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Discurso histórico

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Imago Mundi

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apenas a partir da ideia de um sistema descentralizado e reativo a inúmeras forças sociais. Em outras palavras, é preciso devolver o um aos muitos.

Não há, por isso, um único agente capaz de centralizar uma produção de mundo. Isso se deve ao fato de que os instrumentos que envolvem a cosmografia são sempre compartilhados: é o caso da linguagem, mas também de todos os outros sistemas simbólicos. Qualquer agente em posse de uma linguagem será capaz de nomear, delimitar e reorganizar um mundo, e o sucesso de seu empreendimento se dará em função da aderência de seu discurso num meio social. Deve-se, por isso, entender o cosmograma como um evento inserido em uma cosmografia compartilhada e em constante movimento, onde a quantidade de mundos será proporcional à quantidade de agentes dispostos a nomear a realidade; ou à quantidade de imagens-de-mundo que circulam num meio social. Sobre isso, Tresch escreveu: Em um dado espaço e tempo, múltiplos cosmogramas estarão em circulação em espaços públicos e compartilhados. Nós fazemos noção do ‘lugar cósmico’ de uma entidade, seu lugar na coreografia de contextos de uma cultura, ao triangulá-la a partir de múltiplos cosmogramas contemporâneos. Isso nos permite uma interpretação determinada, mas não definitiva, na medida em que a entidade será revelada diferentemente de acordo com os mapas sobre os quais ela é colocada. Além do mais, porque são concretos e públicos, cosmogramas são eles mesmos continuamente expostos a contestações, adições, rasuras e substituições28 Se identificamos, no ensaio anterior sobre Brasília, uma manifestação particularmente excepcional dessa cosmografia, indicando como uma noção aparentemente total da realidade brasileira parecia irradiar de uma única imagem-de-mundo, seria apenas para esboçar, de forma mais ou menos simples, um ponto de partida para o que chamamos de “cosmograma”. Sabemos, é claro, que após tantas décadas de sua fundação, não podemos hoje permitir que qualquer observação sobre a “capital da esperança” se deixe amparar cegamente em sua – hoje contestável – centralidade na “cosmovisão” brasileira. Sabemos que, assim como o discurso de uma arquitetura moderna nacional, tanto a noção que fazemos de Brasília quanto a imagem real da cidade tal qual ela se encontra hoje , deformaram-se completamente ao longo da história: evidência de que não há um único cosmograma, mas muitos outros planos, ou imagens-de-mundo, a circular e produzir a realidade brasileira de forma contínua, contraditória e acidental.

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Feitas as devidas ressalvas, e com a consciência de que isso que chamamos de “produção de mundo” não é nunca uma atividade centralizada ou um privilégio de um único agente, quero argumentar que a arquitetura, enquanto uma atividade particular de discurso, está

28. Tresch, J. (2007), p. 93. T.M. Aqui, Tresch utiliza o conceito de “mapa” de modo distinto do que desenvolvemos há pouco, partindo do vocabulário deleuze-guattariano. Para ele, tem-se que mapa = cosmograma.

sempre envolvida, em maior ou menor escala, na produção de cosmogramas – representação e produção de mundos. O lugar hierárquico da produção arquitetônica nos “sistemas cosmográficos” que organizam um meio social variará, é claro, em função do escopo de seu discurso (se, por exemplo, ela deseja fundar nações, cidades ou apartamentos) e da permanência ou degradação desse discurso no tempo. Mas a estrutura da arquitetura, enquanto atividade simultaneamente representacional e produtiva, e sua autoridade para conceber modelos da realidade, permanecerá essencialmente a mesma.

Em outras palavras, o princípio cosmográfico que há pouco identificamos em Brasília é também observável, em diversos graus, em todo evento arquitetônico. Se admitimos que o trabalho da arquitetura, enquanto a operação de tudo aquilo que envolve a “linguagem arquitetônica”, é uma atividade representacional que tem por objetivo organizar e fazer surgir “mundos”, então ela está inevitavelmente atada, em diferentes escalas, ao cosmograma.

