Monumento e Acidente | TFG FAUUSP 2021

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Acidente



Monumento

Acidente



Monumento & Acidente Julio Shalders Pitol Sob orientação do Prof. Dr. Luiz Antonio Recamán Barros

Trabalho Final de Graduação Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo 2021



Para a minha mãe, Elza, que é a pessoa mais forte, mais generosa que eu já conheci. Para o meu irmão, César, pela bondade e pela diligência que me ensinam mais a cada dia. Para o meu pai, Jorge, que nunca poupou esforços para me amparar. Para a Olívia, minha melhor amiga, por seu amor e companhia. Por tudo o que aprendemos juntos, pela parte insubstituível que ela é de mim. Para a querida Deborah Caseiro, presença radiante e amizade sincera. Para os comparsas e professores do Vão, Anna Juni, Enk te Winkel, Gustavo Delonero e Marcelo Jun, pela experiência inestimável que foi aprender com eles. Para os meus amigos João Miguel, Julia Odri e Vitória Ramoska pela cumplicidade e pelos momentos tão importantes que vivemos. Para toda a querida turma de Interlagos: João Cravinhos, Larissa Consoli, Luiz Bomeny, Francisco Kroner, Giorgio Bruno, Marina Lickel, Matheus Jettar e Natália Makino. Para o meu velho amigo Fernando Racy. Para os queridos e talentosos João Pedro Nogueira, que fez a capa deste trabalho, Calixto Comporte, pelo auxílio com o projeto gráfico, e todos os colegas da FAU que eu tanto admiro: Alina Paias, Barbara Camucce, Caio Cintra, Joaquín Jarama, Leonardo Bonfim, Matheus Perelmutter, Otávio Melo, Rodrigo Chedid, Vicente Heer e tantos outros. Para a Josefa Maia, pela escuta e amparo. Para o meu orientador Luiz Recamán, pela confiança e pela sinceridade. Para os integrantes da banca de avaliação Giselle Beiguelman e Moysés Pinto Neto. Obrigado a todos vocês por, cada um ao seu modo, tomarem parte num momento tão importante para mim.



Introdução 9

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Signo 17 19 Ideologia 24 O contrato e o protocolo 27 O texto na arquitetura 30 A escritura 30 A forma do texto / O que diz uma parede 33 Forma e disposição 39 Como fazer arquitetura com palavras 44 A arte da construção 58 Ausência e multiplicação

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Modelo 67 69 Brasília 75 Imago Mundi 88 Discurso histórico 97 O que é um monumento?

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Objeto Técnico 115 116 O 'outro' na tekhne 125 A ideia de 'ser humano' 133 Oposição x Recursividade 147 Infraestrutura monumental 161 Monumento infraestrutural 181 Desenho e acidente: algumas conclusões 194 Bibliografia 196 Iconografia



Introdução

Durante o último ano e meio, nunca me senti suficientemente seguro para esclarecer, a quem quer que me perguntasse, o que é este trabalho. “É sobre monumentos”, eu disse durante um tempo. “Símbolos”, “linguagem arquitetônica”, “infraestruturas urbanas”, tentei outras vezes. Em nenhuma delas consegui esboçar algo que se passasse por uma explicação. Era, talvez, a dificuldade de alguém que se vê obrigado a descrever um acidente que ainda se está sofrendo. Narrar um evento que ainda se espalha em direções imprevisíveis, que ainda ofusca a visão. Um acidente, é verdade, do qual sou inteiramente responsável, uma vez que nunca consegui satisfatoriamente planejar, projetar (“arquitetar”) este trabalho. Não que essa não tenha sido uma preocupação minha – afinal, se tem algo que aprendi nos meus anos de formação em arquitetura, foi a projetar – mas é que, em todas as vezes que tentei, foi apenas para vê-lo escapar, bifurcar, abrir portas e mais portas. Se projetar é antecipar, é também verdade que aquelas coisas sobre as quais projetamos estão sempre um passo à nossa frente. Agora, tendo chegado ao inescapável momento de ter de roteirizar um evento já concretizado, percebo, de certa forma, que este trabalho tenta nomear exatamente a dificuldade de nomear – ou então, de projetar – aquelas coisas que fogem ao nosso alcance. Um trabalho, se quisermos, sobre planos e acidentes; sobre os nomes, modelos e monumentos àquelas coisas que falham em ser suficientemente nomeadas, modeladas e petrificadas pelo discurso; mas também sobre os acidentes felizes que ocorrem quando nos permitimos, ao invés de pensar demais, falar demais, projetar demais, aprender fazendo. “Monumento e Acidente” foi uma tentativa de aproximar meu interesse em arquitetura de três outras áreas bastantes distintas de pesquisa, ainda novas para mim, e das quais poderiam ter nascido três trabalhos diferentes: problemas da linguagem, problemas da história e problemas da técnica. Ao longo das inúmeras bifurcações 11


e outras complicações de pesquisa, achei por bem reconhecer que, pela amplitude do escopo, não havia nenhum “grande esquema” no trabalho. É um ensaio sobre monumentos e acidentes, mas também sobre uma série de outras coisas. Algumas delas, eu percebi, talvez tenham ficado pelo caminho ao longo do trabalho, outras perdurado por mais tempo do que deveriam. Vale dizer que não foram pequenas as minhas dificuldades em querer nomear todos esses problemas em um único projeto de pesquisa, e não me isento de possíveis imprecisões ou contradições decorrentes de um trabalho que é, em diversos sentidos, inconclusivo e experimental. Assumidos os riscos, ao trabalho: pensei-o em três partes – Signo, Modelo e Objeto Técnico. Na primeira parte, começo pensando a aventura que é falar em uma “linguagem arquitetônica” – um termo cuja persistência no vocabulário de iniciação acadêmica da arquitetura é proporcional apenas à completa ausência dos estudos semióticos em suas (nossas) grades disciplinares. A ideia, portanto, é interrogar: o que jaz por trás desse termo tão ambíguo? Pode-se dizer que a arquitetura é, por direito, uma linguagem em si mesma, ou seria ela uma operação de linguagem, uma coisa falada? O que uma “linguagem” da arquitetura nos diz sobre as regras e contratos aos quais a nossa atividade está condicionada enquanto sistema semiótico, e o que ela nos diz sobre suas possibilidades manipulativas? Em outras palavras, o que a “linguagem arquitetônica” reflete e reproduz e o que ela é capaz de inventar? Dependendo do modo com que abordamos a “linguagem arquitetônica”, ela pode suscitar juízos bastante distintos que, como eu tento explicar, correspondem a diferentes interpretações do conceito de “ideologia”. Se entendemos por “linguagem” uma estrutura – tal qual a ideologia para uma certa tradição teórica – transcendental e inflexível que determina todas as manifestações da “comunicação”, então temos que a arquitetura, enquanto sistema semiótico, não é nada além do veículo para um conjunto de normas e determinações invioláveis. Por outro lado, se pensamos a linguagem e a ideologia não como modelos, mas como protocolos flexíveis que se configuram na própria performance – frequentemente acidental – dos signos num meio social, então uma série de outros caminhos se abrem para que possamos pensar as possibilidades da arquitetura enquanto uma atividade manipulativa, e não apenas refletiva. Proponho, partindo do signo ideológico de Bakhtin e da escritura de Barthes, pensar de duas formas distintas o que seria o texto na arquitetura, entendendo-o não apenas como a operacionalização de um sistema linguístico, mas como um evento produtivo. Isto é, entendendo que aquilo que o texto comunica não é apenas significado, mas o texto em si. 12


É aqui que encontramos o primeiro sentido do “texto” na arquitetura: a forma, a interface material e “a-significante” da interlocução. Mais adiante, tento elaborar o texto arquitetônico para além da arquitetura “em si”: aqui, a dimensão material do edifício falha em explicar integralmente todos os meios pelos quais a arquitetura é efetivamente produzida. Isso porque uma obra de arquitetura é uma coisa falada antes mesmo de ser uma coisa construída diante de nós. Como Beatriz Colomina explica, a arquitetura se faz pelo recurso a uma multitude de dispositivos representacionais para além da mera construção: conceitos, imagens, “textos”, diagramas etc. Por fim, essa dimensão representacional do “texto” arquitetônico nos permitirá, em Derrida, entender uma obra de arquitetura como uma multidão de signos que se dissemina para muito além de sua geografia, de sua história e das intenções de seu “autor”. A segunda parte (Modelo) foi, na verdade, a primeira a ser escrita. Minha intenção, aqui, foi pensar como o símbolo – entendido de forma ampla, da escritura ao desenho – é tradicionalmente cultivado pela disciplina arquitetônica como uma espécie de instrumento para a produção de mundos. O símbolo, poderíamos dizer, como síntese: tanto no sentido de um gesto de unificação, corporificação ou nomeação de multiplicidades, quanto no sentido de algo que sintetiza, que produz e reproduz. Esboço, partindo da crítica de Otília Arantes a Lucio Costa, um estudo de caso sobre a construção simbólica de Brasília como a concepção de um “cosmograma” para o Brasil moderno: uma imagem-de-mundo que é ao mesmo tempo representacional e produtiva. Com a ideia de “cosmograma”, retirada da obra de John Tresch, tento posteriormente esboçar o que seria uma cosmografia que não se limite às tradicionais representações “macroscópicas” do mundo, mas que sirva também para designar qualquer unidade discursiva do “cosmos”, do mapa-múndi à planta-tipo arquitetônica. Dessa forma, o caso de Brasília não apareceria mais como um caso excepcional de produção de mundos, mas apenas um entre muitas outras cosmografias que atravessam a produção da realidade brasileira. Em seguida, parto desses mesmos atributos do cosmograma para tentar uma primeira aproximação com a ideia de monumento na arquitetura: algo que, da mesma forma, aparece menos como um objeto “excepcional” e mais como uma função intrínseca – e bastante corriqueira – à disciplina da arquitetura enquanto atividade discursiva. Esboço, partindo da concepção de “historiografia operativa” de Manfredo Tafuri, bem como da função monumentalizante da arquitetura descrita por Mark Wigley, uma explicação para o projeto arquitetônico como construção historiográfica. Wigley, para quem “os arquitetos falam sobre o tempo da mesma forma com que falam sobre o lugar”, nos diz que a preocupação principal da arquitetura não é simplesmente a de conceber “edifícios”, mas a de situá-los num certo tempo, num certo 13


modelo representacional da história ao qual seus objetos devem se acomodar. Em seguida, partindo do problema monumento/documento de Jacques Le Goff e do seminal Culto Moderno dos Monumentos, de Alois Riegl, discuto a ideia do monumento como um “dispositivo”, um instrumento que orienta a memória a uma produção: não apenas a construção de um “passado”, mas a ordenação de um “futuro”. Na terceira parte do trabalho, essa concepção instrumental do monumento me permitiu, em um desvio temático, pensá-lo como uma espécie de objeto técnico. Começo partindo daquilo que, a princípio, parece diferenciá-los. Enquanto o monumento seria comumente entendido como um instrumento “refletivo” – humanoide – no qual aquilo que é produzido é o conhecimento de uma “origem” ou uma imagem do “ser humano”, o objeto técnico seria sobretudo um meio para a produção de um porvir, um desígnio ou finalidade delegados por esse “humano”. Assim, enquanto o monumento nos pareceria um fim em si mesmo, o objeto técnico apareceria como meio para certos fins. Trata-se de uma concepção, segundo Gilbert Simondon, responsável pela tradicional oposição entre os “objetos técnicos” e os “objetos estéticos” como seres ontologicamente distintos. Uma concepção que, para ele, resultaria na incapacidade da “cultura” em reconhecer o eu (o humano, a episteme) no outro (o objeto técnico, a tekhne). Proponho, na linha do pensamento de Simondon, que reavaliemos a oposição entre episteme e tekhne como forma de reaproximar a ideia de “monumento” da ideia de “objeto técnico”. Com Derrida, essa aproximação se faz por meio do problema platônico da escritura, onde o signo – também chamado de “monumento” – aparece como um ente da tekhne. Já com Stiegler, o problema da tekhne aparece, em sua leitura de Heidegger e Leroi-Gourhan, simultaneamente como aquilo que nos afasta de nossa “origem” e aquilo que faz nos faz, essencialmente, humanos. Para Stiegler, os objetos técnicos não estão em relação de alteridade – seja inimizade ou servidão – com os seres humanos, mas são fundamentalmente as próteses necessárias para que ele se torne humano. Isso porque, para ele, os objetos técnicos são os suportes de memória artificiais – exatamente como o monumento – indispensáveis para que pensemos (inventemos) a nós mesmos, nossa história e destinos. A técnica, segundo Stiegler, é a invenção do humano – onde o “humano” é simultaneamente aquele que inventa e aquilo que é inventado. A relação entre o “eu” da episteme e o “outro” da tekhne, portanto, não pode ser pensada em termos de oposição, mas de recursividade: o fenômeno que se estabelece, por exemplo, quando colocamos um espelho diante do outro. Nesse caso, o que se produz é um processo recíproco de trocas, diferenças e acidentes incessantes: um “eu” que se lança sobre um “outro”, que nos lança de volta uma imagem diferente do “eu”, que em troca fabrica um outro “outro”, e assim por diante. Um 14


movimento onde não há oposição entre origens e destinos, operadores e instrumentos, episteme e tekhne, mas causalidade mútua. A fim de discutir as implicações da filosofia da técnica para os estudos em arquitetura e urbanismo, elejo um tipo de objeto técnico bastante familiar para a disciplina: a infraestrutura urbana. Partindo de leituras no campo multidisciplinar que tem sido chamado de “antropologia das infraestruturas”, identifico como as infraestruturas urbanas, para além de sua função “técnica”, frequentemente funcionam como verdadeiros monumentos. Assim como aquilo que dissemos anteriormente sobre as obras de arquitetura, o que parece contar aqui é a produção de um modo de habitar o tempo histórico; a criação de um senso coletivo de “progresso” e “modernidade” geralmente associado às obras de infraestrutura urbana. Trazendo essa discussão para a realidade brasileira, tento identificar brevemente alguns casos em que a ideia de “nação”, sobretudo a que se constituiu ao longo do século XX, se mostrou profundamente associada aos empreendimentos infraestruturais. Todo o período que se estende da Era Vargas, passando pela construção de Brasília, pelo nacional-desenvolvimentismo da ditadura militar, e culminando nos modelos neoliberais da “cidade global” da década de 90, podem ser interpretados como um esforço contínuo de construção identitária inseparável dos grandes projetos da “modernização” infraestrutural brasileira. Ainda um outro modo de pensar isso que nomeei de infraestrutura monumental é por meio daquilo que alguns antropólogos (Brian Larkin, Penny Harvey, Nikhil Anand etc.) têm chamado de promessa da infraestrutura. A promessa, como o monumento, é um dispositivo que envolve diferentes partes em uma relação contratual da qual emerge um certo estado de coisas, sujeitos, histórias e expectativas. Dizer que as infraestruturas são promessas, nesse sentido, significa que elas se inserem sempre em um determinado arranjo afetivo e disciplinar entre sistemas técnicos e as populações que interagem com eles. Mas o que é particular das promessas – assim como das infraestruturas – é que elas estão constantemente sendo quebradas. Toda promessa está exposta ao acidente, a tudo aquilo que pode acontecer quando essa promessa é situada, posta em funcionamento, deslocada de sua pureza discursiva. Essa constatação é importante porque nos permitirá identificar, com Bruno Latour, o acidente como uma tendência inevitável dos sistemas técnicos, assim como das expectativas e promessas que sempre os acompanham. A diferença entre o que dizem as infraestruturas e o que elas efetivamente fazem quando colocadas em funcionamento servirá para evidenciar, em seguida, as dificuldades das disciplinas da arquitetura e do urbanismo – tradicionalmente condicionadas a uma leitura figural da cidade – quando se deparam com a complexidade dos sistemas infraestruturais (o 15


“fundo” da cidade). Essa discussão é mediada, sobretudo, pela noção de “espaço infraestrutural” de Keller Easterling: um espaço gerado por uma complexa matriz de protocolos, padrões e sistemas técnicos/ informacionais, cujo domínio escapa não apenas aos arquitetos e urbanistas, mas a todas as esferas institucionais e disciplinares que cultivam alguma forma de planejamento. O espaço infraestrutural não é um modelo, e sim um subproduto acidental que emerge como a própria forma da cidade. O problema do espaço infraestrutural me permitiu, ainda, conceber a ideia de um “monumento infraestrutural” como um fenômeno de recursividade técnica: um monumento emergente, não-planejado, que é capaz de reconfigurar, retroativamente, todo o conjunto de discursos, premissas e modelos culturais que originalmente o puseram em funcionamento. O monumento infraestrutural é um monumento acidental: aquilo que ricocheteia dos nossos monumentos iniciais. Ele é aquilo que “volta” do monumento; que reage com o meio e retroage sobre a cultura que o programou. O monumento acidental é, de certa forma, o “espaço infraestrutural” sobre o qual a arquitetura e o urbanismo, com seus planos e modelos, se vêem progressivamente incapazes de ordenar e nomear. Mas ao invés de designar um “fim de linha” para o planejamento, o monumento acidental é a condição de reavaliação de nossos modelos e promessas iniciais. Foi nesse sentido que Easterling propôs que a arquitetura e o urbanismo reorganizem seus hábitos disciplinares para lidar com o que ela chamou de formas ativas: formas que devem ser interrogadas muito mais em termos de um “como” do espaço infraestrutural, do que dos “o quês” declarados pelas histórias, discursos e monumentos que costumam dissimular seu real funcionamento. A lição para arquitetura – ao invés de seu decreto de falência – deve ser, portanto, o reconhecimento de que o puro e simples projeto não nos salvará das emergências constantes que assolam a cidade contemporânea. Não se por “projeto” entendermos a pura e simples aplicação de modelos e teoremas, ao invés daquilo que, nas palavras de Stavros Kousoulas, deveria ser um princípio fundamental da atividade arquitetônica: uma “prática de indeterminação espacial”. Um engajamento ativo e recíproco com o ambiente no qual deixamos esses modelos se proliferarem, bem como um acesso crítico a tudo aquilo o que volta, tudo o que ricocheteia do funcionamento necessariamente acidental dessas composições. Concluo o trabalho percorrendo alguns dos modelos – ou melhor, protocolos – para um engajamento crítico com o acidente, para uma nova “monumentalidade” que não seja meramente instrumental, mas conscientemente indeterminada; que não pense apenas em “origens” e “finalidades”, mas sobretudo nos acidentes de percurso que emergem dos meios. Paul Virilio, por exemplo, propôs uma “acidentologia” e 16


defendeu a construção de um Museu do Acidente: ao invés de sermos incessantemente expostos ao acidente, deveríamos expô-lo, vigiá-lo. Benjamin Bratton e Keller Easterling, na mesma linha, ambos propuseram algo como uma tecno-logia (ou, se quisermos, uma arquitetura) para o acidente: uma abordagem projetual que, ao invés de encontrar no acidente um “fim de linha”, o antecipa e assume nele a sua razão de ser. James Young, com a ideia de “contra-monumento”, propôs um monumento que, ao invés de nomear e petrificar a história, denuncia o próprio problema do monumento, de sua obstinação em ignorar os acidentes da história. O “contra-monumento” se compromete, portanto, com a eterna irresolução entre monumento e história, entre modelos e acidentes; entre discurso e realidade.

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1. Diana Agrest e Mario Gandelsonas, “Semiótica e Arquitetura”. In: Nesbitt, K. (org.), Uma Nova Agenda para a Arquitetura (São Paulo: Cosac Naify, 2006), p. 137

Signo

O arquiteto é o titular desse aparelho representacional que ele se acostumou a chamar de “linguagem arquitetônica”: um sistema de elementos, regras e operações simbólicas do qual ele dispõe para a configuração da obra de arquitetura. Mas o que garante a esse arquiteto o direito de dizer que o seu trabalho consiste, de fato, no emprego de uma “linguagem”? E, se pudermos provar que este arquiteto está correto, que ele está de fato comprometido com um trabalho efetivamente “linguístico”, quais são as reais implicações dessa afirmação? É verdade que a associação entre arquitetura e linguagem pode ser bastante problemática. Se, por um lado, podemos dizer que tanto os sistemas verbais (como a língua) quanto os não-verbais (arquitetura, música, pintura, etc.) podem ser compreendidos pelo denominador comum do signo – na teoria saussuriana, a combinação de um significante (imagem) e um significado (conceito) – é também verdade que há certos limites conceituais que não nos permitem decretar, indiscriminadamente, que “a arquitetura é linguagem”. Como observaram Diana Agrest e Mario Gandelsonas no ensaio Semiótica e Arquitetura, de 1973, “os sistemas de regras arquitetônicas não exibem nenhuma das propriedades da langue – não são finitos, não têm uma organização simples nem determinam a manifestação do sistema. Ademais, as regras arquitetônicas estão em constante fluxo e mudam radicalmente”1. A razão é, portanto, aparentemente simples: estruturalmente, a arquitetura e a linguagem verbal são sistemas semióticos distintos, com signos, regras e dinâmicas internas próprios e intransferíveis entre si. Mesmo assim não desejaremos, aqui, abandonar de todo a ideia de uma “linguagem arquitetônica”: por mais imprecisa que ela possa parecer diante de uma perspectiva semiótica ortodoxa, ela revelará ser, ao longo deste trabalho, em diversos sentidos produtiva. O que 19


nos permite, portanto, sustentá-la? Ou então, o que nos permite traçar associações e analogias entre linguagem e arquitetura? Apesar deste primeiro entrave, relativo às diferenças estruturais entre linguagem e arquitetura, é possível encontrar, no campo dos estudos semióticos, alguns outros caminhos para se pensar relações mais positivas entre os dois sistemas. Bakhtin, por exemplo, se utilizou de sua noção de texto para aproximar quaisquer sistemas de signos, chegando a admitir uma “linguagem da arte”2. Em Barthes, essa aproximação é concebível – de forma bem heterodoxa, é verdade – segundo uma noção abrangente de fala: ntender-se-á, (...) por linguagem, discurso, fala, etc. toda unidade E ou toda síntese significativa, quer seja verbal, quer visual: uma fotografia será, por nós, considerada fala, exatamente como um artigo de jornal; os próprios objetos poderão transformar-se em fala se significarem alguma coisa. Essa maneira genérica de conceber a linguagem se justifica aliás pela própria história das escritas: muito antes da invenção do nosso alfabeto, objetos como o kipu inca ou desenhos como os pictogramas eram falas normais3

Na linha destes dois exemplos, um pressuposto para a admissão da arquitetura enquanto um “tipo” de linguagem residiria, para além do conceito de signo, nos modos de significação como denominadores comuns de todos os sistemas semióticos. Ou então, nos modos concretos com que esses sistemas funcionam e comunicam significado, e que podem ser designados por termos como texto, fala, discurso, etc. Assim, o que nos permitiria associar a fala linguística com a “fala arquitetônica” é precisamente o que a fala pressupõe: a função comunicativa. Mas essa é uma premissa que autores como Agrest e Gandelsonas, em uma leitura ortodoxa da teoria saussuriana, se recusariam a admitir, uma vez que

