclarecida, nos trouxeram novas formas de insegurança, terror e vigilância em escalas anteriormente inimaginadas. A dissociação entre desenvolvimento infraestrutural e a noção de progresso tem, de fato, se tornado cada vez mais evidente101 A “dissociação” a que os autores se referem é o resultado prático do funcionamento das infraestruturas: o conflito entre uma infraestrutura imaginada conforme um conjunto particular de modelos, premissas e objetivos anunciados, e aquilo que essa infraestrutura, uma vez em funcionamento, parece ela mesma nos “reportar do front”. A crise infraestrutural nos remete, por isso, a mais do que a crise em si: o que ela solicita é, também, um certo estado cognitivo emergente. Um estado de frustração que pode dar margem, por um lado, à pura e simples resignação (a emergência, por exemplo, de “sujeitos infraestruturais” resignados) ou que então pode ser capaz de reconfigurar, retroativamente, todo o conjunto de “promessas” e objetivos que originalmente mobilizavam essas infraestruturas.

Já que, em especial na realidade brasileira, não nos faltam exemplos desse fenômeno, tomemos um caso bastante recente e particularmente ilustrativo dessa tendência das infraestruturas de solicitarem, em razão das suas crises, novas “emergências” cognitivas e culturais.

Em 2015, o então prefeito da cidade de São Paulo, Fernando Haddad, determinou a redução do limite de velocidade dos automóveis, em todas as vias arteriais do município, para 50km/h. Nas vias expressas, como as marginais dos rios Pinheiros e Tietê, a velocidade máxima permitida passou a ser 70km/h, quando antes era de 90km/h. A providência se justificava pela constatação do número alarmante de acidentes fatais nas principais avenidas da cidade nos anos anteriores.

A medida – que não era nada além de razoável e necessária – provocou, no entanto, a cólera de uma parcela significativa da população e foi criticada pelos principais veículos de imprensa. Os discursos de revolta, ainda que se amparassem no argumento – altamente especulativo – de que a medida tornaria a vida rodoviária dos paulistanos (ainda) mais difícil, pareciam mesmo assim descolados da realidade. O paulistano, afinal, há muito tempo sequer conseguia trafegar no limite da velocidade permitida na capital brasileira do engarrafamento. A única explicação possível para tamanha resistência era a de que a medida parecia, de certa forma, violar diretamente algumas das premissas mais fundamentais do estatuto ideológico do cidadão paulistano médio102. Um cidadão que, além do mais, havia aprendido a conviver quase que pacificamente com os estados permanentes de crise infraestrutural da cidade: acidentes de trânsito, engarrafamentos,

enchentes e poluição eram para ele atributos naturais da paisagem da cidade.

Há algumas observações a se fazer sobre o caso relatado acima. A primeira é que o conflito deflagrado no debate público sobre a infraestrutura viária paulistana advinha, sobretudo, do reconhecimento de um estado de crise. O modo com que cidadãos, automóveis e autopistas estavam se associando – ou então, o modo com que funcionavam essas infraestruturas – estava, literalmente, matando os próprios beneficiários deste sistema. Sem falar, é claro, das crises indiretas que esse estado de coisas provocava nas infraestruturas “auxiliares” da rede viária, como os sistemas de saúde e policiamento, o corpo de bombeiros, a engenharia de tráfego, o regime tributário e o erário público de maneira geral.

Em segundo lugar, esse caso evidencia, para nós, um fenômeno relacionado ao segundo sentido da palavra “emergência”: um estado de coisas que emerge da emergência. Com isso, queremos dizer que todo um conjunto de valores, normas, representações, discursos e ideologias era reprogramado por ocasião da crise, ou então, dos resultados empíricos obtidos com a implementação e desenvolvimento das infraestruturas rodoviárias.

Por um lado, é verdade que, como vimos anteriormente, nem sempre as contingências do funcionamento dos sistemas técnicos dão origem a reconfigurações “negativas” dos paradigmas culturais. Se voltarmos no tempo, veremos que a própria cultura do automóvel (hoje chamada pejorativamente de “cultura rodoviarista”), enquanto fenômeno de apologia, pode ser lida como resultante da expansão e do funcionamento das infraestruturas rodoviárias a partir de meados do século XX. Ela surgia, por assim dizer, acidentalmente, como afloração “superestrutural” de processos “infraestruturais” – mesmo que esse “acidente” não produzisse ainda uma “crise”, mas algo a se celebrar. Um acidente que faria da cultura, por sua vez, uma força estimuladora do desenvolvimento desses sistemas infraestruturais. O fetiche do automóvel brilhante, a estética dos road movies com suas promessas de estradas sem-fim, e a celebração das grandes “obras de arte” da engenharia civil103 surgiriam todos da assimilação, pela cultura, das possibilidades abertas por esses “acidentes” infraestruturais.