Falamos, portanto, das diversas “cosmologias” nomeadas pelo discurso da arquitetura em todas aquelas coisas que ela produz: aqueles textos e objetos referenciais que configuram, na interface que fazemos com eles, um modo de “estar-no-mundo”. Percebamos ou não, conceitos como diagrama ou projeto arquitetônico, tão familiares à disciplina, representam modos de inscrição cosmográfica: quer falemos de uma simples planta-tipo ou de um plano geral de urbanização, de qualquer forma estaremos nos referindo ao esforço de nomear ou rearranjar um conjunto histórico de objetos, práticas e epistemologias sob a ordem de um único modelo do real.

Há, ainda uma outra forma de pensarmos a arquitetura como uma espécie de cosmografia; uma que permaneceu relativamente isolada até o momento, mas que introduzirá o problema central das próximas páginas deste trabalho. Pois bem: dissemos, até agora, que o projeto de arquitetura é uma espécie de cosmograma porque funciona como um instrumento de ordenação do real. Por um lado, ele é imagem-de-mundo: inscreve, delimita, representa, materializa. Por outro lado, é dispositivo: antecipa, deseja, prescreve e produz. Dissemos, além disso, que essas duas esferas do cosmograma compõem um estatuto, um “conjunto possível”, que revela a ambiguidade entre o ato de representar e o de produzir o real. Mas essa descrição permanece incompleta se não consideramos um terceiro componente dessa análise, e que compreende uma parte essencial disso que até agora temos chamado de “mundo” ou “cosmos”: a história. O cosmograma,

enquanto representação de um conjunto possível, está sempre voltado para a história.

Pois o que é o “possível” se não, também, um conhecimento histórico, herdado? Se dizemos que aqui há um mundo, e que esse mundo é povoado por tais criaturas e por tais objetos, que ele deve ser dividido sob essas ou aquelas categorias, e que as relações entre os elementos desse mundo são explicáveis por certas regras fundamentais, sejam elas herdadas, deduzidas ou intuídas, então estamos delineando uma imagem historicamente constituída desse mundo.

Todo cosmograma é, para além de uma imagem-de-mundo, um atestado histórico: ele co-memora, codifica e reconfigura tudo aquilo que se sabe por conhecimento de causa, tudo aquilo o que já foi visto e experienciado e que compõe um repertório cosmológico. Isso significa que qualquer relação epistemológica com o mundo, e qualquer atitude que tomamos conforme esse conhecimento, implica necessariamente uma relação com a história. E isso equivale a dizer que a arquitetura, tal qual o cosmograma, e enquanto discurso sobre o real, é também um discurso sobre a história.

Discurso histórico

Para tentarmos, mais uma vez, extrair do conceito de cosmograma algo que nos possa ser útil para o exame da arquitetura, desta vez sob o ponto de vista da história, talvez seja interessante recorrer a uma terminologia mais familiar.

Em outras palavras: muitos dos problemas colocados em nossa discussão sobre o cosmograma podem ser transpostos, para o vocabulário arquitetônico, pela a ideia de monumento. Isso porque, embora trate-se de conceitos tradicionalmente alocados em diferentes áreas de estudo, o cosmograma e o monumento partilham de um esquema fundamental similar.

Em primeiro lugar, porque ambos são o que identificamos há pouco como suportes de discurso: são artefatos caracteristicamente comunicacionais, veículos de intenção e autoridade epistêmica. Segundo, porque esse discurso tem sempre por objeto de enunciação (ainda que indiretamente) a história. Isto é, cosmogramas e monumentos não são simplesmente suportes de discurso, como também suportes de memória. Quando, há pouco, nos referimos ao discurso histórico, foi para delinear como isso que chamamos de “monumento” reúne essas duas formas de suporte. Assim, tudo aquilo que designaremos por monumental implicará essa capacidade bivalente de rememorar e produzir: o monumento é um discurso sobre a história.