2. “Todo texto pressupõe um sistema de signos comumente compreendido (isto é, convencional dentro de uma certa coletividade), uma linguagem (mesmo a linguagem da arte). Se não há linguagem por trás do texto, não se trata de um texto, mas de um fenômeno natural (não-significante)”. Mikhail Bakhtin, Speech Genres and Other Late Essays. (Texas: University of Texas Press, 1986), p. 105. T.M. 3. Roland Barthes, Mitologias (Rio de Janeiro: Difel, 2013) p. 201

a definição da semiótica de [Ferdinand de] Saussure está N ausente a noção de comunicação exatamente porque se trata de um fenômeno nitidamente distinto do de significação. O estudo do fenômeno da comunicação, que analisa como os signos são enviados e recebidos, é diferente e não pode ser confundido com um estudo que analisa ‘de que consistem os signos’ ou ‘leis que os determinam’4

4. Agrest, D.; Gandelsonas, M. (2013), p. 133

Mas esse posicionamento que, como disse Roy Harris em sua introdução ao próprio Cours de Saussure, concebe a linguagem como um “sistema autorregulador e contido em si mesmo”, parece contradizer as ideias que o próprio Saussure desenvolveria posteriormente, e que apontariam para uma indissociabilidade entre as teorias semiótica e da comunicação5. Ideias que se tornariam patentes em boa parte dos desdobramentos dos estudos semióticos e, em certa medida, mesmo

5. “A julgar pelas notas ‘perdidas’, a direção em que Saussure parece estar se movendo (...) é a do que, hoje em dia, seria chamado de integracionismo. (...) Para os integracionistas, o indivíduo é o foco da atenção. O que se

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tem por ‘sistema linguístico’ é simplesmente uma extrapolação social da comunicação entre indivíduos. O indivíduo é o construtor da linguagem, e a linguagem é construída – a cada dia e a cada hora – na interação entre as atividades comunicativas de uma pessoa com as de outra. Essa integração é temporária e ligada ao contexto. Ela não estabelece nenhum conjunto semi-permanente de formas e significados”. Roy Harris, Introdução. In: Ferdinand de Saussure, Course in General Linguistics (Londres: Bloomsbury Publishing, 2013), p. 34 6. Ferdinand de Saussure, Curso Geral de Linguística (São Paulo: Cultrix, 2006), pp. 81-2

no senso comum: a linguagem, afinal, não apenas pré-determina a comunicação, mas se constrói efetivamente no ato comunicativo. Mas se queremos falar em uma “linguagem arquitetônica”, há ainda um conceito fundamental que deverá ser abordado; um que se mostrará indispensável para que pensemos a arquitetura a partir da linguagem (e dos sistemas semióticos em geral) e de forma indissociável da comunicação. Falamos, aqui, da ideologia ou, mais especificamente, a ideologia conforme a tradição marxista do termo. Como veremos, o modo pelo qual fazemos noção da ideologia – um conceito tradicionalmente ambíguo – corresponde diretamente ao estatuto que fazemos dos sistemas semióticos. Acredito, portanto, que o primeiro passo para que possamos abordar a arquitetura pela teoria semiótica e, quem sabe, apaziguar a ideia de uma “linguagem arquitetônica”, deverá passar por este conceito decisivo. Ideologia Uma das maiores contribuições da teoria saussuriana foi a do princípio da arbitrariedade do signo linguístico. De forma simples, este princípio nos diz que, num sistema linguístico qualquer (embora também nos sistemas não-verbais), a relação entre um significante (forma) e um significado (conceito) que configura um signo não pode ser descrita como uma relação de causalidade natural, mas como uma de determinação arbitrária. “Assim”, escreveu Saussure, “a ideia de ‘mar’ não está ligada por relação alguma interior à sequência de sons m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada igualmente bem por outra sequência, não importa qual”6. Não há nada na ideia (ou significado) do signo, então, que remeta necessariamente à forma que ele assume num sistema linguístico. Isso não significa, no entanto, que os indivíduos que operam essa língua possam determinar, conforme queiram, a forma e o significado dos signos que empregam; pois a determinação arbitrária entre forma e significado se refere sobretudo a uma convenção cultural, ou seja, a um compromisso coletivo e histórico que determina as características comuns de um sistema linguístico. Toda linguagem (donde Saussure deduz: todo sistema semiótico) se configura com base nessa convenção normativa. A essa altura poderíamos nos questionar, nos distanciando dos sistemas verbais, se o princípio da arbitrariedade do signo se justifica em sistemas não-verbais como a arquitetura. Uma perspectiva “organicista” muito comum na arquitetura nos diria, por exemplo, que diversos signos do repertório arquitetônico parecem conservar, em suas formas, uma relação direta e natural com aquilo que elas representam. Tomemos o caso do arco, que é frequentemente tido como o resultado formal “orgânico” de uma distribuição de esforços 21


em um determinado arranjo tectônico: o conceito de abertura – passagens, janelas, cavidades – quando se dispõe unicamente de tijolos, induz à forma do arco. Mas por mais que essa afirmação seja logicamente correta, é também verdade que a forma do arco integra, historicamente, o repertório de muitos “dialetos” arquitetônicos sem que conserve qualquer vínculo natural com suas realidades materiais específicas. E esse modo de existência do signo-arco é hoje, sem dúvida, o mais recorrente. Se a forma do arco continua a ser empregada, por exemplo, em sistemas construtivos que poderiam prescindir inteiramente dela (como o sistema viga-pilar em concreto) é sobretudo porque o arco se tornou, ao menos parcialmente, um caractere convencional e arbitrário no sistema arquitetônico. Neste ponto, podemos concordar com o que disseram Agrest e Gandelsonas: ( ...) atribuir uma determinada função a um fato arquitetônico pressupõe uma convenção subjacente; um objeto arquitetônico é percebido como tal não porque tenha determinado significado inerente que é ‘natural’, mas porque o sentido que lhe foi atribuído é fruto de uma convenção cultural. A análise do vínculo arbitrário entre objeto e função arquitetônica ou outros significados invalida a noção de função como único determinante da forma do objeto. Invalida igualmente a ideia do significado inerente do objeto7

7. Agrest, D.; Gandelsonas, M. (2013), p. 136

Da questão da arbitrariedade do signo decorre, então, a seguinte implicação: se a forma e o significado dos signos (linguísticos ou não) se configuram neles não pelo arbítrio do indivíduo, mas por uma “convenção” social que ele herda e da qual não participa e nem altera, mas apenas reproduz, então parece haver nesses sistemas socialmente compartilhados uma propriedade coercitiva, além de uma forte tendência à invariabilidade. A linguagem – e particularmente a verbal, que, dentre os demais sistemas semióticos, é para Saussure o exemplo mais nítido de configuração arbitrária – é concebida portanto como uma estrutura externa e fechada sobre si mesma que se configura numa convenção histórica a priori: e fato, nenhuma sociedade conhece nem conheceu jamais a D língua de outro modo que não fosse como um produto herdado de gerações anteriores e que cumpre receber como tal. (...) Um dado estado da língua é sempre o produto de fatores históricos e são esses fatores que explicam porque o signo é imutável, vale dizer, porque resiste a toda substituição8

Estes atributos da concepção saussuriana – dita “estruturalista” – da linguagem se revelariam fundamentais, do início aos meados do século XX, para a incorporação da teoria semiótica às mais diversas áreas de incidência da teoria marxista. Isso porque, embora Saussure tenha se limitado, em seu Cours, a simplesmente reconhecer a necessidade de se estudar a linguagem “em seu quadro social” tal como quaisquer 22

8. Saussure, F. (2006), p. 86


9. Ibid., loc. cit.

outras “instituições sociais”9, as implicações do princípio da arbitrariedade do signo colocavam a teoria saussuriana frente a frente com a concepção marxista da ideologia. Uma convergência proposta sobretudo por Mikhail Bakhtin – embora, como veremos, ele divirja da concepção hegemônica da ideologia –, que em Marxismo e Filosofia da Linguagem (1929) já identificava a teoria semiótica e o estudo da ideologia como dois nomes para um mesmo empreendimento:

10. Mikhail Bakhtin, Marxismo e Filosofia da Linguagem (São Paulo: Hucitec, 2006), p. 30

odo signo está sujeito aos critérios de avaliação ideológica (isto T é, se é verdadeiro, falso, correto, justificado, bom, etc.). O domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Ali onde o signo se encontra, encontra-se também o ideológico. Tudo o que é ideológico possui um valor semiótico10

11. Em Althusser, os Aparelhos Repressivos de Estado compreendem a parte pública e administrativamente unificada da superestrutura, e funcionam predominantemente pela violência. São eles: “O Governo, a Administração, o Exército, a Polícia, os Tribunais, as Prisões, etc”. Louis Althusser, Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado (Lisboa: Presença, 1980), p. 43

Ideologia, na terminologia marxista, diz respeito aos sistemas de representações, valores, ideias e comportamentos compartilhados pelos indivíduos em um meio social, conformando a parte dita “superestrutural” da formação social. Enquanto parte da superestrutura, a ideologia se caracterizaria, ao lado do que Louis Althusser chamou de Aparelhos (Repressivos) de Estado (AE)11, sobretudo por sua função de assegurar a reprodução das relações de produção, o que equivale a dizer: assegurar os interesses das classes dominantes. Embora predominantemente cultivada nas instituições privadas, a ideologia se mostraria complementar e indissociável dos aparelhos públicos de Estado, por um motivo simples: as classes dominantes não apenas deteriam o controle sobre as instituições e meios de produção privados, como seriam os próprios operadores do poder de Estado. Foi nesse sentido que Althusser pôde conceber os Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE)12: mesmo que a reprodução ideológica compreendesse, diferentemente dos Aparelhos de Estado, uma multiplicidade de instituições privadas, heterogêneas e aparentemente autônomas, ela estaria necessariamente vinculada ao Estado em razão de uma finalidade única: a manutenção dos interesses das classes dominantes. A ideologia adquire, aqui, sua acepção mais comum na teoria marxista: ela corresponde à ideologia dominante, ou seja, uma ideologia apologética e mantenedora do “estado atual das coisas”. No contexto marxista, a convergência entre a crítica da ideologia e a teoria saussuriana possuía, dessa forma, uma função importante e clara: fazer ver que, sob a aparente naturalidade da linguagem (e das instituições que a ensinam e reproduzem), e mesmo em seu emprego mais cotidiano, operavam os postulados arbitrários da ideologia dominante. Uma ideologia que, instalada nos mais humildes signos, enunciados e regras gramaticais, era frequentemente apreendida como o fundo dado, natural das coisas. E, como a natureza mesma,

12. Os AIE, diferentemente dos Aparelhos Repressivos de Estado, são privados e, embora sirvam essencialmente aos mesmos fins que estes, são administrativamente descentralizados. Consistem, para Althusser, em aparelhos como a escola, a família, a igreja, o sistema político-partidário, a imprensa, etc., por meio dos quais a ideologia dominante é cotidianamente ritualizada e normalizada.

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incontornável: como admitiu Barthes, “nunca posso falar senão recolhendo aquilo que se arrasta na língua”13. A aplicação da crítica ideológica ao estudo de outros sistemas semióticos não foi menos importante. Na arquitetura, embora tardia, ela serviria para desmontar alguns pressupostos fundamentais à história da disciplina; pressupostos tão persistentes, tão requentados ao longo dos séculos que pareciam ocupar um lugar inquestionável na axiologia “racional” da teoria arquitetônica. É o caso, como observaram Agrest e Gandelsonas, de uma “concepção implícita que fundamentou a ideologia arquitetônica desde os tratados clássicos até a abordagem funcionalista”: a de que haveria um “vínculo supostamente natural entre a função e a forma de um objeto”14. Uma concepção que, sabemos, tomou muitas formas ao longo da história. Podemos traçá-la, por exemplo, ao arquétipo naturalista da cabana primitiva de Laugier, em sua apologia à emergente arquitetura neoclássica: para o francês, a forma arquitetônica ideal seria aquela originada não pelo arbítrio do arquiteto, mas à imagem da própria natureza. De fato, o álibi da teoria neoclássica não passava, do ponto de vista da crítica ideológica, de um sintoma do próprio funcionamento da ideologia burguesa em formação: uma ideologia que, para se consolidar e se manter no poder, precisaria nomear seus próprios signos, construir seus próprios palácios, e integrá-los à paisagem “natural” da vida social. Mas é preciso destacar, nessa crítica ideológica dos sistemas semióticos, um perigo fundamental: ela corre o risco de reproduzir, em seu uso do conceito de ideologia, os próprios axiomas que ela pretende contestar. Como vimos, seja qual for o seu objeto, a crítica ideológica tem por finalidade e mérito desnaturalizar o significado das coisas: ao invés de inscrevê-las numa relação de causalidade natural (significado inerente), ela revela nas coisas sua convencionalidade e o seu caráter impositivo (significado arbitrário). As coisas têm significado, portanto, porque assim foi convencionado pela “história” e assegurado pelas “classes dominantes”. Tal é o sentido atribuído à ideologia: uma estrutura (im)positiva (porque dispõe sobre o significado das coisas), invariável (porque é inacessível e inalterável pelo arbítrio individual), apologética (porque naturaliza o estado atual das coisas), e transcendental (porque se forma antes e independentemente da vontade humana). Tais são, aliás, as mesmas características que a teoria saussuriana atribui à linguagem. No entanto, não seriam estes os atributos mesmos da natureza que a crítica ideológica e a teoria semiótica procuraram desmontar em primeiro lugar? Que vantagem tem, na explicação da linguagem ou da ideologia, uma teoria crítica que, por um lado, se desfaz de um modelo naturalista (o signo como reflexo da natureza), e por outro 24

13. Roland Barthes, Aula (São Paulo: Cultrix, 2007), p. 7 14. Agrest, D.; Gandelsonas, M. (2013), pp. 135-6

Frontispício do Essai sur l’Architecture (1753), de Marc-Antoine Laugier. Ilustrado por Charles-Dominique-Joseph Eisen



lado o substitui por um modelo perfeitamente análogo (o signo como reflexo da ideologia dominante)? Tomemos o exemplo de Saussure, para quem a determinação da linguagem residiria no que ele chamou de “fatores históricos”, e para quem ( ...) a língua aparece sempre como uma herança da época precedente. O ato pelo qual, em dado momento, os nomes teriam sido distribuídos às coisas, pelo qual um contrato teria sido estabelecido entre os conceitos e as imagens acústicas – esse ato podemos imaginá-lo, mas jamais ele foi comprovado15

Reconheçamos o mérito dessa afirmação: a linguagem não se configura por determinação natural, mas artificial e histórica. É isso que explicaria, por exemplo, a existência de não uma única, mas muitas línguas – ou, por analogia, muitas arquiteturas – diferentes ao redor do mundo: nenhuma delas emanaria de uma realidade universal (a “natureza” das coisas), mas sim dos diferentes sistemas ideológicos que, em algum momento, as determinaram: a língua francesa “reflete” a ideologia francesa, a arquitetura colonial brasileira “reflete” a ideologia colonial brasileira, etc. No entanto, permanece ainda em suspenso: no que consiste esse “dado momento”, ao qual Saussure se refere, da configuração da linguagem? Ou então: onde e quando, exatamente, acontece esse antes que precede o signo e que não nos é permitido acessar, mas apenas conjecturar? A resposta o próprio Saussure nos dá: não se sabe. Mas não porque se trate de um fato inverificável, e sim porque esse eterno “antes”, essa entidade transcendental e inexorável que Saussure chama de “história” é, por definição, uma estrutura a-histórica. A-histórica porque inacessível, inverificável e perfeitamente homogênea; porque análoga, paradoxalmente, à própria noção de “natureza” que a sua teoria da arbitrariedade do signo havia acabado de desmontar. A desnaturalização da linguagem corre o risco de se tornar a naturalização da ideologia. O perigo dessa crítica ideológica está, portanto, em conceber a ideologia nos mesmos termos com que Saussure concebe a linguagem. Quando temos simplesmente que ideologia = ideologia dominante, então por “ideologia” queremos dizer: um aparelho único e invariável que exerce total domínio sobre as práticas e subjetividades humanas. Mas se, tal como a linguagem de Saussure, a ideologia é tratada como esse ente transcendental e inexorável, então a própria realidade histórica da ideologia (defendida, aliás, pelo próprio Marx16) – se planifica: passamos a falar não de um fenômeno social, mas de uma invariante “natural”. O contrato e o protocolo Quando Saussure concebeu a linguagem como originada a partir de um “contrato” social entre as formas e os conceitos, foi para postular, para 26

15. Saussure, F. (2006), pp. 85-6.

16. Como observou H. M. Drucker, “(...) quando Marx se refere à ideologia, ele está empregando o termo em duas formas distintas e historicamente diferenciadas. Quando ele se refere ao pensamento característico de uma classe ascendente – mais especificamente o da burguesia antes de tomar o poder – ele está falando de algo bastante distinto do pensamento característico de uma classe dominante – a burguesia uma vez no poder.” Ver


H.M. Drucker, “Marx’s Concept of Ideology” in: Philosophy, no. 180 (Cambridge: Cambridge University Press, abril 1974), p. 154

além do caráter arbitrário e impositivo da linguagem, a sua natureza invariável. Como sabemos, a mais importante condição de existência de um contrato não é necessariamente a agradabilidade entre as partes envolvidas (pois um contrato pode nos ser feito assinar sem que conheçamos ou concordemos com seus termos), mas a imutabilidade: caso qualquer um de seus termos seja modificado, o contrato se invalida completamente. Um contrato, ou uma “convenção” (termo que Saussure utiliza com mais frequência), sugere uma determinação prévia, única no tempo e no espaço: para além de um acordo determinante, ele é um evento necessariamente passado. Tudo o que o contrato convenciona deverá se desenrolar num depois do qual ele é sempre o antes, e com o qual ele, separado que é no tempo, nunca se comunica. Seria possível, no entanto, conceber uma linguagem, uma ideologia ou um sistema de signos sequer que permaneça, tal como o contrato, completamente inviolável ao longo da história? Se podemos concordar que não, então talvez imagens como a do “contrato social” ou da “convenção arbitrária” falhem em descrever corretamente o domínio do ideológico (ou, como para Bakhtin, o domínio mesmo dos signos). É que o signo ideológico, diferentemente do que quis Saussure, não se origina em convenção a priori alguma: se há nesse sentido algo que podemos chamar de “convenção”, falamos na verdade não de um antes inatingível, mas de um evento contínuo e heterogêneo que não se desenrola a partir, mas na história. O signo não nos é “dado”: ele se configura no contexto social e histórico ao qual é continuamente exposto. Foi precisamente essa ideia que permitiu a Bakhtin, em sua crítica da teoria saussuriana, expandir o escopo da teoria semiótica:

17. Bakhtin, M. (2006), p. 43

odo signo, como sabemos, resulta de um consenso entre indiT víduos socialmente organizados no decorrer de um processo de interação. Razão pela qual as formas do signo são condicionadas tanto pela organização social de tais indivíduos como pelas condições em que a interação acontece. (...) Só esta abordagem pode dar uma expressão concreta ao problema da mútua influência do signo e do ser; é apenas sob esta condição que o processo de determinação causal do signo pelo ser aparece como uma verdadeira passagem do ser ao signo, como um processo de refração realmente dialético do ser no signo17

O signo não responde a uma estrutura soberana e transcendental (o “contrato” da ideologia), mas a um sistema normativo cuja única condição de manutenção é a de que se permita modificar e ceder. A linguagem e a ideologia não são conjuntos demarcados ou demarcáveis: são estados de eterno conflito e transformação. São campos de batalha: implicam uma multitude de adversários, acidentes, baixas, concessões, reavaliações, etc. “Consequentemente, em todo signo 27


ideológico confrontam-se índices de valor contraditórios. O signo se torna a arena da luta de classes”18. Podemos, à luz dessa concepção pragmática de como os sistemas semióticos (e ideológicos) se configuram, recorrer a uma imagem mais adequada do que aquela do “contrato” social. Isso porque, por mais que a ideia de contrato descreva corretamente a natureza normativa desses sistemas, ela nos induz a compreendê-los como conjuntos invariáveis e externos de determinações. Penso haver, por isso, uma imagem mais apropriada para a descrição de um sistema que, embora normativo, seja essencialmente dialético como a linguagem e a ideologia devem ser: o protocolo. Embora o protocolo, tal qual o contrato, seja um objeto coercitivo e determinante, ele é inteiramente referenciado no imperativo da interação e da contingência num meio social. O protocolo não se resume a um conjunto a priori de determinações, ou a um “antes” transcendental e inacessível, mas diz respeito a um processo autoavaliativo e continuamente generativo. Embora possua necessariamente algumas invariâncias e tendências de fixação, sua maior determinante é a admissibilidade da contingência: o protocolo produz um sistema que se adapta e reconfigura continuamente à medida em que seus termos se obstruem, modificam e reagem com fatores externos. O protocolo, diferentemente do contrato, é um sistema dialético precisamente porque ele não se basta por si só. Pelo contrário, conceber a ideologia como protocolo implica inseri-la em um sistema de sistemas ideológicos; significa admitir a uma ideologia a coexistência, conflituosa e transigente, com muitas outras ideologias. A ideologia, como o signo mesmo, é imanente ao social: isso implica que ela só pode ser estudada como um sistema que se transforma ininterruptamente à medida em que é empregado e associado com outros. É que está contida no protocolo uma premissa que não encontramos no contrato: a comunicação. A ideia de comunicação, porque implica o espaço concreto do social, descreve um movimento dialético de causalidade mútua. Esses sistemas não são apenas empregados na comunicação, mas se constroem e modificam no trânsito dos signos num meio social. Isso quer dizer que estudar o signo ideológico em qualquer uma de suas manifestações (na língua, na arte, na arquitetura) requer especial atenção à dimensão criativa desses sistemas. “A língua”, que para Bakhtin é análoga a quaisquer outras manifestações ideológicas, “é uma atividade, um processo criativo ininterrupto de construção (...), que se materializa sob a forma de atos individuais de fala”19. É essa premissa, voltando ao tema de onde partimos inicialmente, que nos permitirá estudar a arquitetura a partir, ou enquanto, linguagem: a comunicação. A arquitetura, tal como o fato linguístico, pressupõe não apenas um sistema de determinações convencionadas (históricas, ideológicas, 28

18. Bakhtin, M. (2006), p. 45

19. Ibid., p. 72


etc.), mas igualmente um sistema de comunicação que não apenas reflete, mas refrata essas determinações. Se queremos descrever a arquitetura em todas as implicações que a expansão da teoria semiótica e da crítica ideológica sugerem, é preciso que reconheçamos nela, assim como em qualquer outros sistema de signos, essa dimensão da refração comunicativa: pois ela descreve o próprio movimento e manipulação dos signos no espaço social, e sobretudo o papel dos agentes que empregam e reconfiguram cotidianamente os sistemas semióticos. É preciso reconhecer, portanto, a relativa autonomia do espaço comunicacional – um espaço necessariamente acidental e refrativo – sobre o espaço abstrato das leis e determinações (as “linguagens”). Há, para isso, um termo que se mostrará especialmente útil na aplicação dessas ideias no campo da arquitetura, pois ele compreende esse espaço essencialmente dialético e imprevisível da comunicação: o texto. O texto na arquitetura

20. Stavros Kousoulas, “Shattering the Black Box: technicities of architectural manipulation”, In: International Journal of Architectural Computing, vol. 16 (Nova Iorque: Sage, 2018), p. 298. T.M. Aqui, a crítica de Kousoulas está endereçada sobretudo à “virada digital” da arquitetura, e em especial à utilização da computação gráfica como método de projetação. O que ele chamou de “falácia

