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A arte da construção

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Bibliografia

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comunicação de significado é também o estabelecimento de uma “diferença entre potenciais” a partir da qual se dá a produção material de um certo estado das coisas – nesse caso, o estado da ausência de crime. Dizemos que a arma é um dispositivo não apenas no que ela pode fazer, mas indissociavelmente naquilo que ela significa.

Torna-se possível, portanto, identificar no domínio geral dos símbolos (inseridos no campo ainda mais abrangente das formas) essa capacidade performativa da “disposição”. Isso ocorre justamente porque o que chamamos de símbolo (e a diferença de potenciais que pressupõe o ato de significação) está necessariamente dotado de uma existência física: o que significa dizer que a economia de significações na qual ele se insere é também, indissociavelmente, uma economia de práticas concretas.

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Mas o exemplo que utilizamos da arma descreve um símbolo ainda demasiadamente tangível: por ser um símbolo não-linguístico, a arma está ainda muito mais próxima da existência “opaca”, material, daquilo que se entende por forma, objeto, etc., do que do domínio, geralmente tido como mais “imaterial”, das significações “faladas” ou “textuais”. Veremos, entretanto, que o princípio da disposição (um princípio pragmático – um fazer – implícito a toda forma, significante ou não) se estende também ao emprego das formas verbais de significação, isto é, a todos os tipos de fala da linguagem “propriamente dita”.

Quando Agamben nos diz que a linguagem é “o mais antigo dos dispositivos”, é por reconhecer no signo linguístico essa identidade entre as coisas ditas e as coisas feitas, entre os atos de significação e os atos de produção.

Pois o que são os símbolos, as palavras e os textos, se não, relembrando Bakhtin, coisas e eventos concretos que empregamos, necessariamente, para produzir certos “efeitos estratégicos” (ainda que os mais corriqueiros, como o de “fazer compreender”)? E o que são esses efeitos estratégicos, se não configurações materiais da realidade? A pessoa à qual, por meio de uma fala minha, é “feita compreender” o que eu digo, se torna, a partir daí, necessariamente uma pessoa diferente – diferenciada –, um certo sujeito feito (compreender) por mim. Todo um conjunto de coisas e seres se reorganiza em torno da formação do mais simples enunciado: o domínio dos signos é também o domínio dos dispositivos.

No segundo livro de Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia (1980), Gilles Deleuze e Felix Guattari partem da teoria de John Austin sobre os “atos de fala”49 para postular, na linguagem, uma dimensão que não se resume à “comunicação de informação”, mas aos movimentos pragmáticos daquilo que eles acreditam ser a unidade elementar da linguagem: as palavras de ordem.

49. Em How to do Things with Words (1962), John Austin propôs a existência daquilo que chamou de atos de fala: enunciados que, para além de simplesmente comunicar algo, empenham

efetivamente certos atos concretos. Austin divide os atos de fala em três categorias: 1. os atos locutórios: “o ato de dizer algo”, ou o ato mesmo da enunciação, de proferir algo em uma situação concreta; 2. os atos ilocutórios: “a realização de um ato ao dizer algo”; por exemplo, no emprego do performativo (um padre que realiza o ato de casamentar ao dizer “Eu os declaro...”), ou do imperativo (quando Deus disse “Faça-se a luz!” empregou o ato de comandar); e 3. os atos perlocutórios: os “atos que produzimos porque dizemos algo”, como a luz que efetivamente surge em consequência do comando de Deus, ou então o ato do beijo que se realiza por efeito do dizer “Pode beijar a noiva”). Ver J.L. Austin, Quando Dizer é Fazer: palavras e ação (Porto Alegre: Artes Médicas, 1990). 50. Gilles Deleuze, Felix Guattari, Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 2 (São Paulo: Editora 34, 1995), pp. 11-2 Chamamos palavras de ordem não uma categoria particular de enunciados explícitos (por exemplo, no imperativo), mas a relação de qualquer palavra ou de qualquer enunciado com pressupostos implícitos, ou seja, com atos de fala que se realizam no enunciado, e que podem se realizar apenas nele. As palavras de ordem não remetem, então, somente aos comandos, mas a todos os atos que estão ligados a enunciados por uma “obrigação social”. Não existe enunciado que não apresente esse vínculo, direta ou indiretamente. Uma pergunta, uma promessa, são palavras de ordem50 Se, em Austin, o conceito de “ato de fala” nos diz que, mais do que dizer algo, um enunciado está sempre fazendo alguma coisa, o que Deleuze e Guattari entendem por “palavra de ordem” descreve uma espécie de relação de produção que se estabelece por efeito desse enunciado. Um enunciado, enquanto palavra de ordem, não designa um ato qualquer, mas uma operação de sujeição social (ou subjetivação: produção de sujeitos), tanto daquele que o profere quanto daqueles a quem o enunciado se dirige.

Haveria em todo ato de fala, dessa forma, não apenas um simples fazer, mas uma espécie de “ato jurídico”, uma disposição normativa dos “corpos” que, por efeito do enunciado, transformam-se em “sujeitos”. Mesmo atos de fala tão distintos como os de nomear, afirmar ou perguntar teriam sempre essa força jurídica de constranger as coisas, ou os corpos, a um estado nominal, quantificável e coordenável, de forma a inseri-los em um contexto produtivo.

