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Ausência e multiplicação

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com imagens e palavras, com revistas impressas e fotografias, etc. O projeto de Corbusier era, por excelência, um projeto discursivo e multissemiótico.

O recurso ao “significado” na arquitetura já não pode, aqui, ser interpretado como uma mera concessão ao ornamento e ao simbolismo arbitrário. Por mais que o edifício moderno “em si” não fizesse uso de qualquer artifício representacional que pudesse comunicar algo que não fosse a sua presença concreta e imediata, ele próprio se transformava em signo, em algo infinitamente iterável e destinado à reprodução.

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A força política de um edifício canônico como a Villa Savoye, de Corbusier, não provinha da matéria que ela reconfigurava, da geografia em que ela se firmava, e muito menos da extensão do espaço social que ela reordenava (afinal, foi concebida como uma simples residência unifamiliar). A Villa Savoye não era, e nem pretendia, ser um edifício: ela estava muito mais próxima de uma forma literária ou um discurso publicitário – donde ela devia ser apreendida, necessariamente, como o complemento iconográfico dos célebres “cinco pontos” do manifesto corbusiano – do que de uma simples construção. A construção em si, ou sua finalidade prática (o uso doméstico) não passavam de álibis, pré-textos para um projeto discursivo muito mais amplo. A efetividade do empreendimento moderno não era mensurada apenas em relação à quantidade de edifícios que ele concebia, mas à capacidade iterativa e reprodutiva de seu material discursivo numa economia pública – ou publicitária – de símbolos.

“Não há arquitetura sem construção”, diz um célebre aforismo moderno. Mas o que dizer, por exemplo, dos edifícios nunca construídos, dos projetos hipotéticos, das numerosas utopias, ou então de toda a multitude de palavras e conceitos que a arquitetura incessantemente produz e reproduz ? Não seriam eles, também, dignos da alcunha “arte da construção”?

O que dizer, então, de toda a arquitetura falada que surge antes, ou mesmo independentemente da edificação “propriamente dita”? Brasília, como veremos adiante, era uma coisa falada muito antes de ser construída, muito antes de ser uma coisa arquitetônica “concreta” e visível. O Templo de Salomão, conforme descrito no Antigo Testamento, pode nunca ter existido – e não obstante ele existe até hoje, concretamente, enquanto arquitetura falada, nos mais diversos registros ideológicos e representacionais. Isso não o torna um objeto menos arquitetônico, e nem nos impede de dizer que ele é literalmente habitado (que estabelece vínculos materiais, geográficos, afetivos e → Bernard Tschumi, "Advertisements for Architecture", 1976. Copiado de Colomina, B. (1988)

produtivos entre sujeito e arquitetura) pelos devotos das religiões abraâmicas, pela simples força de sua representação.

Ausência e multiplicação

O que chamamos de “obra de arquitetura”, portanto, não diz respeito a um conjunto estritamente prático e material; ao menos, não no sentido em que os termos “prático” e “material” são usualmente empregados. Uma obra de arquitetura é um fato prático e material da maneira com que os textos, as falas e todos os outros fatos ideológicos também o são. Lembremos do que escreveu Bakhtin: Um produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou social) como um corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo o que é ideológico possui um significado que remete a algo fora de si mesmo. Em outros termos, tudo o que é ideológico é um signo67 Se podemos acordar que uma obra de arquitetura é um produto ideológico, então temos que, a despeito do que digam esta ou aquela tradição teórica, ela está sempre inserida em um regime de signos. E o que é próprio do signo é justamente, como vimos, o seu vínculo com “algo fora de si mesmo”, ou de algo que não se faz mais presente. Isso significa que fazer arquitetura é necessariamente, para além de lidar com formas e materiais concretos (ou então, edifícios), operar ausências e desaparecimentos.

Para esclarecer o que queremos dizer com isso, voltemos ao exemplo do signo linguístico por excelência, a palavra. A palavra “cavalo”, como sabemos, é um signo: embora possa assumir uma existência concreta (por exemplo, escrita num pedaço de papel), a palavra “cavalo” será sempre a presença de uma ausência, a saber, a do cavalo em si. Tudo o que a palavra conserva do animal é a memória de alguém que, num passado remoto, efetivamente esteve diante de sua presença concreta. Mas entre a experiência concreta originária e a invenção da palavra “cavalo” não há, é claro, uma relação de causalidade imediata. Entre elas há, como observou Derrida, um processo de “modificação contínua, uma extenuação progressiva da presença”68 que se iniciaria a partir da primeira representação, ou da primeira forma de ausência do objeto ou do acontecimento concreto: neste caso, a ideia, a memória, ou a imagem do cavalo que se configura na consciência de quem o viu. “O signo”, diz Derrida, “nasce ao mesmo tempo em que a imaginação e a memória, no momento em que é requerido pela ausência do objeto na percepção presente”69 .

