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Brasília

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Bibliografia

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1. Vitrúvio. Preâmbulo do Livro 4 de Tratado de Arquitetura (São Paulo: Martins Fontes, 2007), p. 199 Tendo reparado, ó Imperador, que muitos deixaram dispersos preceitos e livros de comentários sobre arquitetura, como partículas não ordenadas e apenas principiadas, julguei que seria digno e utilíssimo ordenar antes de mais nada o corpus dessa disciplina segundo uma metodologia equilibrada - Vitrúvio1

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Comecemos com uma espécie de conclusão. Para que possamos, a um só tempo, de certo modo sintetizar tudo o que foi dito até aqui sobre o “símbolo” e sobre o “texto”, mas também proporcionar uma espécie de abrigo conceitual para que percorramos, com mais segurança, este capítulo que se inicia, penso haver uma palavra-chave particularmente elucidativa. Uma palavra que, para que seja sintética mas também produtiva em si mesma, deve ser necessariamente ambígua: registro. A palavra “registro” não apenas resume, de forma clara, a ideia que queremos fazer do símbolo, como também propõe uma ambiguidade estratégica que se conservará ao longo de todo o trabalho sob diversos outros temas e conceitos.

Um “registro” pode ser lido de duas formas distintas. Seu primeiro sentido diz respeito ao ato de registrar, de escrever e inscrever ou, como diria Derrida, de produzir uma marca. Já nesse primeiro sentido do registro, nos deparamos com uma ambiguidade interna: um “registro” pode descrever tanto uma ação como um objeto. Ele aponta para a necessidade de se pensar os objetos como coisas inseridas em práticas concretas e materiais: registrar é produzir coisas.

Segundo: podemos dizer, para além do sentido anterior, que um registro é um objeto que contém, que preserva. Quando utilizamos a palavra “registro” nesse sentido, geralmente nos referimos a um objeto individual que pode conter, ele mesmo, uma multiplicidade de outros registros: por exemplo, um livro contábil, uma árvore genealógica, um registro paroquial, etc. Aqui também falamos de um objeto que pressupõe uma ação; mas, para além do “ato de registrar”, nos referimos

ao ato de armazenar, ou ao ato de preservar. E, se os atos “armazenar” e “preservar” têm sempre por objeto certas coisas ou registros preexistentes (passados) que ele deve ajuntar, então o registro é sempre uma operação histórica. Ele é algo como uma extração, uma corporificação, uma “unificação” de dados passados que ele tem por função manter sempre presentes. O registro atualiza e materializa a história.

Desses dois sentidos do “registro” temos, portanto, que: 1. O registro é um objeto, uma marca, uma materialização. 2. O registro se insere em um regime de práticas: ele não apenas pressupõe o ato da “escrita” do qual ele é o produto, como atua no sentido de armazenar, preservar e indexar, dentro de si, a memória de registros anteriores. 3. O registro é, ao mesmo tempo, um e muitos: ele é um estado corpóreo (um corpus) para a manifestação de uma multiplicidade de fantasmas que se acumulam e se permitem nomear por ele.

O registro explica a ideia que fazemos do “símbolo”. Lembremos do que Derrida chamou de a capacidade iterativa do texto escrito, da “marca”, do símbolo: cada iteração, cada repetição de um signo ou símbolo qualquer implica um novo contexto histórico, ou uma nova camada de significado atribuída a ele. No símbolo estão sedimentadas (ou registradas) as memórias de todas as coisas e eventos aos quais ele um dia já se referiu, coisas e eventos já mortos mas que, não obstante, permanecem conservados e nomeáveis por ele.

A coluna dórica, na Grécia Antiga, significava “originalmente” uma certa coisa, e estava associada a um certo contexto, a um certo estado das coisas que ela servia para nomear2. Mas a mesma coluna dórica, conforme descrita por Vitrúvio séculos depois, na era de ouro do Império Romano, era por sua vez uma nova iteração da coluna: ela significava uma outra coisa, servia para outros propósitos e outras práticas. E, não obstante, a coluna original permanecia ainda nomeada, ou citada na coluna dórica romana. Na iteração vitruviana, a coluna conservaria não apenas o sentido histórico e a mitologia atribuída a ela no passado grego3, como passaria também a existir, a partir do Império Romano, sob um novo regime simbólico e social. O mesmo se pode dizer das sucessivas iterações da coluna dórica ao longo da história, seja na Renascença do séc. XVI, no Revivalismo Grego do XVIII, ou mesmo no pastiche pós-moderno: cada uma de suas citações é uma paragem, um novo momento de registro e de acúmulo no interior do símbolo.