É uma espécie de platitude corrente, na discussão arquitetônica, a premissa de que as obras de arquitetura possuem significado, ou então de que a produção arquitetônica é uma forma de significação . Mas embora ela sirva a uma primeira aproximação com os problemas tratados aqui, ela raramente permite que a discussão extrapole alguns dos caminhos viciados da tradição arquitetônica. É que os termos nos quais essa discussão é colocada, como vimos, geralmente decorrem de uma compreensão estritamente reflexiva do significado arquitetônico. Pelo lado da análise, a obra de arquitetura é frequentemente “lida” como uma expressão imediata de determinações históricas, materiais, culturais, etc., de onde é possível “inferir” seu significado. Pelo lado da atividade profissional, uma parte considerável dos arquitetos parece satisfeita com a ideia de que a produção arquitetônica se resume à fiel consideração do “contexto” determinante da forma, de onde a obra parece surgir como que por simples indução. Trata-se de um entendimento que, nos termos da abordagem informacional de Stavros Kousoulas, “assume a primazia dos inputs e a decorrente manifestação, causalmente linear, quase mágica, dos outputs”20. Isto é, uma concepção que assume um conjunto dado e apriorístico de determinações contextuais que são então reproduzidas no espaço “textual” da arquitetura: o texto enquanto contexto. A produção de arquitetura é então compreendida como uma espécie de operação de tradução, no sentido de uma transposição (ou reflexão) imediata do contexto no texto. Mas não é esse o caminho que queremos percorrer quando nos referimos à ideia de texto arquitetônico. Não porque desejamos conceder ao texto uma autonomia irrestrita, ou a independência de quaisquer amarras contextuais (no sentido das determinações que são “exte29


riores” ou “anteriores” ao texto, como a linguagem, a ideologia ou a história); mas porque um texto determinado estritamente por seu contexto externo é um objeto impossível, uma abstração. Isto é, se um texto arquitetônico é entendido como mera obra de tradução ou interpretação estatística, o que é que se espera de seu arquiteto (o “autor” do texto)? Evidentemente, um arquiteto-tradutor não pode nada, se não abdicar completamente de sua presença no enunciado; ele é o operador (ou operário) de uma mediação imediata, um mero facilitador para dinâmicas externas e inacessíveis a ele. Subtraído esse agente fundamental, no entanto, o que resta do texto é um esquema simplório de pura reflexividade: a arquitetura é concebida à imagem de um contexto social que se torna, a uma só vez, o meio de interlocução, o destinatário e o próprio emissor da mensagem. Do texto é eliminado seu movimento refratário intermediado pelo agente de discurso, agora invisibilizado; o esquema do prisma se torna o esquema do espelho. Mas se assim for, podemos desde já nos questionar se não seria o caso de a arquitetura prescindir completamente desse arquiteto, uma vez que esse tipo de operação de tradução, ou reflexão, pode ser suficientemente realizado por alguns simples modelos computacionais21. O primeiro passo para que admitamos a obra de arquitetura enquanto texto é, portanto, considerá-la por meio daquilo que um texto implica, isto é, a dimensão comunicativa. Este é o primeiro grau de autonomia da arquitetura: enquanto texto, ela existe não apenas como manifestação material de um sistema externo (um conjunto de determinações prévias, como a “história” ou a “ideologia”), mas como uma relação comunicativa concreta, e sobretudo performada por agentes sociais concretos. O texto, como disse Bakhtin no ensaio The Problem of the Text (1979), é um fenômeno dialógico: “O evento da vida do texto, isto é, sua verdadeira essência, se desenvolve na fronteira entre duas consciências, dois sujeitos”22. É por isso que o texto não é, e não pode ser, compreendido como a manifestação imediata e natural de um sistema, e sim como um fenômeno necessariamente mediado, manipulado: naturalismo, em sua tendência à explicação causal das ações O e pensamentos do homem (seu posicionamento semântico no mundo) o reifica ainda mais. A abordagem ‘indutiva’ a qual assume-se ser inerente ao realismo é, em essência, uma explicação causal e reificante do homem. As vozes (tidas como estilos sociais reificados) são então transformadas simplesmente em signos de coisas (ou sintomas de processos); torna-se impossível responder a elas, não se pode mais polemizá-las, e quaisquer relações dialógicas com essas vozes desaparecem23

A “abordagem indutiva” à qual Bakhtin se refere pode ser identificada facilmente na arquitetura: é o caso dos muitos organicismos, tecto30

do input-output” decorreria de um “pensamento arquitetônico [que] implica uma ‘caixa-preta’ absoluta; uma que recebe inputs digitais e produz outputs espaciais”. Se olharmos, entretanto, para a história da teoria arquitetônica, veremos que essa concepção não é, se não, a manifestação, no espaço digital, de uma atitude tradicionalmente persistente na disciplina e que permeou diferentes estilos e paradigmas. Isto é, a concepção que chamamos de “reflexiva” da arquitetura: a de que haveria uma determinação causal e imediata do significado (para os modernos, a função), seja ela “natural” ou “ideológica”, sobre a forma arquitetônica. 21. Estou pensando na distinção feita por Kousoulas entre o trabalho do arquiteto e o funcionamento das chamadas Redes Neurais Artificiais (ANN), modelos computacionais projetados para simular a cognição humana. As ANN resolvem problemas a partir de um treinamento estatístico prévio (machine learning), o que significa que elas só podem operar por indução e dedução, ou seja, partindo de um conjunto amostral a priori de informações, regras e parâmetros que elas utilizam para interpretar ou prever fenômenos. A limitação desses modelos, entretanto, está no fato de que “a dedução e a indução nunca inventam: elas repetem, predizem e reproduzem dados quantitativos”. Ibid., p. 297 22. Bakhtin, M. (1986), p. 106. T.M. 23. Ibid., p. 112.


nismos e funcionalismos que há muito tempo persistem no discurso arquitetônico, e segundo os quais a forma arquitetônica parece não ser nada além da resposta natural a um estímulo ou demanda externa – a natureza, a sociedade, a economia, ou então o programa (que nada mais é do que uma síntese de todos os sistemas apriorísticos de significação que determinam a forma arquitetônica). Sob a perspectiva do texto, no entanto, essa noção nos parece fortemente irregular; ela equivale a dizer que um texto qualquer não é produzido pelo desígnio de um autor, mas unicamente pelas demandas externas que incidem sobre ele (seu contexto histórico ou, até mesmo, a própria ideia de um “leitor”). Por mais que a concepção funcionalista da arquitetura reconheça uma instância fundamental da significação do texto – que é o próprio meio da interlocução – devemos ter bem claro que nenhuma situação comunicativa está completa sem que haja na mensagem o vetor de uma intenção que irradia de um segundo agente, a quem podemos chamar, por ora, de emissor ou autor. De fato, do texto podemos dizer que ele está necessariamente endereçado a um leitor ou a um contexto, e que no ato da leitura ele encontra sua “razão de ser”, ou a função social que determina seu significado. Mas essa concepção do texto se mostra severamente defeituosa caso não reconheçamos, na situação comunicativa que o envolve, uma certa autonomia do emissor para instrumentalizar a mensagem, deslocando-a de sua função (ou demanda) social e ativamente produzindo novas funções e significados. O texto, portanto, pressupõe interlocutores concretos. É na esfera da interlocução que o texto adquire uma relativa autonomia em relação ao seu sistema de determinações. Isso significa dizer que o texto não se origina somente num antes, mas também no durante que é o contexto da enunciação, ou da configuração concreta do texto. O texto enquanto mensagem existe no conflito material entre o desejo (do autor ou emissor) e as demandas externas a ele (a língua, a sociedade). Se, do MASP, projetado por Lina Bo Bardi, ou da Relatividade Geral, de Einstein, nos contentássemos em defini-los simplesmente nos termos das “funções sociais” que eles nos comunicam, diríamos que eles são simplesmente “um museu”, ou “um livro”. De forma similar, se quiséssemos reduzi-los aos seus meros aspectos “contextuais”, diríamos tratar-se, respectivamente, de “uma obra do modernismo arquitetônico” e um “trabalho de física moderna”: obras surgidas de um contexto histórico e social. A imprecisão óbvia dessas hipóteses sugere que todos sabemos que os usos sociais dos textos de Bardi e Einstein ultrapassam em muito as funções imediatas do “museu” e do “livro”, e que esses textos representavam, à época de suas respectivas emissões, muito mais do que era social e ideologicamente demandado de um texto de arquitetura ou de física. Isso porque o MASP e a Relatividade, mais do que meros fenômenos emanados de uma certa “normalidade” contextual, eram sobretudo atos individuais e refratá31


rios de discurso, de enunciação; eventos, por sua vez, responsáveis por reconfigurar – cada um ao seu modo – as expectativas e demandas de seus contextos sociais. Eles não surgiam meramente como reflexos de um certo contexto, mas igualmente como seus produtores. Se lidar com obras de arquitetura significa lidar com textos, e se esses textos são fenômenos necessariamente refratários, é preciso, então, nomear a esfera da interlocução onde acontece essa refração: a esfera do autor. Quem – ou o que – é o autor da arquitetura? A escritura Não se trata aqui, ao ressaltarmos a ideia de um autor do texto arquitetônico, de endossar a tese do “gênio” da pessoa-autor (a quem Barthes, celebremente, tratou de enterrar24), nem tampouco de atribuir a “gênese” do texto a um conjunto de determinações prévias e abstratas (por exemplo, quando se diz que “é a linguagem quem fala, e não o autor”25). Sabemos que ambas essas perspectivas são comuns de encontrar, não só na crítica literária, mas também quando falamos de literaturas não-verbais como a arquitetura. A primeira delas nos colocaria, por exemplo, diante de um Le Corbusier, le Grand , autor-indivíduo, gênio e gênese da arquitetura moderna – donde, por extensão, a ideia mesma de arquiteto passa a pressupor essa capacidade demiúrgica. A segunda perspectiva, por outro lado, nos diria que esse mesmo Corbusier não é ninguém mais do que um operador da cidade maquinista, um autor-operário a serviço de forças produtivas transcendentais (o capital, a infraestrutura, a ideologia burguesa, etc.), um “sintoma de um processo” ou um “sinal dos tempos”. Mas quando invocamos a palavra autor, não é para colocá-la sob essa ou aquela categoria de “origem” do texto. Talvez possamos até mesmo abandoná-la de todo, uma vez que o que queremos extrair da ideia de autor é menos o agente e mais a agência, menos o enunciador e mais a enunciação, menos o autor e mais a autoridade. Por “autor”, nomeamos nada mais, nada menos que o desígnio de uma subjetividade qualquer (não necessariamente individual, não necessariamente humana). Um autor-autoridade. O que nos importa desse autor é puramente a sua natureza mecânica: ele é um gesto refratário, uma função, uma perturbação de um estado de inércia, uma força que põe um objeto em movimento. Esse autor se permite descrever menos por uma figura originária e delimitável, e mais por um processo comunicativo e relacional: o autor é em relação àquilo que ele coloca em movimento, àqueles (ou aquilo) a quem ele se dirige, e aos efeitos concretos de sua enunciação. No que o texto, com efeito, é um objeto em movimento, um vetor de intenção; uma performance, como escreveu Barthes: “nas sociedades etnográficas, a narrativa nunca é assumida por uma pessoa, mas por um mediador, xamã ou recitante, de quem, 32

24. O autor que morre em A Morte do Autor (1967), de Barthes, “é uma personagem moderna, produzida sem dúvida por nossa sociedade na medida em que (...) ela descobriu o prestígio do indivíduo ou, como se diz mais nobremente, da ‘pessoa humana’”. Roland Barthes, “A Morte do Autor”, In: O Rumor da Língua (São Paulo: Martins Fontes, 2004), p. 58 25. Ibid., p. 59


26. Barthes, R. (2004), p. 58 27. Ibid., p. 61

28. Id., (2007), p. 12

a rigor, se pode admirar a performance (isto é, o domínio do código narrativo) mas nunca o ‘gênio’”26. Este é, acredito, o primeiro grau de autonomia da arquitetura enquanto texto. Nós a encontramos nas ideias de autor e de autoria: termos que, aliás, podem ser substituídos desde já por aquilo que Barthes, na crítica literária, chamou de escritor, ou escritura, pois “o escritor moderno [em oposição ao autor] nasce ao mesmo tempo que seu texto; não é, de forma alguma, dotado de um ser que precedesse ou excedesse a sua escritura, não é em nada o sujeito de que seu livro fosse o predicado; outro tempo não há se não o da enunciação, e todo texto é escrito eternamente aqui e agora”27. Isto é, este primeiro grau de autonomia nos diz que no texto está contido o desígnio de uma autoridade imanente (em oposição à transcendência da “linguagem”), uma determinação a praesenti que não tem origem se não nela mesma, pois ela é o próprio ato da enunciação, da escritura. Dito isso, penso haver, ainda, um segundo grau de autonomia do texto; um que acabamos de sugerir implicitamente, e que decorre inevitavelmente do primeiro. Como vimos, este último postula a autonomia da mediação (escritura) dos signos do texto em oposição à sua origem (sistema). Dissemos, assim, que a mediação dos signos confere ao texto uma certa autonomia com relação ao seu sistema de determinações, justamente porque essa mediação, ou interlocução, da linguagem se realiza sempre externamente (não confundir com “independentemente”) a ela – ou seja, nas contingências do próprio espaço social da comunicação. Além do mais, dissemos que essa mediação acontece no que chamamos de autor ou escritor, que para Barthes não é apenas um “mantenedor de uma função ou o servidor de uma arte, mas o sujeito de uma prática”28. A nossa segunda observação, por outro lado, diz respeito ao lugar concreto da comunicação, ao próprio espaço pelo qual percorrem os signos. É que há na ideia de comunicação algo além do simples deslocamento ou mediação de significado, além mesmo da dimensão “intersubjetiva” que descrevemos há pouco. Na verdade, como apontou Jacques Derrida, a comunicação implica um modo de existência do signo que escapa inteiramente à significação; uma dimensão que é inexprimível fora do evento concreto no qual o signo se consuma: ra, a palavra comunicação (...) abre um campo semântico que O precisamente não se limita à semântica, à semiótica, ainda menos à linguística. Pertence ao campo semântico da palavra comunicação o designar de movimentos não-semânticos. Aqui um recurso ao menos provisório à linguagem vulgar (...) ensina-nos que se pode, por exemplo, comunicar um movimento ou que um abalo, um choque, um deslocamento de força pode ser comunicado – entenda-se, propagado, transmitido. (...) O que se passa, então, o que é transmitido, comunicado, não são fenômenos de sentido ou de significação. Não se trata nesses casos nem de um conteúdo 33


semântico ou conceitual, nem de uma operação semiótica, ainda menos de uma troca linguística29

O que se comunica no texto, portanto, não é tanto uma informação, um significado ou um sentido, mas, antes de mais nada, o texto, o signo em si. A comunicação acontece materialmente, num espaço que não é simplesmente imagético, intersubjetivo e mental, mas existencial: mais do que veículos de significado, signos são acontecimentos concretos. Foi nesses termos que, 1929, Bakhtin compreendeu a essência do signo, linguístico ou não:

29. Jacques Derrida, "Assinatura Acontecimento Contexto". In: Margens da Filosofia (Campinas: Papirus, 1991), p. 349

ada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da C realidade, mas também um fragmento material dessa realidade. Todo fenômeno que funciona como signo ideológico tem uma encarnação material, seja como som, como massa física, como cor, como movimento do corpo ou como outra coisa qualquer. (...) Um signo é um fenômeno do mundo exterior. O próprio signo e seus efeitos (todas as ações, reações e novos signos que ele gera no meio social circundante) aparecem na experiência exterior30

30. Bakhtin, M. (2006), p. 31

A nossa segunda observação sobre a autonomia do texto, portanto, diz respeito à sua própria existência física. Quer dizer, à sua qualidade formal, presente e afetiva – a sua capacidade de afetar e ser afetado – no espaço social. O signo, paralelamente (e mesmo antes) à função semântica a que foi designado, possui uma qualidade ativa, autoritária, naquilo que ele possui, por si só, de forma. A consideração do signo pela sua forma concreta e afetiva é indispensável se quisermos admitir, a quaisquer que sejam os fenômenos da ideologia, uma existência verdadeiramente dialética: pois não somente o espaço físico é, por excelência, o lugar mesmo da reprodução ideológica, como ele é também seu espaço de revolução e transformação31. Dito disso, essa dimensão concreta – por vezes chamada de a-significante32 – do texto se mostrará particularmente interessante ao voltarmos nossa atenção para a arquitetura, isto é, para a obra de arquitetura entendida enquanto texto. Isso porque, em contraste com outros tipos de “texto”, a dimensão material é particularmente expressiva na obra de arquitetura, tanto quanto (e por vezes até mais) do que a sua dimensão significante, semântica. Quando dizemos, por exemplo, que tal ou tal obra de arquitetura possui uma certa qualidade monumental, dificilmente estamos nos referindo apenas aos seus atributos semânticos, àquilo que ela “simboliza” ou aos efeitos memorialísticos que essa obra desperta em nossa consciência. Pelo contrário, é extremamente comum que empreguemos o adjetivo “monumental” para descrever a simples imponência física de um objeto, a potência material e estética de uma presença que se impõe no espaço vivido33. Uma arquitetura que dizemos ser “monumental”, portanto, não diz respeito apenas ao que ela tem de “simbólica” – ao que ela representa ou rememora de algo

31. Para Althusser, "as ‘ideias’ de um sujeito humano existem nos seus atos (...). [Portanto,] Esta ideologia fala dos atos: nós falaremos de atos inseridos em práticas. E faremos notar que estas práticas são reguladas por rituais em que elas se inscrevem, no seio da existência material de um aparelho ideológico”. Althusser, L. (1980), p. 87.

34

32. O signo a-significante, para D. Hauptmann e A. Radman, é um signo “que não é formado linguisticamente, mas estética e pragmaticamente". Um signo que não pode ser definido nem pela sua forma, nem por seus órgãos ou funções, mas por sua capacidade de afetar e ser afetado em troca”. Deborah Hauptmann e Andrej Radman, “Asignifying Semiotics as Proto-Theory of Singularity” In: Footprint, vol. 8 (Delft: TU Delft, Techne, 2014), pp. 1-2 33. Em Alegoria do Patrimônio (1992), Françoise


Choay discorre sobre a evolução semântica do termo “monumento” na história, atestando para a sua progressiva ambiguação. A partir de Quatremère de Quincy, na virada do século XVIII, ela aponta que o conceito passa a abarcar não apenas a dimensão memorial, mas igualmente a estética: “[monumento] designa um edifício, quer construído para eternizar a recordação de coisas memoráveis, quer para tornar-se num agente de embelezamento e de magnificência nas cidade”. Quatemère de Quincy apud. Françoise Choay, A Alegoria do Patrimônio (Lisboa: Edições 70, 2014), p. 19 34. Ibid., loc. cit.

35. Barthes, R. (2007), p. 8. Grifo meu

ausente – mas igualmente ao impacto de uma presença concreta, à qualidade de um signo que “não é formado linguisticamente, mas estética e pragmaticamente”34. A escolha do termo “monumental” em nosso exemplo não é fortuita; de fato, ela se revelará central ao longo deste trabalho. Entretanto, neste momento, o que nos interessa desse adjetivo é apenas a sua ambiguidade exemplar para a explicação do que entendemos por “texto” na arquitetura: um objeto que reúne, simultaneamente, qualidades significantes e a-significantes. A forma do texto / O que diz uma parede Quando dizemos que há um certo grau de autonomia no que a arquitetura possui de forma, é porque essa dimensão implica, por si só, a sua capacidade de agir paralelamente à significação ou a determinações de natureza ideológica e histórica; ou seja, paralelamente a tudo aquilo que a essa forma é feito significar ou “dizer”. Se falamos, então, de uma produção crítica de arquitetura, uma que reconheça tudo o que no “contexto” dessa produção se instala compulsoriamente na obra (por exemplo, tudo o que da ideologia burguesa persiste de forma inconsciente no texto arquitetônico), é indispensável a essa crítica que ela explore ao máximo as possibilidades do autor sobre a forma: a lacuna que se abre entre o que a arquitetura diz e o que ela de fato faz. É essa possibilidade do “jogo” das formas e dos significantes, esse ato de enunciação que se configura materialmente nos interstícios da linguagem e da ideologia, que Barthes chamou de “literatura, escritura ou texto”: ela [a literatura] viso, portanto, essencialmente, o texto, isto é, o N tecido dos significantes que constitui a obra, porque o texto é o próprio aflorar da língua, e porque é no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada: não pela mensagem de que ela é o instrumento, mas pelo jogo das palavras de que ela é o teatro. (...) As forças de liberdade que residem na literatura não dependem da pessoa civil, do engajamento político do escritor que, afinal, é apenas um ‘senhor’ entre outros, nem mesmo do conteúdo doutrinal de sua obra, mas do trabalho de deslocamento que ele exerce sobre a língua35

O que significa empenhar esse deslocamento, ou exercer essa autonomia da forma quando falamos do projeto de arquitetura? Podemos começar, antes de tudo, definindo o que não é autonomia. A reivindicação de autonomia da forma nada tem a ver com o viés de negatividade que geralmente media o emprego do termo “autonomia” num certo formalismo tradicional: não se trata, portanto, de seguir uma tradição inaugurada por temas como o da “arte pela arte”, do simples culto à forma – diga-se, imagem – ou de uma renúncia ao significado como métodos de negação das estruturas determinantes que se interpõem à criação. Isso porque sabemos o quão frágil pode ser um princípio 35


de “autonomia” baseado unicamente na negação: ser livre de determinações externas não é, de forma alguma, a liberdade de determinar. Pelo contrário, se entendemos por autonomia (auto: “de si mesmo”; nomos: “lei”) uma condição necessariamente positiva – autonomia é a liberdade de determinar – então a verdadeira condição para esse “deslocamento” se torna menos a necessidade de negação e mais a capacidade de intervenção. É verdade que, diante disso, podemos nos perguntar: será possível exercer essa liberdade para determinar sem que antes tenhamos, nós mesmos, nos emancipado de todas as determinações que nos limitam a priori, ou seja, antes que as tenhamos negado? Acredito que sim, e é precisamente nisso em que consiste o “jogo”, ou o “combater a língua no interior da língua” a que Barthes se referiu. Tomemos, por exemplo, um elemento qualquer do repertório criativo de um arquiteto: digamos, a parede. Certamente, o fato de que esse arquiteto possui um repertório delimitado a priori, ou um “conjunto possível” (isto é, restrito) de elementos dentre os quais a “parede” é um tipo bem classificado, e sem os quais não lhe é permitido trabalhar, já nos sugere de imediato que sobre esse arquiteto age um sistema incontornável de condicionantes. Muito pouco do que esse arquiteto faz é, diante disso, de sua criação: seu trabalho consiste majoritariamente na aplicação, com maior ou menor grau de variação, de um léxico herdado, predeterminado. Qual o fundamento, portanto, de qualquer reivindicação de autonomia de uma arquitetura cujos próprios instrumentos parecem falar por ela antes mesmo que ela os solicite? Ora, a autonomia dessa arquitetura reside precisamente naquilo que não é permitido a essas determinações prévias condicionar; naquilo que não diz respeito a esse sistema de regras e tipos reprodutíveis a que se chama a “linguagem” da arquitetura; mas unicamente naquilo que Bakhtin, em sua filosofia do texto, chamou de enunciado: uma dimensão que não tem ligação causal com “os elementos (repetíveis) no sistema da linguagem (signos)”, mas que só pode ser observada no evento “individual, único e irrepetível”36 que é a enunciação do texto. O texto, enquanto enunciado, é um acontecimento concreto em que se manifesta uma intenção, uma escritura. O texto não é um simples conjunto de signos, mas de formas. Se falamos, portanto, do tipo “parede” na arquitetura, devemos ter claro para nós uma distinção fundamental: a de que a parede do léxico arquitetônico nada tem a ver com a forma da parede. “Parede” é, como vimos, um tipo, um elemento lógico e reprodutível de um sistema. Mas se falamos da forma dessa parede, falamos de uma parede, de um evento concreto e insubstituível; uma parede concreta diante de nós. No momento em que “a parede” se torna “uma parede”, algo acontece: abre-se uma fenda entre a linguagem e o texto que é precisamente a oportunidade do jogo, a autonomia do texto enquanto forma. Se o 36

