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O que é um monumento?

36. Embora De re aedificatoria (circa 1450), de Alberti, o primeiro tratado de arquitetura escrito na Renascença, tivesse sido concebido originalmente para o formato do manuscrito, sem nenhuma ilustração, e seu autor estivesse apenas parcialmente ciente das implicações da mídia impressa, Carpo aponta que a obra antecipava em muitos aspectos o teor sistemático e operativo das gerações subsequentes de tratados classicistas. “(...) De re aedificatoria não prefigurava uma antologia ilustrada de antiguidades arquitetônicas; essa seria uma invenção moderna que só se concretizaria duas gerações após Alberti e que seria completamente alheia ao seu projeto. Entretanto, Alberti de fato abriu o caminho para a padronização dos sistemas das ordens do século XVI. Permitindo o uso repetido, embora limitado, de componentes arquitetônicos descontextualizados, Alberti separou as ordens de qualquer associação com tipos particulares de edifícios – um passo que Vitrúvio nunca deu”. Carpo, M. (2001), p. 120. T.M. clássico. Não teria sido possível, no entanto, falar em uma historiografia ou em qualquer outra disciplinação dessas formas (no sentido da elaboração de um sistema compartilhado, prescritivo e replicável de conhecimento), antes que elas pudessem se deslocar para o espaço do registro impresso; e que pudessem, enquanto fatos históricos, disseminar uma ideologia operativa do clássico. De forma semelhante, os manuscritos dos De Architetura Libre Decem, de Vitrúvio, que foram preservados e copiados durante toda a Idade Média no interior dos scriptoria eclesiásticos, não eram de forma alguma desconhecidos pelos intelectuais e construtores das catedrais romanescas ou góticas. Entretanto, seria somente com sua ampla disponibilização sob os suportes da mídia impressa, e com sua disseminação em toda a Europa, que os ensinamentos de Vitrúvio poderiam fundamentar um repertório público e uma gramática operável para o que viria a ser a disciplina arquitetônica.

A antiguidade não era, portanto, “redescoberta”; era remidiatizada para um espaço abstrato, reprodutível, e posta a serviço de uma reorganização social. Com o livro impresso, suas formas concretas se tornariam, de repente e em toda a sua potência reprodutiva, símbolos: fatos compartilhados da memória social, instrumentos públicos de produção de significado. Emancipados da condição singular de artefatos únicos, ou da rigidez geográfica de edifícios, objetos como os manuscritos vitruvianos ou o Partenon eram transpostos, graças à reprodutibilidade técnica, para o campo público e universalmente apropriável da linguagem. Da mesma forma com que coisas concretas se tornam palavras para que sua memória nos permita agir sobre a realidade, os elementos da antiguidade clássica eram nomeados também com um objetivo produtivo, uma função social e um programa ideológico. Eis o gérmen da operatividade que caracterizaria a escrita arquitetônica durante os próximos cinco séculos. O livro impresso, e toda a literatura concebida e difundida por ele, tornariam-se, tanto quanto a edificação em si, parte fundamental da atividade arquitetônica. Era sobre esse suporte que se institucionalizariam disciplinas como a história, a crítica e a teoria da arquitetura, e sobre o qual seria possível que a arquitetura renascentista desenvolvesse seus primeiros códigos, estatutos e tratados36: A partir do início do século XVI, tratados arquitetônicos passaram a difundir uma nova teoria arquitetônica, conscientemente desenvolvida para os novos meios de comunicação. A teoria renascentista das cinco ordens da Arquitetura (Toscana, Dórica, Jônica, Coríntia e Compósita) é a pedra angular desse processo. O sistema das cinco ordens da Renascença, particularmente conforme definido no Livro Quarto (1537), de Sebastiano Serlio, era um catálogo de componentes gráficos padronizados e repetíveis – o que [Walter] Benjamin teria chamado de ‘projetado para a reprodutibilidade’. Cada elemento nesse sistema fora projetado para ser massiva-

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mente reproduzido e, em seguida, montado e remontado com outros elementos37 Havia, portanto, uma estreita correlação entre a reprodutibilidade técnica do conhecimento possibilitada pela mídia impressa e a emergência de uma visão “operativa” ou instrumental da história, observável na doutrina das ordens clássicas e na reabilitação das teorias vitruvianas: um conhecimento histórico que se tornava objeto de planejamento e reprodução, ou de um “uso social da história”. A emergência da “escrita operativa” era, portanto, sintoma de um amplo fenômeno de institucionalização das faculdades humanas em torno de uma nova consciência histórica possibilitada pelo advento de novos suportes técnicos.

Podemos dizer, ademais, que em arquitetura ela sinalizava uma importante reorganização de sua estrutura produtiva; pois dizer que a arquitetura se consolidava – para além de uma atividade estritamente ligada às linguagens e técnicas da edificação – enquanto disciplina, significa reconhecer que ela se tornava, também, uma atividade indispensavelmente literária; um fazer profundamente irrigado e operado pela escrita, pela imagem gráfica e por todo um aparato de significação anteriormente “alheio” à arquitetura.

Se até então a “linguagem arquitetônica”, ou os modos pelos quais a arquitetura adquiria valor comunicacional, restringiam-se sobretudo ao simbolismo não-verbal e à experiência concreta do edifício, com o advento da mídia impressa a arquitetura não apenas passaria a dispor de outros meios de produção de significado, como reconfiguraria a si mesma como uma atividade amplamente discursiva e documental. A escrita, agora uma operação de amplo alcance e difusão, tornava-se parte fundamental do trabalho arquitetônico, e todo um corpo de documentação impressa passava a figurar, junto com o edifício, o território produtivo da arquitetura.