O símbolo é o registro de muitas falas: e essas falas são justamente, retomando Barthes, “aquilo que se arrasta na língua”4 (e, por extensão, em todo sistema de signos). O ato de empregá-lo, de “dizer” o símbolo, é sempre um ato de citação, uma reencarnação. É falar coisas novas em línguas mortas, fazer ressoar vozes ausentes e antigas. Deleuze e Guattari, nos Mil Platôs, escreveram: “Existem muitas paixões em uma paixão, e todos os tipos de voz em uma voz, todo um rumor, glos-

2. Pode-se mesmo dizer que a ordem dórica do período helênico, ao invés de uma manifestação “original”, era ela mesma uma iteração das antigas construções em madeira que, segundo Vitrúvio, teriam servido de modelo para a elaboração das ordens clássicas em pedra. Ver: Vitrúvio (2007), p. 208 3. Discorrendo sobre as origens da ordem dórica, Vitrúvio atribui a Doro, filho de Heleno, a primeira concepção deste estilo, empregada de forma “casual” num templo para a deusa Juno. A sistematização da ordem dórica teria, posteriormente, cabido aos habitantes da Jônia, que teriam se baseado nas proporções do corpo masculino para a composição das colunas de seus templos. “Deste modo, a coluna dórica começou a mostrar nos edifícios a proporção, a solidez e a elegância de um corpo viril”. De modo que, a partir daí, e ao longo de todo o período do classicismo moderno, o emprego da ordem dórica esteve sempre associado à simbologia masculina (como em templos a deuses masculinos e edifícios militares). Vitrúvio (2007), p. 202. 4. Barthes, R. (2013), p. 7

5. Deleuze, G; Guattari, F. (1995), Livro 2. p. 9. Do dicionário Michaelis: “Glossolalia. s.f. 2. Fenômeno caracterizado pela pretensa capacidade de falar em línguas desconhecidas, que pode ocorrer a uma pessoa em exaltação religiosa” 6. Victor Burgin apud. Colomina, B. (1988), p. 23. Grifo meu solalia: isso porque todo discurso é indireto, e a translação própria à linguagem é a do discurso indireto”5 .

Mas se essa discussão soa ainda estranha demais para a tradição conceitual da arquitetura, podemos reilustrá-la com um termo mais familiar: o cânone. Conforme escreveu Victor Burgin, “O cânone é aquilo sobre o qual se escreve, aquilo que se coleciona, que se ensina; ele é autoperpetuante, autojustificante e arbitrário (...). O cânone é o discurso encarnado; o discurso é o espírito do cânone”6 O cânone é tudo “aquilo sobre o qual se escreve, aquilo que se coleciona”: aquilo que está registrado, ajuntado no símbolo. O cânone é “aquilo que se ensina”: aquilo que é iterado, reproduzido, passado adiante. O cânone é um “discurso encarnado”: ele é uma fala que contém muitas outras. O cânone é o cerne da disciplina arquitetônica. Ele diz respeito à tarefa maior da arquitetura, e à fonte de toda a sua autoridade, a saber: a configuração de um registro, uma instituição, um arquivo, um corpus de autores, práticas, saberes e enunciados que se acumulam em seu interior, e que são reconvocados a cada nova iteração, a cada nova aparição da obra de arquitetura. Uma obra de arquitetura é uma multiplicidade enjaulada; ela é uma e muitas.