36. Bakhtin, M. (1986), p. 105


37. “Tem-se dito repetidamente que a forma segue alguma coisa: função, programa, tecnologia, clima, clientes, finanças, valores, etc. Nós acreditamos que a forma (arquitetônica) deve seguir apenas a si mesma, isto é, sua possibilidade ontológica de definir, enquadrar e limitar o espaço. De forma direta: a arquitetura precisa ser apenas ela mesma”. P. V. Aureli, Martino Tattara, “Architecture as Framework: The Project of the City and the Crisis of Neoliberalism”, in: New Geographies, n. 1 (Cambridge: Harvard University Press, 2009), p. 39. T.M. 38. Ibid., loc. cit. 39. Ibid., loc. cit.

tipo “parede” descrevia, anteriormente, um sistema de determinações lógicas (o léxico, a linguagem) a constranger as possibilidades do arquiteto, a forma da parede – “uma parede” – diz respeito a algo inteiramente diferente: ela integra, agora, um sistema de intenções e determinações ontológicas que cabem fundamentalmente ao arquiteto. Um sistema que não é composto de tipos, mas de paredes. Um ambiente delimitado por um certo arranjo de paredes não é uma clausura lógica, mas uma clausura física: se há um ser humano aprisionado dentro delas, seu captor não é a “linguagem arquitetônica”, ou a ideia de parede, mas a parede em si. Quem determina o conjunto possível de comportamentos desse ser no interior desse arranjo não é mais a “língua”, mas a forma. Em Architecture as Framework: The Project of the City and the Crisis of Neoliberalism (2009), Pier Vittorio Aureli e Martino Tattara especulam sobre o que seria, no campo da produção arquitetônica, uma prática orientada para essa autonomia pragmática da forma. No que poderíamos chamar de uma espécie de “formalismo radical”, Aureli e Tattara solicitam da obra de arquitetura, de modo similar à convocação de Barthes ao “jogo” da escritura, que ela não seja nada além dela mesma: isto é, entendendo que é no âmbito da forma que a arquitetura pode exercer um verdadeiro, ainda que relativo, grau de autonomia em relação ao seu contexto37. Eles advertem, no entanto, que o engajamento com a forma não se traduz em mera criação de imagens, mas em um compromisso inteiramente pragmático: “definir, enquadrar e limitar o espaço são atos de determinar o modo com que coisas, pessoas e instituições coexistem”38. A forma, afinal, não existe apenas no espaço mental das representações (podemos mesmo dizer que ela independe de qualquer percepção cognitiva), mas num conflito concreto entre o espaço físico e a matéria que o desloca: orma significa uma relação crítica entre interior e exterior; F descreve, portanto, o processo constante de inclusão e exclusão por meio do qual os seres humanos sempre definiram – politicamente – o espaço. Por essa razão, não é tanto a política que define a forma, mas o contrário: é a forma – o modo com que o espaço é articulado e enquadrado em um processo de inclusões e exclusões – que define a política39

Haveria nessa abordagem crítica da forma, eles apontam, uma espécie de contraponto ao modo com que o “contexto” e a ideologia do neoliberalismo têm orientado a produção da arquitetura e da cidade como um todo. Eles observam que, nas últimas décadas, tanto a prática profissional da arquitetura (cada vez mais preocupada com a produção de imagens, edifícios icônicos e marcos urbanos, do esculturalismo do design paramétrico às “revitalizações” do paisagismo urbanístico) quanto a sua produção teórica (em sua incessante convocação às temáticas da flexibilidade, auto-organização, inovação e resiliência) são 37



40. Aureli, P. V.; Tattara, M. (2009), p. 39. T.M

41. Ibid., p. 41

← P. V. Aureli e Martino Tattara (DOGMA), "A Grammar for the City", 2005

na verdade sintomas de uma completa resignação com os processos de desregulamentação e com a total ausência de planejamento da cidade neoliberal. O incontrolável espraiamento urbano, a reprodução da cidade informal e os novos modos de exploração do trabalho na economia do consumo e dos serviços – ou seja, a própria forma da cidade contemporânea – seriam assimilados não como objetos de intervenção e projeto, mas como reflexos naturais de processos urbanos automáticos e autogenerativos. Em oposição a essa espécie de “naturalismo” neoliberal endossado por uma arquitetura indulgente e apologética, Aureli e Tattara recuperam a ideia da forma, entendida “não apenas como algo arbitrariamente imposto ou como sintoma de algo mais ‘profundo’ (superestrutura), mas mais como uma tentativa de intervenção que tem a possibilidade (e a responsabilidade) de alterar a estrutura das coisas”40. Num projeto intitulado A Grammar for the City, proposto por ocasião de um concurso público organizado pelo governo da Coréia do Sul, em 2005, para construção de uma nova cidade administrativa, Aureli e Tattara situam a possibilidade de autonomia da forma arquitetônica no que eles acreditam ser, dentre todos os campos de atuação da arquitetura, o seu mais relevante espaço de aplicação: o projeto da cidade. Podemos dizer, em referência ao nosso exemplo anterior, que o projeto de Aureli/Tattara é concebido, literalmente, como um sistema de paredes: um plano para a cidade que representa não tanto um conjunto de objetos, mas um sistema de clausuras, normas e limites. Em outras palavras, a forma da cidade é entendida menos como uma somatória de edifícios e mais como um conjunto gramatical que “define os princípios de composição [da cidade] mais do que seu desenho”41. Para isso, o esquema do grid quadrangular, onde as linhas representam normalmente o “vazio” da cidade (ruas e avenidas) e cujos “quadrados” compreendem a massa edificada (as quadras), é propositalmente invertido. Agora, o espaço tradicionalmente ocupado pelo sistema viário – a parte “imaterial” e reguladora da cidade – se torna a própria forma da cidade: um sistema de edifícios cruciformes, a formar uma enorme e indiferenciada malha construída, abrigando os programas habitacional e administrativo. Inversamente, o espaço tradicionalmente reservado às quadras edificadas se torna o conjunto vazio (os “quartos” da cidade), sem função definida, e aberto a uma espécie de indeterminação programática controlada. Aqui, a ideia de uma “gramática da cidade” adquire um significado importante. O que se tem por “gramática”, quando falamos de sistemas linguísticos, se refere mais precisamente ao conjunto geral de normas, classes e relações que regem o funcionamento de uma língua e que determinam, como numa espécie de legislação morfossintática, o emprego de suas formas (como a fala e o texto). O mesmo poderia ser dito, por analogia, da cidade: haveria um sistema imaterial e norma39


tivo de fundo (por exemplo, o grid do traçado viário) a organizar os processos secundários de significação do tecido “falado”, ou “textual”, da cidade (as edificações). A proposta de Aureli e Tattara inverte esse sistema de determinações: agora é a forma que se torna o próprio tecido gramatical da cidade, determinando ela mesma os limites, os modos de habitação e as dinâmicas concretas da vida urbana. A dimensão textual da cidade se torna, aqui, também a sua parte protocolar, contextual: uma espécie de gramática de segundo grau, derivada para o espaço físico, onde a arquitetura é “reduzida a uma obstrução espacial, um enquadramento que não existe sob retórica alguma a não ser a da sua própria presença e forma”42. A questão da autonomia do texto – linguístico ou não – coincide portanto com o problema da forma do texto. Isso se torna seguro, ou ao menos familiar, quando falamos de arquitetura, não apenas porque “forma” é talvez um dos termos mais amplamente requisitados no vocabulário da disciplina, mas porque descreve uma realidade particularmente concreta da experiência arquitetônica. Se desejamos, porém, estendendo a outras semioses esse princípio efetivo de autonomia, dar forma a tudo o que chamamos de “texto”, é preciso que esse princípio se verifique também em todos os outros tipos de “fala” menos explicitamente materiais, como no emprego da língua ou da escrita. 40

P. V. Aureli e Martino Tattara (DOGMA), "A Grammar for the City", 2005 42. Aureli, P. V.; Tattara, M. (2009), p. 41. T.M


(Isso se mostrará ainda mais importante, como veremos adiante, se considerarmos que retornar ao tema da linguagem propriamente dita é também intensificar as implicações do problema da forma na arquitetura. É que uma parte considerável do que entendemos por “arquitetura” diz respeito diretamente ao emprego da palavra, falada e escrita). Precisamos, então, justificar porque em todo texto, em todo recurso ao signo (linguístico ou não) habita esse algo mais; essa capacidade própria de configurar, ordenar, delegar, deformar ou edificar, materialmente, a realidade. Antes, no entanto, será produtivo que nos detenhamos por um momento nesse “algo mais”. Forma e disposição Se perguntarmos a um representante qualquer do senso comum (um transeunte na rua, por exemplo) “O que é um dispositivo?”, ele certamente nos responderá: “é um objeto que faz alguma coisa”, que “realiza uma função”; “um instrumento”; “uma máquina”, ou qualquer outra coisa que diga respeito ao universo das coisas que funcionam. Se fizermos a mesma pergunta a Giorgio Agamben, ele nos dirá se tratar de um termo fundamental do pensamento de Foucault, donde: 43. Giorgio Agamben, “O que é um Dispositivo?”, in: Outra Travessia, n. 5 (Florianópolis: UFSC 2005), pp. 9-10.

. [O dispositivo] é um conjunto heterogêneo, que inclui virtu1 almente qualquer coisa, linguístico e não-linguístico no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de segurança, proposições filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos. 2 . O dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre em uma relação de poder.43

44. Agamben aponta que a apropriação do conceito por Michel Foucault teria se dado a partir da relação de Foucault com Jean Hyppolite, que havia sido seu professor e o autor de Introduction à la Philosophie de l’Histoire de Hegel (1968), onde discute os conceitos de hegelianos de “destino” e “positividade” 45. Hyppolite, J. apud. Agamben, G. (2005), p. 10

Agamben, traçando do pensamento de Foucault uma genealogia do “dispositivo”, observa que o uso que o francês faz do termo – que ele nunca chegou a definir propriamente – derivaria do conceito, empregado por ele em Arqueologia do Saber (1969), de “positividade” (positivité): um conceito que, por sua vez, teria sua origem na filosofia de Hegel44. Positividade, no pensamento hegeliano, descreveria, em oposição à ideia de “natureza”, uma institucionalidade coercitiva identificável em um determinado arranjo de práticas, ideias e objetos em uma sociedade, e em torno do qual se desenvolveria uma “relação de comando e obediência”45 entre os sujeitos e as instituições. Enquanto, por exemplo, nas religiões ditas “naturais” a relação entre os sujeitos e o divino seria de certa forma espontânea, imotivada e não-codificada (natural), nas “religiões positivas” essa relação seria fundamentalmente mediada por instrumentos, dogmas e ritos disciplinares impostos aos sujeitos sem que haja por parte deles um interesse direto. Já Foucault, na sua Arqueologia, emprega o termo “positividade” para descrever o fenômeno das formações discursivas, ou as relações 41


históricas que se configuram entre dizeres e práticas (ou enunciados), conformando uma determinada “unidade” ou corpus discursivo de saber, como uma ciência. Para Foucault, a positividade de um corpus de discurso (o acúmulo de enunciados preservados), digamos, de uma determinada instituição científica, não seria a suposta essência ou origem de seu objeto de saber (ou aquilo a que se referem, e ao que dá “sentido” aos enunciados), mas a sua capacidade de conservar, enredar e unificar os enunciados que compõem esse discurso a serviço de um projeto de poder46. O que nos interessará dessas definições de “positividade”, entretanto, pode ser descrito sobretudo pela ambivalência da ideia de poder: algo que descreve, simultaneamente, o estado substantivo de uma corporificação (como se diz, de uma instituição de poder, que ela forma um corpo objetivo) e o estado funcional de uma capacidade (um poder fazer, uma tendência produtiva). Nesse momento, o que queremos obter do dispositivo, segundo essa qualidade ambígua do “poder” que ele pressupõe, não é tanto o fato de que, em seu “corpus”, ele seja, como quis Foucault, uma montagem de muitos outros corpos a formar uma unidade: é sobretudo essa unidade mesma, esse produto final que nos interessará agora. A unidade, portanto, ou a forma corpórea do dispositivo, e aquilo que essa forma faz. A nossa ideia de “dispositivo”, por isso, talvez se aproxime mais do sentido que o próprio Agamben propõe dar ao termo; um que é um tanto mais abrangente que o de Foucault, e que nos aproxima um pouco mais do sentido que encontramos no senso comum. Isso porque o dispositivo de Agamben não descreve necessariamente um conjunto de coisas e práticas, mas as coisas e as práticas consideradas individualmente como dispositivos, no que elas mesmas são capazes de “conjuntar” as coisas ao redor. Um dispositivo é qualquer coisa, ele diz, “que tenha a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes”, como “a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e – porque não – a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos”47. O dispositivo possui uma “capacidade”: um potencial para realizar alguma coisa. Mas do que se trata esse potencial? Seria um simples estado de virtualidade, uma antecipação hipotética de algo que pode vir a se concretizar, ou se trata de algo além disso? Aqui, uma ligeira recordação de nossos estudos de Física nos dirá que um objeto qualquer não precisa estar efetivamente em movimento para que ele exerça uma certa influência concreta sobre alguma outra coisa em seu contexto material. Lembremos das implicações da “energia potencial”: basta que entre o nosso objeto e um outro objeto de seu contexto haja uma diferença de potenciais para que ele adquira essa capacidade, 42

46. Positividade, em outras palavras, não diz respeito ao “referente” desse corpus de enunciados (por exemplo, a “medicina” para o “discurso médico”), mas aos modos e técnicas concretos pelos quais é possível delimitar e ordenar uma unidade nomeável de saber, de forma a pô-la em “aplicação, em práticas que daí derivam em relações sociais que se constituem e modificam através [dela]”. Michel Foucault, Arqueologia do Saber (Rio de Janeiro: Forense, 2008), p. 140

47. Ibid., p. 13. Grifo meu.


esse “potencial” de realizar uma atividade ou produzir um efeito. É a relação de diferença entre a enorme massa do sol e as dos demais corpos do sistema solar que efetivamente os captura e os constrange à órbita solar (energia potencial gravitacional). O que produz esse efeito não pode ser traçado a nenhum fato cinético, ou a uma “ação” propriamente dita: mesmo em um estado de “inércia”, o sol está de fato agindo sobre seu contexto. É isso que o torna, segundo os nossos termos, um dispositivo. Keller Easterling, ao se deter sobre essa propriedade do dispositivo – esse “algo mais” que transforma “simples objetos” em dispositivos (ou o que ela chamou de formas ativas), isto é, em “objetos que fazem alguma coisa”, usou o termo disposição. A disposição de um objeto, segundo ela, não é exatamente uma qualidade individual ou interna a ele, nem tampouco se define pelo movimento desse objeto. Disposição é sobretudo uma relação de poder – ou uma “diferença entre potenciais” – que se estabelece no arranjo entre esse objeto e o seu contexto, concedendo a ele uma certa propriedade emergente: 48. Keller Easterling, Extrastatecraft: The Power of Infrastructure Space (Nova Iorque: Verso, 2014), p. 57. Grifo meu

ma bola no topo de um plano inclinado possui disposição. A U geometria da bola e sua posição relativa são os simples marcadores de uma atividade potencial. Mesmo sem rolar plano abaixo, a bola está ativamente fazendo algo ao ocupar essa posição. A disposição (...) descreve uma relação que se desdobra entre potenciais. Descreve uma tendência, atividade, faculdade ou propriedade tanto em seres quanto em objetos – uma propensão em um dado contexto. (...) A disposição é imanente, não nas partes que se movem, mas nas relações entre componentes48.

O fato de a bola em questão, mesmo estacionária, estar efetivamente “fazendo alguma coisa” (digamos, obrigando um observador desesperado a correr até ela para evitar sua queda), nos diz que a disposição não é apenas um estado virtual de possibilidade, mas que ela descreve, de fato, uma ação concreta. Não é preciso que um objeto munido de disposição empenhe um deslocamento de força ou energia para que ele possa efetivamente dispor das coisas segundo uma função que ele tende a cumprir. Essa observação é importante porque nos permite conceder mesmo aos objetos e eventos “puramente simbólicos” (adjetivo que geralmente se atribui a situações onde as coisas não acontecem, ou acontecem apenas “imaginariamente”, como quando se diz de um “fato simbólico” versus uma “ação real”) uma agência concreta e material. Por exemplo, uma arma na cintura de um policial não precisa ser de fato utilizada contra os cidadãos ao redor para que, ao percebê-la, eles se comportem de maneira diferente, ou seja, para que a arma cumpra efetivamente, ainda que de forma passiva, a sua função potencial (reprimir o crime). A mera existência simbólica dessa arma – no que ela simboliza o ato de matar – pode ser suficiente para que ela cumpra seu objetivo de reprimir o crime. Aqui, a simples 43


comunicação de significado é também o estabelecimento de uma “diferença entre potenciais” a partir da qual se dá a produção material de um certo estado das coisas – nesse caso, o estado da ausência de crime. Dizemos que a arma é um dispositivo não apenas no que ela pode fazer, mas indissociavelmente naquilo que ela significa. Torna-se possível, portanto, identificar no domínio geral dos símbolos (inseridos no campo ainda mais abrangente das formas) essa capacidade performativa da “disposição”. Isso ocorre justamente porque o que chamamos de símbolo (e a diferença de potenciais que pressupõe o ato de significação) está necessariamente dotado de uma existência física: o que significa dizer que a economia de significações na qual ele se insere é também, indissociavelmente, uma economia de práticas concretas. Mas o exemplo que utilizamos da arma descreve um símbolo ainda demasiadamente tangível: por ser um símbolo não-linguístico, a arma está ainda muito mais próxima da existência “opaca”, material, daquilo que se entende por forma, objeto, etc., do que do domínio, geralmente tido como mais “imaterial”, das significações “faladas” ou “textuais”. Veremos, entretanto, que o princípio da disposição (um princípio pragmático – um fazer – implícito a toda forma, significante ou não) se estende também ao emprego das formas verbais de significação, isto é, a todos os tipos de fala da linguagem “propriamente dita”. Quando Agamben nos diz que a linguagem é “o mais antigo dos dispositivos”, é por reconhecer no signo linguístico essa identidade entre as coisas ditas e as coisas feitas, entre os atos de significação e os atos de produção. Pois o que são os símbolos, as palavras e os textos, se não, relembrando Bakhtin, coisas e eventos concretos que empregamos, necessariamente, para produzir certos “efeitos estratégicos” (ainda que os mais corriqueiros, como o de “fazer compreender”)? E o que são esses efeitos estratégicos, se não configurações materiais da realidade? A pessoa à qual, por meio de uma fala minha, é “feita compreender” o que eu digo, se torna, a partir daí, necessariamente uma pessoa diferente – diferenciada –, um certo sujeito feito (compreender) por mim. Todo um conjunto de coisas e seres se reorganiza em torno da formação do mais simples enunciado: o domínio dos signos é também o domínio dos dispositivos. No segundo livro de Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia (1980), Gilles Deleuze e Felix Guattari partem da teoria de John Austin sobre os “atos de fala”49 para postular, na linguagem, uma dimensão que não se resume à “comunicação de informação”, mas aos movimentos pragmáticos daquilo que eles acreditam ser a unidade elementar da linguagem: as palavras de ordem. 44

49. Em How to do Things with Words (1962), John Austin propôs a existência daquilo que chamou de atos de fala: enunciados que, para além de simplesmente comunicar algo, empenham


efetivamente certos atos concretos. Austin divide os atos de fala em três categorias: 1. os atos locutórios: “o ato de dizer algo”, ou o ato mesmo da enunciação, de proferir algo em uma situação concreta; 2. os atos ilocutórios: “a realização de um ato ao dizer algo”; por exemplo, no emprego do performativo (um padre que realiza o ato de casamentar ao dizer “Eu os declaro...”), ou do imperativo (quando Deus disse “Faça-se a luz!” empregou o ato de comandar); e 3. os atos perlocutórios: os “atos que produzimos porque dizemos algo”, como a luz que efetivamente surge em consequência do comando de Deus, ou então o ato do beijo que se realiza por efeito do dizer “Pode beijar a noiva”). Ver J.L. Austin, Quando Dizer é Fazer: palavras e ação (Porto Alegre: Artes Médicas, 1990). 50. Gilles Deleuze, Felix Guattari, Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 2 (São Paulo: Editora 34, 1995), pp. 11-2

Chamamos palavras de ordem não uma categoria particular de enunciados explícitos (por exemplo, no imperativo), mas a relação de qualquer palavra ou de qualquer enunciado com pressupostos implícitos, ou seja, com atos de fala que se realizam no enunciado, e que podem se realizar apenas nele. As palavras de ordem não remetem, então, somente aos comandos, mas a todos os atos que estão ligados a enunciados por uma “obrigação social”. Não existe enunciado que não apresente esse vínculo, direta ou indiretamente. Uma pergunta, uma promessa, são palavras de ordem50

Se, em Austin, o conceito de “ato de fala” nos diz que, mais do que dizer algo, um enunciado está sempre fazendo alguma coisa, o que Deleuze e Guattari entendem por “palavra de ordem” descreve uma espécie de relação de produção que se estabelece por efeito desse enunciado. Um enunciado, enquanto palavra de ordem, não designa um ato qualquer, mas uma operação de sujeição social (ou subjetivação: produção de sujeitos), tanto daquele que o profere quanto daqueles a quem o enunciado se dirige. Haveria em todo ato de fala, dessa forma, não apenas um simples fazer, mas uma espécie de “ato jurídico”, uma disposição normativa dos “corpos” que, por efeito do enunciado, transformam-se em “sujeitos”. Mesmo atos de fala tão distintos como os de nomear, afirmar ou perguntar teriam sempre essa força jurídica de constranger as coisas, ou os corpos, a um estado nominal, quantificável e coordenável, de forma a inseri-los em um contexto produtivo. Para Deleuze e Guattari, essa disposição contida no enunciado não se restringiria àqueles atos de fala que são mais propriamente “comandos” (como na sentença de um juiz “eu o condeno...” que transforma o acusado em condenado), mas ocorreria efetivamente em todo e qualquer recurso à língua, mesmo o mais descritivo. Tomemos um exemplo dos próprios autores, quando eles nos dizem que a afirmação “Você não é mais uma criança...” não expressa o simples reconhecimento de uma realidade, mas uma intervenção, uma “transformação incorpórea” (um ato de fala que transforma um “corpo” não-discursivo em “sujeito” discursivo). Aqui, o enunciado não é mera comunicação de um fato, mas efetivamente uma sentença que produz o sujeito da não-mais-criança: ela agora está sujeita, por exemplo, a casar, a trabalhar, a ser constrangida pelo código penal etc., isto é, a integrar toda uma economia de relações produtivas e sociais que se realizam por efeito daquele ato de fala. 45