Não é por acaso que, a partir do século XVI, a consolidação da arquitetura como uma profissão autônoma e liberal, tal como a reconhecemos hoje, e o crescimento do contingente de profissionais autoidentificados “arquitetos”, coincidia precisamente com a multiplicação do volume literário impresso sobre arquitetura e outras artes: os inventários arqueológicos, as reproduções dos “redescobertos” livros vitruvianos, os tratados de arquitetura, as biografias dos grandes mestres e os códigos de edificação, etc. Enfim, todo um corpo literário que passava a circular livremente pela Europa, e no qual a arquitetura poderia enfim ser nomeada, sistematizada, “arrancada” do edifício e de todo um simbolismo hermético cujo domínio era, até então, confiado a alguns poucos polímatas e clérigos. Tratados renascentistas como

37. Carpo, M. (2001), p. 6. T.M.

38. Ibid., p. 7

39. Benjamin, W. (2013), p. 76 o de Serlio cumpririam precisamente essa tarefa de descentralizar os sistemas simbólicos e discursivos da arquitetura: Como Serlio afirmou repetidamente, esse sistema [das ordens clássicas] não foi concebido para arquitetos talentosos e não pretendia dar origem a obras-primas arquitetônicas. O projeto de Serlio não era apenas pedagógico, mas social: seu método buscava, sobretudo, criar uma classe mediana de profissionais da construção. Esse programa de educação popular só foi possível graças ao livro impresso38 Mas essa “democratização” do conhecimento e da prática da arquitetura, possibilitada pela difusão das tecnologias de impressão, não significava apenas que a disciplina era agora informada por documentos amplamente acessíveis. Significava, também, que qualquer profissional com acesso à literatura arquitetônica poderia ser igualmente capaz de se tornar, ele próprio, um agente literário e discursivo da arquitetura; que teria em mãos não apenas um vasto repertório de modelos do passado e textos que lhe diriam do que se trata o fazer arquitetônico, mas também os instrumentos para que ele mesmo pudesse falar sobre arquitetura.

Em outras palavras, a era da literatura arquitetônica impressa sinalizava, para além da emergência de uma ampla categoria especializada de “profissionais da construção”, a consolidação de uma classe de profissionais do discurso. Foi nesse sentido que, alguns séculos depois, Walter Benjamin descreveria a especialização moderna do trabalho como uma transformação de leitores em escritores: Com a expansão crescente da imprensa, que disponibilizava à comunidade leitora sempre renovados periódicos políticos, religiosos, científicos, empregatícios, locais, uma porção cada vez maior da comunidade leitora (...) ingressava na comunidade escritora. (...) O leitor está a todo tempo pronto para tornar-se um escritor. Enquanto especialista (o que, bem ou mal, ele precisou se tornar, em um processo de trabalho altamente especializado – mesmo enquanto profissional em um processo mínimo), ele ganha acesso à autoria. O próprio trabalho ganha a palavra – sua apresentação em palavras compõe uma parte da habilidade exigida para a sua execução39

O que é um monumento?

Já nos detivemos anteriormente nesse argumento, mas não custa repeti-lo aqui, agora que começamos a trilhar o problema por outros caminhos: é impossível observar a história da cultura arquitetônica, em todas os seus deslocamentos estilísticos e ideológicos, sem constatar a permanência desse componente invariável que é o discurso de arquitetura. De Alberti a Corbusier, e mesmo no espaço ideologica-

mente fragmentado que constitui o panorama da arquitetura hoje, o ato de falar sobre arquitetura sempre foi tão fundamental à disciplina quanto a edificação em si.

De fato, podemos pensar no discurso arquitetônico como uma etapa produtiva não muito diferente daquelas como a projetação ou o assentamento de blocos. Pois o que fazia, por exemplo, o discurso arquitetônico renascentista vindo de figuras como Palladio, Alberti e Serlio (e repercutido por sucessivas gerações de arquitetos) se não fazer surgir por toda a Europa uma população inteira de novos edifícios, efetivamente transformando a paisagem física e psíquica de suas cidades?

Mesmo hoje – ou talvez, especialmente hoje –, dificilmente veremos um empreendimento que aspire ao título de “arquitetura” sem que haja algum tipo de material falado anexado à obra. Reelaboremos aquele aforismo, sobre não haver “arquitetura sem construção”, à luz do que disse, com uma franqueza rara entre os arquitetos, Oscar Niemeyer: não há arquitetura sem explicação. Não há arquitetura sem a fala sobre a arquitetura. Eu sempre digo para os arquitetos, e digo para vocês, que estão se iniciando: o importante é, justamente, a explicação. Por exemplo, quando eu faço um projeto, (...) quando eu chego a uma solução, eu começo a explicar. Porque se, numa explicação, eu não encontro argumentos para convencer as pessoas, eu volto para a prancheta. (...) E as pessoas que aprovam meus projetos, no geral, mesmo as do exterior, é pelo texto [sic]. Ninguém entende arquitetura, isso é fantasia40 Desde o Renascimento, o processo de formar-se arquiteto passa, indispensavelmente, por tornar-se também um orador da arquitetura. Trata-se de uma tradição tão firmemente ancorada na essência da disciplina, tão corriqueira nos compromissos cotidianos de estudantes e arquitetos, que mal precisa ser nomeada. Por exemplo: hoje em dia, nos exercícios acadêmicos de projetação, parece haver um acordo tácito, entre todas as partes envolvidas, de que um projeto só estará concluído quando satisfatoriamente defendido e explicado publicamente pelo aluno-autor. A esse aluno será ensinado, mesmo que muito tangencialmente, que a prática profissional é na verdade uma espécie de interlocução com a sociedade. Não à toa, a ritualística na qual consistem as chamadas “entregas de projeto” nas academias emula precisamente essa relação: assemelham-se ora a comícios políticos, ora a recitais de poesia, ora a demonstrações científicas, quando não a audiências judiciais nas quais o autor deverá se defender, perante o público, pelas barbaridades que acabou de cometer. Simulações, portanto, que o introduzirão a um dos atributos mais indispensáveis da arquitetura – a fala. Em outras palavras, não bastará para o receptor da arquitetura – o “público” – a legibilidade do objeto em

40. Depoimento de Oscar Niemeyer em entrevista contida no documentário “Niemeyer: o traço e o tempo” (2006), de Roberto Stefanelli, para a TV Câmara.