Por outro lado, é também verdade que esse mesmo processo de desenvolvimento das infraestruturas rodoviárias daria origem, ao longo de décadas de funcionamento e expansão, a sucessivas outras “emergências” cada vez mais alarmantes e consequenciais. De modo que as promessas e os monumentos da “cultura rodoviarista” passaram a ser progressivamente questionados em razão dos resultados empíricos de seus modelos. É nesse contexto que identificamos a crise da cultura rodoviarista das últimas décadas, da qual o nosso exemplo do

103. No vocabulário tradicional da engenharia civil brasileira, as grandes obras de infraestrutura (sobretudo as viárias, como pontes, viadutos e túneis) são, muito convenientemente, chamadas de Obras de Arte Especiais (OE)

→ Próx. página: 1. Congestionamento na Av. São Luís, centro de São Paulo, 1972; 2. Estátua do bandeirante Borba Gato em chamas após protesto contra o governo Bolsonaro na zona sul de São Paulo, julho de 2021 debate sobre os limites de velocidade (e, num nível mais profundo, sobre o estatuto da “velocidade” em si) é um sintoma.

Aqui, a promessa era expressamente quebrada, e seus monumentos se tornavam obsoletos. As premissas e os objetivos mais básicos do humanismo “liberal-rodoviarista” (em seu culto ao desimpedimento, à velocidade, à instantaneidade e à livre circulação de pessoas, bens e ideias) havia produzido sistemas técnicos que, quando postos em funcionamento, revelavam-se contraditórios e mesmo impeditivos para o cumprimento de seus modelos ideológicos iniciais – quando muito, elas funcionavam sob um altíssimo custo humano e material.

Esse é o sentido da “reprogramação”, ou da “translação de objetivos” que tem dado origem, ao redor do mundo, a novas políticas de regulamentação e incentivo do transporte urbano. Uma discussão que tem sido mobilizada, para além dos cálculos eleitorais e orçamentários, por tendências mais profundas de reavaliação da condição urbana e, no limite, do próprio “humanismo” que essas infraestruturas monumentalizam. Quem são esses sujeitos infraestruturais que emergem dos sistemas rodoviários e se deslocam a 90 km/h? Seriam eles sequer “humanos”, no sentido de um modelo com o qual nos comprometemos originalmente? Em que medida essas subjetividades foram prometidas ou planejadas por nossos modelos culturais, e em que medida elas são “acidentais”? Qual é o estatuto monumental dessas subjetividades – elas comemoram a velocidade ou lamentam o engarrafamento? Que tipo de emergência produz seus modos de pensar a si próprias, a coletividade à qual pertencem, seus lugares na história? E, por fim, quais são os novos monumentos que estamos dispostos a criar, em face da possível constatação de que os antigos se revelaram insustentáveis?

104. A ideia de “contra-monumento” foi conceitualizada por James E. Young em alusão a uma obra de escultura de 1986 intitulada Gegendenkmal (literalmente “contramonumento”), de Jochen e Esther Gerz, encomendada pelo município de Hamburgo como um monumento contra o fascismo. Em uma tentativa de se distanciarem das Tentemos, à luz de tudo o que discutimos até agora, concluir alguns problemas que deixamos, até agora, no ar. Em primeiro lugar, o que quisemos dizer, no início desta seção, com a ideia de um “monumento acidental”? Como o próprio termo sugere, trata-se do fenômeno inverso – ou melhor, a contraparte – do monumento intencional. É claro que, diante disso, nos perguntamos: qual seria o inverso da construção de monumentos? A não-construção de monumentos? A construção de não-monumentos? Ou, então, a produção daquilo que vem sendo chamado de “contra-monumentos”104?

Ora, as questões do fracasso ou da contradição que a ideia de um “monumento acidental” sugere não nos soa de todo estranha. Nas últimas décadas, dos estudos decoloniais ao ativismo urbano, tanto a

ideia de “monumento” quanto os monumentos em si têm sido alvos de diversos procedimentos de contestação, revisão ou mesmo destruição.