Brasília

O caso de Brasília talvez seja o exemplo mais nítido do que queremos dizer com isso: nunca antes em nossa história uma obra de arquitetura ou urbanismo nasceu tão impregnada de simbolismo e discurso, nem ocupou lugar tão central nos “cânones” da cosmologia brasileira. Ali materializavam-se não apenas os postulados morais e estéticos do discurso moderno; erguiam-se conjuntamente muitos outros discursos e monumentos, alguns deles tão antigos quanto o próprio país. Seria possível que a população brasileira, à época de sua inauguração, pudesse mesmo enxergá-la sem que o fizesse também através das anunciações proféticas dos jornais e revistas, das promessas dos oradores políticos, da futurologia dos anúncios coloridos? Que dizer então de toda a mitologia nacional que, em razão do boom historiográfico e artístico da primeira metade do século XX, finalmente começava a se alojar no fundo da subjetividade brasileira? Haveria Brasília sem toda a historiografia das insubordinações coloniais, sem a ideia de um destino fatalmente heroico que, prenunciada pelas narrativas do bandeirismo, assombrava a identidade brasileira? Sem as lendas sobre a profecia de D. João Bosco? Ou mesmo sem o estado mental do “desrecalque” construído pelo espírito de 22, e de certa forma consolidado com a Revolução de 1930?

Por toda parte, fosse nos anúncios de eletrodomésticos, fosse nos comícios presidenciais, a ideia de Brasília ecoava como um chamado

uníssono de muitas vozes; um discurso histórico inteiramente conjugado no imperativo da “renovação”; uma convocação à síntese e à introversão (ou “interiorização”) de uma nação recém-liberta e enfim soberana.

Muitas metas e muitos mitos estavam nomeados no discurso total que deu – e continua a dar – forma a Brasília. A alcunha de “meta-síntese”, proposta por Juscelino Kubitschek em referência ao seu plano de trinta metas para a modernização brasileira, do qual a construção de Brasília seria a trigésima primeira, torna-se especialmente importante se considerarmos que estão inclusas nessa “síntese” muito mais do que estratégias governamentais e projetos de futuro. O desejo de síntese – que é sempre um desejo de símbolos – sob o efeito do qual Brasília parece ter surgido quase que espontaneamente, ou nas palavras de Lucio Costa, “por assim dizer, já pronta”7, nos sugere que a potência discursiva da nova capital não se esgotava num projeto de futuro; mas que, antes de mais nada, o desígnio de Brasília era igualmente a consolidação de um projeto de passado, a historiografia de um mito-síntese.

Como um dos grandes oradores da modernidade brasileira, e tal qual JK, Lucio Costa foi um dos agentes que se encarregaram de edificar uma versão da história nacional que culminaria inevitavelmente em símbolos como Brasília. A humildade com que esses agentes de discurso se colocavam diante da tarefa monumental dava a entender, no entanto, que eles não eram senão meros súditos de um desejo coletivo imemorial. O gesto inaugural do arquiteto, “o gesto primário de quem assinala um lugar ou que dele toma posse, dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”8 parecia surgir para Lucio Costa como que por um milagre da psicografia: a transcrição das vozes antigas e imemoriais do mito brasileiro.

Teria sido impossível conceber algo como Brasília, “a primeira das capitais de uma nova civilização” nas palavras de um deslumbrado André Malraux9, ou mesmo a ideia, até hoje tão contraintuitiva, de uma Arquitetura Moderna Brasileira, sem a co-incidência das muitas vozes – de interesses muitas vezes incompatíveis, mas sempre em uníssono – que tratavam de mobiliar a casa do mito brasileiro. E o que é particular a todo mito é precisamente o modo com que ele confunde a historiografia com a história mesma; transforma os agentes do discurso em vetores de um desejo imemorial, coletivo e demasiadamente grande para ter sido fabricado por qualquer intenção individual.

Havia ali, no mito de Brasília, acomodados sob o mesmo símbolo, muitos interesses e paixões: o trabalho mental de superação dos complexos coloniais; o desejo de termos todos um fusca e um liquidificador elétrico; o imperativo político de nomear os signos de um passado heroico; o apetite reprodutivo das mais arcaicas estruturas sociais; todos coabitando o mesmo discurso, reunidos em torno do

7. “Não pretendia competir e na verdade não concorro – apenas me desvencilho de uma solução possível, que não foi procurada, mas surgiu, por assim dizer, já pronta”. Trecho do relatório elaborado por Lucio Costa para o Plano Piloto de Brasília em 1957, e publicado na Edição Comemorativa da Transferência da Capital Federal para Brasília em Diários Associados: O Jornal Estado de Minas, Folha de Goiaz e Correio Braziliense, 21 de abril de 1960. p. 2 8. Ibid., loc. cit.