Já a partir desse momento o cavalo se ausenta, e o que resta ao sujeito é essa forma modificada de presença (a “presença na ausência”) que é a representação do animal. Entretanto, trata-se de uma repre-

67. Beatriz Colomina, “Introduction: On Architecture Production and Reproduction”, in: Colomina, B, Ockman, J. (ed.), Architectureproduction (Nova Iorque: Princeton Architectural Press, 1988), p. 7

68. Derrida, J. (1991), p. 354. As primeiras páginas do texto de Derrida se desenvolvem em torno do Ensaio sobre a Origem do Conhecimento Humano (1746), do filósofo iluminista E. B. de Condillac, em que o autor propõe uma teoria sobre a origem e a função da escrita. 69. Ibid., loc. cit.

70. Étienne B. de Condillac apud. Derrida, J. (1991), p. 352. Grifo do autor

71. Deleuze, G; Guattari, F. (1995), Livro 2. p. 9

72. Derrida, J. (1991), p. 354. Grifo meu sentação, por mais que um tanto mais duradoura que a experiência efêmera do avistamento (porque registrada na memória individual), ainda precária: porque uma imagem mental não pode ser comunicada, essa representação está fadada a morrer junto com quem a conserva. Esse sujeito pode, é claro, diante da presença imediata do cavalo, atribuir a ele um som, um sinal que signifique o cavalo. Mas se trata de uma forma ainda muito débil de comunicação, uma que só se fará compreender por quem testemunhar a presença do sinal simultaneamente à do cavalo; a mais ninguém aquele significado poderá ser transmitido.

É por isso que, nas palavras de Condillac (citadas por Derrida), “os homens em estado de comunicar os seus pensamentos através de sons sentiram a necessidade de imaginar novos signos próprios para perpetuá-los e fazê-los conhecer por pessoas ausentes”70. Trata-se da gênese, portanto, do primeiro signo comunicável ou, para Derrida, da invenção da “primeira” forma de escrita: a pintura (representação pictórica de uma representação mental), que ao longo da história se especializará em hieroglifo, ideograma, e então no signo fonético-alfabético. Um processo cumulativo e contínuo de “ausentamentos”, no qual a representação pictográfica evolui para o signo inteiramente arbitrário: c-a-v-a-l-o.

Mas com o signo arbitrário já não se pode retraçar o cavalo a partir do “cavalo”: já não há nada mais nesse signo que indique imediatamente, como na representação pictórica, o objeto ao qual ele se refere. O preço da especialização da escrita (e da linguagem em geral), em sua possibilidade de “comunicar aos ausentes”, é portanto o “desaparecimento” progressivo do referente, e a estruturação da linguagem como um sistema abstrato e autorreferente. Recuperemos o que disseram Deleuze e Guattari em seus postulados da linguística: Se a linguagem parece sempre supor a linguagem, se não se pode fixar um ponto de partida não-linguístico, é porque a linguagem não é estabelecida entre algo visto (ou sentido) e algo dito, mas vai sempre de um dizer a um dizer. (...) A linguagem não se contenta em ir de um primeiro a um segundo, de alguém que viu a alguém que não viu, mas vai necessariamente de um segundo a um terceiro, não tendo, nenhum deles, visto.71 O emprego do signo linguístico, portanto, é sempre a mobilização de uma presença modificada, “indireta”, ou então da ausência de seu objeto. Mas isso só é possível porque, para Derrida, ele pressupõe também a ausência de destinatário: “Escreve-se para comunicar qualquer coisa aos ausentes”72. O signo é um produto destinado à reprodutibilidade, é algo como um ready-made: ele já não possui qualquer vínculo natural com uma “origem” e, embora possua o objetivo claro de ser legível, é completamente indiferente a qualquer “leitor” parti-

