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O texto na arquitetura

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Bibliografia

Bibliografia

H.M. Drucker, “Marx’s Concept of Ideology” in: Philosophy, no. 180 (Cambridge: Cambridge University Press, abril 1974), p. 154

17. Bakhtin, M. (2006), p. 43 além do caráter arbitrário e impositivo da linguagem, a sua natureza invariável. Como sabemos, a mais importante condição de existência de um contrato não é necessariamente a agradabilidade entre as partes envolvidas (pois um contrato pode nos ser feito assinar sem que conheçamos ou concordemos com seus termos), mas a imutabilidade: caso qualquer um de seus termos seja modificado, o contrato se invalida completamente.

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Um contrato, ou uma “convenção” (termo que Saussure utiliza com mais frequência), sugere uma determinação prévia, única no tempo e no espaço: para além de um acordo determinante, ele é um evento necessariamente passado. Tudo o que o contrato convenciona deverá se desenrolar num depois do qual ele é sempre o antes, e com o qual ele, separado que é no tempo, nunca se comunica.

Seria possível, no entanto, conceber uma linguagem, uma ideologia ou um sistema de signos sequer que permaneça, tal como o contrato, completamente inviolável ao longo da história? Se podemos concordar que não, então talvez imagens como a do “contrato social” ou da “convenção arbitrária” falhem em descrever corretamente o domínio do ideológico (ou, como para Bakhtin, o domínio mesmo dos signos).

É que o signo ideológico, diferentemente do que quis Saussure, não se origina em convenção a priori alguma: se há nesse sentido algo que podemos chamar de “convenção”, falamos na verdade não de um antes inatingível, mas de um evento contínuo e heterogêneo que não se desenrola a partir, mas na história. O signo não nos é “dado”: ele se configura no contexto social e histórico ao qual é continuamente exposto. Foi precisamente essa ideia que permitiu a Bakhtin, em sua crítica da teoria saussuriana, expandir o escopo da teoria semiótica: Todo signo, como sabemos, resulta de um consenso entre indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processo de interação. Razão pela qual as formas do signo são condicionadas tanto pela organização social de tais indivíduos como pelas condições em que a interação acontece. (...) Só esta abordagem pode dar uma expressão concreta ao problema da mútua influência do signo e do ser; é apenas sob esta condição que o processo de determinação causal do signo pelo ser aparece como uma verdadeira passagem do ser ao signo, como um processo de refração realmente dialético do ser no signo17 O signo não responde a uma estrutura soberana e transcendental (o “contrato” da ideologia), mas a um sistema normativo cuja única condição de manutenção é a de que se permita modificar e ceder. A linguagem e a ideologia não são conjuntos demarcados ou demarcáveis: são estados de eterno conflito e transformação. São campos de batalha: implicam uma multitude de adversários, acidentes, baixas, concessões, reavaliações, etc. “Consequentemente, em todo signo

ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signo se torna a arena da luta de classes”18 .

Podemos, à luz dessa concepção pragmática de como os sistemas semióticos (e ideológicos) se configuram, recorrer a uma imagem mais adequada do que aquela do “contrato” social. Isso porque, por mais que a ideia de contrato descreva corretamente a natureza normativa desses sistemas, ela nos induz a compreendê-los como conjuntos invariáveis e externos de determinações. Penso haver, por isso, uma imagem mais apropriada para a descrição de um sistema que, embora normativo, seja essencialmente dialético como a linguagem e a ideologia devem ser: o protocolo.

Embora o protocolo, tal qual o contrato, seja um objeto coercitivo e determinante, ele é inteiramente referenciado no imperativo da interação e da contingência num meio social. O protocolo não se resume a um conjunto a priori de determinações, ou a um “antes” transcendental e inacessível, mas diz respeito a um processo autoavaliativo e continuamente generativo. Embora possua necessariamente algumas invariâncias e tendências de fixação, sua maior determinante é a admissibilidade da contingência: o protocolo produz um sistema que se adapta e reconfigura continuamente à medida em que seus termos se obstruem, modificam e reagem com fatores externos.