Como fazer arquitetura com palavras A partir desse momento, poderíamos nos perguntar se, tendo inicialmente partido do problema da linguagem, não estaríamos finalmente começando a falar da “arquitetura em si”. Ou então: tendo chegado no que parece ser o limite da analogia entre a arquitetura e a linguagem (que é o problema da “forma” e do “texto”), não estaríamos em condições de superar de vez uma noção tão imprecisa quanto “linguagem arquitetônica”? Isto é, vimos que a arquitetura não apenas possui uma relativa autonomia – liberdade para determinar – em relação ao seu próprio sistema de determinações (a tradição arquitetônica, a história, a superestrutura etc.), como parece ser também, por direito, um sistema semiótico autônomo em si mesmo, com seus próprios modos específicos e instransferíveis de significação (e a-significação) sem relação direta com a língua. Por que motivo insistimos, então, em voltar ao tema da linguagem “propriamente dita”, ao problema dos atos de fala, dos enunciados, dos nomes etc., se toda a pertinência dessa temática parece se originar de uma relação estritamente analógica com a arquitetura? Acontece que, ainda que tenhamos explorado os modos pelos quais a arquitetura se assemelha a uma linguagem, resta ainda um componente fundamental de nossa interrogação da “linguagem arquitetônica”: uma que não diz respeito à analogia, mas a um compromisso direto que se estabelece entre a arquitetura e a linguagem. Um compromisso que faz da arquitetura menos um “tipo” de linguagem e mais propriamente uma operação de linguagem. Na seção anterior, concedemos à forma arquitetônica o título de texto. Empregamos, para explicar a ideia de forma, o exemplo de “uma parede” que dissemos ser dotada de uma presença concreta que funcionaria, por analogia com a comunicação verbal, como uma espécie de ato de fala: isto é, no que ela parece nos comunicar, nos próprios termos de sua “linguagem” concreta de parede, comandos como “você não passará” ou “você está preso”; coisas que, independentemente de uma existência significante, são atos que possuem a capacidade de produzir um resultado material. Por “texto arquitetônico”, portanto, quisemos dizer que o texto é um evento concreto que não se permite explicar inteiramente em sua dimensão significante, mas deve ser considerado em sua potência pragmática: para além da comunicação de significado, a comunicação de formas. Mas por mais que possamos compreender, partindo da ideia de “forma”, a atividade arquitetônica como a manipulação de elementos e regras internas a um sistema fechado (uma semiótica a-significante), devemos admitir que, do ponto de vista da comunicação, essa atividade nunca a explica por inteiro. Sabemos que uma forma arquitetônica não comunica apenas enquadramentos, limites, estímulos ou coor46


51. Walter Benjamin, A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica (Porto Alegre: L&PM, 2013), p. 88.

denadas espaciais. Sabemos, também, que um arquiteto em posse da “linguagem arquitetônica” nem por isso emprega nessa comunicação apenas paredes, aberturas, volumes, etc. Naturalmente, uma parte indispensável do que a arquitetura comunica é, de fato, significado. Ainda que possamos dizer que é na dimensão a-significante da forma que se origina uma verdadeira possibilidade de autonomia da arquitetura diante daquilo que lhe é feito dizer ou significar, por outro lado é impossível negar que essa forma estará sempre, de um modo ou outro, dizendo e significando. Se uma obra de arquitetura faz ou não aquilo que ela nos diz, essa é uma outra discussão. O que queremos, por ora, é dizer que não há uma arquitetura de pura forma, mas sempre uma arquitetura significante. No que consiste, portanto, a significação na arquitetura? Em tempo, é preciso que antes façamos uma ressalva a respeito dessa ênfase que queremos dar à dimensão significante da arquitetura. Embora possamos dizer que todo arquiteto enfrenta, em algum nível, a necessidade de significar a obra de arquitetura (seja ao adequá-la a uma tipologia de funções sociais, seja ao atribuir a ela um simbolismo arbitrário), nem sempre podemos dizer o mesmo daqueles aos quais essa arquitetura é endereçada. Walter Benjamin, em A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica (1935), ao descrever a arquitetura como a primeira arte de massas, fez notar que o modo com que a obra arquitetônica é habitada (ou, para nós, recebida como mensagem), pela enorme maioria da população, descreve quase sempre uma “recepção tátil [que] ocorre mais por meio do hábito do que pela atenção”51. Isto é, um modo de interlocução que não pressupõe a transferência efetiva de significado, mas mais propriamente um engajamento “desapercebido” (ou a-significante) com a forma arquitetônica, nos termos com os quais a descrevemos anteriormente. Uma construção barroca, que é tipicamente saturada de ornamentos simbólicos e referências bíblicas (ou seja, propriamente significante), nem por isso solicitará mais a atenção e a contemplação daqueles que a utilizam cotidianamente do que um edifício moderno, digamos, “mudo”. Diferentemente da relação de excepcionalidade que se estabelece entre uma pintura e seu observador, a interlocução entre a arquitetura e seu habitante se dá muito mais no plano da forma – uma linguagem mecânica de obstruções, enquadramentos e interfaces físicas – do que no da contemplação de sua imagem ou significado. Nesse sentido, a obra de arquitetura “em si” parece ser muito mais uma coisa sofrida do que uma coisa interpretada. A interface que ela trava com seus habitantes (ou receptores) se assemelharia mais àquela que se estabelece, numa linha de produção, entre uma esteira rolante e um operário: a comunicação empregada pela esteira não solicita a consciência desse operário, mas muito mais a resposta mecânica de seus braços e mãos; não se trata de uma comunicação simbólica (um 47


o quê), mas uma comunicação a-significante (um como)52. Isso tudo nos sugere que a dimensão do significado não parece ser, se não, um aspecto bastante secundário da arquitetura. Quando nos referimos, portanto, à significação na arquitetura, não estamos sugerindo que o significado seja uma propriedade inalienável da obra arquitetônica (que pelo contrário, como vimos, é bastante alienável), mas falamos de uma operação relativamente específica. De fato, diante desse modo de existência esmagadoramente tátil da arquitetura, a discussão sobre o significado arquitetônico pode nos parecer demasiadamente marginal, ou por demais descolada da realidade da obra “em si”. Não à toa, quase toda a atenção despendida na interpretação das obras de arquitetura não parte dos usuários e habitantes dessas obras, mas é quase sempre circunscrita a jurisdições externas como a “comunidade arquitetônica”. Um diálogo que, além do mais, pode prescindir inteiramente da presença do edifício em si, uma vez que o simples recurso à sua imagem gráfica (ou mesmo a sua mera menção verbal) basta para que se promova, de arquiteto para arquiteto, a discussão sobre o seu significado. Em outras palavras, a dimensão da “significação” na arquitetura não parece se originar na interação entre obra e usuário (uma relação, como vimos, bastante débil), mas a partir de uma parcela restrita de interlocutores, e quase sempre na ausência do próprio edifício. O “aqui e o agora” da arquitetura, que configuraria para Benjamin a “aura” do edifício, é inteiramente desnecessário à sua significação. Mas o que, com respeito ao significado arquitetônico, pode parecer nesse momento uma discussão demasiadamente específica ou descolada da realidade concreta, abrirá para nós algumas vias importantes para pensarmos a arquitetura. Para nós, é precisamente esse descolamento entre a arquitetura “em si” (ou a fala da arquitetura) e a dimensão significante dessa arquitetura (a fala sobre a arquitetura) que nos interessa. A existência desse descolamento não nos servirá, aqui, para denunciar ou repreender um suposto isolamento da discussão semântica da arquitetura em relação ao seu objeto “real”. Pelo contrário, ela nos permitirá observar uma propriedade interessantíssima da obra de arquitetura, a saber: a sua capacidade de existir longe do edifício em si, ou a sua manifestação no interior da linguagem, como coisa falada. Não diremos, portanto, que a obra de arquitetura se encerra no edifício propriamente dito, mas que ela se estende a inúmeros outros suportes pelos quais ela é comunicada. Feitas essas ressalvas, quero argumentar que tanto a produção como a interpretação de significado na arquitetura passa, necessariamente, pelo recurso a uma certa dimensão “extra-arquitetônica”; que falar em “texto” na arquitetura não implica apenas admitir a ela a autonomia comunicacional da forma, mas igualmente pensá-la como suporte para significações “externas”. Um arquiteto envolvido 48

52. Benjamin aproxima essa dimensão tátil, ou não-cognitiva, da arquitetura com a proposta da arte dadaísta, em sua total abdicação do significado em prol da tatilidade da forma. “Com os dadaístas, em vez de aparência atraente ou de uma construção tonal convincente, a obra de arte tornou-se um projétil. Ela golpeia o observador. Ela adquiriu uma qualidade tátil”. Benjamin, W. (2013), p. 86.


na produção de arquitetura, como sabemos, nunca se utiliza apenas do sistema que é “interno” a ela (a fala da arquitetura), mas se vê sempre na necessidade de recorrer a uma espécie de metalinguagem, a uma fala sobre a arquitetura. Mas tampouco essa fala, ou essa metalinguagem arquitetônica que produz a significação da obra, é de exclusiva propriedade de seu arquiteto-autor: pelo contrário, veremos que ela é operável por quaisquer agentes que se empenhem, a priori (na produção) ou a posteriori (na interpretação), em falar sobre ela. Diremos, assim, que uma parte considerável do fazer arquitetônico diz respeito fundamentalmente ao emprego da linguagem. Essa constatação abrirá algumas implicações interessantes mais adiante, pois nos permitirá qualificar a existência da arquitetura no domínio dos símbolos: como veremos, a principal característica do símbolo é a sua capacidade de comunicar uma ausência, de conservar um certo poder mesmo com o distanciamento de sua origem, de seu referente. Podemos, diante disso, retornar brevemente ao nosso exemplo da “parede” no sistema arquitetônico, e de certa forma reilustrá-lo: a partir daqui, será preciso verificar não apenas o que essa forma parece dizer em si mesma (enquanto fala “da” arquitetura), mas igualmente o que se diz sobre ela: a metalinguagem que é o ato de escrever na parede, ou então de se escrever a respeito dela. O processo de “edificação” de uma obra de arquitetura não acontece apenas pelo intermédio do desenho e do assentamento de tijolos, mas igualmente pelo recurso à literatura, à iconografia, ao cinema, à publicidade, ao discurso científico, à legislação, enfim: a todo um aparelho discursivo de significação aparentemente externo, mas absolutamente indispensável a ela. Não se trata, com isso, de dizer que a arquitetura e a “linguagem arquitetônica” nunca se bastam por si mesmas, mas antes, de entender que uma consideração profunda sobre o que chamamos de “linguagem arquitetônica” não deve abarcar somente o que a arquitetura diz “em si mesma”, mas igualmente o que se diz sobre ela. De forma mais precisa, não diremos que a arquitetura “interage” com outros sistemas, mas que o que chamamos de arquitetura é, na verdade, um sistema fundamentalmente multissemiótico. Nosso foco principal estará, nesse momento, na incidência da linguagem propriamente dita sobre a produção e a compreensão da arquitetura. Isso porque entenderemos que, dentre todas as modalidades semióticas que compõem o fazer da arquitetura, a língua é talvez a mais privilegiada. Podemos, à primeira vista, abordar dois motivos que nos obrigarão a considerar uma obra de arquitetura enquanto fato propriamente linguístico. O primeiro, que podemos dizer ser um motivo estrutural, tem a ver com o que Bakhtin, em Marxismo e Filosofia da Linguagem, chamou de “neutralidade da palavra”. Segundo esse princípio, um produto qualquer da arquitetura (ou de qualquer outro sistema não-verbal), está 49


estruturalmente atado à linguagem porque os processos mesmos que lhe conferem significado são necessariamente verbais. Para Bakhtin, todo ato de cognição de um fenômeno semiótico-ideológico é necessariamente assimilado por um “discurso interior”, verbalmente constituído, que acontece na consciência do receptor do signo. A palavra não é apenas um entre outros tipos de signos, mas o próprio instrumento com o qual são decodificados, na consciência humana, todos os outros fenômenos semióticos: “Os processos de compreensão de todos os fenômenos ideológicos (um quadro, uma peça musical, um ritual ou um comportamento humano) não podem operar sem a participação do discurso interior. Todas as manifestações da criação ideológica – todos os signos não-verbais – banham-se no discurso e não podem ser nem totalmente isoladas nem totalmente separadas dele”53. Isso ocorre porque

53. Bakhtin, M. (2006), p. 36

( ...) a palavra não é somente o signo mais puro, mais indicativo; é também um signo neutro. Cada um dos sistemas de signos é específico de algum campo particular da criação ideológica. Cada domínio possui seu próprio material ideológico e formula signos e símbolos que lhe são específicos e que não são aplicáveis a outros domínios. (...) A palavra, ao contrário, é neutra em relação a qualquer função ideológica específica. Pode preencher qualquer espécie de função ideológica: estética, científica, moral, religiosa54

54. Ibid., p. 37. Isso não quer dizer que a palavra não é em si mesma um signo ideológico, ou que a linguagem verbal seja um sistema “ideologicamente vazio”, o que, como sabemos, não é verdade. Ao invés, o sentido da “neutralidade” empregada por Bakhtin deve ser compreendida como uma intermodalidade ideológica, uma adaptabilidade a diversos outros sistemas de signos.

Podemos dizer, portanto, que já a partir desse “discurso interior”, as formas arquitetônicas estão sujeitas a uma espécie de metalinguagem, dado que qualquer acesso ao significado de uma obra de arquitetura é sempre o recurso a uma linguagem segunda que a “traduz” – ainda que muitas semioses não-verbais, como a arquitetura, não sejam propriamente traduzíveis. O recurso ao “discurso interior” na arquitetura diz respeito, em especial, à interpretação da obra. É por meio dele que se pode extrair da arquitetura um significado que ela não nos diz com palavras. Embora o arquiteto possa, também, introduzir um significado a priori na obra (um significado também formulado por um discurso interior verbal), ele não estará plenamente acessível, pois deverá ser codificado na forma arquitetônica. Caberá sempre a um intérprete decodificar posteriormente os elementos dessa arquitetura, ou transformá-los em caracteres linguísticos que tornarão suas as formas “trabalháveis”. Diferentemente de um diálogo verbal, onde a comunicação entre emissor e receptor pode ocorrer, idealmente, de forma imediata e sem qualquer obstáculo à compreensibilidade (dado que a língua é um sistema muito mais consensual do que a arquitetura), a comunicação de significado arquitetônico é sempre intermediada por uma espécie de criptografia. Entre a intenção significante do emissor (caso haja uma) e a interpretação do receptor há sempre uma obstrução, ou uma mediação, que é a obra de arquitetura em si. Foi em relação a essa 50


obstrução, que num primeiro momento pode parecer uma sentença de morte à significação arquitetônica, que, em Arquitetura e o Problema da Figura Retórica (1987), Peter Eisenman observou: 55. Peter Eisenman, “Arquitetura e o Problema da Figura Retórica”, in: Nesbitt, K. (2013), p. 195

56. Naturalmente que, no processo dessa decodificação, algo sempre se perde. O conteúdo semântico intencional de uma mensagem contida em um caractere arquitetônico (como o azulejo português em Paulo Mendes), pode ou não ser interpretado conforme seu autor o quis. O azulejo, nesse caso, pode ter significado para o arquiteto algo como um gesto de afirmação nacionalista (pois o azulejo é, há séculos, um elemento tradicional na arquitetura popular brasileira) na assimilação crítica de uma expressão arquitetônica internacional (o concreto aparente). Um crítico de arquitetura poderá, no entanto, deco-

essa maneira, [na arquitetura] não temos nem um sistema consenD sual de signos nem uma gramática muito elaborada. Na verdade, talvez a arquitetura seja a menos representativa de todas as artes. Quando construímos uma parede, ela não só é realmente opaca, mas a sua relação com um significado é muito difícil de articular. Uma parede é uma parede, não é uma palavra, ela simplesmente é, nunca é sobre alguma coisa. É a coisa a que a palavra ‘parede’ se refere, é a condição oposta a uma palavra: as palavras são transparentes enquanto as paredes são opacas55

Entretanto, do ponto de vista do “discurso interior”, a arquitetura não é, se não, um estágio transitório e não-linguístico entre dois polos efetivamente verbais (a consciência do emissor e a consciência do receptor): ela é um discurso – ainda que em uma “língua” bastante imprecisa – codificado. Mesmo que uma forma arquitetônica possa ter sido, hipoteticamente, concebida sem nenhuma intenção significante (e portanto sem partir de um discurso interior verbal), nada impedirá que, ao ser nomeada por um intérprete, ela seja preenchida de significado; que adquira, portanto, uma existência propriamente linguística. Interpretar uma obra de arquitetura quer dizer, por isso, decodificá-la por meio desse “discurso interior”: significa trazê-la de volta ao espaço da linguagem, ou efetivamente nomeá-la. Essa operação de nomeação é o primeiro grau da metalinguagem arquitetônica, o primeiro momento da fala sobre a arquitetura: é a transformação de uma parede concreta na palavra “parede”. Posto de outro modo, é o primeiro passo para que a metalinguagem arquitetônica (o discurso interior) possa se externalizar, dissociando-se de seu objeto e migrando para outros suportes textuais. É a partir dessa função decodificadora que se poderá, em seguida, falar ou escrever sobre a arquitetura sem que se precise estar diante dela, da forma que um crítico, por exemplo, o faz. Um discurso propriamente exterior. É claro que esse crítico também recorrerá, em paralelo ao “discurso interior”, a outras falas e referências textuais, já decodificadas e exteriores, que o auxiliarão na extração do significado de uma obra. Mas sua operação primária de significação, a que se estabelece na atenção mesma que ele aplica sobre a forma ou a imagem do edifício, é aquela pela qual ele, antes de mais nada, nomeia os caracteres da fala “da” arquitetura em caracteres linguísticos, ou símbolos propriamente ditos. Para que se possa, por exemplo, estudar o significado do emprego do azulejo português nas casas brutalistas de Paulo Mendes da Rocha (admitindo para isso que ninguém jamais o tenha feito), é preciso que esse crítico, antes de mais nada, os tenha decodificado56, isto é, nomeado o “azulejo português”. Só a partir dessa nomeação é que esse fragmento 51


arquitetônico poderá se dissociar do edifício em si, operar na ausência dele, e habitar os espaços discursivos de outras jurisdições textuais. Em resumo, esse primeiro princípio metalinguístico nos diz que a semiose arquitetônica é estruturalmente indissociável e complementar à linguagem: para que ela adquira significado, ela precisa ser decodificada, significada, ou então, nomeada pela linguagem verbal; só então ela poderá servir de suporte para uma fala sobre a arquitetura. Prossigamos: a nossa segunda afirmação sobre a metalinguagem arquitetônica dirá respeito precisamente a essa fala. Nesse caso, não diremos se tratar de uma associação estrutural entre arquitetura e linguagem, mas de uma associação histórica. Em outras palavras, a arquitetura – ou melhor, a disciplina arquitetônica – está historicamente estruturada em torno de uma metalinguagem, de uma fala sobre a arquitetura. A mais corriqueira observação dos últimos quinhentos anos da disciplina nos permite demonstrar a indissociabilidade do vínculo entre a arquitetura e a linguagem verbal, escrita ou falada. Tentaremos abordar o porquê num momento posterior: por ora, basta que lembremos dos inúmeros tratados, manifestos, seminários, historiografias, periódicos e comícios produzidos tanto por arquitetos atuantes como por toda a classe publicitária da arquitetura (críticos, historiadores, teóricos etc.), para que digamos se tratar de uma obviedade. A dimensão verbal da arquitetura – o discurso arquitetônico – é tão importante para os arquitetos quanto o projeto e a construção. Nossa intenção será demonstrar que, precisamente, o ato de falar sobre a arquitetura – de simbolizá-la – é também parte fundamental da “edificação” arquitetônica. A arte da construção O que é um edifício? Pode-se, prontamente, dizer: é um certo arranjo de matéria a configurar uma forma precisa e bem delimitada, que ocupa um lugar geográfico particular. Uma “construção” qualquer. Pode-se acrescentar, ainda, que esse arranjo cumpre uma certa função, ou um uso predominantemente prático em uma formação social: morar, trabalhar, transitar, etc. Muito se disse que a vocação do arquiteto seria a construção de edifícios. Toda uma geração de arquitetos, sabemos, subscreveu sem titubear a seguinte declaração: a arquitetura é a arte da construção. O contexto histórico dessa afirmação, no entanto, não nos diz apenas sobre aquilo que a arquitetura moderna, em sua puberdade, anunciava ser, mas igualmente sobre o que ela proclamava não ser. Mark Wigley, em Architectural Cult of Synchronization (2000), observa que o termo 52

dificar a sua mensagem de maneira inteiramente diferente: o azulejo português poderá aparecer, para ele, como um elemento de uma arquitetura que, ao invés de autoafirmativa, revela traços identitários de uma burguesia que nunca se desvencilhou completamente da ideologia colonial.


↑ Entrevista com Vilanova Artigas, 1978. 57. Mark Wigley, “The Architectural Cult of Synchronization”, in: October, vol. 94 (Cambridge: MIT Press, 2000), p. 38. T.M. Em nota, Wigley conta que Muthesius chegou ao ponto de persuadir Otto Wagner, pioneiro da arquitetura moderna, a mudar o nome de seu livro Moderne Architektur (1896), na reedição de 1914, para Die Baukunst unserer Zeit (“A Arte da Construção em Nosso Tempo”).