cular. Seu destino é a reprodutibilidade, e não necessariamente a reprodução. Sobre isso, Derrida observou: É necessário, se quiserem, que a minha ‘comunicação escrita’ permaneça legível não obstante o desaparecimento absoluto de qualquer destinatário determinável em geral para que ela possua a sua função escrita, quer dizer, a sua legibilidade. É necessário que seja repetível – iterável – na ausência absoluta do destinatário (...). Esta iterabilidade (iter, de novo, viria de itara, outro em sânscrito, e tudo o que se segue pode ser lido como exploração dessa lógica que liga a repetição à alteridade) estrutura a própria marca da escrita73 Mas há ainda, para Derrida, uma segunda ausência que todo ato de “escrita” mobiliza, e pelo qual o signo se torna ainda mais desprendido de qualquer origem ou contexto. Porque todo signo deve poder ser infinitamente iterável, isto é, repetível e indiferente a qualquer contexto de enunciação, ele também deve se dissociar de seu emissor. Escrever, significar, pressupõe “a ausência do emissor, do destinador, em relação à marca que ele abandona, que se separa dele e continua a produzir efeitos para além da sua presença e da atualidade do seu querer-dizer”74. Se podemos dizer, como quis Derrida, que essa propriedade não pertence apenas ao que se chama de “escrita” mas – sendo uma propriedade intrínseca à existência do signo – a todo tipo de texto, então as implicações dessa “ausência do emissor” começam a se tornar evidentes em nossa consideração da arquitetura. O que quer dizer, diante disso, um “texto arquitetônico”?

Beatriz Colomina nos traz um exemplo interessante, da história da arquitetura, de um enunciado arquitetônico em constante estado de iteração. Ela cita as famosas fotografias dos silos de grãos norte-americanos que, em 1913, figuraram o anuário da Werkbund75 organizado por Walter Gropius, e que foram empregadas para ilustrar o interesse das vanguardas da Baukunst pelas novas tipologias da arquitetura industrial que começavam a surgir ao redor do mundo. As mesmas imagens foram, alguns anos depois, reproduzidas por Le Corbusier na L’Espirit Nouveau, e a partir de então começaram a ser copiadas por diversos outros artistas e intelectuais da vanguarda (como Van Doesburg, Kassak e Moholy-Nagy), e em diversos outros contextos publicitários76. Não obstante a enorme repercussão das imagens dos silos entre a comunidade modernista, e a influência concreta que elas tiveram sobre os rumos e sobre a produção da arquitetura moderna, Colomina lembra que nenhum desses arquitetos e artistas havia, efetivamente, visto presencialmente os silos em questão.

Mas isso pouco importava: a efetividade com que a imagem dos silos conseguia se infiltrar nos mais diversos contextos midiáticos resultava menos da ‘novidade’ daquela arquitetura industrial, ou do fato dos silos terem sido efetivamente construídos, e mais de sua propriedade infinitamente iterável (intensificada pelas mídias

73. Derrida, J. (1991), p. 356

74. Ibid., p. 354

75. A Deutscher Werkbund, fundada na Alemanha em 1907, foi uma associação para a cooperação entre industrialistas, artistas e designers para a troca de ideias e divulgação de experiências no âmbito da produção, desenho e arquitetura industriais. Entre seus primeiros membros estavam os arquitetos Peter Behrens, Mies van der Rohe, Walter Gropius e Hans Poelzig. 76. Beatriz Colomina, “L’Espirit Nouveau: Architecture and Publicité”. In: Colomina, B, Ockman, J. (1988), p. 63. T.M. → Silos norte-americanos no anuário da Werkbund, 1913

impressas) de signo. A existência dos silos era inteiramente citacional, como em um signo linguístico que, dissociado de qualquer origem, pode ser eternamente iterado, cumprindo qualquer função significante. Cada iteração daquelas imagens implicava uma nova existência comentada, metatextual dos silos: um outro enunciado, um outro enunciante, um outro contexto de enunciação, uma outra intenção significante atribuída a eles, etc. Pouco importava quem primeiro os havia projetado, fotografado e mesmo o lugar onde foram construídos. O silo em questão não correspondia apenas ao edifício “em si”, a uma origem determinada a que se chama “obra de arquitetura”, mas à soma de todas as suas representações, de todos os contextos igualmente concretos em que ele foi iterado e convocado, na condição de signo, à legibilidade. Não havia, portanto, uma única origem, nem um único autor do silo: todos que o citavam, todos os seus emissores eram efetivamente seus autores, e nenhum deles possuía, ainda assim, qualquer autoridade permanente sobre o “querer-dizer”, sobre a mensagem veiculada na imagem do silo. Como disse Derrida: Escrever é produzir uma marca que constituirá uma espécie de máquina por sua vez produtiva, que a minha desaparição futura não impedirá de funcionar e de dar, de se dar a ler e a reescrever. Quando digo ‘a minha desaparição futura’, é para tornar esta proposição mais imediatamente aceitável. Devo poder dizer a minha desaparição simplesmente, a minha não-presença em geral, e, por exemplo, a não-presença do meu querer-dizer, da minha intenção-de-significação, do meu querer-comunicar-isto, na emissão ou produção da marca. Para que meu escrito seja um escrito, é necessário que continue a ‘agir’ e a ser legível mesmo se o que se chama autor do escrito não responda já pelo que escreveu, (...) quer esteja provisoriamente ausente, quer esteja morto ou que em geral não tenha mantido a sua intenção77 A “escrita”, para Derrida, não diz respeito a um suporte particular de comunicação, mas ao modo de existência próprio de todo signo, ou marca, em sua tendência a abandonar qualquer contexto de origem – seja o que ele chamou de “contexto real” (o contexto presente do ato da escrita), ou de seu “contexto semiótico interno” (seu sistema de determinações prévias, como a língua). Se voltarmos à Morte do Autor, de Barthes, encontraremos uma descrição similar do que ele chamou de “escritura”. Para Barthes, o desligamento de um texto em relação à sua origem (ou “autor”) é precisamente o momento em que a escritura começa: “(...) a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo pela qual foge o nosso sujeito, o branco-e-preto em que se vem a perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve”78. O texto não se esgota ou se explica pela intenção enunciativa de um autor, ou por um significado que ele conserva e pelo qual fielmente zela. Porque o texto é uma marca, um objeto “abandonado”, ele não pode existir de

