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Ideologia

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Bibliografia

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1 Signo

1. Diana Agrest e Mario Gandelsonas, “Semiótica e Arquitetura”. In: Nesbitt, K. (org.), Uma Nova Agenda para a Arquitetura (São Paulo: Cosac Naify, 2006), p. 137 O arquiteto é o titular desse aparelho representacional que ele se acostumou a chamar de “linguagem arquitetônica”: um sistema de elementos, regras e operações simbólicas do qual ele dispõe para a configuração da obra de arquitetura. Mas o que garante a esse arquiteto o direito de dizer que o seu trabalho consiste, de fato, no emprego de uma “linguagem”? E, se pudermos provar que este arquiteto está correto, que ele está de fato comprometido com um trabalho efetivamente “linguístico”, quais são as reais implicações dessa afirmação?

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É verdade que a associação entre arquitetura e linguagem pode ser bastante problemática. Se, por um lado, podemos dizer que tanto os sistemas verbais (como a língua) quanto os não-verbais (arquitetura, música, pintura, etc.) podem ser compreendidos pelo denominador comum do signo – na teoria saussuriana, a combinação de um significante (imagem) e um significado (conceito) – é também verdade que há certos limites conceituais que não nos permitem decretar, indiscriminadamente, que “a arquitetura é linguagem”. Como observaram Diana Agrest e Mario Gandelsonas no ensaio Semiótica e Arquitetura, de 1973, “os sistemas de regras arquitetônicas não exibem nenhuma das propriedades da langue – não são finitos, não têm uma organização simples nem determinam a manifestação do sistema. Ademais, as regras arquitetônicas estão em constante fluxo e mudam radicalmente”1. A razão é, portanto, aparentemente simples: estruturalmente, a arquitetura e a linguagem verbal são sistemas semióticos distintos, com signos, regras e dinâmicas internas próprios e intransferíveis entre si.

Mesmo assim não desejaremos, aqui, abandonar de todo a ideia de uma “linguagem arquitetônica”: por mais imprecisa que ela possa parecer diante de uma perspectiva semiótica ortodoxa, ela revelará ser, ao longo deste trabalho, em diversos sentidos produtiva. O que

nos permite, portanto, sustentá-la? Ou então, o que nos permite traçar associações e analogias entre linguagem e arquitetura?

Apesar deste primeiro entrave, relativo às diferenças estruturais entre linguagem e arquitetura, é possível encontrar, no campo dos estudos semióticos, alguns outros caminhos para se pensar relações mais positivas entre os dois sistemas.

Bakhtin, por exemplo, se utilizou de sua noção de texto para aproximar quaisquer sistemas de signos, chegando a admitir uma “linguagem da arte”2. Em Barthes, essa aproximação é concebível – de forma bem heterodoxa, é verdade – segundo uma noção abrangente de fala: Entender-se-á, (...) por linguagem, discurso, fala, etc. toda unidade ou toda síntese significativa, quer seja verbal, quer visual: uma fotografia será, por nós, considerada fala, exatamente como um artigo de jornal; os próprios objetos poderão transformar-se em fala se significarem alguma coisa. Essa maneira genérica de conceber a linguagem se justifica aliás pela própria história das escritas: muito antes da invenção do nosso alfabeto, objetos como o kipu inca ou desenhos como os pictogramas eram falas normais3 Na linha destes dois exemplos, um pressuposto para a admissão da arquitetura enquanto um “tipo” de linguagem residiria, para além do conceito de signo, nos modos de significação como denominadores comuns de todos os sistemas semióticos. Ou então, nos modos concretos com que esses sistemas funcionam e comunicam significado, e que podem ser designados por termos como texto, fala, discurso, etc. Assim, o que nos permitiria associar a fala linguística com a “fala arquitetônica” é precisamente o que a fala pressupõe: a função comunicativa. Mas essa é uma premissa que autores como Agrest e Gandelsonas, em uma leitura ortodoxa da teoria saussuriana, se recusariam a admitir, uma vez que Na definição da semiótica de [Ferdinand de] Saussure está ausente a noção de comunicação exatamente porque se trata de um fenômeno nitidamente distinto do de significação. O estudo do fenômeno da comunicação, que analisa como os signos são enviados e recebidos, é diferente e não pode ser confundido com um estudo que analisa ‘de que consistem os signos’ ou ‘leis que os determinam’4 Mas esse posicionamento que, como disse Roy Harris em sua introdução ao próprio Cours de Saussure, concebe a linguagem como um “sistema autorregulador e contido em si mesmo”, parece contradizer as ideias que o próprio Saussure desenvolveria posteriormente, e que apontariam para uma indissociabilidade entre as teorias semiótica e da comunicação5. Ideias que se tornariam patentes em boa parte dos desdobramentos dos estudos semióticos e, em certa medida, mesmo

