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O contrato e o protocolo

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Bibliografia

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incontornável: como admitiu Barthes, “nunca posso falar senão recolhendo aquilo que se arrasta na língua”13 .

A aplicação da crítica ideológica ao estudo de outros sistemas semióticos não foi menos importante. Na arquitetura, embora tardia, ela serviria para desmontar alguns pressupostos fundamentais à história da disciplina; pressupostos tão persistentes, tão requentados ao longo dos séculos que pareciam ocupar um lugar inquestionável na axiologia “racional” da teoria arquitetônica. É o caso, como observaram Agrest e Gandelsonas, de uma “concepção implícita que fundamentou a ideologia arquitetônica desde os tratados clássicos até a abordagem funcionalista”: a de que haveria um “vínculo supostamente natural entre a função e a forma de um objeto”14 .

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Uma concepção que, sabemos, tomou muitas formas ao longo da história. Podemos traçá-la, por exemplo, ao arquétipo naturalista da cabana primitiva de Laugier, em sua apologia à emergente arquitetura neoclássica: para o francês, a forma arquitetônica ideal seria aquela originada não pelo arbítrio do arquiteto, mas à imagem da própria natureza. De fato, o álibi da teoria neoclássica não passava, do ponto de vista da crítica ideológica, de um sintoma do próprio funcionamento da ideologia burguesa em formação: uma ideologia que, para se consolidar e se manter no poder, precisaria nomear seus próprios signos, construir seus próprios palácios, e integrá-los à paisagem “natural” da vida social.

Mas é preciso destacar, nessa crítica ideológica dos sistemas semióticos, um perigo fundamental: ela corre o risco de reproduzir, em seu uso do conceito de ideologia, os próprios axiomas que ela pretende contestar.

Como vimos, seja qual for o seu objeto, a crítica ideológica tem por finalidade e mérito desnaturalizar o significado das coisas: ao invés de inscrevê-las numa relação de causalidade natural (significado inerente), ela revela nas coisas sua convencionalidade e o seu caráter impositivo (significado arbitrário). As coisas têm significado, portanto, porque assim foi convencionado pela “história” e assegurado pelas “classes dominantes”. Tal é o sentido atribuído à ideologia: uma estrutura (im)positiva (porque dispõe sobre o significado das coisas), invariável (porque é inacessível e inalterável pelo arbítrio individual), apologética (porque naturaliza o estado atual das coisas), e transcendental (porque se forma antes e independentemente da vontade humana). Tais são, aliás, as mesmas características que a teoria saussuriana atribui à linguagem.

No entanto, não seriam estes os atributos mesmos da natureza que a crítica ideológica e a teoria semiótica procuraram desmontar em primeiro lugar? Que vantagem tem, na explicação da linguagem ou da ideologia, uma teoria crítica que, por um lado, se desfaz de um modelo naturalista (o signo como reflexo da natureza), e por outro

13. Roland Barthes, Aula (São Paulo: Cultrix, 2007), p. 7 14. Agrest, D.; Gandelsonas, M. (2013), pp. 135-6

→ Frontispício do Essai sur l’Architecture (1753), de Marc-Antoine Laugier. Ilustrado por Charles-Dominique-Joseph Eisen

lado o substitui por um modelo perfeitamente análogo (o signo como reflexo da ideologia dominante)? Tomemos o exemplo de Saussure, para quem a determinação da linguagem residiria no que ele chamou de “fatores históricos”, e para quem (...) a língua aparece sempre como uma herança da época precedente. O ato pelo qual, em dado momento, os nomes teriam sido distribuídos às coisas, pelo qual um contrato teria sido estabelecido entre os conceitos e as imagens acústicas – esse ato podemos imaginá-lo, mas jamais ele foi comprovado15 Reconheçamos o mérito dessa afirmação: a linguagem não se configura por determinação natural, mas artificial e histórica. É isso que explicaria, por exemplo, a existência de não uma única, mas muitas línguas – ou, por analogia, muitas arquiteturas – diferentes ao redor do mundo: nenhuma delas emanaria de uma realidade universal (a “natureza” das coisas), mas sim dos diferentes sistemas ideológicos que, em algum momento, as determinaram: a língua francesa “reflete” a ideologia francesa, a arquitetura colonial brasileira “reflete” a ideologia colonial brasileira, etc. No entanto, permanece ainda em suspenso: no que consiste esse “dado momento”, ao qual Saussure se refere, da configuração da linguagem? Ou então: onde e quando, exatamente, acontece esse antes que precede o signo e que não nos é permitido acessar, mas apenas conjecturar? A resposta o próprio Saussure nos dá: não se sabe. Mas não porque se trate de um fato inverificável, e sim porque esse eterno “antes”, essa entidade transcendental e inexorável que Saussure chama de “história” é, por definição, uma estrutura a-histórica. A-histórica porque inacessível, inverificável e perfeitamente homogênea; porque análoga, paradoxalmente, à própria noção de “natureza” que a sua teoria da arbitrariedade do signo havia acabado de desmontar. A desnaturalização da linguagem corre o risco de se tornar a naturalização da ideologia.

O perigo dessa crítica ideológica está, portanto, em conceber a ideologia nos mesmos termos com que Saussure concebe a linguagem. Quando temos simplesmente que ideologia = ideologia dominante, então por “ideologia” queremos dizer: um aparelho único e invariável que exerce total domínio sobre as práticas e subjetividades humanas. Mas se, tal como a linguagem de Saussure, a ideologia é tratada como esse ente transcendental e inexorável, então a própria realidade histórica da ideologia (defendida, aliás, pelo próprio Marx16) – se planifica: passamos a falar não de um fenômeno social, mas de uma invariante “natural”.

O contrato e o protocolo

Quando Saussure concebeu a linguagem como originada a partir de um “contrato” social entre as formas e os conceitos, foi para postular, para

15. Saussure, F. (2006), pp. 85-6.

16. Como observou H. M. Drucker, “(...) quando Marx se refere à ideologia, ele está empregando o termo em duas formas distintas e historicamente diferenciadas. Quando ele se refere ao pensamento característico de uma classe ascendente – mais especificamente o da burguesia antes de tomar o poder – ele está falando de algo bastante distinto do pensamento característico de uma classe dominante – a burguesia uma vez no poder.” Ver

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