Still de “Niemeyer: o traço e o tempo” (2006), de Roberto Stefanelli 

si, a minúcia do desenho ou a integridade aparente da forma arquitetônica; para que um edifício possa emergir na vida pública, de seu arquiteto será exigido igualmente que ele domine a fala sobre a arquitetura: essa espécie de “metalinguagem arquitetônica”, de elaboração conceitual que envolve o processo de incorporar à obra de arquitetura (uma espécie de “linguagem” em si mesma) uma segunda ordem de significado, situando-a num contexto discursivo mais amplo, em um destino social desejado.

Assim, ele deverá responder, entre outras coisas: a que será útil, ou por que se faz necessário o objeto dessa arquitetura? Como se justifica a sua aparência estética? No que consistem os fundamentos históricos, críticos e teóricos dessas escolhas projetuais? (O maior horror que pode recair sobre um estudante de arquitetura é o juízo de que suas escolhas foram arbitrárias). Ou então, o que esse edifício representa ou simboliza? Quais são suas citações intertextuais, e em que universo narrativo ele busca se acomodar? E a pergunta-chave na qual recaem inevitavelmente todas as outras: como ele se insere em seu próprio tempo?

A ideia do discurso arquitetônico como uma metalinguagem (a fala da arquitetura incidindo sobre a linguagem arquitetônica, ou sobre a obra de arquitetura em si) nos leva à seguinte hipótese: a arquitetura é uma situação, é o ato de situar: não basta a ela estar diante de nós, pois para que isso aconteça ela precisa igualmente anunciar a si mesma. Além disso, a arquitetura como situação não implica apenas que seus objetos devam existir fisicamente no espaço, mas também que devam estar inscritos no tempo; devem justificar-se num esquema mais amplo, num “lugar histórico” ao qual eles buscam pertencer. E o ato de registrar um objeto ou um evento na história é sempre uma espécie de historiografia.

Há uma íntima relação entre o fazer e o dizer no interior da disciplina arquitetônica – podemos dizer que ambas são operações de situação, de “edificação” –, diante da qual podemos nos perguntar: poderia uma obra de arquitetura qualquer manter-se em pé, não fosse suficientemente sólida a sua fundação retórica? Ou então, poderia sequer existir caso não parecesse surgir do “espírito de seu tempo”, esse conjunto de discursos que inscrevem um objeto na história? Em relação a essa ambiguidade congênita à disciplina, tão bem definida pela ideia de uma “operatividade” na historiografia da arquitetura, Tafuri observou: O simples fato de cerca de 90% dos escritos de arquitetura serem produzidos por arquitetos que exercem a profissão, é já um sintoma muito importante (...). Sobretudo porque, se se confrontar a produção literária dos arquitetos e de outras categorias de manipuladores ou criadores de formas – dos pintores aos realizadores cinematográficos –, será fácil notar uma diferença. Enquanto estes últimos, ao escreverem, têm bem presente a necessidade de dar uma forma discursiva a uma poética pessoal, ou de expor problemas relativos a uma ótica fortemente deformada, os primeiros tendem, na maior parte dos casos, a dar uma forma objetiva e uma dignidade científica à sua especulação41 Podemos dizer, sem receio algum, que o principal esforço da arquitetura humanista ao longo dos últimos cinco séculos (pois não houve, na disciplina, obsessão mais duradoura) tem sido o de situar seus objetos na história. E aqui, é bom relembrarmos, por “história” nos referimos a um espaço conceitual que não se resume apenas ao “passado”: quer falemos do resgate neoclássico a uma antiga “era de ouro” originária da humanidade, conforme propagado por um Laugier, ou da teleologia da “tradição do novo” presente nos enunciados arquitetônicos dos modernistas, devemos ter em mente que ambas essas configurações ideológicas são formas de situar a arquitetura no tempo; e que são tributárias do que podemos chamar de visão instrumental ou “evolutiva” da história42. Não há arquitetura, portanto, sem uma relação com o tempo, e isso será verdade tanto para as abordagens “historicistas” quanto para as “futuristas”. Dessa relação posicional com o tempo, e

41. Tafuri, M. (1979), p. 188

42. Alois Riegl, em Culto Moderno dos Monumentos (1903), escreveu: “Chamamos de histórico, tudo o que foi e não é mais nos dias de hoje. De acordo com os conceitos mais modernos, acrescentamos a isso a ideia mais ampla de que aquilo que foi não poderá voltar a ser nunca mais e tudo o que foi forma o elo insubstituível e irremovível de uma corrente de evolução ou, em outras palavras, tudo o que tem uma sequência, supõe um antecedente e não poderia

ter acontecido da forma como aconteceu se não tivesse sido antecedido por aquele elo anterior. O ponto-chave de todo conceito histórico moderno é formado pela noção de evolução”. Riegl, A. (2014), p. 32

43. Wigley, M. (2000), p. 37. T.M. Grifo meu desse discurso histórico autorreferente com o qual a arquitetura insiste em conceber seus objetos, diremos que compõem, de acordo com uma expressão empregada por Mark Wigley, a função monumentalizante da arquitetura. Diante dela, o monumento aparecerá para nós como o principal produto da arquitetura, pois a ideia moderna de monumento sintetiza tudo o que a arquitetura tem sido desde o renascimento: um suporte de ideologia e discurso histórico. Em suma, uma historiografia: Uma noção do tempo é cautelosamente construída por todo arquiteto. Cada um deles é um especialista nas nuances dessa construção. Eles contam histórias sobre o tempo que têm por efeito a naturalização de seus projetos. O edifício deve aparentar ajustar-se naturalmente a um determinado tempo. (...) Os arquitetos falam sobre o tempo da mesma forma com que falam sobre o lugar. O que é velado é que o arquiteto na verdade constrói a noção de tempo. Ele [o tempo] não é anterior ao projeto. Edifícios colaboram na produção da noção do tempo em relação ao qual eles parecem meramente responder43 Essa aptidão discursiva, que faz dos arquitetos mais do que meros construtores de formas e lhes concede o domínio semântico sobre o locus histórico da arquitetura, nos indica que a “efetividade” da arquitetura (essa métrica comumente aplicada por historiadores e críticos para avaliar a incidência de uma ideologia arquitetônica sobre um meio social) não descreve apenas a extensibilidade da adoção de um certo tipo de arquitetura ou, como no caso do modernismo, de sua potência de reorganização das esferas produtivas. Uma ideologia “eficaz” implica igualmente uma história (re)escrita, um repertório simbólico compartilhado: a literatura, a legislação, o mito, o monumento; ou seja, o controle de todo um aparelho subjetivo de memória e desejo social. É preciso que a arquitetura tenha um lugar nesse espaço narrativo da história, que emerja de um discurso sobre a “vontade do tempo”: de forma sucinta, que produza monumentos.

