Monumento e Acidente | TFG FAUUSP 2021

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Ainda que não mencionasse o problema platônico, Simondon parecia identificar no discurso da modernidade uma espécie de reencenação trágica do phármakon: 18. Ibid., p. 45

19. “Fragmento sobre as Máquinas” integra um conjunto de rascunhos, completado em 1858, que não pretendia ser publicado por Marx, mas que esboçavam sua crítica da economia política que seria publicada posteriormente n’O Capital (1867). Os rascunhos foram compilados em 1941 sob o título Grundrisse. Ver: Karl Marx, Grundrisse (São Paulo: Boitempo, 2011), pp. 929-951 20. Marx, K. (2011), p. 929

21. Ibid., p. 930 22. Ibid., p. 929

cultura comporta, pois, duas atitudes contraditórias em relação A aos objetos técnicos: de um lado, trata-os como puras montagens de matéria, desprovidas de significação verdadeira e que apenas apresentam uma utilidade; de outro, supõe que esses objetos também são robôs e são movidos por intenções hostis em relação ao homem, representando para ele um perigo permanente de agressão, de insurreição18

Entre os mais influentes críticos da tecnologia moderna, em especial no que diz respeito ao problema da automação maquínica, Karl Marx ocupou um papel evidentemente central. Em uma anotação de 1858 que ficaria conhecida como “Fragmento sobre as Máquinas”19, Marx já alertava para a condição dos seres humanos e do “trabalho vivo” diante da progressiva maquinização do processo de produção capitalista. Embora não falasse em robôs, Marx já postulava o surgimento da máquina como a emergência de um duplo do humano, um autômato que consistia numa “força motriz que se movimenta por si mesma”20. A substituição do trabalho vivo pelo trabalho maquínico não representava, para ele, uma simples relação de concorrência ou um processo de substituição do humano pela máquina, mas uma inversão hierárquica da relação instrumental entre sujeito e objeto. Em outras palavras, não era que a máquina passava, agora, a prescindir do trabalho e da presença humana, mas que ela passava a solicitar do ser humano um outro modo de existência e uma nova forma de trabalho. Se antes os meios de trabalho da produção industrial eram as ferramentas operadas pelo ser humano, pelo trabalho vivo – a ferramenta servindo a ele de prótese, extensão de seu corpo – a automação dos meios de trabalho deslocava o próprio ser humano à condição de órgão auxiliar de um “sistema automático de maquinaria”. Mas essa inversão se estendia para muito além do âmbito da relação entre trabalho vivo e trabalho maquínico, operador e máquina: era o estatuto mesmo da episteme, do trabalho científico e intelectual, que se reorientava em função das demandas da tecnologia moderna. “A ciência, que força os membros inanimados da maquinaria a agirem adequadamente como autômatos por sua construção, não existe na consciência do trabalhador, mas atua sobre ele por meio da máquina como poder estranho, como poder da própria máquina”21. Não era mais a episteme a operadora da tekhne, a força motriz que a movimenta e direciona, mas o contrário. Com a concepção de um sistema automático de maquinaria, uma montagem híbrida “consistindo em numerosos órgãos mecânicos e intelectuais”22, Marx alçava o problema da máquina para além do indivíduo técnico, e mesmo além dos limites da fábrica, extrapolando-o para todo o espaço social e para a “condição 125


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