Para Deleuze e Guattari, essa disposição contida no enunciado não se restringiria àqueles atos de fala que são mais propriamente “comandos” (como na sentença de um juiz “eu o condeno...” que transforma o acusado em condenado), mas ocorreria efetivamente em todo e qualquer recurso à língua, mesmo o mais descritivo.

Tomemos um exemplo dos próprios autores, quando eles nos dizem que a afirmação “Você não é mais uma criança...” não expressa o simples reconhecimento de uma realidade, mas uma intervenção, uma “transformação incorpórea” (um ato de fala que transforma um “corpo” não-discursivo em “sujeito” discursivo).

Aqui, o enunciado não é mera comunicação de um fato, mas efetivamente uma sentença que produz o sujeito da não-mais-criança: ela agora está sujeita, por exemplo, a casar, a trabalhar, a ser constrangida pelo código penal etc., isto é, a integrar toda uma economia de relações produtivas e sociais que se realizam por efeito daquele ato de fala.

Como fazer arquitetura com palavras

A partir desse momento, poderíamos nos perguntar se, tendo inicialmente partido do problema da linguagem, não estaríamos finalmente começando a falar da “arquitetura em si”.

Ou então: tendo chegado no que parece ser o limite da analogia entre a arquitetura e a linguagem (que é o problema da “forma” e do “texto”), não estaríamos em condições de superar de vez uma noção tão imprecisa quanto “linguagem arquitetônica”? Isto é, vimos que a arquitetura não apenas possui uma relativa autonomia – liberdade para determinar – em relação ao seu próprio sistema de determinações (a tradição arquitetônica, a história, a superestrutura etc.), como parece ser também, por direito, um sistema semiótico autônomo em si mesmo, com seus próprios modos específicos e instransferíveis de significação (e a-significação) sem relação direta com a língua. Por que motivo insistimos, então, em voltar ao tema da linguagem “propriamente dita”, ao problema dos atos de fala, dos enunciados, dos nomes etc., se toda a pertinência dessa temática parece se originar de uma relação estritamente analógica com a arquitetura? Acontece que, ainda que tenhamos explorado os modos pelos quais a arquitetura se assemelha a uma linguagem, resta ainda um componente fundamental de nossa interrogação da “linguagem arquitetônica”: uma que não diz respeito à analogia, mas a um compromisso direto que se estabelece entre a arquitetura e a linguagem. Um compromisso que faz da arquitetura menos um “tipo” de linguagem e mais propriamente uma operação de linguagem.

Na seção anterior, concedemos à forma arquitetônica o título de texto. Empregamos, para explicar a ideia de forma, o exemplo de “uma parede” que dissemos ser dotada de uma presença concreta que funcionaria, por analogia com a comunicação verbal, como uma espécie de ato de fala: isto é, no que ela parece nos comunicar, nos próprios termos de sua “linguagem” concreta de parede, comandos como “você não passará” ou “você está preso”; coisas que, independentemente de uma existência significante, são atos que possuem a capacidade de produzir um resultado material. Por “texto arquitetônico”, portanto, quisemos dizer que o texto é um evento concreto que não se permite explicar inteiramente em sua dimensão significante, mas deve ser considerado em sua potência pragmática: para além da comunicação de significado, a comunicação de formas.

Mas por mais que possamos compreender, partindo da ideia de “forma”, a atividade arquitetônica como a manipulação de elementos e regras internas a um sistema fechado (uma semiótica a-significante), devemos admitir que, do ponto de vista da comunicação, essa atividade nunca a explica por inteiro. Sabemos que uma forma arquitetônica não comunica apenas enquadramentos, limites, estímulos ou coor-

51. Walter Benjamin, A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica (Porto Alegre: L&PM, 2013), p. 88. denadas espaciais. Sabemos, também, que um arquiteto em posse da “linguagem arquitetônica” nem por isso emprega nessa comunicação apenas paredes, aberturas, volumes, etc. Naturalmente, uma parte indispensável do que a arquitetura comunica é, de fato, significado. Ainda que possamos dizer que é na dimensão a-significante da forma que se origina uma verdadeira possibilidade de autonomia da arquitetura diante daquilo que lhe é feito dizer ou significar, por outro lado é impossível negar que essa forma estará sempre, de um modo ou outro, dizendo e significando. Se uma obra de arquitetura faz ou não aquilo que ela nos diz, essa é uma outra discussão. O que queremos, por ora, é dizer que não há uma arquitetura de pura forma, mas sempre uma arquitetura significante. No que consiste, portanto, a significação na arquitetura?

Em tempo, é preciso que antes façamos uma ressalva a respeito dessa ênfase que queremos dar à dimensão significante da arquitetura. Embora possamos dizer que todo arquiteto enfrenta, em algum nível, a necessidade de significar a obra de arquitetura (seja ao adequá-la a uma tipologia de funções sociais, seja ao atribuir a ela um simbolismo arbitrário), nem sempre podemos dizer o mesmo daqueles aos quais essa arquitetura é endereçada. Walter Benjamin, em A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica (1935), ao descrever a arquitetura como a primeira arte de massas, fez notar que o modo com que a obra arquitetônica é habitada (ou, para nós, recebida como mensagem), pela enorme maioria da população, descreve quase sempre uma “recepção tátil [que] ocorre mais por meio do hábito do que pela atenção”51. Isto é, um modo de interlocução que não pressupõe a transferência efetiva de significado, mas mais propriamente um engajamento “desapercebido” (ou a-significante) com a forma arquitetônica, nos termos com os quais a descrevemos anteriormente.