“arte da construção” (Baukunst), que sintetizava o projeto da primeira geração modernista, não foi concebido como um segundo nome, mas de fato como um substituto para a palavra “arquitetura”: ríticos como Hermann Muthesius chegaram até mesmo a C argumentar contra o uso da palavra Architektur, promovendo ao invés a palavra Baukunst em uma tentativa de se distanciar da monumentalidade em favor da funcionalidade. Seu tratado de 1902, Stilarchitektur und Baukunst (‘Arquitetura de Estilo e Arte da Construção’), se opõe à tentativa oitocentista de ‘fazer das tarefas cotidianas monumentos’. O que conta, aqui, é a ‘novidade’ do cotidiano ao qual a disciplina da arquitetura instintivamente resiste57

O que estava subentendido nessa renúncia à monumentalidade era mais do que a negação da história e da ideia de “estilo” que informava a produção da arquitetura oitocentista: era, sobretudo, a recusa de qualquer recurso à representação, ou ao símbolo na arquitetura . O símbolo, assim como o monumento e a história, comunica uma coisa na completa ausência dessa coisa. A arte da construção, em sua obsessão pelo ‘novo’, pretendia exatamente o oposto: ela se recusava a comunicar qualquer coisa que não fosse o aqui e o agora da arquitetura (da sua produção, da sua recepção), ou a sua pura presença. as primeiras décadas do século, eles rejeitaram polemicamente N o emprego da pedra para rejeitar o peso da história. Eles denunciaram o monumental e recusaram o luto. Estruturas leves de metal e vidro foram concebidas para flutuar sobre a efervescência do presente. O concreto armado parecia se esquivar da história porque 53


podia assumir qualquer formato, e era literalmente misturado in loco. Sua vida correspondia exatamente à vida do edifício58

Um edifício “construído”, dessa forma, não remete a nada que não seja ele próprio: trata-se de “construção” no sentido mais opaco, mais intransigente do termo. A ideia de “arte da construção” era concebida, portanto, como um artifício conceitual que postulava, entre outras coisas, o privilégio da construção “material” da arquitetura em detrimento da atenção dada aos seus aspectos “metafísicos” ou simbólicos, como historicidade e significado. Um edifício não deveria simbolizar nada; não deveria recorrer a qualquer forma de “linguagem” significante, nem a qualquer expressão de uma ausência. A arte da construção deveria ser produção, e não reprodução. Mas sabemos que, se o projeto moderno desfrutou de seu devido sucesso, não foi simplesmente porque aos seus edifícios foi permitido que falassem “por si próprios”, que convencessem o mundo pela mera força de sua presença. Até porque, como sabemos, o modernismo produziu edifícios o suficiente para preencher, quando muito, o espaço geográfico de um país nanico: como se pode dizer, então, que a arquitetura moderna conquistou o mundo? Le Corbusier atravessou o Atlântico em 1929. Seus edifícios, entretanto, permaneceram na Europa. Como foi possível, então, à sua arquitetura povoar as mentes dos pioneiros da arte da construção brasileira, e mais tarde, de certa forma, as suas cidades? O motivo, embora tenha custado a toda uma geração reconhecer com palavras, é bastante óbvio: a arquitetura moderna não era construída apenas com concreto, aço e vidro, mas igualmente com palavras, com imagens e com símbolos no geral. Tudo o que, em resumo, diremos pertencer ao domínio das falas propriamente ditas, isto é, ao espaço representacional e simbólico da comunicação. Não eram os edifícios modernos que atravessavam o atlântico, mas todo um exército simbólico de representações, de falas sobre a arquitetura moderna. Lembremos o que dissemos, há pouco, sobre o problema do “discurso interior”. Dissemos que a obra de arquitetura possui uma existência indissociavelmente verbal que decorre da assimilação, na consciência humana, de uma forma “codificada” por meio de uma operação de interpretação. Toda obra de arquitetura, seja para ser concebida pelo arquiteto ou para ser compreendida por alguém, deve passar para essa existência interpretada: deve, portanto, se ausentar de “si mesma” e se permitir representar pelo símbolo. E isso implica que, uma vez representável, ela poderá ser transposta para o domínio externo e reprodutível das coisas faladas: a arquitetura passa a existir, a partir daí, não mais circunscrita ao espaço geográfico particular do edifício, mas no domínio público e infinitamente apropriável dos símbolos (como a palavra, mas também a imagem, o desenho etc.)59. Um edifício pode estar por toda parte: ele pode existir como lembrança 54

58. Wigley, M. (2000), p. 38

59. Quando recorremos à ideia de “símbolo”, é, portanto, para enfatizar essa sua propriedade reprodutiva. Um símbolo é simultaneamente uma reprodução e um objeto reprodutível (ou, para Benjamin, um objeto destinado à reprodutibilidade). A palavra “livro” é um símbolo: ela tanto reproduz, ou re-presenta, um objeto que pode estar ausente (o livro “em si”) como é também, ela mesma, um objeto reprodutível que, por


natureza, pode ser reiterado infinitamente (por exemplo, nas sucessivas e independentes enunciações da palavra “livro” que aludem a um mesmo objeto ausente).

imaginária, ou então estar disseminado na fala popular, nos anúncios publicitários, nos textos acadêmicos, na fotografia e no cinema, na literatura ficcional e nos manifestos políticos, etc. Um universo que não é em nada composto de edifícios, mas de interpretações – o que equivale a dizer: representações e reproduções. Em Architectureproduction (1988), Beatriz Colomina nos fornece uma imagem precisa do que queremos dizer por essa condição essencialmente representacional e interpretativa da arquitetura. Ela recorre, para isso, ao mito grego de Dédalo, o experiente artesão que teria construído, para o rei Minos, um labirinto para abrigar o Minotauro. Embora tido como “o primeiro arquiteto”, Dédalo não compreendia a estrutura do labirinto que havia construído e, uma vez dentro dele, só foi capaz de escapar fabricando asas artificiais para que pudesse voar. Colomina argumenta, diante disso, que o real pioneiro da arquitetura não teria sido Dédalo, que havia se mostrado incapaz de compreender sua própria criação, mas na verdade a princesa Ariadne. Apaixonada pelo prisioneiro Teseu, que havia sido enviado ao Minotauro como oferenda sacrificial, Ariadne o presenteou com um longo fio de lã que o permitiria, com sucesso, escapar do labirinto: inda que Ariadne não tivesse construído o labirinto, foi ela quem A o interpretou; e isso é arquitetura no sentido moderno do termo. Ela alcançou essa proeza por meio da representação, isto é, com a ajuda do dispositivo conceitual que é o novelo de lã. Podemos compreender esse presente [de Ariadne] como a ‘primeira’ transmissão de arquitetura por meios que não fossem ela própria; como a primeira representação da arquitetura. O fio de Ariadne não é apenas uma representação (dentre as infinitas outras possíveis) do labirinto. Ele é um projeto, uma autêntica produção, um dispositivo que tem por resultado lançar a realidade em crise.

E conclui: 60. Beatriz Colomina, “Introduction: On Architecture Production and Reproduction”, in: Colomina, B, Ockman, J. (ed.), Architectureproduction (Nova Iorque: Princeton Architectural Press, 1988), p. 7

história anterior implica o seguinte: a arquitetura, diferenteA mente da construção, é um ato interpretativo e crítico. Ela possui, diferentemente da condição prática da construção, uma condição linguística. Uma construção é interpretada quando os seus mecanismos e princípios retóricos são revelados. (...) Um ato de interpretação se faz também presente nos diferentes modos de discurso representacional: desenho, escrita, modelagem, e assim por diante. A interpretação é também integral ao ato de projetar60

Interpretar ou representar uma obra de arquitetura é, portanto, extrair dela um conceito, ou um símbolo, que, por sua vez, funcionará como essa espécie de “dispositivo”. O que queremos dizer com isso é que, diferentemente do que quiseram os adeptos da pura forma e da pura presença na arquitetura, a dimensão representacional e simbólica da arquitetura não é um simples reflexo, ou um simulacro de seus aspectos formais e materiais. A representação na arquitetura 55


↑ não é mero ornamento, ou algo que flutua dissimuladamente na superfície da realidade material, mascarando uma suposta essência ou “aura” do objeto. Pelo contrário, atribuir à representação arquitetônica o título de “dispositivo” implica em compreender como a palavra, a imagem e o símbolo podem agir produtivamente sobre essa realidade material. O recurso a esses diferentes tipos de representação na arquitetura, que podemos desde já dizer que compõem o discurso arquitetônico, é construtivo à maneira dos “atos de fala” que mencionamos anteriormente: revelam, portanto, uma identidade entre o “dizer” (todas as formas de representação) e o fazer (produzir, construir) na arquitetura. Colomina se ocupou de demonstrar que, diferentemente do que defendiam os primeiros teóricos das vanguardas modernistas (ao celebrarem, em um embate direto com a cultura de massas e com a reprodutibilidade técnica da arte, um formalismo da pura presença da forma artística61), o projeto das vanguardas arquitetônicas do século XX envolvia uma profunda assimilação dos novos suportes representacionais da arquitetura, para além de sua dimensão “construtiva”. Para ela, a emergência da arquitetura moderna não era apenas concomitante, mas diretamente resultante do advento das mídias de massa (e particularmente da mídia impressa), que alteravam profundamente os modos de produção e consumo da arquitetura. O fervor produtivo e edificatório dessa arquitetura mal se equiparava à quantidade de suportes falados que, no início do século XX, se disponibilizavam aos 56

"Maze" (1984), do arquiteto John Hejduk

61. Colomina, B. (1988), p. 13. T.M. Aqui, a autora se dirige à tradição crítica que se desenvolveu em torno da produção teórica do pós-guerra (especialmente a partir de Adorno e Greenberg nas artes visuais e de Rowe e Slutzky na arquitetura), que havia se concentrado na estética e na “vida interna do objeto autônomo e autorreferente”. A essa tradição, Colomina opõe a virada crítica operada por autores como


Manfredo Tafuri, que, em sua recuperação da análise benjaminiana sobre a reprodutibilidade técnica e a cultura de massas, voltavam a atenção para as condições específicas de produção e reprodução da arquitetura, e para “a arte e a arquitetura enquanto instituições, ao invés de uma série de protagonistas e monumentos individuais” 62. Ibid., p. 9 63. Sobre essa defasagem teórica, Colomina cita uma passagem de 1968 de Tafuri: “A análise de Walter Benjamin sobre as consequências semânticas, operativas, mentais e comportamentais da tecnologia moderna permanecem um caso isolado na história da crítica contemporânea (...). Os desentendimentos que dominaram a cultura arquitetônica a partir de 1945 derivam, em grande parte, da interrupção da análise benjaminiana: uma análise, devemos enfatizar, estrutural, para além de qualquer significado elegante do termo ou do conceito”. Tafuri, M., apud. Colomina, B. (1988), p. 10. T.M. 64. Colomina, B. (1988), p. 15-6 65. Benjamin, W. (2013), p. 58 66. Colomina, B. (1988), p. 9. T.M

arquitetos e que eles incessantemente requisitavam. Até então, nunca se havia escrito, fotografado e publicado tanto sobre arquitetura: té o advento da fotografia, e anteriormente da litografia, a audiA ência da arquitetura era o usuário. Com a fotografia, a revista ilustrada e o turismo, a recepção da arquitetura passou a ocorrer também por meio de uma forma social adicional: o consumo. Com a enorme amplificação da audiência, a relação com o objeto mudava radicalmente62.

Por mais que a assimilação das novas condições de produção e reprodução da arquitetura moderna tenha levado algumas décadas para ser reconhecida pelos críticos63 (paradoxalmente, os agentes publicitários da arquitetura por excelência), Colomina aponta que o problema da reprodutibilidade técnica já figurava, desde o início, entre as preocupações fundamentais da prática arquitetônica das vanguardas. Diante disso, o exemplo de Le Corbusier teria sido, para ela, o mais emblemático. Um ávido colecionador de imagens, catálogos e anúncios da mídia impressa, Corbusier soube desde cedo compreender os novos modos de existência que a era das mídias de massa impunha à obra de arquitetura. A pesquisa experimental por trás do periódico que criou em 1920, L’Espirit Nouveau, demonstrava que, para ele, o edifício não era se não um dos caracteres do fluxo representacional de imagens e palavras que compreendia o real modo de assimilação da arquitetura na era do consumo de massas. e Corbusier, que foi convencionalmente lido como a epítome L do ‘modernismo’, foi talvez o primeiro arquiteto a compreender integralmente a natureza da mídia. Ele via na imprensa, a mídia impressa, não apenas um meio de difusão cultural para algo previamente existente, mas (...) um novo contexto de produção, paralelamente existente ao canteiro de construção64

Muitos anos antes de Benjamin publicar, em 1935, A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica, Corbusier já havia compreendido, de antemão, que a verdadeira reivindicação da obra de arquitetura na modernidade não se encerrava nos limites do edifício e nos seus atributos estéticos internos. Pelo contrário, a obra de arquitetura deveria, de todas as formas, se ausentar de si mesma, abdicando de qualquer exigência de origem em favor de uma práxis dos meios, ou mídias: um processo em que, nas célebres palavras de Benjamin, “a obra de arte reproduzida torna-se, progressivamente, a reprodução de uma obra destinada à reprodutibilidade”65. Não se tratava apenas de permitir à obra de arquitetura, uma vez construída, figurar os livros e as revistas ilustradas. Tratava-se, na verdade – uma vez reconhecido que o consumo da arquitetura não se encerrava mais no usuário mas, como disse Colomina, na audiência (“o turista na frente de um edifício, o leitor de um periódico, o espectador de uma exibição ou de um anúncio de jornal”66) – de um exercício efetivo de se fazer arquitetura 57


com imagens e palavras, com revistas impressas e fotografias, etc. O projeto de Corbusier era, por excelência, um projeto discursivo e multissemiótico. O recurso ao “significado” na arquitetura já não pode, aqui, ser interpretado como uma mera concessão ao ornamento e ao simbolismo arbitrário. Por mais que o edifício moderno “em si” não fizesse uso de qualquer artifício representacional que pudesse comunicar algo que não fosse a sua presença concreta e imediata, ele próprio se transformava em signo, em algo infinitamente iterável e destinado à reprodução. A força política de um edifício canônico como a Villa Savoye, de Corbusier, não provinha da matéria que ela reconfigurava, da geografia em que ela se firmava, e muito menos da extensão do espaço social que ela reordenava (afinal, foi concebida como uma simples residência unifamiliar). A Villa Savoye não era, e nem pretendia, ser um edifício: ela estava muito mais próxima de uma forma literária ou um discurso publicitário – donde ela devia ser apreendida, necessariamente, como o complemento iconográfico dos célebres “cinco pontos” do manifesto corbusiano – do que de uma simples construção. A construção em si, ou sua finalidade prática (o uso doméstico) não passavam de álibis, pré-textos para um projeto discursivo muito mais amplo. A efetividade do empreendimento moderno não era mensurada apenas em relação à quantidade de edifícios que ele concebia, mas à capacidade iterativa e reprodutiva de seu material discursivo numa economia pública – ou publicitária – de símbolos. “Não há arquitetura sem construção”, diz um célebre aforismo moderno. Mas o que dizer, por exemplo, dos edifícios nunca construídos, dos projetos hipotéticos, das numerosas utopias, ou então de toda a multitude de palavras e conceitos que a arquitetura incessantemente produz e reproduz ? Não seriam eles, também, dignos da alcunha “arte da construção”? O que dizer, então, de toda a arquitetura falada que surge antes, ou mesmo independentemente da edificação “propriamente dita”? Brasília, como veremos adiante, era uma coisa falada muito antes de ser construída, muito antes de ser uma coisa arquitetônica “concreta” e visível. O Templo de Salomão, conforme descrito no Antigo Testamento, pode nunca ter existido – e não obstante ele existe até hoje, concretamente, enquanto arquitetura falada, nos mais diversos registros ideológicos e representacionais. Isso não o torna um objeto menos arquitetônico, e nem nos impede de dizer que ele é literalmente habitado (que estabelece vínculos materiais, geográficos, afetivos e 58

→ Bernard Tschumi, "Advertisements for Architecture", 1976. Copiado de Colomina, B. (1988)



produtivos entre sujeito e arquitetura) pelos devotos das religiões abraâmicas, pela simples força de sua representação. Ausência e multiplicação O que chamamos de “obra de arquitetura”, portanto, não diz respeito a um conjunto estritamente prático e material; ao menos, não no sentido em que os termos “prático” e “material” são usualmente empregados. Uma obra de arquitetura é um fato prático e material da maneira com que os textos, as falas e todos os outros fatos ideológicos também o são. Lembremos do que escreveu Bakhtin: m produto ideológico faz parte de uma realidade (natural ou U social) como um corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo o que é ideológico possui um significado que remete a algo fora de si mesmo. Em outros termos, tudo o que é ideológico é um signo67

Se podemos acordar que uma obra de arquitetura é um produto ideológico, então temos que, a despeito do que digam esta ou aquela tradição teórica, ela está sempre inserida em um regime de signos. E o que é próprio do signo é justamente, como vimos, o seu vínculo com “algo fora de si mesmo”, ou de algo que não se faz mais presente. Isso significa que fazer arquitetura é necessariamente, para além de lidar com formas e materiais concretos (ou então, edifícios), operar ausências e desaparecimentos. Para esclarecer o que queremos dizer com isso, voltemos ao exemplo do signo linguístico por excelência, a palavra. A palavra “cavalo”, como sabemos, é um signo: embora possa assumir uma existência concreta (por exemplo, escrita num pedaço de papel), a palavra “cavalo” será sempre a presença de uma ausência, a saber, a do cavalo em si. Tudo o que a palavra conserva do animal é a memória de alguém que, num passado remoto, efetivamente esteve diante de sua presença concreta. Mas entre a experiência concreta originária e a invenção da palavra “cavalo” não há, é claro, uma relação de causalidade imediata. Entre elas há, como observou Derrida, um processo de “modificação contínua, uma extenuação progressiva da presença”68 que se iniciaria a partir da primeira representação, ou da primeira forma de ausência do objeto ou do acontecimento concreto: neste caso, a ideia, a memória, ou a imagem do cavalo que se configura na consciência de quem o viu. “O signo”, diz Derrida, “nasce ao mesmo tempo em que a imaginação e a memória, no momento em que é requerido pela ausência do objeto na percepção presente”69. Já a partir desse momento o cavalo se ausenta, e o que resta ao sujeito é essa forma modificada de presença (a “presença na ausência”) que é a representação do animal. Entretanto, trata-se de uma repre60

67. Beatriz Colomina, “Introduction: On Architecture Production and Reproduction”, in: Colomina, B, Ockman, J. (ed.), Architectureproduction (Nova Iorque: Princeton Architectural Press, 1988), p. 7

68. Derrida, J. (1991), p. 354. As primeiras páginas do texto de Derrida se desenvolvem em torno do Ensaio sobre a Origem do Conhecimento Humano (1746), do filósofo iluminista E. B. de Condillac, em que o autor propõe uma teoria sobre a origem e a função da escrita. 69. Ibid., loc. cit.


70. Étienne B. de Condillac apud. Derrida, J. (1991), p. 352. Grifo do autor

sentação, por mais que um tanto mais duradoura que a experiência efêmera do avistamento (porque registrada na memória individual), ainda precária: porque uma imagem mental não pode ser comunicada, essa representação está fadada a morrer junto com quem a conserva. Esse sujeito pode, é claro, diante da presença imediata do cavalo, atribuir a ele um som, um sinal que signifique o cavalo. Mas se trata de uma forma ainda muito débil de comunicação, uma que só se fará compreender por quem testemunhar a presença do sinal simultaneamente à do cavalo; a mais ninguém aquele significado poderá ser transmitido. É por isso que, nas palavras de Condillac (citadas por Derrida), “os homens em estado de comunicar os seus pensamentos através de sons sentiram a necessidade de imaginar novos signos próprios para perpetuá-los e fazê-los conhecer por pessoas ausentes”70. Trata-se da gênese, portanto, do primeiro signo comunicável ou, para Derrida, da invenção da “primeira” forma de escrita: a pintura (representação pictórica de uma representação mental), que ao longo da história se especializará em hieroglifo, ideograma, e então no signo fonético-alfabético. Um processo cumulativo e contínuo de “ausentamentos”, no qual a representação pictográfica evolui para o signo inteiramente arbitrário: c-a-v-a-l-o. Mas com o signo arbitrário já não se pode retraçar o cavalo a partir do “cavalo”: já não há nada mais nesse signo que indique imediatamente, como na representação pictórica, o objeto ao qual ele se refere. O preço da especialização da escrita (e da linguagem em geral), em sua possibilidade de “comunicar aos ausentes”, é portanto o “desaparecimento” progressivo do referente, e a estruturação da linguagem como um sistema abstrato e autorreferente. Recuperemos o que disseram Deleuze e Guattari em seus postulados da linguística:

71. Deleuze, G; Guattari, F. (1995), Livro 2. p. 9

e a linguagem parece sempre supor a linguagem, se não se pode S fixar um ponto de partida não-linguístico, é porque a linguagem não é estabelecida entre algo visto (ou sentido) e algo dito, mas vai sempre de um dizer a um dizer. (...) A linguagem não se contenta em ir de um primeiro a um segundo, de alguém que viu a alguém que não viu, mas vai necessariamente de um segundo a um terceiro, não tendo, nenhum deles, visto.71

72. Derrida, J. (1991), p. 354. Grifo meu

O emprego do signo linguístico, portanto, é sempre a mobilização de uma presença modificada, “indireta”, ou então da ausência de seu objeto. Mas isso só é possível porque, para Derrida, ele pressupõe também a ausência de destinatário: “Escreve-se para comunicar qualquer coisa aos ausentes”72. O signo é um produto destinado à reprodutibilidade, é algo como um ready-made: ele já não possui qualquer vínculo natural com uma “origem” e, embora possua o objetivo claro de ser legível, é completamente indiferente a qualquer “leitor” parti61


cular. Seu destino é a reprodutibilidade, e não necessariamente a reprodução. Sobre isso, Derrida observou: necessário, se quiserem, que a minha ‘comunicação escrita’ É permaneça legível não obstante o desaparecimento absoluto de qualquer destinatário determinável em geral para que ela possua a sua função escrita, quer dizer, a sua legibilidade. É necessário que seja repetível – iterável – na ausência absoluta do destinatário (...). Esta iterabilidade (iter, de novo, viria de itara, outro em sânscrito, e tudo o que se segue pode ser lido como exploração dessa lógica que liga a repetição à alteridade) estrutura a própria marca da escrita73

Mas há ainda, para Derrida, uma segunda ausência que todo ato de “escrita” mobiliza, e pelo qual o signo se torna ainda mais desprendido de qualquer origem ou contexto. Porque todo signo deve poder ser infinitamente iterável, isto é, repetível e indiferente a qualquer contexto de enunciação, ele também deve se dissociar de seu emissor. Escrever, significar, pressupõe “a ausência do emissor, do destinador, em relação à marca que ele abandona, que se separa dele e continua a produzir efeitos para além da sua presença e da atualidade do seu querer-dizer”74. Se podemos dizer, como quis Derrida, que essa propriedade não pertence apenas ao que se chama de “escrita” mas – sendo uma propriedade intrínseca à existência do signo – a todo tipo de texto, então as implicações dessa “ausência do emissor” começam a se tornar evidentes em nossa consideração da arquitetura. O que quer dizer, diante disso, um “texto arquitetônico”? Beatriz Colomina nos traz um exemplo interessante, da história da arquitetura, de um enunciado arquitetônico em constante estado de iteração. Ela cita as famosas fotografias dos silos de grãos norte-americanos que, em 1913, figuraram o anuário da Werkbund75 organizado por Walter Gropius, e que foram empregadas para ilustrar o interesse das vanguardas da Baukunst pelas novas tipologias da arquitetura industrial que começavam a surgir ao redor do mundo. As mesmas imagens foram, alguns anos depois, reproduzidas por Le Corbusier na L’Espirit Nouveau, e a partir de então começaram a ser copiadas por diversos outros artistas e intelectuais da vanguarda (como Van Doesburg, Kassak e Moholy-Nagy), e em diversos outros contextos publicitários76. Não obstante a enorme repercussão das imagens dos silos entre a comunidade modernista, e a influência concreta que elas tiveram sobre os rumos e sobre a produção da arquitetura moderna, Colomina lembra que nenhum desses arquitetos e artistas havia, efetivamente, visto presencialmente os silos em questão. Mas isso pouco importava: a efetividade com que a imagem dos silos conseguia se infiltrar nos mais diversos contextos midiáticos resultava menos da ‘novidade’ daquela arquitetura industrial, ou do fato dos silos terem sido efetivamente construídos, e mais de sua propriedade infinitamente iterável (intensificada pelas mídias 62

73. Derrida, J. (1991), p. 356

74. Ibid., p. 354

75. A Deutscher Werkbund, fundada na Alemanha em 1907, foi uma associação para a cooperação entre industrialistas, artistas e designers para a troca de ideias e divulgação de experiências no âmbito da produção, desenho e arquitetura industriais. Entre seus primeiros membros estavam os arquitetos Peter Behrens, Mies van der Rohe, Walter Gropius e Hans Poelzig. 76. Beatriz Colomina, “L’Espirit Nouveau: Architecture and Publicité”. In: Colomina, B, Ockman, J. (1988), p. 63. T.M.