O protocolo, diferentemente do contrato, é um sistema dialético precisamente porque ele não se basta por si só. Pelo contrário, conceber a ideologia como protocolo implica inseri-la em um sistema de sistemas ideológicos; significa admitir a uma ideologia a coexistência, conflituosa e transigente, com muitas outras ideologias. A ideologia, como o signo mesmo, é imanente ao social: isso implica que ela só pode ser estudada como um sistema que se transforma ininterruptamente à medida em que é empregado e associado com outros. É que está contida no protocolo uma premissa que não encontramos no contrato: a comunicação. A ideia de comunicação, porque implica o espaço concreto do social, descreve um movimento dialético de causalidade mútua. Esses sistemas não são apenas empregados na comunicação, mas se constroem e modificam no trânsito dos signos num meio social.

Isso quer dizer que estudar o signo ideológico em qualquer uma de suas manifestações (na língua, na arte, na arquitetura) requer especial atenção à dimensão criativa desses sistemas. “A língua”, que para Bakhtin é análoga a quaisquer outras manifestações ideológicas, “é uma atividade, um processo criativo ininterrupto de construção (...), que se materializa sob a forma de atos individuais de fala”19. É essa premissa, voltando ao tema de onde partimos inicialmente, que nos permitirá estudar a arquitetura a partir, ou enquanto, linguagem: a comunicação.

A arquitetura, tal como o fato linguístico, pressupõe não apenas um sistema de determinações convencionadas (históricas, ideológicas,

18. Bakhtin, M. (2006), p. 45

19. Ibid., p. 72

20. Stavros Kousoulas, “Shattering the Black Box: technicities of architectural manipulation”, In: International Journal of Architectural Computing, vol. 16 (Nova Iorque: Sage, 2018), p. 298. T.M. Aqui, a crítica de Kousoulas está endereçada sobretudo à “virada digital” da arquitetura, e em especial à utilização da computação gráfica como método de projetação. O que ele chamou de “falácia etc.), mas igualmente um sistema de comunicação que não apenas reflete, mas refrata essas determinações. Se queremos descrever a arquitetura em todas as implicações que a expansão da teoria semiótica e da crítica ideológica sugerem, é preciso que reconheçamos nela, assim como em qualquer outros sistema de signos, essa dimensão da refração comunicativa: pois ela descreve o próprio movimento e manipulação dos signos no espaço social, e sobretudo o papel dos agentes que empregam e reconfiguram cotidianamente os sistemas semióticos. É preciso reconhecer, portanto, a relativa autonomia do espaço comunicacional – um espaço necessariamente acidental e refrativo – sobre o espaço abstrato das leis e determinações (as “linguagens”). Há, para isso, um termo que se mostrará especialmente útil na aplicação dessas ideias no campo da arquitetura, pois ele compreende esse espaço essencialmente dialético e imprevisível da comunicação: o texto.

O texto na arquitetura

É uma espécie de platitude corrente, na discussão arquitetônica, a premissa de que as obras de arquitetura possuem significado, ou então de que a produção arquitetônica é uma forma de significação . Mas embora ela sirva a uma primeira aproximação com os problemas tratados aqui, ela raramente permite que a discussão extrapole alguns dos caminhos viciados da tradição arquitetônica. É que os termos nos quais essa discussão é colocada, como vimos, geralmente decorrem de uma compreensão estritamente reflexiva do significado arquitetônico. Pelo lado da análise, a obra de arquitetura é frequentemente “lida” como uma expressão imediata de determinações históricas, materiais, culturais, etc., de onde é possível “inferir” seu significado. Pelo lado da atividade profissional, uma parte considerável dos arquitetos parece satisfeita com a ideia de que a produção arquitetônica se resume à fiel consideração do “contexto” determinante da forma, de onde a obra parece surgir como que por simples indução.

Trata-se de um entendimento que, nos termos da abordagem informacional de Stavros Kousoulas, “assume a primazia dos inputs e a decorrente manifestação, causalmente linear, quase mágica, dos outputs”20. Isto é, uma concepção que assume um conjunto dado e apriorístico de determinações contextuais que são então reproduzidas no espaço “textual” da arquitetura: o texto enquanto contexto. A produção de arquitetura é então compreendida como uma espécie de operação de tradução, no sentido de uma transposição (ou reflexão) imediata do contexto no texto.

Mas não é esse o caminho que queremos percorrer quando nos referimos à ideia de texto arquitetônico. Não porque desejamos conceder ao texto uma autonomia irrestrita, ou a independência de quaisquer amarras contextuais (no sentido das determinações que são “exte-

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