Uma construção barroca, que é tipicamente saturada de ornamentos simbólicos e referências bíblicas (ou seja, propriamente significante), nem por isso solicitará mais a atenção e a contemplação daqueles que a utilizam cotidianamente do que um edifício moderno, digamos, “mudo”. Diferentemente da relação de excepcionalidade que se estabelece entre uma pintura e seu observador, a interlocução entre a arquitetura e seu habitante se dá muito mais no plano da forma – uma linguagem mecânica de obstruções, enquadramentos e interfaces físicas – do que no da contemplação de sua imagem ou significado. Nesse sentido, a obra de arquitetura “em si” parece ser muito mais uma coisa sofrida do que uma coisa interpretada. A interface que ela trava com seus habitantes (ou receptores) se assemelharia mais àquela que se estabelece, numa linha de produção, entre uma esteira rolante e um operário: a comunicação empregada pela esteira não solicita a consciência desse operário, mas muito mais a resposta mecânica de seus braços e mãos; não se trata de uma comunicação simbólica (um

o quê), mas uma comunicação a-significante (um como)52. Isso tudo nos sugere que a dimensão do significado não parece ser, se não, um aspecto bastante secundário da arquitetura.

Quando nos referimos, portanto, à significação na arquitetura, não estamos sugerindo que o significado seja uma propriedade inalienável da obra arquitetônica (que pelo contrário, como vimos, é bastante alienável), mas falamos de uma operação relativamente específica. De fato, diante desse modo de existência esmagadoramente tátil da arquitetura, a discussão sobre o significado arquitetônico pode nos parecer demasiadamente marginal, ou por demais descolada da realidade da obra “em si”. Não à toa, quase toda a atenção despendida na interpretação das obras de arquitetura não parte dos usuários e habitantes dessas obras, mas é quase sempre circunscrita a jurisdições externas como a “comunidade arquitetônica”. Um diálogo que, além do mais, pode prescindir inteiramente da presença do edifício em si, uma vez que o simples recurso à sua imagem gráfica (ou mesmo a sua mera menção verbal) basta para que se promova, de arquiteto para arquiteto, a discussão sobre o seu significado. Em outras palavras, a dimensão da “significação” na arquitetura não parece se originar na interação entre obra e usuário (uma relação, como vimos, bastante débil), mas a partir de uma parcela restrita de interlocutores, e quase sempre na ausência do próprio edifício. O “aqui e o agora” da arquitetura, que configuraria para Benjamin a “aura” do edifício, é inteiramente desnecessário à sua significação.

Mas o que, com respeito ao significado arquitetônico, pode parecer nesse momento uma discussão demasiadamente específica ou descolada da realidade concreta, abrirá para nós algumas vias importantes para pensarmos a arquitetura. Para nós, é precisamente esse descolamento entre a arquitetura “em si” (ou a fala da arquitetura) e a dimensão significante dessa arquitetura (a fala sobre a arquitetura) que nos interessa. A existência desse descolamento não nos servirá, aqui, para denunciar ou repreender um suposto isolamento da discussão semântica da arquitetura em relação ao seu objeto “real”. Pelo contrário, ela nos permitirá observar uma propriedade interessantíssima da obra de arquitetura, a saber: a sua capacidade de existir longe do edifício em si, ou a sua manifestação no interior da linguagem, como coisa falada. Não diremos, portanto, que a obra de arquitetura se encerra no edifício propriamente dito, mas que ela se estende a inúmeros outros suportes pelos quais ela é comunicada.

Feitas essas ressalvas, quero argumentar que tanto a produção como a interpretação de significado na arquitetura passa, necessariamente, pelo recurso a uma certa dimensão “extra-arquitetônica”; que falar em “texto” na arquitetura não implica apenas admitir a ela a autonomia comunicacional da forma, mas igualmente pensá-la como suporte para significações “externas”. Um arquiteto envolvido

52. Benjamin aproxima essa dimensão tátil, ou não-cognitiva, da arquitetura com a proposta da arte dadaísta, em sua total abdicação do significado em prol da tatilidade da forma. “Com os dadaístas, em vez de aparência atraente ou de uma construção tonal convincente, a obra de arte tornou-se um projétil. Ela golpeia o observador. Ela adquiriu uma qualidade tátil”. Benjamin, W. (2013), p. 86.

na produção de arquitetura, como sabemos, nunca se utiliza apenas do sistema que é “interno” a ela (a fala da arquitetura), mas se vê sempre na necessidade de recorrer a uma espécie de metalinguagem, a uma fala sobre a arquitetura. Mas tampouco essa fala, ou essa metalinguagem arquitetônica que produz a significação da obra, é de exclusiva propriedade de seu arquiteto-autor: pelo contrário, veremos que ela é operável por quaisquer agentes que se empenhem, a priori (na produção) ou a posteriori (na interpretação), em falar sobre ela. Diremos, assim, que uma parte considerável do fazer arquitetônico diz respeito fundamentalmente ao emprego da linguagem. Essa constatação abrirá algumas implicações interessantes mais adiante, pois nos permitirá qualificar a existência da arquitetura no domínio dos símbolos: como veremos, a principal característica do símbolo é a sua capacidade de comunicar uma ausência, de conservar um certo poder mesmo com o distanciamento de sua origem, de seu referente.