Silos norte-americanos no anuário da Werkbund, 1913



impressas) de signo. A existência dos silos era inteiramente citacional, como em um signo linguístico que, dissociado de qualquer origem, pode ser eternamente iterado, cumprindo qualquer função significante. Cada iteração daquelas imagens implicava uma nova existência comentada, metatextual dos silos: um outro enunciado, um outro enunciante, um outro contexto de enunciação, uma outra intenção significante atribuída a eles, etc. Pouco importava quem primeiro os havia projetado, fotografado e mesmo o lugar onde foram construídos. O silo em questão não correspondia apenas ao edifício “em si”, a uma origem determinada a que se chama “obra de arquitetura”, mas à soma de todas as suas representações, de todos os contextos igualmente concretos em que ele foi iterado e convocado, na condição de signo, à legibilidade. Não havia, portanto, uma única origem, nem um único autor do silo: todos que o citavam, todos os seus emissores eram efetivamente seus autores, e nenhum deles possuía, ainda assim, qualquer autoridade permanente sobre o “querer-dizer”, sobre a mensagem veiculada na imagem do silo. Como disse Derrida: screver é produzir uma marca que constituirá uma espécie de E máquina por sua vez produtiva, que a minha desaparição futura não impedirá de funcionar e de dar, de se dar a ler e a reescrever. Quando digo ‘a minha desaparição futura’, é para tornar esta proposição mais imediatamente aceitável. Devo poder dizer a minha desaparição simplesmente, a minha não-presença em geral, e, por exemplo, a não-presença do meu querer-dizer, da minha intenção-de-significação, do meu querer-comunicar-isto, na emissão ou produção da marca. Para que meu escrito seja um escrito, é necessário que continue a ‘agir’ e a ser legível mesmo se o que se chama autor do escrito não responda já pelo que escreveu, (...) quer esteja provisoriamente ausente, quer esteja morto ou que em geral não tenha mantido a sua intenção77

77. Derrida, J. (1991), p. 357

A “escrita”, para Derrida, não diz respeito a um suporte particular de comunicação, mas ao modo de existência próprio de todo signo, ou marca, em sua tendência a abandonar qualquer contexto de origem – seja o que ele chamou de “contexto real” (o contexto presente do ato da escrita), ou de seu “contexto semiótico interno” (seu sistema de determinações prévias, como a língua). Se voltarmos à Morte do Autor, de Barthes, encontraremos uma descrição similar do que ele chamou de “escritura”. Para Barthes, o desligamento de um texto em relação à sua origem (ou “autor”) é precisamente o momento em que a escritura começa: “(...) a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo pela qual foge o nosso sujeito, o branco-e-preto em que se vem a perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve”78. O texto não se esgota ou se explica pela intenção enunciativa de um autor, ou por um significado que ele conserva e pelo qual fielmente zela. Porque o texto é uma marca, um objeto “abandonado”, ele não pode existir de

78. Barthes, R. (2004), p. 57

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outra forma que não largado à sua própria sorte, e sujeito às contingências, adições, rasuras e acidentes da história. O texto é menos um instrumento e mais um dispositivo, uma “máquina produtiva”: seu princípio de ação não está no sujeito que o manuseia segundo uma intenção, mas nele próprio, na sua capacidade de existir e funcionar na ausência de qualquer atribuição original e específica. 79. Derrida, J. (1991), p. 362

ualquer signo, linguístico ou não-linguístico, falado ou escrito (no Q sentido corrente dessa oposição), em pequena ou grande unidade, pode ser citado, colocado entre aspas; com isso pode romper com todo o contexto dado, engendrar infinitamente novos contextos, de forma absolutamente não saturável. (...) Esta citacionalidade, esta duplicação ou duplicidade, esta iterabilidade da marca não é um acidente ou uma anomalia, é aquilo (...) sem o qual uma marca não poderia mesmo ter um funcionamento dito ‘normal’. O que é que poderia ser uma marca que não se pudesse citar? E que origem poderia ter sido perdida pelo caminho?79

80. Joseph Rykwert, “Meaning and Building”, in: The Necessity of Artifice (Londres: Academy Editions, 1982), p. 9. T.M.

Se pudermos manter que a arquitetura, seja como um sistema semiótico em si mesmo ou como fato multissemiótico, é também produção de signos e “textos”, então de que forma podemos transpor o problema da escrita para a compreensão da produção arquitetônica? Esse problema se confirma a partir de qualquer perspectiva pela qual entendemos o “texto arquitetônico”. Se falamos do edifício enquanto um “tipo” de texto, isto é, por meio da analogia arquitetura-escrita, pode-se dizer o seguinte: cada instante na história de um objeto arquitetônico é uma nova existência desse edifício, uma nova iteração textual. Se podemos afirmar, como disse Joseph Rykwert, que “todo edifício, e até mesmo cidades inteiras, devem carregar declarações, confissões, permissões”80, é também verdade que, após um período suficientemente longo, essa mesma arquitetura não estará declarando, confessando ou permitindo as mesmas coisas que ela originalmente pretendeu. Cada demolição, transformação ou “revitalização” de um fato urbano, por mais inexpressivas que sejam, configuram novos enunciados. Derrubar uma parede é uma alteração em um estatuto semiótico, ainda que falemos de uma semiótica “a-significante” da pura forma; é atribuir ao espaço um novo componente de autoria. Mesmo que, posteriormente, alguém se ocupe de reconstruir fielmente a parede antiga, não se tratará de restauração, mas de adição; uma nova forma, um novo enunciado portanto. Sustentando, ainda, essa analogia entre forma arquitetônica e fala linguística, podemos recorrer novamente a Bakhtin: uas ou mais sentenças podem ser absolutamente idênticas D (quando são sobrepostas, como duas figuras geométricas, elas coincidem); além do mais, deve-se reconhecer que qualquer sentença, (...) no fluxo ininterrupto da fala, pode ser repetida ilimitadamente de forma completamente idêntica. Mas enquanto enunciado (...), nenhuma sentença, por mais que possua uma única palavra, pode 65


ser repetida: trata-se sempre de um novo enunciado (mesmo que seja uma citação)81

81. Bakhtin, M. (1986), p. 108. T.M.

Mas o problema da escrita também se mantém caso entendamos por texto arquitetônico todo o conjunto literário, falado, iconográfico, documental e publicitário – isto é, todo o aparelho simbólico – que se acrescenta ao edifício “em si” e sem o qual é impossível precisar o real modo de existência de uma obra de arquitetura. A “vida textual” da arquitetura vai além da presença da forma-objeto, do edifício-manuscrito. É uma existência reprodutível, cumulativa, que se estende não apenas no espaço (nos seus inúmeros suportes representacionais), mas também no tempo: nas sucessivas iterações, citações e reproduções posteriores às quais a história a submete; como também retrospectivamente, no que o texto arquitetônico possui, ele próprio, de citação de textos anteriores. Barthes escreveu: abemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras a S produzir um sentido único, de certa maneira teológico (que seria a ‘mensagem’ do Autor-Deus), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, oriundas dos mil focos da cultura82

As “declarações” e “confissões” de uma obra de arquitetura não são por isso mais legítimas em seu estado “virginal”, por exemplo, conforme concebidas sobre a prancheta de um arquiteto (ou conforme o seu querer-dizer), do que numa cópia comentada que possa, ela mesma, profanar o “original”. Um projeto de arquitetura, segundo explicado por seu próprio arquiteto, não nos dirá mais sobre a obra em si do que, por exemplo, esse mesmo projeto estampado num panfleto imobiliário que tão eloquentemente nos dirá sobre o lifestyle e os sentidos do “morar contemporâneo”, ou algo assim. Ou, então, sob o escrutínio de um crítico ou de um historiador, quando esse projeto ganhará novos contornos ao aparecer sob o encanto de certas metáforas, sob a injeção de novas linhas narrativas ao texto arquitetônico. Haverá casos, inclusive, em que o trabalho do arquiteto se tornará, ele mesmo, uma dessas linhas auxiliares para textos e discursos muito maiores, dos quais o “edifício” não é se não um adereço secundário. É o caso, por exemplo, dos grandes esquemas retóricos das políticas de “construção identitária nacional”, tão fundamentais à história brasileira, que exploraremos nos próximos capítulos. Não há um autor, portanto, da arquitetura, mas muitos. Se compreendermos a noção de autoria à luz de seu termo cognato autoridade, torna-se possível demonstrar que o autor da arquitetura está presente, para além do arquiteto, em todas as forças sociais que incidem sobre as atribuições formais e semânticas da obra, e que podem partilhar ou disputar (seja a priori ou a posteriori) a autoridade sobre a “escrita” da arquitetura. Não se trata, portanto, de um trabalho originário, de 66

82. Barthes, R. (2004), p. 62


um antes do qual a arquitetura é o depois acabado. Pelo contrário, na arquitetura não há origem, há somente mediação (ou midiatização). Ao longo da insaciável travessia que a condição de signo o submete, o texto arquitetônico pode apenas reencarnar, de suporte em suporte, emissor em emissor, arquitetura em arquitetura, num eterno ciclo de aparições e desaparições. O que se tem por “linguagem arquitetônica”, diante disso, não pode ser compreendido apenas como um instrumento típico e interno à instituição “arquitetura”, nem como um sistema semiótico que seja, por direito, independente da linguagem propriamente dita. Como vimos, a arquitetura é necessariamente uma coisa falada; o que faz dela, para além de um híbrido de suportes representacionais, também uma combinação heterogênea de outras falas, de outros agentes de discurso, dentre os quais o arquiteto não é, senão, um. Não queremos, com isso, decretar uma “morte do arquiteto”, nem devolver a arquitetura à sua tradicional concepção estritamente reflexiva (seja como emanação da natureza ou como produto da “superestrutura”). Trata-se, na verdade, de compreender não apenas as restrições, mas também as possibilidades que se revelam em uma compreensão ampliada do que chamamos de “linguagem arquitetônica”. Como veremos, ser arquiteto – e acredito que cada um deles, no mínimo, suspeita disso – é ser também muitas outras coisas, e isso lhe garante uma posição central no regime simbólico e discursivo da arquitetura. Todo arquiteto tem algo de orador, de historiador, de publicitário, de legislador. Seu trabalho mesmo não é projetar edifícios, mas o de falar por todos os meios dos quais ele dispuser; o de produzir tantos símbolos quantos lhe for permitido. Mas essa mesma condição o impele, também, a reconhecer que seu trabalho é sempre uma entre muitas outras mediações do signo arquitetônico; uma entre muitas vozes que interpelam um edifício até mesmo antes do edifício, e que continuarão falando sobre ele mesmo após a sua ruína.

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Modelo

endo reparado, ó Imperador, que muitos deixaram dispersos preceitos e T livros de comentários sobre arquitetura, como partículas não ordenadas e apenas principiadas, julguei que seria digno e utilíssimo ordenar antes de mais nada o corpus dessa disciplina segundo uma metodologia equilibrada - Vitrúvio1 1. Vitrúvio. Preâmbulo do Livro 4 de Tratado de Arquitetura (São Paulo: Martins Fontes, 2007), p. 199

Comecemos com uma espécie de conclusão. Para que possamos, a um só tempo, de certo modo sintetizar tudo o que foi dito até aqui sobre o “símbolo” e sobre o “texto”, mas também proporcionar uma espécie de abrigo conceitual para que percorramos, com mais segurança, este capítulo que se inicia, penso haver uma palavra-chave particularmente elucidativa. Uma palavra que, para que seja sintética mas também produtiva em si mesma, deve ser necessariamente ambígua: registro. A palavra “registro” não apenas resume, de forma clara, a ideia que queremos fazer do símbolo, como também propõe uma ambiguidade estratégica que se conservará ao longo de todo o trabalho sob diversos outros temas e conceitos. Um “registro” pode ser lido de duas formas distintas. Seu primeiro sentido diz respeito ao ato de registrar, de escrever e inscrever ou, como diria Derrida, de produzir uma marca. Já nesse primeiro sentido do registro, nos deparamos com uma ambiguidade interna: um “registro” pode descrever tanto uma ação como um objeto. Ele aponta para a necessidade de se pensar os objetos como coisas inseridas em práticas concretas e materiais: registrar é produzir coisas. Segundo: podemos dizer, para além do sentido anterior, que um registro é um objeto que contém, que preserva. Quando utilizamos a palavra “registro” nesse sentido, geralmente nos referimos a um objeto individual que pode conter, ele mesmo, uma multiplicidade de outros registros: por exemplo, um livro contábil, uma árvore genealógica, um registro paroquial, etc. Aqui também falamos de um objeto que pressupõe uma ação; mas, para além do “ato de registrar”, nos referimos 69


ao ato de armazenar, ou ao ato de preservar. E, se os atos “armazenar” e “preservar” têm sempre por objeto certas coisas ou registros preexistentes (passados) que ele deve ajuntar, então o registro é sempre uma operação histórica. Ele é algo como uma extração, uma corporificação, uma “unificação” de dados passados que ele tem por função manter sempre presentes. O registro atualiza e materializa a história. Desses dois sentidos do “registro” temos, portanto, que: 1. O registro é um objeto, uma marca, uma materialização. 2. O registro se insere em um regime de práticas: ele não apenas pressupõe o ato da “escrita” do qual ele é o produto, como atua no sentido de armazenar, preservar e indexar, dentro de si, a memória de registros anteriores. 3. O registro é, ao mesmo tempo, um e muitos: ele é um estado corpóreo (um corpus) para a manifestação de uma multiplicidade de fantasmas que se acumulam e se permitem nomear por ele. O registro explica a ideia que fazemos do “símbolo”. Lembremos do que Derrida chamou de a capacidade iterativa do texto escrito, da “marca”, do símbolo: cada iteração, cada repetição de um signo ou símbolo qualquer implica um novo contexto histórico, ou uma nova camada de significado atribuída a ele. No símbolo estão sedimentadas (ou registradas) as memórias de todas as coisas e eventos aos quais ele um dia já se referiu, coisas e eventos já mortos mas que, não obstante, permanecem conservados e nomeáveis por ele. A coluna dórica, na Grécia Antiga, significava “originalmente” uma certa coisa, e estava associada a um certo contexto, a um certo estado das coisas que ela servia para nomear2. Mas a mesma coluna dórica, conforme descrita por Vitrúvio séculos depois, na era de ouro do Império Romano, era por sua vez uma nova iteração da coluna: ela significava uma outra coisa, servia para outros propósitos e outras práticas. E, não obstante, a coluna original permanecia ainda nomeada, ou citada na coluna dórica romana. Na iteração vitruviana, a coluna conservaria não apenas o sentido histórico e a mitologia atribuída a ela no passado grego3, como passaria também a existir, a partir do Império Romano, sob um novo regime simbólico e social. O mesmo se pode dizer das sucessivas iterações da coluna dórica ao longo da história, seja na Renascença do séc. XVI, no Revivalismo Grego do XVIII, ou mesmo no pastiche pós-moderno: cada uma de suas citações é uma paragem, um novo momento de registro e de acúmulo no interior do símbolo. O símbolo é o registro de muitas falas: e essas falas são justamente, retomando Barthes, “aquilo que se arrasta na língua”4 (e, por extensão, em todo sistema de signos). O ato de empregá-lo, de “dizer” o símbolo, é sempre um ato de citação, uma reencarnação. É falar coisas novas em línguas mortas, fazer ressoar vozes ausentes e antigas. Deleuze e Guattari, nos Mil Platôs, escreveram: “Existem muitas paixões em uma paixão, e todos os tipos de voz em uma voz, todo um rumor, glos70

2. Pode-se mesmo dizer que a ordem dórica do período helênico, ao invés de uma manifestação “original”, era ela mesma uma iteração das antigas construções em madeira que, segundo Vitrúvio, teriam servido de modelo para a elaboração das ordens clássicas em pedra. Ver: Vitrúvio (2007), p. 208 3. Discorrendo sobre as origens da ordem dórica, Vitrúvio atribui a Doro, filho de Heleno, a primeira concepção deste estilo, empregada de forma “casual” num templo para a deusa Juno. A sistematização da ordem dórica teria, posteriormente, cabido aos habitantes da Jônia, que teriam se baseado nas proporções do corpo masculino para a composição das colunas de seus templos. “Deste modo, a coluna dórica começou a mostrar nos edifícios a proporção, a solidez e a elegância de um corpo viril”. De modo que, a partir daí, e ao longo de todo o período do classicismo moderno, o emprego da ordem dórica esteve sempre associado à simbologia masculina (como em templos a deuses masculinos e edifícios militares). Vitrúvio (2007), p. 202. 4. Barthes, R. (2013), p. 7


5. Deleuze, G; Guattari, F. (1995), Livro 2. p. 9. Do dicionário Michaelis: “Glossolalia. s.f. 2. Fenômeno caracterizado pela pretensa capacidade de falar em línguas desconhecidas, que pode ocorrer a uma pessoa em exaltação religiosa” 6. Victor Burgin apud. Colomina, B. (1988), p. 23. Grifo meu

solalia: isso porque todo discurso é indireto, e a translação própria à linguagem é a do discurso indireto”5. Mas se essa discussão soa ainda estranha demais para a tradição conceitual da arquitetura, podemos reilustrá-la com um termo mais familiar: o cânone. Conforme escreveu Victor Burgin, “ O cânone é aquilo sobre o qual se escreve, aquilo que se coleciona, que se ensina; ele é autoperpetuante, autojustificante e arbitrário (...). O cânone é o discurso encarnado; o discurso é o espírito do cânone”6

O cânone é tudo “aquilo sobre o qual se escreve, aquilo que se coleciona”: aquilo que está registrado, ajuntado no símbolo. O cânone é “aquilo que se ensina”: aquilo que é iterado, reproduzido, passado adiante. O cânone é um “discurso encarnado”: ele é uma fala que contém muitas outras. O cânone é o cerne da disciplina arquitetônica. Ele diz respeito à tarefa maior da arquitetura, e à fonte de toda a sua autoridade, a saber: a configuração de um registro, uma instituição, um arquivo, um corpus de autores, práticas, saberes e enunciados que se acumulam em seu interior, e que são reconvocados a cada nova iteração, a cada nova aparição da obra de arquitetura. Uma obra de arquitetura é uma multiplicidade enjaulada; ela é uma e muitas. Brasília O caso de Brasília talvez seja o exemplo mais nítido do que queremos dizer com isso: nunca antes em nossa história uma obra de arquitetura ou urbanismo nasceu tão impregnada de simbolismo e discurso, nem ocupou lugar tão central nos “cânones” da cosmologia brasileira. Ali materializavam-se não apenas os postulados morais e estéticos do discurso moderno; erguiam-se conjuntamente muitos outros discursos e monumentos, alguns deles tão antigos quanto o próprio país. Seria possível que a população brasileira, à época de sua inauguração, pudesse mesmo enxergá-la sem que o fizesse também através das anunciações proféticas dos jornais e revistas, das promessas dos oradores políticos, da futurologia dos anúncios coloridos? Que dizer então de toda a mitologia nacional que, em razão do boom historiográfico e artístico da primeira metade do século XX, finalmente começava a se alojar no fundo da subjetividade brasileira? Haveria Brasília sem toda a historiografia das insubordinações coloniais, sem a ideia de um destino fatalmente heroico que, prenunciada pelas narrativas do bandeirismo, assombrava a identidade brasileira? Sem as lendas sobre a profecia de D. João Bosco? Ou mesmo sem o estado mental do “desrecalque” construído pelo espírito de 22, e de certa forma consolidado com a Revolução de 1930? Por toda parte, fosse nos anúncios de eletrodomésticos, fosse nos comícios presidenciais, a ideia de Brasília ecoava como um chamado 71


uníssono de muitas vozes; um discurso histórico inteiramente conjugado no imperativo da “renovação”; uma convocação à síntese e à introversão (ou “interiorização”) de uma nação recém-liberta e enfim soberana. Muitas metas e muitos mitos estavam nomeados no discurso total que deu – e continua a dar – forma a Brasília. A alcunha de “meta-síntese”, proposta por Juscelino Kubitschek em referência ao seu plano de trinta metas para a modernização brasileira, do qual a construção de Brasília seria a trigésima primeira, torna-se especialmente importante se considerarmos que estão inclusas nessa “síntese” muito mais do que estratégias governamentais e projetos de futuro. O desejo de síntese – que é sempre um desejo de símbolos – sob o efeito do qual Brasília parece ter surgido quase que espontaneamente, ou nas palavras de Lucio Costa, “por assim dizer, já pronta”7, nos sugere que a potência discursiva da nova capital não se esgotava num projeto de futuro; mas que, antes de mais nada, o desígnio de Brasília era igualmente a consolidação de um projeto de passado, a historiografia de um mito-síntese. Como um dos grandes oradores da modernidade brasileira, e tal qual JK, Lucio Costa foi um dos agentes que se encarregaram de edificar uma versão da história nacional que culminaria inevitavelmente em símbolos como Brasília. A humildade com que esses agentes de discurso se colocavam diante da tarefa monumental dava a entender, no entanto, que eles não eram senão meros súditos de um desejo coletivo imemorial. O gesto inaugural do arquiteto, “o gesto primário de quem assinala um lugar ou que dele toma posse, dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz”8 parecia surgir para Lucio Costa como que por um milagre da psicografia: a transcrição das vozes antigas e imemoriais do mito brasileiro. Teria sido impossível conceber algo como Brasília, “a primeira das capitais de uma nova civilização” nas palavras de um deslumbrado André Malraux9, ou mesmo a ideia, até hoje tão contraintuitiva, de uma Arquitetura Moderna Brasileira, sem a co-incidência das muitas vozes – de interesses muitas vezes incompatíveis, mas sempre em uníssono – que tratavam de mobiliar a casa do mito brasileiro. E o que é particular a todo mito é precisamente o modo com que ele confunde a historiografia com a história mesma; transforma os agentes do discurso em vetores de um desejo imemorial, coletivo e demasiadamente grande para ter sido fabricado por qualquer intenção individual. Havia ali, no mito de Brasília, acomodados sob o mesmo símbolo, muitos interesses e paixões: o trabalho mental de superação dos complexos coloniais; o desejo de termos todos um fusca e um liquidificador elétrico; o imperativo político de nomear os signos de um passado heroico; o apetite reprodutivo das mais arcaicas estruturas sociais; todos coabitando o mesmo discurso, reunidos em torno do 72

7. “Não pretendia competir e na verdade não concorro – apenas me desvencilho de uma solução possível, que não foi procurada, mas surgiu, por assim dizer, já pronta”. Trecho do relatório elaborado por Lucio Costa para o Plano Piloto de Brasília em 1957, e publicado na Edição Comemorativa da Transferência da Capital Federal para Brasília em Diários Associados: O Jornal Estado de Minas, Folha de Goiaz e Correio Braziliense, 21 de abril de 1960. p. 2 8. Ibid., loc. cit.