77. Derrida, J. (1991), p. 357

78. Barthes, R. (2004), p. 57

79. Derrida, J. (1991), p. 362

80. Joseph Rykwert, “Meaning and Building”, in: The Necessity of Artifice (Londres: Academy Editions, 1982), p. 9. T.M. outra forma que não largado à sua própria sorte, e sujeito às contingências, adições, rasuras e acidentes da história. O texto é menos um instrumento e mais um dispositivo, uma “máquina produtiva”: seu princípio de ação não está no sujeito que o manuseia segundo uma intenção, mas nele próprio, na sua capacidade de existir e funcionar na ausência de qualquer atribuição original e específica. Qualquer signo, linguístico ou não-linguístico, falado ou escrito (no sentido corrente dessa oposição), em pequena ou grande unidade, pode ser citado, colocado entre aspas; com isso pode romper com todo o contexto dado, engendrar infinitamente novos contextos, de forma absolutamente não saturável. (...) Esta citacionalidade, esta duplicação ou duplicidade, esta iterabilidade da marca não é um acidente ou uma anomalia, é aquilo (...) sem o qual uma marca não poderia mesmo ter um funcionamento dito ‘normal’. O que é que poderia ser uma marca que não se pudesse citar? E que origem poderia ter sido perdida pelo caminho?79 Se pudermos manter que a arquitetura, seja como um sistema semiótico em si mesmo ou como fato multissemiótico, é também produção de signos e “textos”, então de que forma podemos transpor o problema da escrita para a compreensão da produção arquitetônica?

Esse problema se confirma a partir de qualquer perspectiva pela qual entendemos o “texto arquitetônico”. Se falamos do edifício enquanto um “tipo” de texto, isto é, por meio da analogia arquitetura-escrita, pode-se dizer o seguinte: cada instante na história de um objeto arquitetônico é uma nova existência desse edifício, uma nova iteração textual. Se podemos afirmar, como disse Joseph Rykwert, que “todo edifício, e até mesmo cidades inteiras, devem carregar declarações, confissões, permissões”80, é também verdade que, após um período suficientemente longo, essa mesma arquitetura não estará declarando, confessando ou permitindo as mesmas coisas que ela originalmente pretendeu. Cada demolição, transformação ou “revitalização” de um fato urbano, por mais inexpressivas que sejam, configuram novos enunciados. Derrubar uma parede é uma alteração em um estatuto semiótico, ainda que falemos de uma semiótica “a-significante” da pura forma; é atribuir ao espaço um novo componente de autoria. Mesmo que, posteriormente, alguém se ocupe de reconstruir fielmente a parede antiga, não se tratará de restauração, mas de adição; uma nova forma, um novo enunciado portanto. Sustentando, ainda, essa analogia entre forma arquitetônica e fala linguística, podemos recorrer novamente a Bakhtin: Duas ou mais sentenças podem ser absolutamente idênticas (quando são sobrepostas, como duas figuras geométricas, elas coincidem); além do mais, deve-se reconhecer que qualquer sentença, (...) no fluxo ininterrupto da fala, pode ser repetida ilimitadamente de forma completamente idêntica. Mas enquanto enunciado (...), nenhuma sentença, por mais que possua uma única palavra, pode