Podemos, diante disso, retornar brevemente ao nosso exemplo da “parede” no sistema arquitetônico, e de certa forma reilustrá-lo: a partir daqui, será preciso verificar não apenas o que essa forma parece dizer em si mesma (enquanto fala “da” arquitetura), mas igualmente o que se diz sobre ela: a metalinguagem que é o ato de escrever na parede, ou então de se escrever a respeito dela. O processo de “edificação” de uma obra de arquitetura não acontece apenas pelo intermédio do desenho e do assentamento de tijolos, mas igualmente pelo recurso à literatura, à iconografia, ao cinema, à publicidade, ao discurso científico, à legislação, enfim: a todo um aparelho discursivo de significação aparentemente externo, mas absolutamente indispensável a ela. Não se trata, com isso, de dizer que a arquitetura e a “linguagem arquitetônica” nunca se bastam por si mesmas, mas antes, de entender que uma consideração profunda sobre o que chamamos de “linguagem arquitetônica” não deve abarcar somente o que a arquitetura diz “em si mesma”, mas igualmente o que se diz sobre ela. De forma mais precisa, não diremos que a arquitetura “interage” com outros sistemas, mas que o que chamamos de arquitetura é, na verdade, um sistema fundamentalmente multissemiótico.

Nosso foco principal estará, nesse momento, na incidência da linguagem propriamente dita sobre a produção e a compreensão da arquitetura. Isso porque entenderemos que, dentre todas as modalidades semióticas que compõem o fazer da arquitetura, a língua é talvez a mais privilegiada. Podemos, à primeira vista, abordar dois motivos que nos obrigarão a considerar uma obra de arquitetura enquanto fato propriamente linguístico.

O primeiro, que podemos dizer ser um motivo estrutural, tem a ver com o que Bakhtin, em Marxismo e Filosofia da Linguagem, chamou de “neutralidade da palavra”. Segundo esse princípio, um produto qualquer da arquitetura (ou de qualquer outro sistema não-verbal), está

estruturalmente atado à linguagem porque os processos mesmos que lhe conferem significado são necessariamente verbais. Para Bakhtin, todo ato de cognição de um fenômeno semiótico-ideológico é necessariamente assimilado por um “discurso interior”, verbalmente constituído, que acontece na consciência do receptor do signo. A palavra não é apenas um entre outros tipos de signos, mas o próprio instrumento com o qual são decodificados, na consciência humana, todos os outros fenômenos semióticos: “Os processos de compreensão de todos os fenômenos ideológicos (um quadro, uma peça musical, um ritual ou um comportamento humano) não podem operar sem a participação do discurso interior. Todas as manifestações da criação ideológica – todos os signos não-verbais – banham-se no discurso e não podem ser nem totalmente isoladas nem totalmente separadas dele”53. Isso ocorre porque (...) a palavra não é somente o signo mais puro, mais indicativo; é também um signo neutro. Cada um dos sistemas de signos é específico de algum campo particular da criação ideológica. Cada domínio possui seu próprio material ideológico e formula signos e símbolos que lhe são específicos e que não são aplicáveis a outros domínios. (...) A palavra, ao contrário, é neutra em relação a qualquer função ideológica específica. Pode preencher qualquer espécie de função ideológica: estética, científica, moral, religiosa54 Podemos dizer, portanto, que já a partir desse “discurso interior”, as formas arquitetônicas estão sujeitas a uma espécie de metalinguagem, dado que qualquer acesso ao significado de uma obra de arquitetura é sempre o recurso a uma linguagem segunda que a “traduz” – ainda que muitas semioses não-verbais, como a arquitetura, não sejam propriamente traduzíveis.

O recurso ao “discurso interior” na arquitetura diz respeito, em especial, à interpretação da obra. É por meio dele que se pode extrair da arquitetura um significado que ela não nos diz com palavras. Embora o arquiteto possa, também, introduzir um significado a priori na obra (um significado também formulado por um discurso interior verbal), ele não estará plenamente acessível, pois deverá ser codificado na forma arquitetônica. Caberá sempre a um intérprete decodificar posteriormente os elementos dessa arquitetura, ou transformá-los em caracteres linguísticos que tornarão suas as formas “trabalháveis”. Diferentemente de um diálogo verbal, onde a comunicação entre emissor e receptor pode ocorrer, idealmente, de forma imediata e sem qualquer obstáculo à compreensibilidade (dado que a língua é um sistema muito mais consensual do que a arquitetura), a comunicação de significado arquitetônico é sempre intermediada por uma espécie de criptografia. Entre a intenção significante do emissor (caso haja uma) e a interpretação do receptor há sempre uma obstrução, ou uma mediação, que é a obra de arquitetura em si. Foi em relação a essa

53. Bakhtin, M. (2006), p. 36

54. Ibid., p. 37. Isso não quer dizer que a palavra não é em si mesma um signo ideológico, ou que a linguagem verbal seja um sistema “ideologicamente vazio”, o que, como sabemos, não é verdade. Ao invés, o sentido da “neutralidade” empregada por Bakhtin deve ser compreendida como uma intermodalidade ideológica, uma adaptabilidade a diversos outros sistemas de signos.