Em um artigo para a Folha de S. Paulo, Giselle Beiguelman observou que a tendência geral desses movimentos anti-, não- e contra-monumentais pode ser situada num esquema cultural mais amplo, em que se busca confrontar “a história oficial encarnada em monumentos que enunciam, entre dedos em riste, espadas, cavalos e homens brancos fardados, a presença das forças sociais que os ergueram”105. Os exemplos vão desde a pura e simples destruição de monumentos (o “derrubacionismo”) às estratégias não-destrutivas como a intervenção in loco ou o deslocamento desses objetos para espaços museológicos, em algo como um enxerto crítico. Em muitos desses casos, podemos dizer que a contestação não se limita apenas às mensagens específicas veiculadas por esses monumentos (como a memória de um ditador ou uma ideia de “progresso”), mas se estende à própria ideia de “monumento”. O monumento, como escreveu Françoise Choay, (...) é uma defesa contra o trauma da existência, um dispositivo de segurança. Desafio à entropia, à ação dissolvente que o tempo exerce sobre todas as coisas naturais e artificiais, o monumento procura apaziguar a angústia da morte e da aniquilação106 O monumento, nesta acepção, é uma negação do tempo, das transformações inevitáveis que a história impõe à condição humana. Ele conserva à força certas premissas (e promessas) contra as eventualidades acidentais da história que têm o poder de frustrá-las por completo. O monumento decreta guerra ao tempo, ao acidente. Ele só pode, por isso, ser um dispositivo de violência: por mais nobres que sejam suas intenções, e por mais “humano” que seja o ato de rememorar, o monumento é ainda assim um objeto essencialmente reacionário. Ele não admite a insurreição, seja a do tempo ou daqueles sobre os quais ele impõe a sua versão pétrea da história. O monumento tradicional (ou “ideológico”) existe na dominação dos modelos do real sobre a realidade em si. Aquilo que foi chamado de “contra-monumento”, por outro lado, busca contestar essa mesma relação entre o monumento tradicional e o tempo que ele tenta, em vão, estancar. Nas palavras de James E. Young, (...) a real consequência da rigidez intransigente dos memoriais (...) é também a sua morte no tempo: uma imagem fixa criada em um certo tempo e transferida para um novo tempo subitamente nos parece, em geral, arcaica, estranha ou irrelevante. (...) O tempo zomba da rigidez dos monumentos, da reivindicação presunçosa de que, em sua materialidade, um monumento pode ser considerado eternamente verdadeiro, como uma estrela fixa na constelação da memória coletiva107

tradicionais premissas e formas assumidas pelos monumentos tradicionais (e do papel que eles ocuparam sob o regime nazista) os artistas propuseram um monumento “autoevanescente” que, ao invés de perpetuar uma memória, a delegaria aos próprios cidadãos e então desapareceria. Eles construíram um obelisco e propuseram à população que escrevessem seus nomes sobre ele para que, assim, se comprometessem a “permanecer vigilantes”. À medida em que a superfície da escultura se preenchesse, ela se afundaria gradualmente no solo, até que sumisse por completo. Ver: James E. Young, “The Counter-Monument: Memory Against Itself in Germany Today”, in: Critical Inquiry, vol. 18 (Chicago: University of Chicago Press, 1992). T.M. 105. Giselle Beiguelman, “Ataques a Monumentos Enunciam Desavenças pelo Direito à Memória”, in: Folha de S. Paulo. São Paulo, 12 de junho de 2020. 106. Choay, F. (2014), p. 18

107. James E. Young, “The Counter-Monument: Memory Against Itself in Germany Today”, in: Critical Inquiry, vol. 18 (Chicago: University of Chicago Press, 1992), p. 294. T.M.

108. Ibid., p. 296

109. Jorge Peñuela, “El contra-monumento, concepto del año 2018”, artigo para o site Liberatorio Arte Contemporaneo, 3 janeiro de 2019. Disponível em liberatorio.org. T.M. O contra-monumento, nesse sentido, (...) busca sua satisfação no – e não em oposição ao – tempo histórico. Ele reconhece e afirma que a vida da memória existe primeiramente no tempo histórico: nas atividades que concedem existência aos monumentos, nas trocas contínuas entre as pessoas e seus marcadores históricos e, finalmente, nas ações concretas que tomamos à luz de um passado memorializado108 Trata-se de uma estratégia cultural que admite o acidente, a crise e a contingência com os quais o monumento tradicional se recusa a engajar. Aquilo que o contra-monumento enuncia não é uma memória particular, mas os próprios processos pelos quais essa memória é construída, conservada ou contestada. Seu objeto de enunciação, portanto, é menos a história em si do que a ideia de história; o contra-monumento é um monumento que pondera sobre si mesmo.