Por isso não faremos, a princípio, nenhuma distinção entre o monumento e qualquer outra forma de registro simbólico da história, seja um cosmograma ou um texto historiográfico. Por mais que estejamos

29. O monumento “volível” (gewolt) descreve, em Riegl, uma obra planejada e executada, desde o início, segundo uma função memorial, e com o objetivo de “nunca deixar (...) que um momento faça parte do passado, permitindo que permaneça na consciência das gerações futuras, sempre presente e vivo”. Essa classe de monumentos, a mais antiga de todas, nos interessará especialmente por sua natureza fundamentalmente discursiva, e pela sua identificação com a atividade arquitetônica. Ver: Alois Riegl, O Culto Moderno dos Monumentos (São Paulo: Perspectiva, 2014), p. 63 acostumados a associar, de um lado, a produção de monumentos à tridimensionalidade do fato arquitetônico, e por outro, a manipulação de símbolos ao espaço bidimensional da escritura e do desenho, vimos que essa diferença se mostrara cada vez mais difícil de sustentar. Isso porque, independentemente da materialidade de seus suportes, ambos os processos podem ser resumidos a uma mesma operação, a saber, o registro de um enunciado histórico: a partir daí, o território comum entre a “linguagem textual” e a “linguagem arquitetônica” se mostrará fundamental para a compreensão do monumento.

Mas desde já, é bom que fique claro que, da multitude de objetos que conhecemos por “monumentos”, estaremos nos referindo primeiramente àqueles que são concebidos de forma intencional, ou ao que Alois Riegl chamou de “monumentos volíveis”29: aquela classe de monumentos conscientes daquilo que enunciam sobre a história. Veremos mais adiante que a ideia de monumento pode se estender a muitos tipos de suportes de memória, muitas formas onde a história se faz experienciar, mas que nem sempre estão sujeitas ao que entendemos por “discurso”. Se queremos, entretanto, sustentar nesse momento a correlação entre o cosmograma e o monumento, devemos compreendê-los enquanto artefatos originados de uma intenção simbólica: não apenas depositários de memória, mas igualmente seus ativos mediadores.

Como vimos anteriormente, a diferença entre o “cosmograma” e o que John Tresch chamou de “coisa cósmica” é que, enquanto o primeiro tem o cosmos em si como objeto, o segundo pode apenas revelá-lo sob interrogatório: de qualquer coisa cósmica podemos mapear, retroativamente, seu significado cosmológico, mas apenas o cosmograma é capaz de nomear, por si só, uma cosmologia; ele é o próprio instrumento dessa cartografia. O mesmo se sustenta, em relação à história, na distinção entre monumentos intencionais e não-intencionais. Diferentemente daquelas formas tornadas monumento por sua persistência no tempo, por contingência histórica ou por deliberação coletiva, o monumento intencional nasce, desde o princípio, consciente de si e do significado que faz da história: sob sua tutela, a história surge como um enunciado inteiriço e lapidado. Não há contradições ou suturas nesse tipo de monumento; pelo contrário, ele é íntegro como um manifesto ideológico. Aparece para nós de forma perfeitamente apropriada, contínuo ao tempo, correto no espaço. O monumento intencional é planejado: deve ser coeso, bem articulado e possuir a soberba daquele historiador que, em posse da autoridade dos fatos, nos revela a história como ele bem deseja.

Se no começo deste ensaio, ao expormos o termo “linguagem arquitetônica” ao que ele próprio sugere, isto é, à linguagem, nos foi possível identificar a arquitetura como uma forma de discurso, então a ideia de monumento, no que interessa a essa mesma linguagem

arquitetônica, nos permitirá verificar a incidência desse potencial discursivo sobre a história. Ou então: os modos pelos quais o discurso monumental toma de assalto a história.

O monumento de que falamos pode ser, diante disso, resumido ao seguinte: uma historiografia. Assim, o projetista envolvido na concepção de um monumento disporá de muitos instrumentos em comum com o historiador e com todos aqueles agentes que procuram, cada um a seu modo, entrar na história. Isto é, ele tentará de todos os modos fazer com que o produto de seu trabalho se acomode perfeitamente numa cronologia histórica; que apareça para o público como se feito à imagem de seu tempo; que em nome da “objetividade” oculte a divisa entre história escrita e história vivida, discurso e realidade.