55. Peter Eisenman, “Arquitetura e o Problema da Figura Retórica”, in: Nesbitt, K. (2013), p. 195

56. Naturalmente que, no processo dessa decodificação, algo sempre se perde. O conteúdo semântico intencional de uma mensagem contida em um caractere arquitetônico (como o azulejo português em Paulo Mendes), pode ou não ser interpretado conforme seu autor o quis. O azulejo, nesse caso, pode ter significado para o arquiteto algo como um gesto de afirmação nacionalista (pois o azulejo é, há séculos, um elemento tradicional na arquitetura popular brasileira) na assimilação crítica de uma expressão arquitetônica internacional (o concreto aparente). Um crítico de arquitetura poderá, no entanto, decoobstrução, que num primeiro momento pode parecer uma sentença de morte à significação arquitetônica, que, em Arquitetura e o Problema da Figura Retórica (1987), Peter Eisenman observou: Dessa maneira, [na arquitetura] não temos nem um sistema consensual de signos nem uma gramática muito elaborada. Na verdade, talvez a arquitetura seja a menos representativa de todas as artes. Quando construímos uma parede, ela não só é realmente opaca, mas a sua relação com um significado é muito difícil de articular. Uma parede é uma parede, não é uma palavra, ela simplesmente é, nunca é sobre alguma coisa. É a coisa a que a palavra ‘parede’ se refere, é a condição oposta a uma palavra: as palavras são transparentes enquanto as paredes são opacas55 Entretanto, do ponto de vista do “discurso interior”, a arquitetura não é, se não, um estágio transitório e não-linguístico entre dois polos efetivamente verbais (a consciência do emissor e a consciência do receptor): ela é um discurso – ainda que em uma “língua” bastante imprecisa – codificado. Mesmo que uma forma arquitetônica possa ter sido, hipoteticamente, concebida sem nenhuma intenção significante (e portanto sem partir de um discurso interior verbal), nada impedirá que, ao ser nomeada por um intérprete, ela seja preenchida de significado; que adquira, portanto, uma existência propriamente linguística. Interpretar uma obra de arquitetura quer dizer, por isso, decodificá-la por meio desse “discurso interior”: significa trazê-la de volta ao espaço da linguagem, ou efetivamente nomeá-la.

Essa operação de nomeação é o primeiro grau da metalinguagem arquitetônica, o primeiro momento da fala sobre a arquitetura: é a transformação de uma parede concreta na palavra “parede”. Posto de outro modo, é o primeiro passo para que a metalinguagem arquitetônica (o discurso interior) possa se externalizar, dissociando-se de seu objeto e migrando para outros suportes textuais. É a partir dessa função decodificadora que se poderá, em seguida, falar ou escrever sobre a arquitetura sem que se precise estar diante dela, da forma que um crítico, por exemplo, o faz. Um discurso propriamente exterior. É claro que esse crítico também recorrerá, em paralelo ao “discurso interior”, a outras falas e referências textuais, já decodificadas e exteriores, que o auxiliarão na extração do significado de uma obra. Mas sua operação primária de significação, a que se estabelece na atenção mesma que ele aplica sobre a forma ou a imagem do edifício, é aquela pela qual ele, antes de mais nada, nomeia os caracteres da fala “da” arquitetura em caracteres linguísticos, ou símbolos propriamente ditos. Para que se possa, por exemplo, estudar o significado do emprego do azulejo português nas casas brutalistas de Paulo Mendes da Rocha (admitindo para isso que ninguém jamais o tenha feito), é preciso que esse crítico, antes de mais nada, os tenha decodificado56, isto é, nomeado o “azulejo português”. Só a partir dessa nomeação é que esse fragmento

arquitetônico poderá se dissociar do edifício em si, operar na ausência dele, e habitar os espaços discursivos de outras jurisdições textuais.

Em resumo, esse primeiro princípio metalinguístico nos diz que a semiose arquitetônica é estruturalmente indissociável e complementar à linguagem: para que ela adquira significado, ela precisa ser decodificada, significada, ou então, nomeada pela linguagem verbal; só então ela poderá servir de suporte para uma fala sobre a arquitetura.

Prossigamos: a nossa segunda afirmação sobre a metalinguagem arquitetônica dirá respeito precisamente a essa fala. Nesse caso, não diremos se tratar de uma associação estrutural entre arquitetura e linguagem, mas de uma associação histórica.

Em outras palavras, a arquitetura – ou melhor, a disciplina arquitetônica – está historicamente estruturada em torno de uma metalinguagem, de uma fala sobre a arquitetura. A mais corriqueira observação dos últimos quinhentos anos da disciplina nos permite demonstrar a indissociabilidade do vínculo entre a arquitetura e a linguagem verbal, escrita ou falada. Tentaremos abordar o porquê num momento posterior: por ora, basta que lembremos dos inúmeros tratados, manifestos, seminários, historiografias, periódicos e comícios produzidos tanto por arquitetos atuantes como por toda a classe publicitária da arquitetura (críticos, historiadores, teóricos etc.), para que digamos se tratar de uma obviedade. A dimensão verbal da arquitetura – o discurso arquitetônico – é tão importante para os arquitetos quanto o projeto e a construção. Nossa intenção será demonstrar que, precisamente, o ato de falar sobre a arquitetura – de simbolizá-la – é também parte fundamental da “edificação” arquitetônica.

