11 minute read

Como fazer arquitetura com palavras

Next Article
Bibliografia

Bibliografia

40. Aureli, P. V.; Tattara, M. (2009), p. 39. T.M

41. Ibid., p. 41

Advertisement

← P. V. Aureli e Martino Tattara (DOGMA), "A Grammar for the City", 2005 na verdade sintomas de uma completa resignação com os processos de desregulamentação e com a total ausência de planejamento da cidade neoliberal. O incontrolável espraiamento urbano, a reprodução da cidade informal e os novos modos de exploração do trabalho na economia do consumo e dos serviços – ou seja, a própria forma da cidade contemporânea – seriam assimilados não como objetos de intervenção e projeto, mas como reflexos naturais de processos urbanos automáticos e autogenerativos.

Em oposição a essa espécie de “naturalismo” neoliberal endossado por uma arquitetura indulgente e apologética, Aureli e Tattara recuperam a ideia da forma, entendida “não apenas como algo arbitrariamente imposto ou como sintoma de algo mais ‘profundo’ (superestrutura), mas mais como uma tentativa de intervenção que tem a possibilidade (e a responsabilidade) de alterar a estrutura das coisas”40 .

Num projeto intitulado A Grammar for the City, proposto por ocasião de um concurso público organizado pelo governo da Coréia do Sul, em 2005, para construção de uma nova cidade administrativa, Aureli e Tattara situam a possibilidade de autonomia da forma arquitetônica no que eles acreditam ser, dentre todos os campos de atuação da arquitetura, o seu mais relevante espaço de aplicação: o projeto da cidade. Podemos dizer, em referência ao nosso exemplo anterior, que o projeto de Aureli/Tattara é concebido, literalmente, como um sistema de paredes: um plano para a cidade que representa não tanto um conjunto de objetos, mas um sistema de clausuras, normas e limites. Em outras palavras, a forma da cidade é entendida menos como uma somatória de edifícios e mais como um conjunto gramatical que “define os princípios de composição [da cidade] mais do que seu desenho”41 .

Para isso, o esquema do grid quadrangular, onde as linhas representam normalmente o “vazio” da cidade (ruas e avenidas) e cujos “quadrados” compreendem a massa edificada (as quadras), é propositalmente invertido. Agora, o espaço tradicionalmente ocupado pelo sistema viário – a parte “imaterial” e reguladora da cidade – se torna a própria forma da cidade: um sistema de edifícios cruciformes, a formar uma enorme e indiferenciada malha construída, abrigando os programas habitacional e administrativo. Inversamente, o espaço tradicionalmente reservado às quadras edificadas se torna o conjunto vazio (os “quartos” da cidade), sem função definida, e aberto a uma espécie de indeterminação programática controlada.

Aqui, a ideia de uma “gramática da cidade” adquire um significado importante. O que se tem por “gramática”, quando falamos de sistemas linguísticos, se refere mais precisamente ao conjunto geral de normas, classes e relações que regem o funcionamento de uma língua e que determinam, como numa espécie de legislação morfossintática, o emprego de suas formas (como a fala e o texto). O mesmo poderia ser dito, por analogia, da cidade: haveria um sistema imaterial e norma-

tivo de fundo (por exemplo, o grid do traçado viário) a organizar os processos secundários de significação do tecido “falado”, ou “textual”, da cidade (as edificações). A proposta de Aureli e Tattara inverte esse sistema de determinações: agora é a forma que se torna o próprio tecido gramatical da cidade, determinando ela mesma os limites, os modos de habitação e as dinâmicas concretas da vida urbana. A dimensão textual da cidade se torna, aqui, também a sua parte protocolar, contextual: uma espécie de gramática de segundo grau, derivada para o espaço físico, onde a arquitetura é “reduzida a uma obstrução espacial, um enquadramento que não existe sob retórica alguma a não ser a da sua própria presença e forma”42 .

A questão da autonomia do texto – linguístico ou não – coincide portanto com o problema da forma do texto. Isso se torna seguro, ou ao menos familiar, quando falamos de arquitetura, não apenas porque “forma” é talvez um dos termos mais amplamente requisitados no vocabulário da disciplina, mas porque descreve uma realidade particularmente concreta da experiência arquitetônica. Se desejamos, porém, estendendo a outras semioses esse princípio efetivo de autonomia, dar forma a tudo o que chamamos de “texto”, é preciso que esse princípio se verifique também em todos os outros tipos de “fala” menos explicitamente materiais, como no emprego da língua ou da escrita.  P. V. Aureli e Martino Tattara (DOGMA), "A Grammar for the City", 2005 42. Aureli, P. V.; Tattara, M. (2009), p. 41. T.M