Mas o que queremos dizer por “monumento acidental”, embora possua similaridades com o “contra-monumento” no que diz respeito às formas monumentais que emergem de um estado de crise, é algo bastante diferente. Isso porque o contra-monumento designa, na verdade, a resposta que damos aos monumentos acidentais; são monumentos “reprogramados”, conscientes daquilo que as crises e os acidentes do tempo nos revelam sobre nossos monumentos passados. “O contra-monumento”, nas palavras de Jorge Peñuela, “é uma estratégia cultural onde as mentiras do poder são postas em evidência”109 . O nosso “monumento acidental”, por outro lado, não pode ser traçado a nenhum paradigma cultural ou suporte comunicacional específico. Pelo contrário, ela permeia todas as formas que podemos dizer que carregam desígnios “monumentais”, seja na arquitetura, na literatura, na ciência, na tecnologia etc.

O monumento acidental nem mesmo é um objeto, uma forma delimitável: ele é mais propriamente um estado, ou um efeito em si mesmo. Ele não é a negação intencional de um discurso, a subversão de um paradigma historiográfico ou a insurreição contra ícones decadentes, mas a condição mesma para tais práticas. Ele é o subproduto, aquilo que ricocheteia do próprio monumento: sua obsolescência, abandono e ruína; suas rachaduras, recalques e infiltrações; sua hiperventilação, superaquecimento ou congestão; mas também suas surpresas, revelações e eurecas.

O monumento acidental é aquilo que “volta” do monumento em si; que reage com o meio e retroage sobre a cultura que o programou. As reações físico-químicas, mecânicas ou psicossociais às quais um monumento (uma promessa) se submete a partir do momento em que toma forma concreta. Um discurso posto à prova. Ele existe na tensão entre o desígnio das palavras de ordem e a realidade que se configura ao invés.

A nossa ideia de “monumento acidental” designa os estados cognitivos, epistemológicos e materiais que emergem acidentalmente do funcionamento empírico de nossos modelos – ou monumentos – iniciais. A abrangência do termo corresponde à amplitude que queremos dar à ideia de “monumento”: ele pressupõe que onde há modelos, desígnios ou promessas (mas também, necessariamente, acidentes, crises e emergências), há monumentos.

A ideia de “monumento acidental” é para nós, portanto, tão ampla quanto a própria classe dos monumentos. Podemos, para dar um exemplo relativamente alheio à ideia de “monumento”, projetá-la sobre a história da construção dos fatos científicos. Quando o modelo geocêntrico da Terra (e seus paradigmas epistemológicos correspondentes) foi posto em crise sob o próprio regime científico e social que ele havia posto em funcionamento, podemos dizer que toda uma estrutura monumental ruía por efeito de sua operação. Tratava-se, em outras palavras, de uma espécie de “acidente monumental” – ou então, como vimos anteriormente, daquilo que Bratton nomeou como “revolução copernicana”.

Podemos, por fim, dizer que o monumento acidental é também um exercício analítico que nos permite observar, à maneira das “revoluções copernicanas”, as crises e indeterminações a que estão sujeitos os modelos antropocêntricos, uma vez aplicados.

Mas quais as implicações desses problemas para o contexto geral deste trabalho? Quando falamos de arquitetura ou de cidades, e especialmente em relação aos desafios que a ubiquidade e autonomia dos sistemas “técnicos” impõem aos arquitetos e planejadores, penso que a ideia de um “monumento acidental” pode ser bastante produtiva. Podemos pensá-la, nesse caso, a partir do “monumento infraestrutural” que expusemos há pouco: o fenômeno pelo qual os desígnios monumentais da arquitetura e do planejamento urbano são frustrados pelos próprios meios que pareciam antes servir aos seus propósitos.

Se o século XX foi marcado pela fertilidade com a qual arquitetos e urbanistas falavam sobre o futuro das cidades, pelas promessas que permeavam seus discursos e projetos, e pelas possibilidades abertas para o planejamento pelo “progresso tecnológico” e seus novos instrumentos, nas últimas décadas essa tendência parece ter se alterado substancialmente. A era dos desígnios “monumentais” do planejamento parece ter dado lugar a um amargo consenso, sob cuja paralisia vivemos até hoje, de que alguma coisa tomou o lugar da arquitetura e do urbanismo.