Tomemos alguma distância da arquitetura, por ora, para que possamos interrogar o monumento de forma mais geral. O que é um monumento? O monumento ao qual nos referimos pode ser descrito pela legitimação de um discurso histórico. Reparemos que, de acordo com essa nossa concepção, o monumento possui dois aspectos fundamentais. O primeiro diz respeito à linguagem, donde ele implica um discurso (o objeto desse discurso, a história, não compreenderá neste momento um atributo independente, uma vez que a história e a memória coletiva se desenvolvem essencialmente pelo signo – são coisas faladas). O segundo aspecto do monumento diz respeito à legitimação desse

discurso histórico; alude, portanto, a uma relação de poder que opera junto à linguagem da descrição histórica.

O monumento ocorre na “legitimação de um discurso histórico”. Mas o que significa essa legitimação? Significa, no limite, o poder e o direito de fazer durar uma memória, uma pessoa, um poder ou um objeto no tempo. Àquilo que é legítimo, permitimos que sobreviva, que permaneça e que comande. Inversamente, aquilo que é ilegítimo ou falso relegamos ao desaparecimento, ao esquecimento. Diante disso, o que conhecemos por “história” nada mais é do que uma coleção legitimada, oficializada, de enunciados sobre a memória coletiva; enunciados aos quais se permitiu, por quaisquer meios que sejam, preservar. Preservação: palavra-chave que emerge obrigatoriamente toda vez em que o monumento é mencionado: ela aponta precisamente para a imperatividade do monumento como um artefato legítimo – a preservação é uma demanda, uma convocação ao ato de preservar. O monumento não convoca apenas a memória, mas igualmente a ação: é isso que implica o poder da legitimidade.

Há muitas formas de conceder legitimidade à memória social. Talvez a mais antiga seja aquela que associamos ao sentido tradicional do conceito de “monumento”. Essa forma de legitimidade representa a permanência e a manutenção de um objeto pelo simples monopólio da força. Com efeito, os primeiros monumentos eram sempre encomendas de figuras políticas, aristocráticas ou religiosas, ou seja, instituições soberanas que detinham os meios e o poder de escolher e edificar, por direito inato, o que deveria ou não ser digno de integrar a memória social – digno, portanto, de co-memoração.

Nesse caso, a legitimidade do monumento é concedida no próprio instante de sua concepção; é uma legitimidade congênita. Aqui, o discurso (como poder de linguagem) e a legitimação (como poder de validação) acontecem num mesmo ato. Além disso, essa legitimidade provém do fato de que, no monumento tradicional, o discurso histórico se faz explícito, em sua intenção e conteúdo, e aponta para um emissor, ou um “autor” facilmente localizável.

Quando Trajano mandou construir em Roma uma enorme coluna como forma de preservar a memória de sua vitória nas Guerras Dácias, era evidente para todos que, por meio daquele monumento, era o próprio Trajano quem falava à cidade – e que, além disso, enquanto durasse em Roma a ordem social do Império, a coluna permaneceria intacta. No entanto, como é o caso de muitos ritos e tradições, a legitimidade dessa memória monumental é essencialmente frágil, pois só se sustenta enquanto se fizerem presentes e autoritárias as suas instituições de origem. Podemos relacionar essa “memória monumental”, uma memória fabricada e mantida pela simples autoridade do soberano, com a legitimidade débil do príncipe maquiavélico, conforme descrita por Foucault, em A Governamentalidade:

44. Michel Foucault, “A Governamentalidade”. In: Microfísica do Poder (Rio de Janeiro: Graal, 1998), p. 279

45. Riegl, A. (2014), p. 39 (...) o príncipe está em relação de singularidade, de exterioridade, de transcendência em relação ao seu principado; recebe seu principado por herança, por aquisição, por conquista, mas não faz parte dele, lhe é exterior; os laços que o unem ao principado são de violência, de tradição, (...) laços puramente sintéticos, sem ligação fundamental, essencial, natural e jurídica, entre o príncipe e seu principado. (...) Na medida em que é uma relação de exterioridade, ela é frágil e estará sempre ameaçada, exteriormente pelos inimigos do príncipe que querem conquistar ou reconquistar seu principado e internamente, pois não há razão a priori, imediata, para que os súditos aceitem o governo do príncipe”44 Nesse caso, o domínio da memória social pode ser entendido, em termos topológicos, como uma estrutura concêntrica. Toda a autoridade – e, portanto, a sobrevivência – da memória coletiva está atrelada às condições de governabilidade de uma figura central: no momento em que o soberano perde o controle sobre seu território e súditos, perdem-se também seus monumentos e, com estes, a “história” de uma ordem social. Sobre a constante impermanência do monumento tradicional, ou “monumento volível”, Alois Riegl apontou: (...) os monumentos volíveis desapareciam irremediavelmente destruídos ou arruinados, tão logo desapareciam aqueles aos quais eles eram destinados e que tinham algum interesse na sua preservação. Em toda a Antiguidade e na Idade Média só se conheceram os monumentos volíveis45 O monumento, nessa primeira acepção, não desapareceu – ele continua sendo um instrumento eficaz de controle social, ainda que hoje assuma muitas formas. Mas embora nunca tenha deixado de existir, o modo de legitimação que associamos ao monumento tradicional perdeu espaço, ao longo do tempo, para novos mecanismos de registro e validação da memória social.

