Monumento e Acidente | TFG FAUUSP 2021

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apenas a partir da ideia de um sistema descentralizado e reativo a inúmeras forças sociais. Em outras palavras, é preciso devolver o um aos muitos. Não há, por isso, um único agente capaz de centralizar uma produção de mundo. Isso se deve ao fato de que os instrumentos que envolvem a cosmografia são sempre compartilhados: é o caso da linguagem, mas também de todos os outros sistemas simbólicos. Qualquer agente em posse de uma linguagem será capaz de nomear, delimitar e reorganizar um mundo, e o sucesso de seu empreendimento se dará em função da aderência de seu discurso num meio social. Deve-se, por isso, entender o cosmograma como um evento inserido em uma cosmografia compartilhada e em constante movimento, onde a quantidade de mundos será proporcional à quantidade de agentes dispostos a nomear a realidade; ou à quantidade de imagens-de-mundo que circulam num meio social. Sobre isso, Tresch escreveu: m um dado espaço e tempo, múltiplos cosmogramas estarão em E circulação em espaços públicos e compartilhados. Nós fazemos noção do ‘lugar cósmico’ de uma entidade, seu lugar na coreografia de contextos de uma cultura, ao triangulá-la a partir de múltiplos cosmogramas contemporâneos. Isso nos permite uma interpretação determinada, mas não definitiva, na medida em que a entidade será revelada diferentemente de acordo com os mapas sobre os quais ela é colocada. Além do mais, porque são concretos e públicos, cosmogramas são eles mesmos continuamente expostos a contestações, adições, rasuras e substituições28

Se identificamos, no ensaio anterior sobre Brasília, uma manifestação particularmente excepcional dessa cosmografia, indicando como uma noção aparentemente total da realidade brasileira parecia irradiar de uma única imagem-de-mundo, seria apenas para esboçar, de forma mais ou menos simples, um ponto de partida para o que chamamos de “cosmograma”. Sabemos, é claro, que após tantas décadas de sua fundação, não podemos hoje permitir que qualquer observação sobre a “capital da esperança” se deixe amparar cegamente em sua – hoje contestável – centralidade na “cosmovisão” brasileira. Sabemos que, assim como o discurso de uma arquitetura moderna nacional, tanto a noção que fazemos de Brasília quanto a imagem real da cidade tal qual ela se encontra hoje , deformaram-se completamente ao longo da história: evidência de que não há um único cosmograma, mas muitos outros planos, ou imagens-de-mundo, a circular e produzir a realidade brasileira de forma contínua, contraditória e acidental. Feitas as devidas ressalvas, e com a consciência de que isso que chamamos de “produção de mundo” não é nunca uma atividade centralizada ou um privilégio de um único agente, quero argumentar que a arquitetura, enquanto uma atividade particular de discurso, está 88

28. Tresch, J. (2007), p. 93. T.M. Aqui, Tresch utiliza o conceito de “mapa” de modo distinto do que desenvolvemos há pouco, partindo do vocabulário deleuze-guattariano. Para ele, tem-se que mapa = cosmograma.


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