2. “Todo texto pressupõe um sistema de signos comumente compreendido (isto é, convencional dentro de uma certa coletividade), uma linguagem (mesmo a linguagem da arte). Se não há linguagem por trás do texto, não se trata de um texto, mas de um fenômeno natural (não-significante)”. Mikhail Bakhtin, Speech Genres and Other Late Essays. (Texas: University of Texas Press, 1986), p. 105. T.M. 3. Roland Barthes, Mitologias (Rio de Janeiro: Difel, 2013) p. 201

4. Agrest, D.; Gandelsonas, M. (2013), p. 133

5. “A julgar pelas notas ‘perdidas’, a direção em que Saussure parece estar se movendo (...) é a do que, hoje em dia, seria chamado de integracionismo. (...) Para os integracionistas, o indivíduo é o foco da atenção. O que se

tem por ‘sistema linguístico’ é simplesmente uma extrapolação social da comunicação entre indivíduos. O indivíduo é o construtor da linguagem, e a linguagem é construída – a cada dia e a cada hora – na interação entre as atividades comunicativas de uma pessoa com as de outra. Essa integração é temporária e ligada ao contexto. Ela não estabelece nenhum conjunto semi-permanente de formas e significados”. Roy Harris, Introdução. In: Ferdinand de Saussure, Course in General Linguistics (Londres: Bloomsbury Publishing, 2013), p. 34 6. Ferdinand de Saussure, Curso Geral de Linguística (São Paulo: Cultrix, 2006), pp. 81-2 no senso comum: a linguagem, afinal, não apenas pré-determina a comunicação, mas se constrói efetivamente no ato comunicativo.

Mas se queremos falar em uma “linguagem arquitetônica”, há ainda um conceito fundamental que deverá ser abordado; um que se mostrará indispensável para que pensemos a arquitetura a partir da linguagem (e dos sistemas semióticos em geral) e de forma indissociável da comunicação. Falamos, aqui, da ideologia ou, mais especificamente, a ideologia conforme a tradição marxista do termo. Como veremos, o modo pelo qual fazemos noção da ideologia – um conceito tradicionalmente ambíguo – corresponde diretamente ao estatuto que fazemos dos sistemas semióticos. Acredito, portanto, que o primeiro passo para que possamos abordar a arquitetura pela teoria semiótica e, quem sabe, apaziguar a ideia de uma “linguagem arquitetônica”, deverá passar por este conceito decisivo.

Ideologia

Uma das maiores contribuições da teoria saussuriana foi a do princípio da arbitrariedade do signo linguístico. De forma simples, este princípio nos diz que, num sistema linguístico qualquer (embora também nos sistemas não-verbais), a relação entre um significante (forma) e um significado (conceito) que configura um signo não pode ser descrita como uma relação de causalidade natural, mas como uma de determinação arbitrária. “Assim”, escreveu Saussure, “a ideia de ‘mar’ não está ligada por relação alguma interior à sequência de sons m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada igualmente bem por outra sequência, não importa qual”6. Não há nada na ideia (ou significado) do signo, então, que remeta necessariamente à forma que ele assume num sistema linguístico. Isso não significa, no entanto, que os indivíduos que operam essa língua possam determinar, conforme queiram, a forma e o significado dos signos que empregam; pois a determinação arbitrária entre forma e significado se refere sobretudo a uma convenção cultural, ou seja, a um compromisso coletivo e histórico que determina as características comuns de um sistema linguístico. Toda linguagem (donde Saussure deduz: todo sistema semiótico) se configura com base nessa convenção normativa.

A essa altura poderíamos nos questionar, nos distanciando dos sistemas verbais, se o princípio da arbitrariedade do signo se justifica em sistemas não-verbais como a arquitetura. Uma perspectiva “organicista” muito comum na arquitetura nos diria, por exemplo, que diversos signos do repertório arquitetônico parecem conservar, em suas formas, uma relação direta e natural com aquilo que elas representam. Tomemos o caso do arco, que é frequentemente tido como o resultado formal “orgânico” de uma distribuição de esforços

em um determinado arranjo tectônico: o conceito de abertura – passagens, janelas, cavidades – quando se dispõe unicamente de tijolos, induz à forma do arco.

