Monumento e Acidente | TFG FAUUSP 2021

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comunicação de significado é também o estabelecimento de uma “diferença entre potenciais” a partir da qual se dá a produção material de um certo estado das coisas – nesse caso, o estado da ausência de crime. Dizemos que a arma é um dispositivo não apenas no que ela pode fazer, mas indissociavelmente naquilo que ela significa. Torna-se possível, portanto, identificar no domínio geral dos símbolos (inseridos no campo ainda mais abrangente das formas) essa capacidade performativa da “disposição”. Isso ocorre justamente porque o que chamamos de símbolo (e a diferença de potenciais que pressupõe o ato de significação) está necessariamente dotado de uma existência física: o que significa dizer que a economia de significações na qual ele se insere é também, indissociavelmente, uma economia de práticas concretas. Mas o exemplo que utilizamos da arma descreve um símbolo ainda demasiadamente tangível: por ser um símbolo não-linguístico, a arma está ainda muito mais próxima da existência “opaca”, material, daquilo que se entende por forma, objeto, etc., do que do domínio, geralmente tido como mais “imaterial”, das significações “faladas” ou “textuais”. Veremos, entretanto, que o princípio da disposição (um princípio pragmático – um fazer – implícito a toda forma, significante ou não) se estende também ao emprego das formas verbais de significação, isto é, a todos os tipos de fala da linguagem “propriamente dita”. Quando Agamben nos diz que a linguagem é “o mais antigo dos dispositivos”, é por reconhecer no signo linguístico essa identidade entre as coisas ditas e as coisas feitas, entre os atos de significação e os atos de produção. Pois o que são os símbolos, as palavras e os textos, se não, relembrando Bakhtin, coisas e eventos concretos que empregamos, necessariamente, para produzir certos “efeitos estratégicos” (ainda que os mais corriqueiros, como o de “fazer compreender”)? E o que são esses efeitos estratégicos, se não configurações materiais da realidade? A pessoa à qual, por meio de uma fala minha, é “feita compreender” o que eu digo, se torna, a partir daí, necessariamente uma pessoa diferente – diferenciada –, um certo sujeito feito (compreender) por mim. Todo um conjunto de coisas e seres se reorganiza em torno da formação do mais simples enunciado: o domínio dos signos é também o domínio dos dispositivos. No segundo livro de Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia (1980), Gilles Deleuze e Felix Guattari partem da teoria de John Austin sobre os “atos de fala”49 para postular, na linguagem, uma dimensão que não se resume à “comunicação de informação”, mas aos movimentos pragmáticos daquilo que eles acreditam ser a unidade elementar da linguagem: as palavras de ordem. 44

49. Em How to do Things with Words (1962), John Austin propôs a existência daquilo que chamou de atos de fala: enunciados que, para além de simplesmente comunicar algo, empenham


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