Manfredo Tafuri, de certa forma, sugeriu isso em 1968 ao descrever esse híbrido entre historiografia e arquitetura que chamou de escrita operativa, e que resumiu como o “esforço de atualizar a história, de a tornar dúctil instrumento para a ação”30. Em outras palavras, sob essa forma de escrita (ora historiografia, ora crítica, ora teoria, ou todas simultaneamente), que podemos também nomear como monumental, a história adquire valor instrumental: Nesta acepção, a crítica operativa representa o ponto de encontro entre a história e a projetação. Assim, pode dizer-se que a crítica operativa projeta a história passada projetando-a em direção ao futuro: a sua verificabilidade não reside em abstrações de princípio, mas avalia-se, de caso para caso, com os resultados que obtém. O seu horizonte teórico é a tradição pragmatista e instrumentalista. Pode-se ainda acrescentar que esse tipo de crítica, antecipando as vias da ação, força a história: força a história passada, dado que, ao investi-la de uma forte carga ideológica, não está disposta a aceitar os fracassos e as dispersões de que a história está impregnada; força o futuro, dado que não se contenta com registrar os acontecimentos, mas leva a soluções e problemas ainda por abordar (pelo menos, explicitamente). Para com a história passada, a sua atitude será, portanto, de contestação; para com o futuro, concretizar-se-á em profecias31 Tafuri sustenta que, a partir do Renascimento, uma nova historiografia humanista se desenvolvia em torno do que, pela primeira vez, seria identificável como uma atitude programática. No contexto das artes, e sobretudo da arquitetura, isso significava que o conhecimento histórico se disponibilizava agora à condição de meio para certos fins, adquirindo valor em função daquilo que ela permitiria produzir: em outras palavras, a história se deslocava para o contexto dos meios de produção. Com isso, o que hoje conhecemos como historiografia, crítica ou teoria da arquitetura passavam, elas mesmas, a ter algo de projeto, de construção arquitetônica.

No centro desse movimento, ao mesmo tempo literário e produtivo, estava em formação uma nova concepção da história. Antecipando,

30. Manfredo Tafuri, “Crítica Operativa”, in: Teorias e História da Arquitetura (Lisboa: Presença, 1979), p. 180

31. Ibid., p. 168. Datando a “historiografia operativa”, originalmente, segundo alguns teóricos renascentistas, Tafuri observa que a tradição se mantém viva e observável na cultura arquitetônica mesmo em suas experiências mais contemporâneas: ele aponta, por exemplo, para o caso dos “historiadores militantes” do movimento moderno, como Giedion e Zevi, cujos livros mais importantes eram “simultaneamente, contributos historiográficos e autênticos projetos arquitetônicos” (p. 182). Ele comenta, também, sobre a influência da historiografia operativa sobre a prática profissional dos arquitetos do racionalismo italiano, como Rossi, Canella e Aymonino (que se dedicavam igualmente à escrita), que buscavam transfigurar o estudo histórico e tipológico das cidades em “hipóteses de projetação” (p. 194)

32. Jacques Le Goff, História e Memória (Campinas: Unicamp, 1990), p. 20

33. Barthes, R. (2004), p. 169. Grifo meu

34. Le Goff, J. (1990), p. 23 talvez, as tendências do pensamento evolucionista, essa concepção “operativa” concebia a história não mais sob a rigidez de um passado a priori, mas sob uma cronologia de causalidades, sob a ideia de um vir-a-ser: aqui, a história só tem valor na medida em que se projeta à frente, iluminando o presente e especulando sobre o futuro. O que se viria a entender por história não se limitaria mais a um passado mítico atemporal, mas envolveria sobretudo a perspectiva de um arco cronológico tripartite: o passado rememorado, o presente experienciado e, por extensão, o pressuposto de um futuro por vir. É essa “materialização” da história, seu desdobramento no espaço presente e disponível da ação, que permite que ela se faça objeto do artifício, da projeção e, portanto, disso que Tafuri chamou de escrita operativa.