Concomitantemente à ruína dos antigos sistemas autocráticos (baseados no modelo de governo que Foucault chamou de “soberania”), também o domínio sobre a inscrição da memória se reorganizou. Se o Iluminismo representou um deslocamento da teoria governamental em direção à autoridade da razão e em detrimento da soberania da tradição, também esse deslocamento se fez presente nas estruturas de memorização social. Isto é: porque a história é sobretudo uma ferramenta de poder e governabilidade, o nascimento do Estado era necessariamente acompanhado pela emergência de uma nova forma de produção da memória coletiva. Onde antes a legitimidade do soberano (ou seu direito de manter-se no poder) era reforçada no campo da memória coletiva pelo monumento tradicional, e baseado unicamente em “laços de violência e tradição”, agora o “governo da razão” que caracteriza o Estado moderno inventaria a ciência histórica como seu próprio instrumento de operação da memória coletiva. Esse deslocamento apontava para o que Riegl descreveria como o triunfo,

46. Le Goff, J. (1990), pp. 466-467

 Coluna de Trajano, erguida em Roma em 113 d.C. a partir do Renascimento, do “valor histórico” (o que aqui equivale a dizer “valor científico”) em detrimento do “valor comemorativo” vigente nos monumentos da Antiguidade. Mais tarde, Le Goff discorreria sobre o mesmo problema, mas nos termos de uma substituição do monumento pelo documento como o novo paradigma do conhecimento e do discurso histórico: O interesse da memória coletiva e da história já não se cristaliza exclusivamente sobre os grandes homens, os acontecimentos, a história que avança depressa, a história política, diplomática, militar. Interessa-se por todos os homens, suscita uma nova hierarquia mais ou menos implícita dos documentos; por exemplo, coloca em primeiro plano, para a história moderna, o registro paroquial que conserva para a memória todos os homens. (...) O registro paroquial, em que são assinalados, por paróquia, os nascimentos, os matrimônios e as mortes, marca a entrada na história das ‘massas dormentes’ e inaugura a era da documentação em massa46 A memória coletiva, a partir de então, não estaria mais necessariamente ligada aos valores de comemoração e de tradição, mas se estenderia a todo um conjunto documental anteriormente desprovido de legitimidade. Mas a era da “documentação em massa” descrita por Le Goff não se fazia perceber apenas pela emergência da ciência histórica, essa nova instituição que usurpava do soberano a autoridade de legitimar a memória coletiva. Pois o documento se mostraria fundamental também como instrumento de governabilidade para os sistemas que se sucederiam às antigas soberanias. O nascimento da estatística, que para Foucault significa ciência de Estado, comprova isso. Pois a estatística surgia exatamente como um aparelho de memorização ligada a um contingente muito mais amplo de fatos dignos de serem legitimados (como registros paroquiais, arquivos cartográficos, levantamentos censitários, documentos judiciais, etc). Uma ferramenta de memorização muito mais eficiente em termos de governabilidade, porque serviria a objetivos mais amplos, mais “autênticos” do que aqueles representados pelos monumentos e leis do soberano, e que existiam para a simples manutenção de um poder privado. Em outras palavras, a ciência de Estado e a ciência histórica serviriam agora à memória de tudo aquilo que possuísse “utilidade pública”, tudo aquilo que possuísse valor para o conjunto da sociedade. Tal é o contexto por trás da ruína do monumento diante do que se convencionou por chamar “documento” ou, no caso de Riegl, de “monumento histórico”. Tal é, também, o sentido da máxima positivista de que “a história se faz com documentos”: uma história feita... (...) com palavras. Signos. Paisagens e telhas. Com as formas do campo e das ervas daninhas. Com os eclipses da lua e a atrelagem dos cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelos geólogos e com as análises de metais feitas pelos químicos. Numa palavra,

com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e maneiras de ser do homem47 Da ciência histórica ou documental, em oposição à história comemorativa ou monumental, surgia então o que Riegl chamou de “valor histórico”: um novo tipo de legitimidade conferida àqueles objetos que devem permanecer não pela vontade e poder de uma única instituição, mas por constituírem um “elo insubstituível e irremovível de uma corrente de evolução”, de onde “toda atividade humana e todo destino humano, dos quais nos ficaram testemunhos ou conhecimento, pode aspirar, sem exceção, a ter um valor histórico, ou seja, todo acontecimento histórico assevera-se como insubstituível”48 .

Mas a emergência dessa “revolução documental” não representava uma simples ampliação do domínio valorativo da memória coletiva. Pois ao mesmo tempo em que aumentava ao infinito o número de objetos passíveis de “contar a história”, a ciência histórica excluía, desde já, o monumento desse projeto de legitimação. Isso porque a condição de legitimidade do documento, que era o fundamento da noção de fato histórico, era a negação da própria essência do monumento: o discurso.

O valor histórico, ou documental, é indiferente ao discurso. O sentido de “documento” aponta, ao invés, para um objeto neutro, para uma testemunha silenciosa da história da qual a verdade é extraída muito mais do que expelida. Por isso, ao monumento que se deparasse com o crivo da ciência histórica, só seria permitido sobreviver com a condição de que se transmutasse em documento; que se emudecesse, sendo permitido falar à memória coletiva somente aquilo que seu novo captor o permitisse. Isso significava que o monumento, transformado em documento, não possuiria mais qualquer legitimidade a priori, qualquer autoridade inerente sobre a memória coletiva, mas um valor gerado externamente, um valor comparativo, relativo a uma cadeia de muitos outros fatos históricos que só possuem valor enquanto conjunto.

Se a Coluna de Trajano permanece até hoje em pé, não é porque a população romana sente ainda alguma necessidade de comemorar a vitória das Guerras Dácias, nem porque os fantasmas de Trajano e da ordem imperial exercem ainda alguma autoridade sobre a cidade. A coluna permanece em pé, após quase vinte séculos, sobretudo por conta do valor histórico que em certo momento foi atribuído a ela49: por constituir esse “elo irremovível” da corrente evolutiva da história romana; por ser muito mais um testemunho documental para a historiografia do império, das artes e técnicas antigas, da política e do urbanismo romanos, do que um simples monumento comemorativo. O Trajano por trás da coluna é, agora, menos o

47. Le Goff, J. (1990), pp. 466-467

48. Riegl, A. (2014), p. 32

49. É verdade que, no caso da Coluna, seu valor comemorativo perdurou por alguns séculos mesmo após a queda do Império e sem que ainda houvesse surgido o “valor histórico”: “Na Idade Média, uma obra como a Coluna de Trajano deveria ser considerada como fora do padrão vigente, quando já ruíra o velho império (...).