110. Easterling, K. (2014), p. 16. TM.

As transformações ocorridas nos próprios gêneros do discurso acadêmico e profissional parecem, hoje, dar prova disso. Onde antes eles pulsavam com as escritas “operativas”, os manifestos, panfletos e as campanhas, eles hoje parecem tomados por erratas, sermões, caricaturas ou então pelo silêncio apático de quem se recolhe por frustração ou cansaço.

Em meio às sucessivas crises enfrentadas pelas cidades no último século (como emergências climáticas, habitacionais, econômicas e infraestruturais), o próprio estatuto ideológico do “progresso” – um conceito antes balizador das tendências monumentais do urbanismo moderno – passou a designar menos um futuro desejado do que um futuro a ser, a todo custo, evitado.

Um diagnóstico destes discursos certamente nos revelará que todos os principais entraves e “fins de linha” encontrados pela produção arquitetônica e urbanística contemporânea estão relacionados, em alguma medida, aos problemas suscitados por aquilo que Keller Easterling chamou de espaço infraestrutural. Uma condição urbana gerada por uma complexa matriz de protocolos, padrões e sistemas técnicos/informacionais, cujo domínio escapa não apenas aos arquitetos e urbanistas, mas a todas as esferas institucionais e disciplinares que cultivam alguma forma de “planejamento”, inclusive as de Estado.

O espaço infraestrutural de Easterling evidencia a completa ruína dos modelos instrumentais pelos os quais os planejadores tradicionalmente pensaram o espaço urbano, e a falência da ideia de que a “mediação” infraestrutural responderia às funções designadas pela cultura. Ele é o produto da “desconexão entre as histórias e promessas associadas à tecnologia e aquilo que o espaço urbano está efetivamente fazendo”110 .

O conceito de “espaço infraestrutural” não descreve um fenômeno necessariamente novo. Koolhaas, para citar um dos exemplos mais recentes, descreveu em 2006 o “espaço-lixo” [junkspace]: um espaço urbano saturado pelas parafernálias residuais – ou acidentais – da “marcha moderna”, em meio ao qual o legado monumental da arquitetura “propriamente dita” parece irrisório: A arquitetura desapareceu no século XX; temos estado a ler uma nota de roda de pé de página com um microscópio, na esperança que se transforme num romance; a nossa preocupação com as massas nos impediu de ver a Arquitetura do Povo. O espaço-lixo parece uma aberração, mas é a essência, o principal... o produto de um encontro entre a escada rolante e o ar condicionado (...). A continuidade é a essência do espaço-lixo; este aproveita qualquer invento que permita a expansão, revela uma infraestrutura ininterrupta: escadas rolantes, ar condicionado, aspersores, portas

corta-fogo, cortinas de ar quente... É sempre interior e tão extenso que raramente se vislumbram limites111 Poderíamos dizer que a cidade, para Koolhaas, se tornou um imenso um monumento infraestrutural: um espaço inteiramente acidental, emergente, e insubordinado aos modelos culturais – arquitetônicos, urbanísticos, filosóficos – que o puseram em funcionamento. Um espaço com propriedades monumentais (estéticas e cognitivas) próprias, e que produz sujeitos igualmente acidentais: neste caso, identidades completamente privadas de qualquer senso de orientação histórica (“o espaço-lixo é pós-existencial: faz-nos não ter certeza do lugar que estamos, oculta para onde vamos e anula o lugar onde estávamos”)112 .

Mas se a preocupação de Koolhaas é principalmente descritiva dos efeitos cognitivos, estéticos e culturais do “espaço-lixo”, Easterling propõe uma análise aprofundada sobre a rede de agentes, parâmetros e instituições da qual o “espaço infraestrutural” é o produto – ou melhor, subproduto. Para ela, essa urbanidade residual é a expressão espacial do que ela chamou de “extraestadismo” (extrastatecraft): um paradigma de governança globalmente distribuída que opera dissociado dos tradicionais mecanismos de planejamento, legislação e regulamentação de Estado, e que se estende para além de fronteiras de soberania. O extraestadismo produz suas próprias formas urbanas, entre as quais as Zonas Especiais – termo amplo que designa enclaves urbanos “excepcionais” destinados à otimização do comércio global, e incentivados por isenções fiscais, desregulamentação trabalhista e ambiental, e amplo acesso à infraestrutura – são o exemplo mais paradigmático.