43. Giorgio Agamben, “O que é um Dispositivo?”, in: Outra Travessia, n. 5 (Florianópolis: UFSC 2005), pp. 9-10.

44. Agamben aponta que a apropriação do conceito por Michel Foucault teria se dado a partir da relação de Foucault com Jean Hyppolite, que havia sido seu professor e o autor de Introduction à la Philosophie de l’Histoire de Hegel (1968), onde discute os conceitos de hegelianos de “destino” e “positividade” 45. Hyppolite, J. apud. Agamben, G. (2005), p. 10 (Isso se mostrará ainda mais importante, como veremos adiante, se considerarmos que retornar ao tema da linguagem propriamente dita é também intensificar as implicações do problema da forma na arquitetura. É que uma parte considerável do que entendemos por “arquitetura” diz respeito diretamente ao emprego da palavra, falada e escrita). Precisamos, então, justificar porque em todo texto, em todo recurso ao signo (linguístico ou não) habita esse algo mais; essa capacidade própria de configurar, ordenar, delegar, deformar ou edificar, materialmente, a realidade. Antes, no entanto, será produtivo que nos detenhamos por um momento nesse “algo mais”.

Forma e disposição

Se perguntarmos a um representante qualquer do senso comum (um transeunte na rua, por exemplo) “O que é um dispositivo?”, ele certamente nos responderá: “é um objeto que faz alguma coisa”, que “realiza uma função”; “um instrumento”; “uma máquina”, ou qualquer outra coisa que diga respeito ao universo das coisas que funcionam. Se fizermos a mesma pergunta a Giorgio Agamben, ele nos dirá se tratar de um termo fundamental do pensamento de Foucault, donde: 1. [O dispositivo] é um conjunto heterogêneo, que inclui virtualmente qualquer coisa, linguístico e não-linguístico no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de segurança, proposições filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos. 2. O dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre em uma relação de poder.43 Agamben, traçando do pensamento de Foucault uma genealogia do “dispositivo”, observa que o uso que o francês faz do termo – que ele nunca chegou a definir propriamente – derivaria do conceito, empregado por ele em Arqueologia do Saber (1969), de “positividade” (positivité): um conceito que, por sua vez, teria sua origem na filosofia de Hegel44. Positividade, no pensamento hegeliano, descreveria, em oposição à ideia de “natureza”, uma institucionalidade coercitiva identificável em um determinado arranjo de práticas, ideias e objetos em uma sociedade, e em torno do qual se desenvolveria uma “relação de comando e obediência”45 entre os sujeitos e as instituições. Enquanto, por exemplo, nas religiões ditas “naturais” a relação entre os sujeitos e o divino seria de certa forma espontânea, imotivada e não-codificada (natural), nas “religiões positivas” essa relação seria fundamentalmente mediada por instrumentos, dogmas e ritos disciplinares impostos aos sujeitos sem que haja por parte deles um interesse direto.

Já Foucault, na sua Arqueologia, emprega o termo “positividade” para descrever o fenômeno das formações discursivas, ou as relações

históricas que se configuram entre dizeres e práticas (ou enunciados), conformando uma determinada “unidade” ou corpus discursivo de saber, como uma ciência. Para Foucault, a positividade de um corpus de discurso (o acúmulo de enunciados preservados), digamos, de uma determinada instituição científica, não seria a suposta essência ou origem de seu objeto de saber (ou aquilo a que se referem, e ao que dá “sentido” aos enunciados), mas a sua capacidade de conservar, enredar e unificar os enunciados que compõem esse discurso a serviço de um projeto de poder46. O que nos interessará dessas definições de “positividade”, entretanto, pode ser descrito sobretudo pela ambivalência da ideia de poder: algo que descreve, simultaneamente, o estado substantivo de uma corporificação (como se diz, de uma instituição de poder, que ela forma um corpo objetivo) e o estado funcional de uma capacidade (um poder fazer, uma tendência produtiva).

Nesse momento, o que queremos obter do dispositivo, segundo essa qualidade ambígua do “poder” que ele pressupõe, não é tanto o fato de que, em seu “corpus”, ele seja, como quis Foucault, uma montagem de muitos outros corpos a formar uma unidade: é sobretudo essa unidade mesma, esse produto final que nos interessará agora. A unidade, portanto, ou a forma corpórea do dispositivo, e aquilo que essa forma faz.