A arte da construção

O que é um edifício? Pode-se, prontamente, dizer: é um certo arranjo de matéria a configurar uma forma precisa e bem delimitada, que ocupa um lugar geográfico particular. Uma “construção” qualquer. Pode-se acrescentar, ainda, que esse arranjo cumpre uma certa função, ou um uso predominantemente prático em uma formação social: morar, trabalhar, transitar, etc.

Muito se disse que a vocação do arquiteto seria a construção de edifícios. Toda uma geração de arquitetos, sabemos, subscreveu sem titubear a seguinte declaração: a arquitetura é a arte da construção. O contexto histórico dessa afirmação, no entanto, não nos diz apenas sobre aquilo que a arquitetura moderna, em sua puberdade, anunciava ser, mas igualmente sobre o que ela proclamava não ser. Mark Wigley, em Architectural Cult of Synchronization (2000), observa que o termo

dificar a sua mensagem de maneira inteiramente diferente: o azulejo português poderá aparecer, para ele, como um elemento de uma arquitetura que, ao invés de autoafirmativa, revela traços identitários de uma burguesia que nunca se desvencilhou completamente da ideologia colonial.

↑ Entrevista com Vilanova Artigas, 1978.

57. Mark Wigley, “The Architectural Cult of Synchronization”, in: October, vol. 94 (Cambridge: MIT Press, 2000), p. 38. T.M. Em nota, Wigley conta que Muthesius chegou ao ponto de persuadir Otto Wagner, pioneiro da arquitetura moderna, a mudar o nome de seu livro Moderne Architektur (1896), na reedição de 1914, para Die Baukunst unserer Zeit (“A Arte da Construção em Nosso Tempo”). “arte da construção” (Baukunst), que sintetizava o projeto da primeira geração modernista, não foi concebido como um segundo nome, mas de fato como um substituto para a palavra “arquitetura”: Críticos como Hermann Muthesius chegaram até mesmo a argumentar contra o uso da palavra Architektur, promovendo ao invés a palavra Baukunst em uma tentativa de se distanciar da monumentalidade em favor da funcionalidade. Seu tratado de 1902, Stilarchitektur und Baukunst (‘Arquitetura de Estilo e Arte da Construção’), se opõe à tentativa oitocentista de ‘fazer das tarefas cotidianas monumentos’. O que conta, aqui, é a ‘novidade’ do cotidiano ao qual a disciplina da arquitetura instintivamente resiste57 O que estava subentendido nessa renúncia à monumentalidade era mais do que a negação da história e da ideia de “estilo” que informava a produção da arquitetura oitocentista: era, sobretudo, a recusa de qualquer recurso à representação, ou ao símbolo na arquitetura . O símbolo, assim como o monumento e a história, comunica uma coisa na completa ausência dessa coisa. A arte da construção, em sua obsessão pelo ‘novo’, pretendia exatamente o oposto: ela se recusava a comunicar qualquer coisa que não fosse o aqui e o agora da arquitetura (da sua produção, da sua recepção), ou a sua pura presença. Nas primeiras décadas do século, eles rejeitaram polemicamente o emprego da pedra para rejeitar o peso da história. Eles denunciaram o monumental e recusaram o luto. Estruturas leves de metal e vidro foram concebidas para flutuar sobre a efervescência do presente. O concreto armado parecia se esquivar da história porque

podia assumir qualquer formato, e era literalmente misturado in loco. Sua vida correspondia exatamente à vida do edifício58 Um edifício “construído”, dessa forma, não remete a nada que não seja ele próprio: trata-se de “construção” no sentido mais opaco, mais intransigente do termo. A ideia de “arte da construção” era concebida, portanto, como um artifício conceitual que postulava, entre outras coisas, o privilégio da construção “material” da arquitetura em detrimento da atenção dada aos seus aspectos “metafísicos” ou simbólicos, como historicidade e significado. Um edifício não deveria simbolizar nada; não deveria recorrer a qualquer forma de “linguagem” significante, nem a qualquer expressão de uma ausência. A arte da construção deveria ser produção, e não reprodução.

Mas sabemos que, se o projeto moderno desfrutou de seu devido sucesso, não foi simplesmente porque aos seus edifícios foi permitido que falassem “por si próprios”, que convencessem o mundo pela mera força de sua presença. Até porque, como sabemos, o modernismo produziu edifícios o suficiente para preencher, quando muito, o espaço geográfico de um país nanico: como se pode dizer, então, que a arquitetura moderna conquistou o mundo? Le Corbusier atravessou o Atlântico em 1929. Seus edifícios, entretanto, permaneceram na Europa. Como foi possível, então, à sua arquitetura povoar as mentes dos pioneiros da arte da construção brasileira, e mais tarde, de certa forma, as suas cidades? O motivo, embora tenha custado a toda uma geração reconhecer com palavras, é bastante óbvio: a arquitetura moderna não era construída apenas com concreto, aço e vidro, mas igualmente com palavras, com imagens e com símbolos no geral. Tudo o que, em resumo, diremos pertencer ao domínio das falas propriamente ditas, isto é, ao espaço representacional e simbólico da comunicação. Não eram os edifícios modernos que atravessavam o atlântico, mas todo um exército simbólico de representações, de falas sobre a arquitetura moderna.