Mas por mais que essa afirmação seja logicamente correta, é também verdade que a forma do arco integra, historicamente, o repertório de muitos “dialetos” arquitetônicos sem que conserve qualquer vínculo natural com suas realidades materiais específicas. E esse modo de existência do signo-arco é hoje, sem dúvida, o mais recorrente. Se a forma do arco continua a ser empregada, por exemplo, em sistemas construtivos que poderiam prescindir inteiramente dela (como o sistema viga-pilar em concreto) é sobretudo porque o arco se tornou, ao menos parcialmente, um caractere convencional e arbitrário no sistema arquitetônico. Neste ponto, podemos concordar com o que disseram Agrest e Gandelsonas: (...) atribuir uma determinada função a um fato arquitetônico pressupõe uma convenção subjacente; um objeto arquitetônico é percebido como tal não porque tenha determinado significado inerente que é ‘natural’, mas porque o sentido que lhe foi atribuído é fruto de uma convenção cultural. A análise do vínculo arbitrário entre objeto e função arquitetônica ou outros significados invalida a noção de função como único determinante da forma do objeto. Invalida igualmente a ideia do significado inerente do objeto7 Da questão da arbitrariedade do signo decorre, então, a seguinte implicação: se a forma e o significado dos signos (linguísticos ou não) se configuram neles não pelo arbítrio do indivíduo, mas por uma “convenção” social que ele herda e da qual não participa e nem altera, mas apenas reproduz, então parece haver nesses sistemas socialmente compartilhados uma propriedade coercitiva, além de uma forte tendência à invariabilidade. A linguagem – e particularmente a verbal, que, dentre os demais sistemas semióticos, é para Saussure o exemplo mais nítido de configuração arbitrária – é concebida portanto como uma estrutura externa e fechada sobre si mesma que se configura numa convenção histórica a priori: De fato, nenhuma sociedade conhece nem conheceu jamais a língua de outro modo que não fosse como um produto herdado de gerações anteriores e que cumpre receber como tal. (...) Um dado estado da língua é sempre o produto de fatores históricos e são esses fatores que explicam porque o signo é imutável, vale dizer, porque resiste a toda substituição8 Estes atributos da concepção saussuriana – dita “estruturalista” – da linguagem se revelariam fundamentais, do início aos meados do século XX, para a incorporação da teoria semiótica às mais diversas áreas de incidência da teoria marxista. Isso porque, embora Saussure tenha se limitado, em seu Cours, a simplesmente reconhecer a necessidade de se estudar a linguagem “em seu quadro social” tal como quaisquer

7. Agrest, D.; Gandelsonas, M. (2013), p. 136

8. Saussure, F. (2006), p. 86

9. Ibid., loc. cit.

10. Mikhail Bakhtin, Marxismo e Filosofia da Linguagem (São Paulo: Hucitec, 2006), p. 30

11. Em Althusser, os Aparelhos Repressivos de Estado compreendem a parte pública e administrativamente unificada da superestrutura, e funcionam predominantemente pela violência. São eles: “O Governo, a Administração, o Exército, a Polícia, os Tribunais, as Prisões, etc”. Louis Althusser, Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado (Lisboa: Presença, 1980), p. 43 12. Os AIE, diferentemente dos Aparelhos Repressivos de Estado, são privados e, embora sirvam essencialmente aos mesmos fins que estes, são administrativamente descentralizados. Consistem, para Althusser, em aparelhos como a escola, a família, a igreja, o sistema político-partidário, a imprensa, etc., por meio dos quais a ideologia dominante é cotidianamente ritualizada e normalizada. outras “instituições sociais”9, as implicações do princípio da arbitrariedade do signo colocavam a teoria saussuriana frente a frente com a concepção marxista da ideologia. Uma convergência proposta sobretudo por Mikhail Bakhtin – embora, como veremos, ele divirja da concepção hegemônica da ideologia –, que em Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929) já identificava a teoria semiótica e o estudo da ideologia como dois nomes para um mesmo empreendimento: Todo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto é, se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo o que é ideológico possui um valor semiótico10 Ideologia, na terminologia marxista, diz respeito aos sistemas de representações, valores, ideias e comportamentos compartilhados pelos indivíduos em um meio social, conformando a parte dita “superestrutural” da formação social. Enquanto parte da superestrutura, a ideologia se caracterizaria, ao lado do que Louis Althusser chamou de Aparelhos (Repressivos) de Estado (AE)11, sobretudo por sua função de assegurar a reprodução das relações de produção, o que equivale a dizer: assegurar os interesses das classes dominantes. Embora predominantemente cultivada nas instituições privadas, a ideologia se mostraria complementar e indissociável dos aparelhos públicos de Estado, por um motivo simples: as classes dominantes não apenas deteriam o controle sobre as instituições e meios de produção privados, como seriam os próprios operadores do poder de Estado.

Foi nesse sentido que Althusser pôde conceber os Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE)12: mesmo que a reprodução ideológica compreendesse, diferentemente dos Aparelhos de Estado, uma multiplicidade de instituições privadas, heterogêneas e aparentemente autônomas, ela estaria necessariamente vinculada ao Estado em razão de uma finalidade única: a manutenção dos interesses das classes dominantes. A ideologia adquire, aqui, sua acepção mais comum na teoria marxista: ela corresponde à ideologia dominante, ou seja, uma ideologia apologética e mantenedora do “estado atual das coisas”.

No contexto marxista, a convergência entre a crítica da ideologia e a teoria saussuriana possuía, dessa forma, uma função importante e clara: fazer ver que, sob a aparente naturalidade da linguagem (e das instituições que a ensinam e reproduzem), e mesmo em seu emprego mais cotidiano, operavam os postulados arbitrários da ideologia dominante. Uma ideologia que, instalada nos mais humildes signos, enunciados e regras gramaticais, era frequentemente apreendida como o fundo dado, natural das coisas. E, como a natureza mesma,

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