O fato de que ela tenha se mantido em pé, pode dever-se principalmente aos vestígios ainda vivos do patriotismo romano, que não chegara a desaparecer até então. Dessa maneira, devemos considerar a Coluna de Trajano, mesmo durante esse período histórico e de forma limitada, como um monumento volível. Entretanto, até o século XIV, sempre existiu o perigo de que a coluna pudesse ser sacrificada em nome de alguma necessidade prática, perigo que, a partir da Renascença até os nossos dias, foi eliminado e provavelmente permanecerá assim no futuro”. Riegl, A. (2014), p. 40 50. Fustel de Coulanges apud. Le Goff, J. (1990), p. 463

51. Barthes (2004) p. 169 emissor do monumento do que um dado contextual e descritivo de um documento histórico.

Diferentemente do monumento, o documento só adquire valor a posteriori: sua legitimidade é julgada em uma montagem retrospectiva, pela observação de seu papel no curso causal e “objetivo” dos fatos históricos. A memória contida e legitimada no documento não se apresenta, como no monumento, como memória falada. Pelo contrário, para a tradição positiva da ciência histórica, quanto menores fossem os atributos discursivos do documento, e quanto menos ele revelasse uma possível consciência histórica de seu produtor (ou uma intenção memorialista qualquer), mais próxima a memória documental estaria da verdade científica e, consequentemente, mais digno seria de um lugar permanente no museu da história. Da mesma forma, o historiador dessa memória documental estaria tão mais perto da verdade quanto menor fosse a sua presença, enquanto mediador, no texto historiográfico, e quanto mais ele permitisse às suas fontes documentais falarem por si mesmas.

Mas, se segundo esse ponto de vista, “a única habilidade (do historiador) consiste em tirar dos documentos tudo o que eles contêm e em não lhes acrescentar nada do que eles não contêm”50, então devemos nos perguntar que autonomia é essa que o documento detém para enunciar por si só a história.

Não estaríamos, ao invés, diante daquilo que Barthes classificou como uma ilusão do autor ausente? Isto é, do mito da história que conta a si própria, como uma emanação orgânica da natureza, e que faz do historiador um mero disponibilizador, um agente neutro de transmissão, sem qualquer intenção própria que não seja a da pura facilitação de uma história caída dos céus e brotada nos “documentos”? Sobre as formas que assume esse modo de conceber a história, Barthes observou: (...) nesse caso, o enunciador anula a sua pessoa passional, mas a substitui por outra pessoa, a pessoa ‘objetiva’; o sujeito subsiste em sua plenitude, mas como sujeito objetivo; é o que Fustel de Coulanges chamava significativamente (e com bastante singeleza) de ‘castidade da História’. Em nível de discurso, a objetividade – ou carência dos signos do enunciante – aparece assim como uma forma particular de imaginário, o produto do que se poderia chamar de ilusão referencial, visto que o historiador pretende deixar o referente falar por si só. Essa ilusão não é exclusiva do discurso histórico: quantos romancistas – na época realista – imaginam ser ‘objetivos’ porque suprimem no discurso os signos do eu! A linguística e a psicanálise conjugadas deixam-nos hoje muito mais lúcidos com relação a uma enunciação privativa: sabemos que as carências dos signos são também significantes51

No que consiste, portanto, esse “fazer falar as coisas mudas” do historiador, esse “fazê-las dizer o que elas próprias não dizem sobre os homens”52, se não em si mesmo um gesto de intenção, um ato de linguagem, uma espécie de discurso? Não estaria esse historiador, esse “sujeito objetivo” que acredita não estar falando a história, mas fazendo falar os objetos nos quais ela habita, efetivamente falando por detrás deles? Estaria esse valor histórico, ou documental, inoculado em um objeto qualquer, tão distante assim do valor comemorativo com o qual se faziam falar, igualmente, os monumentos antigos?

Foi nesses termos que, interrogando a tradição do conceito de documento, Le Goff buscou reaproximar a produção de monumentos com o fazer historiográfico, ou “documental”. Em sua crítica dessa concepção positivista da história, segundo a qual o trabalho do historiador só se aproximaria da “verdade” histórica se apoiada em documentos (ou “provas”) históricos, Le Goff observa que a legitimidade do documento reside menos em sua veracidade inerente e objetiva do que numa intenção historiográfica que é, em si mesma, fundamentalmente intencional e discursiva: Recolhido pela memória coletiva e transformado em documento pela história tradicional (‘na história, tudo começa com o gesto de pôr à parte, de reunir, de transformar em “documentos” certos objetos distribuídos de outro modo’, como escreve Certeau), ou transformado em dado nos novos sistemas de montagem da história serial, o documento deve ser submetido a uma crítica mais radical53 A legitimação do documento segundo um valor objetivo de “autenticidade” – como o valor que insere um fato no curso institucional e, portanto, “verdadeiro” da história – colide, então, com a ideia do documento como produto de uma intenção, de um artifício, ou de uma montagem operada pelo historiador54. Mas colide também, e isso é de especial importância, com uma realidade histórica subjacente ao documento e que precede o próprio historiador. Isso porque, como observou Le Goff, o documento está impregnado de discurso desde a sua própria concepção: ele “não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder”55. Diante dessa dupla realidade discursiva do documento – simultaneamente uma montagem a posteriori de validação historiográfica e o produto de uma conjuntura discursiva sedimentada no tempo e congênita ao documento – Le Goff conclui: O documento não é inócuo. É antes de mais nada o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziu, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. (...) O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades

52. Lucien Febvre apud. Le Goff (1990), p. 466

53. Le Goff, J. (1990), p. 468

54. Podemos encontrar em Riegl uma constatação similar, embora desprovida de crítica, dos monumentos sobre os quais incidem o “valor científico”: para ele, por ser atribuído a posteriori, tal valor resultava essencialmente da escolha e da vontade subjetiva do historiador. “A denominação de ‘monumentos’, usada para essas obras, deve ser entendida não em sentido objetivo, mas em sentido subjetivo. Seu significado e importância não provêm da sua destinação original, mas daquilo que nós sujeitos modernos atribuímos a eles”. Ver Riegl, A. (2014), p. 36. 55. Le Goff, J. (1990), p. 470.

56. Ibid., p. 472

57. Ibid., p. 470 históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. No limite, não existe um documento-verdade. Todo o documento é mentira56 A história do problema documento/monumento nos coloca, por isso, diante de um falso antagonismo: trata-se de nomes distintos para um mesmo fenômeno. “O documento é monumento”; a diferença entre eles não é semântica, mas substancialmente histórica: ela diz respeito às diferentes instituições que, cada qual com os seus critérios e métodos, se apossaram dos meios de legitimação da memória coletiva ao longo dos séculos, de forma consciente ou não.

A questão colocada pelo problema do documento/monumento não nos interessa tanto pelo suposto declínio do monumento frente aos novos suportes “objetivos” de memória que o sucederam. Pelo contrário, ela nos interessa na medida em que, nesse deslocamento, o monumento permanece intacto no interior do documento. O monumento é, por assim dizer, remidiatizado: passa a encantar uma multitude de outros objetos aparentemente fatídicos, objetivos e banais; transforma em produtos do artifício, da ideologia e do poder aqueles documentos virginais que sustentam os fatos históricos e científicos.

A compreensão do documento enquanto monumento passa, para além de identificar função memorizadora que ambos compartilham, por restituir ao documento aquilo que lhe foi previamente negado: o discurso. Assim, o que une documento e monumento não é somente o que eles têm de suportes para a memória, mas igualmente uma intenção enunciativa que subjaz a ambos e que configura, essencialmente, uma relação de poder. “O que transforma o documento em monumento”, Le Goff nos diz, é “sua utilização pelo poder”57. E esse fato é de suma importância para a compreensão da memória coletiva e seus suportes. Pois se a história, como vimos, não pode ser pensada separadamente das estruturas de poder que a enunciam e legitimam, então há na essência dessa história um atributo que não diz respeito simplesmente ao passado e à memória, mas ao futuro: descrever a história nos termos do discurso histórico e das relações de poder significa descrevê-la no que ela tem de instrumental, no que ela se mostra uma forma de antecipação do futuro.

Se a memória diz respeito, como acaba de nos dizer Le Goff, “ao esforço das sociedades históricas de impor ao futuro determinada imagem de si próprias”, então o mero passado contido em suportes como o monumento se mostrará em si mesmo insuficiente. Por isso deveremos nos perguntar, paralelamente, como essa memória se lança adiante: Como ela se manifesta na linguagem, ou como e por que ela é enunciada? Como ela serve a forças produtivas, instrumentais e disciplinares? Como ela serve, por isso, de meio para certos fins?

Ou então, como o ato de rememorar se desdobra em uma operação normativa, ordenatória?

Assim, se falamos de monumentos, devemos ter claramente para nós que a sua função mnemônica – quer a chamemos “comemorativa” ou “histórica” não é, se não, uma das operações que o monumento realiza. Sua outra função diz respeito, necessariamente, à legitimidade dessa memória – o que equivale a dizer: a autoridade da qual essa memória se reveste para ordenar uma produção, ou ordenar que se configure um certo estado das coisas. Conforme disse Françoise Choay, “esse passado [do monumento] invocado e convocado, de certa forma encantado, não é um passado qualquer: foi localizado e selecionado para fins vitais”58. Uma memória institucionalizada, portanto: uma história escolhida, autorizada, narrada, posta em movimento e a serviço de um poder.

“Faça-se lembrar”: o enunciado monumental está sempre conjugado no imperativo. Ele permite que representação do passado e ordenação do futuro coexistam num mesmo gesto de autoridade59. A ideia de monumento aponta, por isso, desde suas origens mais remotas, para uma espécie de legislação ou palavra de ordem: como nos lembra Le Goff, “quando Cícero fala dos monumenta hujus ordinis [nas Filípicas de 44 a.C.], designa os atos comemorativos, quer dizer, os decretos do senado”60. Há, na origem histórica do conceito, uma afinidade com a legislação que aderiria mesmo às definições mais modernas de monumento, e que nos faz supor que o que torna um objeto qualquer um monumento é, para além da memorização, a autoridade de disciplinação da memória social: o seu uso e controle segundo uma finalidade.

Não é de se espantar que o mais seminal estudo sobre o conceito de monumento na atualidade, e um dos textos precursores do preservacionismo moderno, tenha sido concebido ele mesmo como o preâmbulo de uma legislação. Culto Moderno dos Monumentos (1903), de Alois Riegl, é nesse sentido duplamente significante: o estudo não apenas fora encomendado ao historiador pelo Estado para embasar uma nova legislação para a preservação de monumentos históricos, como sua própria definição de monumento parece apontar para uma espécie de artefato legislativo. Isto é, o monumento, assim como uma legislação, se refere em si mesmo à aplicabilidade da memória, ou ao seu uso para determinados fins. A ideia de monumento sugere que a memória não possui valor absoluto, mas relativo: ela só tem valor em função daquilo que permite construir. Já nas primeiras palavras de seu ensaio, Riegl chama atenção para essa prospectividade do monumento: Por monumento, no sentido mais antigo e original do termo, entende-se uma obra criada pela mão do homem e elaborada com o

58. Choay, F. (2014), p. 17

59. A própria etimologia da palavra “monumento”, do latim monumentum, evoca essa ambiguidade entre passado e futuro, memória e projeção. Como Le Goff observou, “O verbo monere significa ‘fazer recordar’, de onde ‘avisar’, ‘iluminar’, ‘instruir’. (...) Atendendo às suas origens filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação” Le Goff, J. (1990), p. 462 60. Ibid., loc. cit.

61. Riegl, A. (2014), p. 31

62. “Dispositivo”. In: Dicionário Online de Português Michaelis.