Podemos dizer que esse modo de escrita, fundamentalmente discursiva, envolve duas operações. Primeiro, ela se permite tomar a história como objeto, subordinando-a aos interesses e ao programa de ação de seu autor. Nesse momento, a história se maleabiliza, transforma-se em discurso: ela é posta então em uso como um utensílio, trazida ao presente e projetada no futuro – adquire uma “utilidade”. Nos termos da teoria da história, Jacques Le Goff observa, esse modo de apropriação da história foi chamado de “função social do passado”32 .

Em segundo lugar, essa forma de escrita deve como que se ausentar de seu próprio texto, pois a história deverá ser apresentada não como produto do artifício do historiador, mas como a manifestação inconteste da verdade: o texto histórico é então incorporado à paisagem natural, originária, dos fatos. Esse último processo funciona, complementarmente, como uma dissimulação do primeiro: pois o autor que recorre à autoridade do fato histórico para subsidiar um programa ideológico tenta com isso desautorizar a si mesmo, ou seja, ocultar da historiografia o seu autor e a sua natureza mediada, transferindo-a para o domínio da “objetividade”. Barthes, esboçando uma semiologia do discurso histórico, define essa reivindicação de objetividade precisamente nesses termos: a carência dos signos do enunciante. “Trata-se do caso em que o enunciador entende ‘ausentar-se’ do seu discurso e em que há, consequentemente, carência sistemática de qualquer signo que remeta ao emissor da mensagem histórica: a história parece contar-se sozinha”33 .

Essa operação de “distorção” historiográfica, que não pode de todo ser associada a um único movimento ou ideologia, percorre toda a história da ciência histórica e é considerada por Le Goff como um dos problemas seminais dessa área do conhecimento “essencialmente equívoca”. Pois ela nos sugere que, desde sempre, por trás de toda escrita sobre a história há um contexto histórico da escrita do qual o escritor em si é produto, e que, se queremos compreender o fazer histórico, devemos observar “as incidências do meio social sobre as ideias e métodos do historiador”34. Ou seja, a historiografia será,

independente do momento, um produto da relação entre a história e o sujeito/contexto histórico: ela é uma situação comunicacional que deve ser devidamente explicitada diante do risco de fazer da história um fato “dado”, mais do que construído.

Mas não é do nosso interesse nos estender detalhadamente sobre os problemas internos à historiografia, a não ser no que concerne à discussão sobre a arquitetura enquanto discurso histórico, ou seja, enquanto produtora de monumentos.

Antes, no entanto, de esboçarmos de forma mais direta o sentido disso que chamamos de “monumento”, convém nos determos em mais alguns aspectos da escrita operativa; pois, ao examiná-la, estaremos também explorando as relações entre história, linguagem, técnica e poder que nos introduzirão ao problema do monumento, e que fazem da arquitetura uma atividade essencialmente monumental. Como vimos anteriormente, a escrita operativa descrita por Tafuri surge, em todas as áreas do conhecimento, de uma noção progressivamente instrumentalista da história enquanto objeto de planejamento. Em Arquitetura, a origem e a disseminação dessa atitude possuem um contexto fundamental, em relação ao qual podemos traçar duas observações.

Em primeiro lugar, essa concepção positiva da história surge concomitantemente à constituição da Arquitetura – para além de um conjunto de “saberes práticos” ligados à edificação – enquanto disciplina, ou seja, enquanto atividade informada por um estatuto epistêmico e prescritivo. Nesse sentido, o cenário do classicismo representa uma tomada de consciência da Arquitetura em relação a si mesma, de seu passado histórico e dos instrumentos para validá-lo.