Mas ainda que a zona especial – e suas iterações contemporâneas, como o campus corporativo e a Smart City – tenha se tornado, graças a intensas campanhas de marketing, um verdadeiro modelo de “cidade ideal”, os atributos espaciais dessa nova urbanidade são inteiramente secundários, e frequentemente resultam de fórmulas espaciais repetíveis ao redor do mundo. Essas cidades, mesmo quando erguidas do zero, não são mais objetos de planejamento: elas são muito mais os efeitos colaterais de uma composição heterogênea de forças e interesses globais que operam, desimpedidamente, alheios às suas consequências urbanas e sociais. Enquanto o espaço pode ser imensamente consequencial nesses empreendimentos infraestruturais, a iniciativa privada e outras forças do extraestadismo [extrastatecraft] frequentemente falam em outros idiomas técnicos. Os analistas da indústria financeira formatam a paisagem habitacional, os mercados de carbono regulam as paisagens florestais, (...) e a ISO [Organização Internacional de Padronização] dita o jargão administrativo. Apesar de sua relativa durabilidade, o espaço infraestrutural é

111. Rem Koolhaas, “Espaço-lixo”. In: Três Textos sobre a Cidade (São Paulo: Gustavo Gili, 2014), pp. 41-2 112. Ibid., p. 52

 Empreendimento residencial da incorporadora Gafisa em Barueri, no Estado de São Paulo → Vista 3D do Google Earth do Distrito Internacional de Negócios de Songdo (Songdo IBD), uma 'cidade inteligente' construída na Coréia do Sul e inaugurada em 2015.

frequentemente tratado como um subproduto de mercados e jogos políticos mais voláteis. Quem está tratando o espaço em si como informação? Quem está escrevendo os softwares ou protocolos nos quais as variáveis espaciais assumem a dianteira?113 Uma outra consequência do extraestadismo para a formação das cidades é aquilo que alguns autores têm se referido como um efeito de “fragmentação” [splintering] dos sistemas infraestruturais que compõem o espaço urbano114. Se, durante o século XX, a implementação e a administração de infraestruturas urbanas eram atribuições centralizadas de Estado, hoje essa autoridade se encontra progressivamente dissolvida “entre muitos donos e regimes de propriedade diferentes”115 do extraestadismo. Somando-se isso à tendência globalizante desses regimes, incentivada pela permissividade dos governos neoliberais, o resultado é uma paisagem urbana cada vez mais modulada por agentes privados e organizações transnacionais que, presentes simultaneamente em todo lugar e em nenhum em particular, abdicam de qualquer compromisso com os efeitos urbanos de seus empreendimentos.

Longe de ser um efeito positivo das tão celebradas políticas de “descentralização” (leia-se, privatização, financeirização e globalização) da gestão urbana, a fragmentação do espaço infraestrutural produz “um conjunto emergente de complicações que não são significativamente atenuadas por esforços dispersos de regulamentação, monitoramento e controle”116. De um lado, podemos dizer que essas dinâmicas estão estreitamente ligadas à emergência das tão faladas “cidades informais” e “cidadãos invisíveis”, produtos de uma distribuição desigual e desregulamentada do acesso à infraestrutura, e da substituição das lógicas de planejamento pelas lógicas espontâneas de mercado. Por outro lado, essa mesma “fragmentação” de um espaço infraestrutural delegado a uma miríade de agentes, instituições e interesses particulares produz um fenômeno de crescente de complicação e indeterminação. O resultado, como escreveram Harvey et. al, é a impossibilidade de se determinar “a extensão pela qual aqueles que estão no poder são capazes de prever, para não dizer controlar, transformações infraestruturais. A relação imprevisível entre intenção política e resultados infraestruturais são mais uma consequência da complicação”117 . Do ponto de vista da complicação, as infraestruturas são moldadas por inúmeros agentes, com interesses e capacidades concorrentes, e envolvidos em um número indefinido de interações ao longo de um período estendido de tempo. As características das infraestruturas emergem dessas interações, fazendo com que seja

113. Easterling, K. (2014), p. 16. T.M.

114. O termo splintering urbanism [algo como “urbanismo fragmentário”] é de Stephen Graham e Simon Marvin, autores de livro homônimo (Routledge, 2001). O conceito também é discutido na introdução de Harvey et. al (2017). 115. Harvey, P. et. al. (2017), p. 9. T.M.

116. Ibid., loc. cit. 117. Ibid., p. 10

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