9. André Malraux foi o Ministro da Cultura da França sob a presidência de Charles de Gaulle (19591969). Em 25 de agosto de 1959, às vésperas da inauguração de Brasília, Malraux desceu em solo brasileiro para batizar a nova cidade, em um célebre discurso, de “a capital da esperança”. “Nesta cidade que tem sua origem na vontade de um homem e na esperança de uma nação, como as antigas metrópoles surgiram da vontade imperial de Roma ou dos herdeiros de Alexandre, o

Palácio da Alvorada que edificastes, a catedral que haveis projetado nos trazem algumas das formas mais arrojadas da arquitetura (...). Esta Brasília sobre o seu gigantesco planalto é de certo modo a Acrópole sobre o seu rochedo... Salve, capital intrépida, que recordas ao mundo estarem teus monumentos ao serviço do espírito!”. Ibid., p. 19

10. Otília Beatriz Fiori Arantes, “Lucio Costa e a ‘Boa Causa’ da Arquitetura Moderna”. In: Otília Beatriz Fiori Arantes e Paulo Eduardo Arantes, Sentido da Formação: três estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa (São Paulo: Paz e Terra, 1997), p. 124

11. Desde sua fundação em, 1937, até o ano de 1970, 527 dos 600 edifícios tombados pelo SPHAN mesmo mito de origem, nomeados pelos mesmos símbolos. Não havia nesse mito, no entanto, uma autoria clara: mesmo seus agentes mais explícitos pareciam estar simplesmente “repassando” algo que lhes fora legado, uma narrativa sem autor, um discurso de domínio público que, miraculosamente, persistia às provações da história brasileira.

O “milagre” de Brasília surgia, então, num momento de excepcional compatibilização entre os mais heterogêneos desejos da reorganização social brasileira – entre os quais os da nova arquitetura encabeçada por Lucio Costa – em torno de um arco histórico consensual. Compunha-se “organicamente”, naquele momento, o discurso da sina inescapável, pois antecipada pelas mais antigas vontades de um povo, da modernidade brasileira. Sob o signo de Brasília, que consolidava simultaneamente o mito de origem de uma nação e a expressão estética, moral e política de seu destino, a arquitetura moderna de Lucio Costa nascia já devidamente sincronizada com seu tempo histórico, e convenientemente vernacularizada no espírito brasileiro. Conforme apontou Otília Arantes, Quis o destino (...) que o demiurgo do Movimento Moderno no Brasil, desde 1937 ligado ao SPHAN [Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional], fosse também um perito renomado em matéria de arquitetura tradicional. Tornava-se assim possível recontar a história da arquitetura brasileira à luz do enxerto bem-sucedido da Nova Construção, fazendo-o por assim dizer como que irromper miraculosamente do chão brasileiro, dando no entanto a entender, com mão leve, que tudo poderia ser também fruto de uma feliz coincidência10 Da mesma forma com que, quase duzentos anos antes, na França, Laugier concebia seu mito de origem da arquitetura e postulava, em torno do arquétipo da “cabana primitiva”, os axiomas formais para a “verdadeira” aplicação da disciplina, Lucio Costa agora encarregava-se, ele próprio, de historiar uma autêntica linha evolutiva para a arquitetura moderna brasileira. Uma que, com a força de um mito, fizesse brotar, quase naturalmente, a “Nova Construção” de um devir histórico. Elegeu para isso sua própria cabana primitiva, imaginada nas antigas construções do período colonial. Aqueles anônimos volumes brancos, de traços humildes e necessários, despidos de qualquer opulência, eram agora historiados como as expressões materiais de um povo que, historicamente silenciado, seria por fim nomeado pelo estatuto moral de um Brasil moderno. Fostes, candangos, os operários do milagre!, bradou Juscelino em discurso para aqueles homens que, em séculos anteriores, edificavam a pobre cabana de Lucio Costa.

À frente da maior autoridade do recém-inaugurado preservacionismo brasileiro, o mestre moderno incumbia-se de eleger, na paisagem histórica nacional, o que dali haveria de tornar-se objeto de memória (e de esquecimento) para toda uma nação11. A simpatia de

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