O período “clássico”, relativo à antiguidade greco-romana, que informaria conscientemente toda a produção arquitetônica a partir do Renascimento, coincidia com uma transferência institucional das competências sobre o estudo e o registro da história. Onde antes essa história, fosse transmitida oralmente ou em certos textos sagrados, era inteiramente referenciada em um passado mitológico e inviolável de custódia eclesiástica, agora ela transformava-se em objeto de estudo, exposta à verificação e contestação, e inscrita sobretudo nos espaços institucionais das “renascidas” academias do século XVII. Um passado elusivo, sustentado durante a Idade Média à imagem da arquitetura e das cidades pontificais, era então substituído, progressivamente, pelo passado clássico da arquitetura greco-romana: um passado observável, periciável e, sobretudo, reconstituível. Em resumo, há uma correlação direta entre a institucionalização da Arquitetura tal como a compreendemos até hoje – como disciplina autônoma – e o surgimento, na paisagem intelectual renascentista, de uma atitude crítica que parte de novos repertórios e modos de assimilação do passado histórico.

Em segundo lugar, deve-se observar um aspecto fundamental do surgimento dessa “operatividade” na historiografia arquitetônica  Os cinco tipos de coluna do cânone da arquitetura classicista (Toscana, Dórica, Jônica, Coríntia e Compósita), conforme ilustrados nos Cinco Livros de Arquitetura (publ. 1611), de Sebastiano Serlio

que passa ao largo das observações de Tafuri. Embora pretendesse esboçar uma cronologia da disseminação dessa operatividade na teoria das artes (cuja origem ele atribui ao gênero das biografias de artistas, escritas sobretudo por Vasari no séc. XVI e por Bellori no VII), com os primeiros indícios de uma historiografia prescritiva e ideológica, Tafuri não oferece explicações quanto às causas produtivas desse fenômeno teórico. Pelo contrário, ao desconsiderá-las, ele parece tomar como prosaico um fato de importância capital para esse desenvolvimento.

Nos referimos aqui ao surgimento, quase concomitante ao dessa historiografia operativa, dos próprios tipos de suporte sobre o qual ela repousaria: o texto e a imagem impressos. Em outras palavras, à invenção, em 1440, da imprensa móvel de Gutenberg, e a posterior consolidação do livro impresso como produto reprodutível, nos permitem dizer que a atitude “operativa” e instrumental pela qual a Arquitetura se consolida como disciplina histórica está atrelada à repentina disponibilização da história por meio da mídia impressa.

Embora fosse fundamentalmente revivalista e não estivesse atrelada a nenhuma inovação “construtiva” em termos de edificação, a emergência da arquitetura classicista era sobretudo um fato sociotécnico. Isso porque não teria sido possível à arquitetura se institucionalizar em torno dos signos da antiguidade clássica, ou de uma concepção generativa da história, não fosse o advento da mídia impressa. Como observou Mario Carpo, a doutrina do classicismo arquitetônico, baseada na imitação de modelos antigos e epitomizada nas “ordens clássicas”, não era apenas análoga ao esquema produtivo da imprensa móvel – copiar e reproduzir – mas era sobretudo um produto direto dessa revolução tecnológica. Para Carpo, a possibilidade de reprodução e difusão de textos e imagens impressos, agora capazes de re-presentar um passado até então pouco acessível e estudado, seria absolutamente central para o êxito do classicismo arquitetônico: O projeto arquitetônico renascentista é baseado na imitação, com graus variáveis de licença criativa, de um certo número de modelos antigos. Para imitar a forma visível de um modelo arquitetônico, é preciso tê-la visto. E para ver um edifício, desde a antiguidade até a difusão da xilogravura, havia apenas um jeito: era preciso ver o edifício em pessoa. Edifícios não podiam viajar, então as pessoas o faziam. Uma nova disponibilidade de imagens impressas confiáveis, portáteis e baratas da arquitetura facilitaram imensamente a tarefa dos arquitetos da Renascença35 Os edifícios e as ruínas greco-romanas sempre estiveram ali, aos olhos de quem quer que os rodeasse; essas formas tampouco foram redescobertas no Renascimento, como numa escavação arqueológica. Na Itália, por exemplo, e diferentemente do que o próprio termo “renascimento” sugere, o amplo convívio social com os edifícios da antiguidade nunca permitiu que a arquitetura “desaprendesse” o

35. Mario Carpo, Architecture in the Age of Printing (Cambridge: MIT Press, 2001), p. 6. T.M.

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