A nossa ideia de “dispositivo”, por isso, talvez se aproxime mais do sentido que o próprio Agamben propõe dar ao termo; um que é um tanto mais abrangente que o de Foucault, e que nos aproxima um pouco mais do sentido que encontramos no senso comum. Isso porque o dispositivo de Agamben não descreve necessariamente um conjunto de coisas e práticas, mas as coisas e as práticas consideradas individualmente como dispositivos, no que elas mesmas são capazes de “conjuntar” as coisas ao redor. Um dispositivo é qualquer coisa, ele diz, “que tenha a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”, como “a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e – porque não – a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos”47 .

O dispositivo possui uma “capacidade”: um potencial para realizar alguma coisa. Mas do que se trata esse potencial? Seria um simples estado de virtualidade, uma antecipação hipotética de algo que pode vir a se concretizar, ou se trata de algo além disso? Aqui, uma ligeira recordação de nossos estudos de Física nos dirá que um objeto qualquer não precisa estar efetivamente em movimento para que ele exerça uma certa influência concreta sobre alguma outra coisa em seu contexto material. Lembremos das implicações da “energia potencial”: basta que entre o nosso objeto e um outro objeto de seu contexto haja uma diferença de potenciais para que ele adquira essa capacidade,

46. Positividade, em outras palavras, não diz respeito ao “referente” desse corpus de enunciados (por exemplo, a “medicina” para o “discurso médico”), mas aos modos e técnicas concretos pelos quais é possível delimitar e ordenar uma unidade nomeável de saber, de forma a pô-la em “aplicação, em práticas que daí derivam em relações sociais que se constituem e modificam através [dela]”. Michel Foucault, Arqueologia do Saber (Rio de Janeiro: Forense, 2008), p. 140

47. Ibid., p. 13. Grifo meu.

48. Keller Easterling, Extrastatecraft: The Power of Infrastructure Space (Nova Iorque: Verso, 2014), p. 57. Grifo meu esse “potencial” de realizar uma atividade ou produzir um efeito. É a relação de diferença entre a enorme massa do sol e as dos demais corpos do sistema solar que efetivamente os captura e os constrange à órbita solar (energia potencial gravitacional). O que produz esse efeito não pode ser traçado a nenhum fato cinético, ou a uma “ação” propriamente dita: mesmo em um estado de “inércia”, o sol está de fato agindo sobre seu contexto. É isso que o torna, segundo os nossos termos, um dispositivo.

Keller Easterling, ao se deter sobre essa propriedade do dispositivo – esse “algo mais” que transforma “simples objetos” em dispositivos (ou o que ela chamou de formas ativas), isto é, em “objetos que fazem alguma coisa”, usou o termo disposição. A disposição de um objeto, segundo ela, não é exatamente uma qualidade individual ou interna a ele, nem tampouco se define pelo movimento desse objeto. Disposição é sobretudo uma relação de poder – ou uma “diferença entre potenciais” – que se estabelece no arranjo entre esse objeto e o seu contexto, concedendo a ele uma certa propriedade emergente: Uma bola no topo de um plano inclinado possui disposição. A geometria da bola e sua posição relativa são os simples marcadores de uma atividade potencial. Mesmo sem rolar plano abaixo, a bola está ativamente fazendo algo ao ocupar essa posição. A disposição (...) descreve uma relação que se desdobra entre potenciais. Descreve uma tendência, atividade, faculdade ou propriedade tanto em seres quanto em objetos – uma propensão em um dado contexto. (...) A disposição é imanente, não nas partes que se movem, mas nas relações entre componentes48 . O fato de a bola em questão, mesmo estacionária, estar efetivamente “fazendo alguma coisa” (digamos, obrigando um observador desesperado a correr até ela para evitar sua queda), nos diz que a disposição não é apenas um estado virtual de possibilidade, mas que ela descreve, de fato, uma ação concreta. Não é preciso que um objeto munido de disposição empenhe um deslocamento de força ou energia para que ele possa efetivamente dispor das coisas segundo uma função que ele tende a cumprir. Essa observação é importante porque nos permite conceder mesmo aos objetos e eventos “puramente simbólicos” (adjetivo que geralmente se atribui a situações onde as coisas não acontecem, ou acontecem apenas “imaginariamente”, como quando se diz de um “fato simbólico” versus uma “ação real”) uma agência concreta e material. Por exemplo, uma arma na cintura de um policial não precisa ser de fato utilizada contra os cidadãos ao redor para que, ao percebê-la, eles se comportem de maneira diferente, ou seja, para que a arma cumpra efetivamente, ainda que de forma passiva, a sua função potencial (reprimir o crime). A mera existência simbólica dessa arma – no que ela simboliza o ato de matar – pode ser suficiente para que ela cumpra seu objetivo de reprimir o crime. Aqui, a simples

This article is from: