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A ideia de 'ser humano'

18. Ibid., p. 45

19. “Fragmento sobre as Máquinas” integra um conjunto de rascunhos, completado em 1858, que não pretendia ser publicado por Marx, mas que esboçavam sua crítica da economia política que seria publicada posteriormente n’O Capital (1867). Os rascunhos foram compilados em 1941 sob o título Grundrisse. Ver: Karl Marx, Grundrisse (São Paulo: Boitempo, 2011), pp. 929-951 20. Marx, K. (2011), p. 929

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21. Ibid., p. 930 22. Ibid., p. 929 Ainda que não mencionasse o problema platônico, Simondon parecia identificar no discurso da modernidade uma espécie de reencenação trágica do phármakon: A cultura comporta, pois, duas atitudes contraditórias em relação aos objetos técnicos: de um lado, trata-os como puras montagens de matéria, desprovidas de significação verdadeira e que apenas apresentam uma utilidade; de outro, supõe que esses objetos também são robôs e são movidos por intenções hostis em relação ao homem, representando para ele um perigo permanente de agressão, de insurreição18 Entre os mais influentes críticos da tecnologia moderna, em especial no que diz respeito ao problema da automação maquínica, Karl Marx ocupou um papel evidentemente central. Em uma anotação de 1858 que ficaria conhecida como “Fragmento sobre as Máquinas”19 , Marx já alertava para a condição dos seres humanos e do “trabalho vivo” diante da progressiva maquinização do processo de produção capitalista. Embora não falasse em robôs, Marx já postulava o surgimento da máquina como a emergência de um duplo do humano, um autômato que consistia numa “força motriz que se movimenta por si mesma”20. A substituição do trabalho vivo pelo trabalho maquínico não representava, para ele, uma simples relação de concorrência ou um processo de substituição do humano pela máquina, mas uma inversão hierárquica da relação instrumental entre sujeito e objeto. Em outras palavras, não era que a máquina passava, agora, a prescindir do trabalho e da presença humana, mas que ela passava a solicitar do ser humano um outro modo de existência e uma nova forma de trabalho. Se antes os meios de trabalho da produção industrial eram as ferramentas operadas pelo ser humano, pelo trabalho vivo – a ferramenta servindo a ele de prótese, extensão de seu corpo – a automação dos meios de trabalho deslocava o próprio ser humano à condição de órgão auxiliar de um “sistema automático de maquinaria”.

Mas essa inversão se estendia para muito além do âmbito da relação entre trabalho vivo e trabalho maquínico, operador e máquina: era o estatuto mesmo da episteme, do trabalho científico e intelectual, que se reorientava em função das demandas da tecnologia moderna. “A ciência, que força os membros inanimados da maquinaria a agirem adequadamente como autômatos por sua construção, não existe na consciência do trabalhador, mas atua sobre ele por meio da máquina como poder estranho, como poder da própria máquina”21. Não era mais a episteme a operadora da tekhne, a força motriz que a movimenta e direciona, mas o contrário. Com a concepção de um sistema automático de maquinaria, uma montagem híbrida “consistindo em numerosos órgãos mecânicos e intelectuais”22 , Marx alçava o problema da máquina para além do indivíduo técnico, e mesmo além dos limites da fábrica, extrapolando-o para todo o espaço social e para a “condição

humana” no geral. O autômato de Marx coincidia com a extensão mesma da formação social.

Foi em termos bastante similares que, em A Questão da Técnica (1954), Martin Heidegger concebeu a relação entre seres humanos, natureza e “tecnologia moderna” como o que ele chamou de “Armação”23 (Gestell). A Gestell de Heidegger seria algo como o “poder estranho” com o qual, para Marx, a ciência moderna se conjugaria com as demandas maquínicas da tecnologia para subjugar o trabalho e as condutas humanas. Sob a Gestell, não é tanto “a máquina” em si que se torna autônoma, mas sim o sistema que dispõe dela, junto com os recursos naturais e humanos, transformando-os em “subsistências” (Bestand, em inglês “standing-reserve”), em reservas de energia permanentemente disponíveis e requeríveis para o seu funcionamento.

Ainda que Heidegger reconheça que o ser humano (enquanto aquele que cultiva a técnica) é de fato o operador da Gestell, ele observa que não se trata de uma operação voluntária. Para Heidegger, é a Gestell que produz no ser humano, inversamente, a demanda de que ele ordene o real como reserva permanente. A tecnologia moderna, sendo ela mesma indissociável de um paradigma epistemológico que tende a representar a natureza como um “complexo de forças passíveis de cálculo”24, não pode por isso ser considerada simplesmente como os meios pelos quais o ser humano domina a natureza: sendo ele mesmo parte da “natureza” calculada, enquadrada e disponibilizada, o ser humano se torna a matéria-prima e o produto da máquina que ele supostamente governa. Como observou Stiegler, uma vez que “a técnica moderna se concretiza no aparato da Gestell de todos os recursos”, devemos nos perguntar “se o humano é o mestre de tal aparato, o mestre do destino humano, uma vez que o humano é ele mesmo parte de ‘todos os recursos’”25 . A técnica [para Heidegger] constitui um sistema na medida em que ela não se permite descrever como meio – assim como, em Saussure, a evolução da linguagem, que forma um sistema de extrema complexidade, escapa ao arbítrio daqueles que a falam. (...) Assim como a máquina, o humano da era industrial depende do sistema técnico, servindo-o ao invés de fazê-lo servir a ele; o humano é o ‘assistente’, o auxiliar, o ajudante, de fato, os meios da técnica enquanto sistema26 Mas embora Heidegger concebesse, à maneira com que Platão havia concebido a escrita, a tecnologia moderna como a operação de um “desenraizamento” do humano diante de uma razão calculativa que o afasta de sua origem, por outro lado ele defendia que o estatuto atual da técnica seria menos um “desvio” do que a concretização mesma do ser humano enquanto ser essencialmente técnico. Como Stiegler observou, “a tecnicização do conhecimento” é para Heidegger a história mesma do ser, e a tecnicidade é parte da sua essência. A relação

23. “Armação”, ainda que pouco elucidativa, corresponde à tradução oficial de Gestell na edição portuguesa de A Questão da Técnica, provavelmente em referência à tradução inglesa, onde ela aparece como “enframing”. Penso que uma forma alternativa de pensar/traduzir a Gestell seria pela palavra disposição: não apenas ela remete ao conceito de “dispositivo” que, na obra de Foucault, possui um sentido bastante similar à Gestell heideggeriana, mas também porque o verbo stellen em alemão significa “colocar”, “posicionar” ou “dispor”. Heidegger usa uma família inteira de verbos com esse núcleo: stellen (colocar), berstellen (implantar), vorstellen (apresentar), herstellen (produzir), etc. O prefixo Ge-, significando uma espécie de “ajuntamento”, sintetizaria todos os modos de stellen, conferindo à palavra Gestell o sentido de uma disposição total e coletiva das coisas, algo bem próximo dos “dispositivos” de poder foucaultianos. 24. Martin Heidegger, “A Questão da Técnica”, in: Scientiae Studia, v. 5, n. 3. (São Paulo: USP, 2007), p. 386 25. Stiegler, B. (1998), p. 24. T.M. 26. Ibid., loc. cit.

27. Heidegger, M. (2007), p. 380

28. Stiegler, B. (1998), p. 7. T.M.

29. Ibid., p. 16. entre tekhne e episteme não é, para Heidegger, essencialmente uma relação de oposição, mas de identidade: ambas são formas complementares de um “desabrigar” da verdade, da aletheia. Diz ele: “Desde os tempos mais antigos até os tempos de Platão, a palavra tekhne segue de par com a palavra episteme. Ambas são nomes para o conhecer em sentido amplo. (...) A tekhne é um modo da aletheia. Ela desabriga o que não se produz sozinho e ainda não está à frente”27. A tekhne não consiste nos meios que o ser humano inventa para satisfazer os desígnios de uma verdade “original” que emana a priori de seu Ser, mas a própria condição de sua constituição enquanto Ser. O Ser não se produz sozinho, mas pela tekhne: ele é aquilo mesmo que a tekhne “desabriga”, revela.

Por mais que o pensamento de Heidegger a respeito da tecnologia moderna seja assimilado, em geral, como um posicionamento reacionário, essencialista e no limite apocalíptico, Stiegler observa que uma perspectiva cuidadosa de sua obra deve reconhecer igualmente as possibilidades que o filósofo atribui à tecnologia moderna enquanto destino inevitável do Ser. Nas palavras de Stiegler, “o sentido da tecnologia moderna é ambíguo na obra de Heidegger. Ela aparece simultaneamente como o obstáculo último e a possibilidade última do pensamento”28. A tecnologia moderna é, afinal, obra do ser humano, ele mesmo parte da natureza (physis): e se o estatuto do “ser humano” parece se perder irremediavelmente no curso do progresso técnico da civilização moderna, essa perda irremediável é, ainda assim, aquilo que nos torna humanos; é a nossa verdade.

A ideia de “ser humano”

Para Heidegger, a existência do ser humano enquanto Ser (Dasein) é essencialmente histórica. O Ser se constitui em relação à história que o precede e que ele herda. Isso quer dizer que a essência do ser humano, muito mais do que uma propriedade genética, congênita a ele, deve ser adquirida, interiorizada por meio da interface com um substrato histórico que lhe é, a princípio e por natureza, externo. Nas palavras de Stiegler, “O Dasein só vem ao mundo na medida em que o mundo sempre lhe precedeu em sua facticidade, [um mundo que] é já sempre o já-aí [already-there]”29. O “já-aí” compreende o conjunto de tudo aquilo já exteriorizado pelos seres humanos: objetos, lugares, signos, marcas, textos, máquinas etc.; todo o conjunto de “seres inorgânicos organizados” que se acumulam no tempo e que permanecem após a morte biológica. Um conjunto sem o qual a existência humana se tornaria inconcebível ou, ao menos, indistinguível ontologicamente dos outros animais. O já-aí [already-there] é o horizonte pré-concebido do tempo, como o passado que é meu mas que eu todavia não vivi, e ao qual

minha única forma de acesso é por meio dos rastros deixados desse passado. Isso significa que não há o já-aí, e portanto relação com o tempo, sem suportes de memória artificiais. A memória da existência das gerações que me precederam, e sem a qual eu não seria nada, me é legada em tais suportes. Essa é a memória de experiências passadas, de epigêneses passadas que não se perdem, ao contrário do que ocorre em uma espécie estritamente biológica30 Precisamente porque aquilo que garante ao ser humano a sua essência não nasce com ele, mas está já-aí, é que não se pode falar em um “afastamento da origem” como uma condição “desenraizadora”. O ser humano não se constitui em relação à sua “origem”, mas ao seu processo mesmo de afastamento dela. “O destino do Ser”, diz Stiegler sobre Heidegger, é o “esquecimento do Ser”31: sua verdade não reside num antes ao qual ele deve sempre retornar e se compatibilizar, mas num devir (becoming) que ele só pode acessar pela hypómnesis, pelos monumentos que ele herda e por aqueles que ele constrói e transmite para as gerações futuras. De forma que, sendo esse substrato “monumental” de objetos técnicos uma memória sedimentar, cumulativa, o estatuto epistêmico do ser humano é necessariamente evolutivo, diferencial. É por ser próprio do ser humano excretar esses objetos, inscrevendo sua memória no espaço inorgânico da matéria, que se pode conceber algo como a “história” ou o “progresso”.

Stiegler observa que o que torna os seres humanos ontologicamente distintos das outras formas de vida não é, como quis Platão, a capacidade de recorrer, por si só, a um aparelho inato de conhecimento da realidade. Pelo contrário, a episteme, o conhecimento verdadeiro e científico da realidade, só emerge com a possibilidade de recurso a uma memória que não é congênita a nós, mas artificial, externa e herdada em vida.

Ele recorre, para isso, ao conceito de epigênese para explicar por que aquilo que nos torna “seres humanos” não se restringe ao nosso “interior” biológico e a uma suposta razão inata, mas se encontra num exterior protético e nos suportes de memória artificiais.

Epigênese é o processo de desenvolvimento, diferenciação e individuação do ser: o processo pelo qual um indivíduo biológico vem a ser o que é. Essa formação, nas espécies não-humanas, é “programada” por duas formas distintas de memória: a memória genética, consistindo em determinações congênitas que conferem a ele seus aspectos “estáveis”, e a memória não-genética, isto é, a memória que o organismo adquire a posteriori no curso de sua experiência, e que é necessariamente contingente e variável de indivíduo para indivíduo. A memória não-genética, ainda que seja empírica e não-congênita, é igualmente determinante da individualidade, do modo de ser desse indivíduo: seus hábitos e tendências particulares, seus traumas, habilidades adquiridas, traços de personalidade, etc. Enfim, todo o “conteúdo” cognitivo que ele é

30. Stiegler, B. (1998), p. 159. Grifo meu

31. Ibid., p. 4

→ Still de "2001: Uma Odisséia no Espaço" (1968), de Stanley Kubrick

capaz de adquirir e cultivar em vida; uma memória que é produzida no seu contato com as contingências do meio (milieu), e que ele conserva em seu interior biológico.

Essa memória empírica, no entanto, diferentemente da memória genética, é intransmissível em qualquer espécie não-humana, pois está encerrada no interior do indivíduo biológico: isso quer dizer que ela está fadada a desaparecer tão logo esse indivíduo morra. Tudo o que esse indivíduo aprendeu em vida, então, é irremediavelmente perdido e deverá ser reaprendido do zero pelos seus descendentes, aos quais a única memória que ele é capaz de transmitir é a sua memória genética.

Como observou Stiegler, o surgimento do ser humano acontece, em termos evolutivos, precisamente na ruptura dessa condição: na passagem da transmissão genética para a transmissão não-genética. A memória epigenética é, por assim dizer, progressivamente “liberada”, exteriorizada, a partir do momento em que a memória orgânica é capaz de ser registrada em suportes não-orgânicos, artificiais. Nos seres humanos, (...) a camada epigenética da vida, longe de ser perdida com os viventes quando morrem, se conserva e se sedimenta, passando a si mesma adiante (...) para a posterioridade como um presente e como um dever, isto é, como destino. (...) essa sedimentação epigenética, uma memorização daquilo que veio a se tornar passado, [é] o que chamaremos de a epifilogênese do homem, querendo dizer a conservação, a acumulação e a sedimentação de sucessivas epigêneses, articuladas mutuamente. A epifilogênese é o rompimento com a pura vida, no que, nesta última, a epigênese é precisamente aquilo que não se conserva32 A “epifilogênese”, a memória sedimentar das sucessivas epigêneses humanas, é aquilo que permite o já-aí de Heidegger, a memória que rompe com o tempo, a repetição e a duração da vida orgânica ditada estritamente pela memória genética. Diferentemente dos indivíduos estritamente “zoológicos”, os primeiros hominídeos teriam se desenvolvido a partir não de dois, mas de três tipos de memória: “a memória genética; a memória do sistema nervoso central (epigenética); e a memória tecno-lógica (linguagem e técnica são aqui amalgamadas no processo de exteriorização)”33, ou então a “memória epifilogenética”.

Exteriorizada para o espaço dos “seres inorgânicos organizados”, ou objetos técnicos, essa terceira memória poderia por isso mesmo ser sucessivamente retomada e progressivamente acrescida, segundo dinâmicas próprias que não mais obedeceriam aos ritmos da natureza biológica. Trata-se do processo mesmo de aparição da “memória coletiva”, não apenas como uma fonte exógena de identificação e

32. Stiegler, B. (1998), p. 140. T.M.

33. Ibid., p. 177

34. Ibid., p. 137

35. Derrida, J. (2005), p. 56 conhecimento, mas igualmente como um vetor de diferenciação e evolução não-biológica.

Cada ser humano conhece e produz a si mesmo com base nos objetos técnicos (inclusos aí os objetos da linguagem, como palavras, conceitos e textos) que ele herda e recapitula das gerações antecedentes, e que o torna progressivamente diferente, no curso dessa acumulação, de seus antepassados. O ser humano de hoje só se identifica com o ser humano de ontem (ou com a sua “origem”) em razão da diferença entre eles.

Se é possível, portanto, atribuir à espécie humana uma propriedade invariável, uma “essência” propriamente dita, não se trata de um “o quê”, um termo referencial, mas de um “como”, uma relação diferencial. Só o que se mantém constante na história humana, só o que constitui a sua identidade, é o seu princípio de diferenciação no tempo. E essa diferenciação não-genética do ser humano – do modo com que ele entende a si mesmo e a sua realidade, do modo com que ele se compromete com o mundo ao redor, em suma, da sua própria condição epistemológica – é indissociável da diferenciação evolutiva dos objetos técnicos, e vice-versa. “O técnico inventando o humano, o humano inventando o técnico. A técnica é inventiva assim como inventada”34 .

Se retomarmos ao problema platônico da escritura, veremos então que ela repousa sobre uma oposição entre um interior "humano” e um exterior “não-humano” que não mais se sustenta diante da realidade da condição humana, a saber, a da interdependência e formação mútua entre o Ser e a prótese. O Ser é, ele mesmo, irredutível às tradicionais fronteiras congênitas do “eu”, pois o “eu” é uma montagem necessariamente expansiva e reatualizável com os “outros” da técnica. O lógos (fala) de Platão não poderia existir sem o recurso ao exterior não-biológico, aos signos protéticos que constituem a língua falada que se conservam e atualizam sempre “do lado de fora” do Ser, e que ele só pode acessar por incorporação. Ainda que “originalmente” não recorra a uma inscrição no inorgânico (ainda que não seja “escrita”), a língua falada é, necessariamente, parte indissociável do “já-aí” que é necessariamente externo ao humano: ela é composta de signos, e todo signo é um objeto do mundo exterior.

Como escreveu Derrida, “aquilo com que sonha Platão é uma memória sem signo”35: mas o que seria essa “memória sem signo” se não uma memória meramente zoológica, não-humana? Uma memória que não é capaz de sobreviver na ausência daquilo que ela comunica, uma memória não-significada, só pode ser transmitida sob a forma de sinal: por exemplo, o sinal fônico que o gorila emite não apenas na sua própria presença, mas na presença da presa, na presença do inimigo, etc. Não estando a presa ou o inimigo presentes

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