Monumento e Acidente | TFG FAUUSP 2021

Page 24

incontornável: como admitiu Barthes, “nunca posso falar senão recolhendo aquilo que se arrasta na língua”13. A aplicação da crítica ideológica ao estudo de outros sistemas semióticos não foi menos importante. Na arquitetura, embora tardia, ela serviria para desmontar alguns pressupostos fundamentais à história da disciplina; pressupostos tão persistentes, tão requentados ao longo dos séculos que pareciam ocupar um lugar inquestionável na axiologia “racional” da teoria arquitetônica. É o caso, como observaram Agrest e Gandelsonas, de uma “concepção implícita que fundamentou a ideologia arquitetônica desde os tratados clássicos até a abordagem funcionalista”: a de que haveria um “vínculo supostamente natural entre a função e a forma de um objeto”14. Uma concepção que, sabemos, tomou muitas formas ao longo da história. Podemos traçá-la, por exemplo, ao arquétipo naturalista da cabana primitiva de Laugier, em sua apologia à emergente arquitetura neoclássica: para o francês, a forma arquitetônica ideal seria aquela originada não pelo arbítrio do arquiteto, mas à imagem da própria natureza. De fato, o álibi da teoria neoclássica não passava, do ponto de vista da crítica ideológica, de um sintoma do próprio funcionamento da ideologia burguesa em formação: uma ideologia que, para se consolidar e se manter no poder, precisaria nomear seus próprios signos, construir seus próprios palácios, e integrá-los à paisagem “natural” da vida social. Mas é preciso destacar, nessa crítica ideológica dos sistemas semióticos, um perigo fundamental: ela corre o risco de reproduzir, em seu uso do conceito de ideologia, os próprios axiomas que ela pretende contestar. Como vimos, seja qual for o seu objeto, a crítica ideológica tem por finalidade e mérito desnaturalizar o significado das coisas: ao invés de inscrevê-las numa relação de causalidade natural (significado inerente), ela revela nas coisas sua convencionalidade e o seu caráter impositivo (significado arbitrário). As coisas têm significado, portanto, porque assim foi convencionado pela “história” e assegurado pelas “classes dominantes”. Tal é o sentido atribuído à ideologia: uma estrutura (im)positiva (porque dispõe sobre o significado das coisas), invariável (porque é inacessível e inalterável pelo arbítrio individual), apologética (porque naturaliza o estado atual das coisas), e transcendental (porque se forma antes e independentemente da vontade humana). Tais são, aliás, as mesmas características que a teoria saussuriana atribui à linguagem. No entanto, não seriam estes os atributos mesmos da natureza que a crítica ideológica e a teoria semiótica procuraram desmontar em primeiro lugar? Que vantagem tem, na explicação da linguagem ou da ideologia, uma teoria crítica que, por um lado, se desfaz de um modelo naturalista (o signo como reflexo da natureza), e por outro 24

13. Roland Barthes, Aula (São Paulo: Cultrix, 2007), p. 7 14. Agrest, D.; Gandelsonas, M. (2013), pp. 135-6

Frontispício do Essai sur l’Architecture (1753), de Marc-Antoine Laugier. Ilustrado por Charles-Dominique-Joseph Eisen


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.