Lembremos o que dissemos, há pouco, sobre o problema do “discurso interior”. Dissemos que a obra de arquitetura possui uma existência indissociavelmente verbal que decorre da assimilação, na consciência humana, de uma forma “codificada” por meio de uma operação de interpretação. Toda obra de arquitetura, seja para ser concebida pelo arquiteto ou para ser compreendida por alguém, deve passar para essa existência interpretada: deve, portanto, se ausentar de “si mesma” e se permitir representar pelo símbolo. E isso implica que, uma vez representável, ela poderá ser transposta para o domínio externo e reprodutível das coisas faladas: a arquitetura passa a existir, a partir daí, não mais circunscrita ao espaço geográfico particular do edifício, mas no domínio público e infinitamente apropriável dos símbolos (como a palavra, mas também a imagem, o desenho etc.)59 . Um edifício pode estar por toda parte: ele pode existir como lembrança

58. Wigley, M. (2000), p. 38

59. Quando recorremos à ideia de “símbolo”, é, portanto, para enfatizar essa sua propriedade reprodutiva. Um símbolo é simultaneamente uma reprodução e um objeto reprodutível (ou, para Benjamin, um objeto destinado à reprodutibilidade). A palavra “livro” é um símbolo: ela tanto reproduz, ou re-presenta, um objeto que pode estar ausente (o livro “em si”) como é também, ela mesma, um objeto reprodutível que, por

natureza, pode ser reiterado infinitamente (por exemplo, nas sucessivas e independentes enunciações da palavra “livro” que aludem a um mesmo objeto ausente).

60. Beatriz Colomina, “Introduction: On Architecture Production and Reproduction”, in: Colomina, B, Ockman, J. (ed.), Architectureproduction (Nova Iorque: Princeton Architectural Press, 1988), p. 7 imaginária, ou então estar disseminado na fala popular, nos anúncios publicitários, nos textos acadêmicos, na fotografia e no cinema, na literatura ficcional e nos manifestos políticos, etc. Um universo que não é em nada composto de edifícios, mas de interpretações – o que equivale a dizer: representações e reproduções.

Em Architectureproduction (1988), Beatriz Colomina nos fornece uma imagem precisa do que queremos dizer por essa condição essencialmente representacional e interpretativa da arquitetura. Ela recorre, para isso, ao mito grego de Dédalo, o experiente artesão que teria construído, para o rei Minos, um labirinto para abrigar o Minotauro. Embora tido como “o primeiro arquiteto”, Dédalo não compreendia a estrutura do labirinto que havia construído e, uma vez dentro dele, só foi capaz de escapar fabricando asas artificiais para que pudesse voar. Colomina argumenta, diante disso, que o real pioneiro da arquitetura não teria sido Dédalo, que havia se mostrado incapaz de compreender sua própria criação, mas na verdade a princesa Ariadne. Apaixonada pelo prisioneiro Teseu, que havia sido enviado ao Minotauro como oferenda sacrificial, Ariadne o presenteou com um longo fio de lã que o permitiria, com sucesso, escapar do labirinto: Ainda que Ariadne não tivesse construído o labirinto, foi ela quem o interpretou; e isso é arquitetura no sentido moderno do termo. Ela alcançou essa proeza por meio da representação, isto é, com a ajuda do dispositivo conceitual que é o novelo de lã. Podemos compreender esse presente [de Ariadne] como a ‘primeira’ transmissão de arquitetura por meios que não fossem ela própria; como a primeira representação da arquitetura. O fio de Ariadne não é apenas uma representação (dentre as infinitas outras possíveis) do labirinto. Ele é um projeto, uma autêntica produção, um dispositivo que tem por resultado lançar a realidade em crise. E conclui:

A história anterior implica o seguinte: a arquitetura, diferentemente da construção, é um ato interpretativo e crítico. Ela possui, diferentemente da condição prática da construção, uma condição linguística. Uma construção é interpretada quando os seus mecanismos e princípios retóricos são revelados. (...) Um ato de interpretação se faz também presente nos diferentes modos de discurso representacional: desenho, escrita, modelagem, e assim por diante. A interpretação é também integral ao ato de projetar60 Interpretar ou representar uma obra de arquitetura é, portanto, extrair dela um conceito, ou um símbolo, que, por sua vez, funcionará como essa espécie de “dispositivo”. O que queremos dizer com isso é que, diferentemente do que quiseram os adeptos da pura forma e da pura presença na arquitetura, a dimensão representacional e simbólica da arquitetura não é um simples reflexo, ou um simulacro de seus aspectos formais e materiais. A representação na arquitetura

não é mero ornamento, ou algo que fl utua dissimuladamente na superfície da realidade material, mascarando uma suposta essência ou “aura” do objeto. Pelo contrário, atribuir à representação arquitetônica o título de “dispositivo” implica em compreender como a palavra, a imagem e o símbolo podem agir produtivamente sobre essa realidade material. O recurso a esses diferentes tipos de representação na arquitetura, que podemos desde já dizer que compõem o discurso arquitetônico, é construtivo à maneira dos “atos de fala” que mencionamos anteriormente: revelam, portanto, uma identidade entre o “dizer” (todas as formas de representação) e o fazer (produzir, construir) na arquitetura.