ser repetida: trata-se sempre de um novo enunciado (mesmo que seja uma citação)81 Mas o problema da escrita também se mantém caso entendamos por texto arquitetônico todo o conjunto literário, falado, iconográfico, documental e publicitário – isto é, todo o aparelho simbólico – que se acrescenta ao edifício “em si” e sem o qual é impossível precisar o real modo de existência de uma obra de arquitetura. A “vida textual” da arquitetura vai além da presença da forma-objeto, do edifício-manuscrito. É uma existência reprodutível, cumulativa, que se estende não apenas no espaço (nos seus inúmeros suportes representacionais), mas também no tempo: nas sucessivas iterações, citações e reproduções posteriores às quais a história a submete; como também retrospectivamente, no que o texto arquitetônico possui, ele próprio, de citação de textos anteriores. Barthes escreveu:

Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a ‘mensagem’ do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, oriundas dos mil focos da cultura82 As “declarações” e “confissões” de uma obra de arquitetura não são por isso mais legítimas em seu estado “virginal”, por exemplo, conforme concebidas sobre a prancheta de um arquiteto (ou conforme o seu querer-dizer), do que numa cópia comentada que possa, ela mesma, profanar o “original”. Um projeto de arquitetura, segundo explicado por seu próprio arquiteto, não nos dirá mais sobre a obra em si do que, por exemplo, esse mesmo projeto estampado num panfleto imobiliário que tão eloquentemente nos dirá sobre o lifestyle e os sentidos do “morar contemporâneo”, ou algo assim. Ou, então, sob o escrutínio de um crítico ou de um historiador, quando esse projeto ganhará novos contornos ao aparecer sob o encanto de certas metáforas, sob a injeção de novas linhas narrativas ao texto arquitetônico. Haverá casos, inclusive, em que o trabalho do arquiteto se tornará, ele mesmo, uma dessas linhas auxiliares para textos e discursos muito maiores, dos quais o “edifício” não é se não um adereço secundário. É o caso, por exemplo, dos grandes esquemas retóricos das políticas de “construção identitária nacional”, tão fundamentais à história brasileira, que exploraremos nos próximos capítulos.

Não há um autor, portanto, da arquitetura, mas muitos. Se compreendermos a noção de autoria à luz de seu termo cognato autoridade, torna-se possível demonstrar que o autor da arquitetura está presente, para além do arquiteto, em todas as forças sociais que incidem sobre as atribuições formais e semânticas da obra, e que podem partilhar ou disputar (seja a priori ou a posteriori) a autoridade sobre a “escrita” da arquitetura. Não se trata, portanto, de um trabalho originário, de

81. Bakhtin, M. (1986), p. 108. T.M.

82. Barthes, R. (2004), p. 62

um antes do qual a arquitetura é o depois acabado. Pelo contrário, na arquitetura não há origem, há somente mediação (ou midiatização). Ao longo da insaciável travessia que a condição de signo o submete, o texto arquitetônico pode apenas reencarnar, de suporte em suporte, emissor em emissor, arquitetura em arquitetura, num eterno ciclo de aparições e desaparições.

O que se tem por “linguagem arquitetônica”, diante disso, não pode ser compreendido apenas como um instrumento típico e interno à instituição “arquitetura”, nem como um sistema semiótico que seja, por direito, independente da linguagem propriamente dita. Como vimos, a arquitetura é necessariamente uma coisa falada; o que faz dela, para além de um híbrido de suportes representacionais, também uma combinação heterogênea de outras falas, de outros agentes de discurso, dentre os quais o arquiteto não é, senão, um.

Não queremos, com isso, decretar uma “morte do arquiteto”, nem devolver a arquitetura à sua tradicional concepção estritamente reflexiva (seja como emanação da natureza ou como produto da “superestrutura”). Trata-se, na verdade, de compreender não apenas as restrições, mas também as possibilidades que se revelam em uma compreensão ampliada do que chamamos de “linguagem arquitetônica”. Como veremos, ser arquiteto – e acredito que cada um deles, no mínimo, suspeita disso – é ser também muitas outras coisas, e isso lhe garante uma posição central no regime simbólico e discursivo da arquitetura. Todo arquiteto tem algo de orador, de historiador, de publicitário, de legislador. Seu trabalho mesmo não é projetar edifícios, mas o de falar por todos os meios dos quais ele dispuser; o de produzir tantos símbolos quantos lhe for permitido. Mas essa mesma condição o impele, também, a reconhecer que seu trabalho é sempre uma entre muitas outras mediações do signo arquitetônico; uma entre muitas vozes que interpelam um edifício até mesmo antes do edifício, e que continuarão falando sobre ele mesmo após a sua ruína.

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