63. Aldo Rossi, A Arquitetura da Cidade (São Paulo: Martins Fontes, 1995), p. 142

64. Ibid., p. 116 objetivo determinante de manter sempre presente na consciência das gerações futuras algumas ações humanas ou destinos61 Aqui, a escolha das palavras não nos deixa dúvida: o monumento (volível ou não) é concebido segundo um objetivo; é endereçado às gerações futuras; e sua função é preservar não apenas a memória humana, mas igualmente seus destinos. Em outras palavras, o monumento está orientado para o futuro. Se recorrermos mais uma vez ao universo da legislação, encontraremos um termo bastante familiar que nos permitirá expandir a nossa compreensão do monumento: o dispositivo. No sentido jurídico, “dispositivo” significa a “parte de uma lei ou sentença que contém uma decisão”62. Mas independentemente do contexto institucional ou linguístico em que é utilizado (e lembremos aqui do significado que Agamben deu ao termo), qualquer emprego do termo “dispositivo” servirá para designar atos ou coisas que contêm a capacidade de produzir, decidir, ordenar, fazer, configurar, disciplinar, ou seja, toda uma série de operações que estão orientadas para uma finalidade, para um futuro.

O monumento é, portanto, um dispositivo. Ele pertence àquela classe de coisas que funcionam, que possuem uma capacidade produtiva, generativa. O monumento não é um simples objeto no qual o passado se faz representar: ele está sempre inserido em um regime de práticas, ordens e funções num meio social. Se falamos dos monumentos arquitetônicos, podemos recorrer ao que disse Aldo Rossi, para quem “os monumentos são pontos de referência da dinâmica urbana; são mais fortes que as leis econômicas”63. No que pretendeu conceber como uma “ciência urbana”, Rossi classificou o monumento como um dos tipos de elementos primários que organizam um sistema, ou uma economia urbana: (...) os elementos primários não são apenas monumentos, como não são apenas atividades fixas; num sentido geral, são aqueles elementos capazes de acelerar o processo de urbanização de uma cidade e, referindo-os a um território mais vasto, elementos caracterizantes dos processos de transformação espacial do território. Eles agem frequentemente como catalisadores64 Mas a função monumental não é restrita apenas aos fatos arquitetônicos e urbanísticos. Se reduzirmos o monumento aos seus aspectos mais elementares, isto é, à sua capacidade de submeter a memória a uma produção, veremos que nenhum direito têm a arquitetura, as artes e o planejamento em geral de reivindicar exclusividade sobre a construção do monumento. Nem mesmo em relação ao campo mais geral dos fatos “discursivos” o monumento possui alguma exclusividade. Assim como há muitos dispositivos que em nada dependem de um operador, ou de uma intenção que os faça funcionar, também a capacidade de materializar e operar a memória (que define o monumento)

não é prerrogativa apenas daqueles monumentos que dizemos ser “intencionais”.

Assim como vimos ser o caso dos “documentos”, não é simplesmente a incidência de uma intenção discursiva (a priori ou a posteriori) que faz de um simples “objeto” um monumento. O monumento não é produto apenas do discurso histórico consciente, mas da história mesma. Recuperando aquela passagem de Le Goff, ele é produto “das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio”65. O que é particular do monumento não é aquilo que ele diz, ou aquilo que lhe é feito dizer segundo um objetivo memorialístico e instrumental, mas aquilo que ele faz, nas relações concretas e pragmáticas – manipulações – que ele estabelece com seu meio e com seus interlocutores durante o tempo em que ele permanece funcionando na história. Relações que só num segundo momento poderão dar margem à cognição – interpretação e discurso.

O monumento que tentamos pensar aqui é um dispositivo: mas isso não faz dele um objeto menos memorialístico, menos “histórico”. Significa apenas que a relação produtiva que o monumento tem com a memória não descreve, a priori, uma relação de enunciação.

Mais uma vez, recorrer ao nosso conceito de “símbolo” pode ajudar a elucidar essa afirmação. Um símbolo não precisa ser empregado para narrar a história (isto é, não precisa integrar um discurso) para que ele contenha, efetivamente, a história. Por mais que todo discurso recorra ao símbolo, nem todo símbolo se deixa apreender pelo discurso, isto é, por uma intenção enunciativa. Como vimos anteriormente, o modo de existência do símbolo pode ter algo de caótico e fugidio: ele está sempre se ausentando de toda determinação discursiva, de toda finalidade. Ele não se deixa dominar por quaisquer que sejam seus mediadores, e está em constante movimento e transformação. O símbolo é um acúmulo histórico de significações, e no entanto ele não se deixa saturar por nenhuma delas. É que, antes de ser uma mensagem, o símbolo é uma “marca”. Em outras palavras, ele existe numa economia manipulativa de práticas históricas, antes de existir numa economia semântica de discursos sobre a história.

O monumento é, sim, um dispositivo: ele é um suporte de memória orientado a uma produção. Mas isso só é verdade porque todo dispositivo é, também, um monumento. De fato, é preciso reconhecer que uma afirmação como essa soa imediatamente controversa. Para que se provasse verdadeira, ela teria de nos levar a admitir que todas as coisas consideramos ser “dispositivos”, mesmo aqueles objetos mais “mudos”, banais e documentais, seriam, ao seu modo, monumentos. Seria preciso admitir que todo objeto orientado a um fazer carrega, em si mesmo, uma espécie de dizer, mesmo que um dizer não-discursivo, sobre a história. Em outras palavras, seríamos levados a reconhecer a

65. Le Goff, J. (1990), p. 472. Grifo meu

existência de algo como um “monumento não-intencional”: mas não no sentido que Riegl, por exemplo, deu ao termo (um monumento cujo valor discursivo, isto é, intencional, lhe foi atribuído a posteriori e não a priori). Por “monumento não-intencional” queremos dizer: um monumento cuja tendência produtiva não lhe foi atribuída por nenhuma força externa e determinável. Um monumento cuja intenção não irradia de nenhuma forma de autoria, mas se origina e desenvolve, como que acidentalmente, a partir do contato progressivo com seu meio e com a história.

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