Colomina se ocupou de demonstrar que, diferentemente do que defendiam os primeiros teóricos das vanguardas modernistas (ao celebrarem, em um embate direto com a cultura de massas e com a reprodutibilidade técnica da arte, um formalismo da pura presença da forma artística61), o projeto das vanguardas arquitetônicas do século XX envolvia uma profunda assimilação dos novos suportes representacionais da arquitetura, para além de sua dimensão “construtiva”. Para ela, a emergência da arquitetura moderna não era apenas concomitante, mas diretamente resultante do advento das mídias de massa (e particularmente da mídia impressa), que alteravam profundamente os modos de produção e consumo da arquitetura. O fervor produtivo e edifi catório dessa arquitetura mal se equiparava à quantidade de suportes falados que, no início do século XX, se disponibilizavam aos ↑ "Maze" (1984), do arquiteto John Hejduk

61. Colomina, B. (1988), p. 13. T.M. Aqui, a autora se dirige à tradição crítica que se desenvolveu em torno da produção teórica do pós-guerra (especialmente a partir de Adorno e Greenberg nas artes visuais e de Rowe e Slutzky na arquitetura), que havia se concentrado na estética e na “vida interna do objeto autônomo e autorreferente”. A essa tradição, Colomina opõe a virada crítica operada por autores como

Manfredo Tafuri, que, em sua recuperação da análise benjaminiana sobre a reprodutibilidade técnica e a cultura de massas, voltavam a atenção para as condições específicas de produção e reprodução da arquitetura, e para “a arte e a arquitetura enquanto instituições, ao invés de uma série de protagonistas e monumentos individuais” 62. Ibid., p. 9 63. Sobre essa defasagem teórica, Colomina cita uma passagem de 1968 de Tafuri: “A análise de Walter Benjamin sobre as consequências semânticas, operativas, mentais e comportamentais da tecnologia moderna permanecem um caso isolado na história da crítica contemporânea (...). Os desentendimentos que dominaram a cultura arquitetônica a partir de 1945 derivam, em grande parte, da interrupção da análise benjaminiana: uma análise, devemos enfatizar, estrutural, para além de qualquer significado elegante do termo ou do conceito”. Tafuri, M., apud. Colomina, B. (1988), p. 10. T.M. 64. Colomina, B. (1988), p. 15-6 65. Benjamin, W. (2013), p. 58 66. Colomina, B. (1988), p. 9. T.M arquitetos e que eles incessantemente requisitavam. Até então, nunca se havia escrito, fotografado e publicado tanto sobre arquitetura: Até o advento da fotografia, e anteriormente da litografia, a audiência da arquitetura era o usuário. Com a fotografia, a revista ilustrada e o turismo, a recepção da arquitetura passou a ocorrer também por meio de uma forma social adicional: o consumo. Com a enorme amplificação da audiência, a relação com o objeto mudava radicalmente62 . Por mais que a assimilação das novas condições de produção e reprodução da arquitetura moderna tenha levado algumas décadas para ser reconhecida pelos críticos63 (paradoxalmente, os agentes publicitários da arquitetura por excelência), Colomina aponta que o problema da reprodutibilidade técnica já figurava, desde o início, entre as preocupações fundamentais da prática arquitetônica das vanguardas. Diante disso, o exemplo de Le Corbusier teria sido, para ela, o mais emblemático. Um ávido colecionador de imagens, catálogos e anúncios da mídia impressa, Corbusier soube desde cedo compreender os novos modos de existência que a era das mídias de massa impunha à obra de arquitetura. A pesquisa experimental por trás do periódico que criou em 1920, L’Espirit Nouveau, demonstrava que, para ele, o edifício não era se não um dos caracteres do fluxo representacional de imagens e palavras que compreendia o real modo de assimilação da arquitetura na era do consumo de massas. Le Corbusier, que foi convencionalmente lido como a epítome do ‘modernismo’, foi talvez o primeiro arquiteto a compreender integralmente a natureza da mídia. Ele via na imprensa, a mídia impressa, não apenas um meio de difusão cultural para algo previamente existente, mas (...) um novo contexto de produção, paralelamente existente ao canteiro de construção64 Muitos anos antes de Benjamin publicar, em 1935, A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica, Corbusier já havia compreendido, de antemão, que a verdadeira reivindicação da obra de arquitetura na modernidade não se encerrava nos limites do edifício e nos seus atributos estéticos internos. Pelo contrário, a obra de arquitetura deveria, de todas as formas, se ausentar de si mesma, abdicando de qualquer exigência de origem em favor de uma práxis dos meios, ou mídias: um processo em que, nas célebres palavras de Benjamin, “a obra de arte reproduzida torna-se, progressivamente, a reprodução de uma obra destinada à reprodutibilidade”65. Não se tratava apenas de permitir à obra de arquitetura, uma vez construída, figurar os livros e as revistas ilustradas. Tratava-se, na verdade – uma vez reconhecido que o consumo da arquitetura não se encerrava mais no usuário mas, como disse Colomina, na audiência (“o turista na frente de um edifício, o leitor de um periódico, o espectador de uma exibição ou de um anúncio de jornal”66) – de um exercício efetivo de se fazer arquitetura

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