9. André Malraux foi o Ministro da Cultura da França sob a presidência de Charles de Gaulle (19591969). Em 25 de agosto de 1959, às vésperas da inauguração de Brasília, Malraux desceu em solo brasileiro para batizar a nova cidade, em um célebre discurso, de “a capital da esperança”. “Nesta cidade que tem sua origem na vontade de um homem e na esperança de uma nação, como as antigas metrópoles surgiram da vontade imperial de Roma ou dos herdeiros de Alexandre, o


Palácio da Alvorada que edificastes, a catedral que haveis projetado nos trazem algumas das formas mais arrojadas da arquitetura (...). Esta Brasília sobre o seu gigantesco planalto é de certo modo a Acrópole sobre o seu rochedo... Salve, capital intrépida, que recordas ao mundo estarem teus monumentos ao serviço do espírito!”. Ibid., p. 19

mesmo mito de origem, nomeados pelos mesmos símbolos. Não havia nesse mito, no entanto, uma autoria clara: mesmo seus agentes mais explícitos pareciam estar simplesmente “repassando” algo que lhes fora legado, uma narrativa sem autor, um discurso de domínio público que, miraculosamente, persistia às provações da história brasileira. O “milagre” de Brasília surgia, então, num momento de excepcional compatibilização entre os mais heterogêneos desejos da reorganização social brasileira – entre os quais os da nova arquitetura encabeçada por Lucio Costa – em torno de um arco histórico consensual. Compunha-se “organicamente”, naquele momento, o discurso da sina inescapável, pois antecipada pelas mais antigas vontades de um povo, da modernidade brasileira. Sob o signo de Brasília, que consolidava simultaneamente o mito de origem de uma nação e a expressão estética, moral e política de seu destino, a arquitetura moderna de Lucio Costa nascia já devidamente sincronizada com seu tempo histórico, e convenientemente vernacularizada no espírito brasileiro. Conforme apontou Otília Arantes,

10. Otília Beatriz Fiori Arantes, “Lucio Costa e a ‘Boa Causa’ da Arquitetura Moderna”. In: Otília Beatriz Fiori Arantes e Paulo Eduardo Arantes, Sentido da Formação: três estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa (São Paulo: Paz e Terra, 1997), p. 124

uis o destino (...) que o demiurgo do Movimento Moderno no Q Brasil, desde 1937 ligado ao SPHAN [Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional], fosse também um perito renomado em matéria de arquitetura tradicional. Tornava-se assim possível recontar a história da arquitetura brasileira à luz do enxerto bem-sucedido da Nova Construção, fazendo-o por assim dizer como que irromper miraculosamente do chão brasileiro, dando no entanto a entender, com mão leve, que tudo poderia ser também fruto de uma feliz coincidência10

11. Desde sua fundação em, 1937, até o ano de 1970, 527 dos 600 edifícios tombados pelo SPHAN

Da mesma forma com que, quase duzentos anos antes, na França, Laugier concebia seu mito de origem da arquitetura e postulava, em torno do arquétipo da “cabana primitiva”, os axiomas formais para a “verdadeira” aplicação da disciplina, Lucio Costa agora encarregava-se, ele próprio, de historiar uma autêntica linha evolutiva para a arquitetura moderna brasileira. Uma que, com a força de um mito, fizesse brotar, quase naturalmente, a “Nova Construção” de um devir histórico. Elegeu para isso sua própria cabana primitiva, imaginada nas antigas construções do período colonial. Aqueles anônimos volumes brancos, de traços humildes e necessários, despidos de qualquer opulência, eram agora historiados como as expressões materiais de um povo que, historicamente silenciado, seria por fim nomeado pelo estatuto moral de um Brasil moderno. Fostes, candangos, os operários do milagre!, bradou Juscelino em discurso para aqueles homens que, em séculos anteriores, edificavam a pobre cabana de Lucio Costa. À frente da maior autoridade do recém-inaugurado preservacionismo brasileiro, o mestre moderno incumbia-se de eleger, na paisagem histórica nacional, o que dali haveria de tornar-se objeto de memória (e de esquecimento) para toda uma nação11. A simpatia de 73



(que Costa assume em 1937 como diretor da Divisão de Estudos e Tombamentos), eram do período colonial. A campanha de Costa à frente do SPHAN apontava, por isso, não apenas para a valorização histórica da arquitetura colonial, mas para o esquecimento sistemático das vertentes burguesas dos séculos XIX e XX, como o Ecletismo e o Art-Nouveau. 12. Lucio Costa, “Muita Construção, Alguma Arquitetura, e Um Milagre”, in: Revista-Catálogo do III Congresso Interamericano da Indústria da Construção (Rio de Janeiro, 1962), p. 42

Cruzamento dos eixos Monumental e Rodoviário em Brasília

Croquis do Plano Piloto de Brasília, de Lucio Costa

Lucio Costa pela arquitetura colonial – proporcional ao seu desprezo pela “sucessão desconexa de episódios contraditórios, justapostos ou simultâneos, mas sempre destituídos de maior significação”12 que via no período eclético e nas arquiteturas importadas da Nova República – encarnava agora um discurso oficial. Como bem concluiu Arantes, o “milagre” da arquitetura moderna brasileira, epitomizado em Brasília, era sobretudo um milagre historiográfico: uma fábula tão bem contada que se tornava por fim um fato concreto, material e visível. Nem o mais vasto financiamento e nem qualquer conjuntura técnico-econômica davam conta de explicar a emergência da nova capital num país onde tudo parecia ainda “por fazer”. Tampouco bastou a vontade política de um ou dois líderes populistas para que a miragem do oásis se abrisse no serrado. Foi sobretudo a ideia, tão bem construída por tantas mãos ao longo de nossa história, de que Brasília sempre esteve lá, que fez com que ela efetivamente se materializasse. Uma ideia tão obstinada que, em 1956, era rememorada pela Revista Cruzeiro como A Batalha de 200 anos: traçada até 1789, quando os Inconfidentes incluíram em suas reivindicações a interiorização da capital brasileira, a ideia teria perdurado informalmente durante todo o Império até que fosse oficializada pela Constituição de 1891. Demarcada pela Missão Cruls, que em 1894 divisaria no mapa do país aquele estranho quadrilátero no Planalto Central que mais tarde 75


conheceríamos como o mapa do Distrito Federal, a ideia pela primeira vez ganhava seus contornos de miragem: quadrilátero de Cruls que, durante mais de meio século excitou O a curiosidade dos colegiais brasileiros, foi também uma interrogação para o garoto Juscelino Kubitschek, desde os seus primeiros contatos com a Geografia, em Diamantina. Lembra-se o presidente de que conhecer a explicação daquela figura geométrica, intrometida no mapa de Goiás, tinha pelo menos a virtude de revelar a aplicação dos alunos, para quem, no entanto, aquilo não era mais que o símbolo de uma ideia tão velha quanto o próprio país13

À época da candidatura de JK, o discurso já estava muito bem ensaiado; um senso geral de predestinação histórica e uma vontade coletiva de “renovação” rondavam, como um espectro, a psique brasileira. Àquele estranho quadrado de Cruls – ainda um esquema arbitrário e impreciso, ainda a expressão elusiva de um fantasma, uma cartografia do porvir – faltava no entanto a construção. Mas não a construção pura e simples. Me refiro a uma engenharia mais ampla: a de nomear uma multiplicidade de enunciados, historicamente dispersos e pouco articulados, por meio de uma imagem-de-mundo. A configuração do cânone: uma espécie de arquivo simbólico, um conjunto enunciável de formas rituais para a perpetuação do mito brasileiro. Uma engenharia simbólica da qual a cidade “em si” não era, senão, um mero vestígio, pois Brasília revelava-se como um mundo inteiro de imagens, palavras e discursos: a forma do avião, o semblante surrado do candango, o austero prisma branco, a luz da alvorada, o automóvel brilhante, o sujeito miscigenado, a expedição bandeirista, o minério de ferro, a marca da cruz, os relógios IBM, as montanhas da Guanabara, o pau-a-pique e o concreto armado, enfim, um sem-número de encantamentos que, devidamente organizados, fariam brotar do deserto aquela cidade messiânica. À arquitetura, no entanto, coube a tarefa última de nomear essa miríade de eventos discursivos, até então mais ou menos dispersos, sob a ordem de um único símbolo, de uma narrativa-mestra: uma “síntese”, como bem queria JK. Havia nesse valor de montagem arquitetônica, de cidade, algo além da soma de muitas partes; uma propriedade emergente irredutível, de sentido próprio, impossível de ser observada em suas frações constituintes. Pois o que o evento arquitetônico de Brasília reivindicava era uma imagem integral e coesa de um domínio cosmológico: a de um Brasil que se estava compondo e que só poderia ser observado na inteireza de um objeto-síntese: o plano piloto, ou a palavra mesma “Brasília”. Brasília não era inaugurada como qualquer cidade é inaugurada, mas como uma espécie de mapa, um cosmograma do Brasil moderno. Daí, talvez, tenha decorrido o insight fundamental de Lucio Costa, com toda o simbolismo atribuído ao plano piloto, sobre o qual projetou as imagens civilizatórias da cruz e do avião14. É que o plano, isto é, o 76

13. “Brasília nasceu em um comício em Jataí”. In: Diários Associados: O Jornal Estado de Minas, Folha de Goiaz e Correio Braziliense. 21 abril de 1960, p.3

Still da videomontagem"A Cristalização de Brasília" (2019), de Guerreiro do Divino Amor, retratando S. João Bosco, o "profeta" da capital, sobrevoando o mapa de Brasília 14. Le Corbusier também era fascinado na relação entre o avião e o plano. Em seu livro Aircraft (1935), publicado seis anos após sua viagem à América Latina,


o franco-suíço via no avião o “símbolo de uma nova era”. No que soa como um prenúncio da construção de Brasília, Corbusier escreve: “O avião escrutiniza, age e vê rapidamente, e não se cansa – com seu olho de águia, penetra a miséria das cidades (...). Assim são as grandes cidades do século dezenove: inquietas, cruéis, sem coração e gananciosas. O avião instila, sobretudo, uma nova consciência: a consciência moderna. Cidades, em sua miséria, devem ser desmanteladas; devem ser amplamente destruídas e, no lugar, devem ser construídas novas cidades”. Ver: Le Corbusier, “Aircraft” (Londres: Trefoil, 1987), p. 12. T.M.

mapa, é o cosmograma por excelência: ele não apenas “armazena” e “preserva” o mundo; ele efetivamente o nomeia e o produz. Imago Mundi O que queremos dizer quando afirmamos que o plano de Brasília foi concebido como um “cosmograma”? Um ponto de partida seria dizer, retornando a um termo de nossa preferência: o cosmograma é um símbolo. Isso significa, como vimos, que ele é simultaneamente um recipiente, capaz de armazenar memória e significado, e uma espécie de dispositivo: um objeto produtivo, que funciona segundo uma finalidade, que está referenciado a um certo estado possível das coisas. Em outras palavras, o cosmograma – como o símbolo – possui um estado de reflexão (no que reflete e registra; no que ele é determinado por uma causa produtiva, pelas coisas que ele representa, e por tudo aquilo que lhe é externo e anterior), e um estado de produção (no que ele, enquanto uma coisa em si mesma, possui uma capacidade produtiva). Mas se dizemos que Brasília é um cosmograma, não estamos nos referindo a um símbolo qualquer, pois de muitas 77


outras coisas podemos dizer que o são: todas as palavras e objetos “culturalmente” concebidos são, também, símbolos. E por mais que de qualquer símbolo possamos traçar, em seu conteúdo histórico e em seu uso social, a natureza de seu pertencimento em uma cosmologia, somente de alguns deles podemos dizer que nomeiam, intencionalmente, esse domínio cosmológico; que organizam uma profusão de outros símbolos e conceitos sob uma unidade central, em uma tecitura coesa do real (textus = tecido). Cosmogramas são objetos poderosos e referenciais para uma cosmologia social; são os meios concretos nos quais ela se permite representar e compreender. Já por “cosmologia”, entenderemos aquilo que o antropólogo John Tresch descreveu: ma cosmologia é mais do que um sistema de classificação, um U mito de origem, ou uma teoria das relações entre o que há no universo; ela também envolve dimensões estéticas e afetivas e um senso de coerência entre as palavras, práticas e objetos característicos de um grupo15

Uma cosmologia, enquanto sistema nocional que rege a nossa interação com a história e com o mundo ao nosso redor, está indispensavelmente ligada a um repertório concreto de artefatos, ou coisas que nos permitem mapeá-la. Ao admitir aos objetos que nos circundam essa referencialidade num sistema cosmológico, Tresch observou nessas “coisas” dois modos de existência: a coisa cósmica e o cosmograma. O termo coisa, como apontou a respeito do famoso exemplo de Heidegger sobre a jarra cerimonial16, adquire aqui um sentido ampliado para além da acepção obtusa do “objeto”: a coisa é um evento. Ela sugere como, por um lado, “um objeto ordinário pode conter um cosmos inteiro” (coisa cósmica) e, por outro, “como um cosmos pode ser tratado como apenas uma coisa” (cosmograma)17. onforme sugerido pela etimologia [das línguas germânicas], C donde ‘coisa’ significava originalmente ‘ajuntamento’, a jarra, ou uma outra humilde entidade como uma ponte, é um objeto focal para um grupo histórico cujo uso concentra seus modos compartilhados de se relacionar entre si e com todas as entidades no mundo – todo o seu modo de estar-no-mundo. (...) A jarra é uma coisa cósmica18

A ideia de coisa nos diz que um objeto qualquer está sempre associado a uma economia de forças sociais que nele se ajuntam: por trás de toda coisa há a sombra de seu produtor, a presença de uma matéria-prima transformada, seus aspectos ideais (a imagem ou ideia que precede a produção), e o vetor de um uso social, ou seus “fins rituais”. É em consideração a essa trama de causalidades – que em Heidegger correspondem ao princípio das quatro causas atristotélicas19 –, que Tresch cunhou o termo “coisa cósmica”. Mas o que chamamos de cosmograma compreende um outro tipo de coisa; sobretudo, porque ele é uma expressão consciente do cosmos. Em outras palavras, podemos 78

15. “Brasília nasceu em um comício em Jataí”. In: Diários Associados: O Jornal Estado de Minas, Folha de Goiaz e Correio Braziliense. 21 abril de 1960, p.3 16. “Em seu exemplo [o de Heidegger], uma jarra – uma jarra particular – é o que é não porque possui quatro lados e um fundo; uma coisa é mais do que uma variedade de sensações, um objeto físico, um pedaço de matéria enformada, ou um instrumento útil. Ao invés, a coisa é um evento, um abundante vazio que recebe vinho como parte de um rito coletivo” Tresch, J. (2007), p. 88. T.M. 17. Ibid., p. 86. Grifo meu. 18. Ibid., p. 89.

19. Um aspecto importante da filosofia da técnica de Heidegger é o seu emprego das “quatro causas” aristotélicas como uma forma de “desvelar” a essência de todo objeto ou modo de produção. São elas: “1. a causa materialis, o material, a matéria a partir da qual, por exemplo, uma taça de prata


é feita; 2. A causa formalis, a forma, a figura, na qual se instala o material; 3. A causa finalis, o fim, por exemplo, o sacrifício para o qual a taça é requerida é determinada segundo matéria e forma; 4. A causa efficiens, o forjador da prata que efetua o efeito, a taça real acabada”. Ver: Martin Heidegger, “A Questão da Técnica”, in: Scientiae Studia, v. 5, n. 3. (São Paulo: USP, 2007), p. 377

dizer que ele é, essencialmente, um artefato comunicacional, e que nele o cosmos aparece como o objeto central de seu enunciado: ao contrário da coisa cósmica, não se trata de um mundo que se “esconde” por detrás do objeto, mas de um mundo que ele, conscientemente, representa e produz. O cosmograma é mais do que uma coisa: ele é um estatuto. Isso confere a ele, por menor que seja sua esfera de influência, algum poder especial. Pois ele não se contenta, como na jarra cerimonial, em conter silenciosamente o mundo; ao invés, ele quer nomeá-lo como forma de investir diretamente sobre ele. Quando Michel Foucault, em Arqueologia do Saber (1969), elaborou o conceito de “formação discursiva”, ele se referia a um fenômeno bastante similar ao que tentamos explicar aqui. Para o filósofo, a condição de existência de qualquer corpus do saber (por exemplo, uma ciência devidamente consolidada) é o acúmulo de uma determinada multiplicidade de enunciados (ou práticas e dizeres) heterogêneos sob a autoridade de um único discurso, de um aparato institucional que os nomeia, ou os corporifica. Por exemplo, o que explicaria a “ciência médica” não é, para Foucault, um suposto “objeto” único ao qual todos os enunciados historicamente atribuídos à “medicina” se referem; mas sim o fato de todos esses enunciados terem se reunido (mesmo forçosamente) sob uma mesma “prática discursiva”, ou sob um mesmo “conjunto de regras anônimas, históricas, (...) que definiram, em uma determinada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa”. Em outras palavras, não é o objeto “medicina” que determina a priori em que consistirão as práticas e enunciados da “ciência médica”, e sim o contrário. Os enunciados e práticas da “ciência médica” não se associaram por afinidade natural, ou por terem todos um referente comum, mas pelo fato de terem sido nomeados, sob determinadas circunstâncias e forças históricas, por um mesmo signo, por um mesmo discurso.

20. Michel Foucault, Arqueologia do Saber (Rio de Janeiro: Forense, 2008), p. 134. Grifo meu

ostra-se como [pela análise do discurso] os diferentes textos M de que tratamos remetem uns aos outros, se organizam em uma figura única, entram em convergência com instituições e práticas, e carregam significações que podem ser comuns a toda uma época. Cada elemento considerado é recebido como a expressão de uma totalidade à qual pertence e que o ultrapassa. Substitui-se, assim, a diversidade das coisas ditas por uma espécie de grande texto uniforme, ainda jamais articulado e que, pela primeira vez, traz à luz o que os homens haviam ‘querido dizer’, não apenas em suas palavras e seus textos, seus discursos e seus escritos, mas nas instituições, práticas, técnicas e objetos que produzem20

Quando nos referimos ao caso de Brasília e, mais amplamente, ao que entendemos por “cosmograma”, é para nomear, de certa forma, esse mesmo fenômeno. É claro que o objeto “Brasília” não diz respeito a uma formação discursiva tão nítida e delimitada quanto uma ciência 79


(como era o objeto da tese de Foucault). Tampouco se trata de uma instituição no sentido clássico do termo, de uma prática discursiva com certa autonomia e racionalidade próprias. Entretanto, Brasília é ainda assim uma síntese, um corpus, ou algo que podemos classificar como uma unidade de discurso: um único nome, ou símbolo, que faz evocar por força própria uma multiplicidade de enunciados, saberes, práticas e agentes que ele circunscreve. “Brasília” não surgia como uma ciência: e ainda assim, recorrer a ela é, de certa forma, nomear uma História Geral do Brasil, uma etnografia do “brasileiro”, uma ciência urbana, uma ideologia nacional, uma geopolítica, uma língua compartilhada, uma teologia, etc. A ideia que faremos do cosmograma, de forma similar à ideia de “discurso” de Foucault, nos diz que um mundo (enquanto multiplicidade, realidade) só se faz reconhecer e constituir por meio da produção de uma imagem-de-mundo: um ato de nomeação, de “ajuntamento” de multiplicidades. Ou, como em Foucault, uma formulação: um “ato individual (ou, a rigor, coletivo) que faz surgir, em um material qualquer e segundo uma forma determinada, esse grupo de signos: a formulação é um acontecimento que, pelo menos de direito, é sempre demarcável segundo coordenadas espaço-temporais, que pode ser sempre relacionada a um autor, e que eventualmente pode constituir, 80

↑ Quadrilátero divisado no Planalto Central pela Missão Cruls (1892-1894), que daria origem posteriormente ao mapa do Distrito Federal


21. Foucault, M. (2008), p. 134. Grifo meu

22. Deleuze, G; Guattari, F. (1995), Livro 1. p.21

23. Ibid., loc. cit.

24. Ibid., p. 22

por si mesma, um ato específico”21. Em suma, um ato de autoria, de autoridade. Dissemos anteriormente, para fins ilustrativos, que o cosmograma é um mapa. Mas ainda que muitos dos objetos tidos pelos especialistas como cosmogramas (por exemplo, o mapa-múndi) sejam, de fato, o que conhecemos por “mapas”, o cosmograma não se permite explicar suficientemente por esse termo. Sobretudo porque o ato de mapear é fundamentalmente diferente do que chamaremos de cosmografia, ou a produção de cosmogramas, de imagens-de-mundo. Deleuze e Guattari, no primeiro livro de Mil Platôs, diferenciaram esses dois modos de produção de mundo: chamaram-nos de mapa (no sentido que empregamos aqui) e decalque (ou, para nós, o cosmograma). O mapa, segundo eles, “se opõe ao decalque (...) por estar inteiramente voltado para a experimentação ancorada no real”22: ele é um processo coletivo, heterogêneo e contínuo que não acontece no plano da representação, mas numa pragmática inominável de trocas e associações concretas. Mapear um mundo não é partir de um território já conhecido, previamente delimitado, para então reproduzi-lo (conceber o mapa-imagem). Mapear não diz respeito à reprodução de um objeto sabido, ou a um objetivo de mapeamento. Pelo contrário, quem faz o mapa não conhece a princípio a forma total, a extensão ou os limites desse mundo, e nem mesmo tem por intenção o ato de mapear. Mapear um mundo não é nomear, ou reduzir multiplicidades a um estado nominal e conhecível. É, pelo contrário, conhecer através da multiplicação das incursões, das experiências e descobertas sucessivas num terreno vivido. Os elementos do mapa não se associam por identificação prévia (ou por habitarem sabidamente um mesmo “mundo”), mas se identificam porque se associam, se identificam na diferença. Não há nada a priori que os faça habitar um mesmo mundo, um mesmo nome. “O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente”23. O decalque, por outro lado, traduz “o mapa em imagem”24. É um ato de nomeação, de corporificação de uma multiplicidade de coisas que não necessariamente se associam ou complementam. Por exemplo: um monstro cuspidor de fogo que consiste simultaneamente em leão, cabra e serpente, está suficientemente nomeado, corporificado pela palavra “Quimera”, ou então por sua representação pictórica. Ainda que, no “mundo real”, as coisas leão, cabra, serpente e fogo não possuam qualquer vínculo corporativo uns com os outros, isso não impediu que elas fossem ajuntadas pelo discurso mitológico, que a Quimera se tornasse um corpus efetivamente presente e temível para os gregos, que preocupasse as suas mentes e contaminasse suas condutas. O decalque é o cosmograma: é uma imagem-de-mundo, uma ordem de demarcação. Um cosmograma está para o mundo como os nomes 81


estão para a multiplicidade de coisas que eles nomeiam, representam e contêm: em uma relação de captura e composição. Sua produção não acontece, como no mapa, diretamente no fluxo da experiência concreta, mas num momento determinado de nomeação. Não quero dizer, com isso, que o cosmograma seja, pura e simplesmente, uma invenção gratuita. Lembremos que, enquanto símbolo, ele está sempre ligado a uma genealogia de iterações passadas: uma imagem-de-mundo é sempre elaborada sobre versões anteriores. Não obstante, o cosmograma é sempre uma coisa, um evento determinável de criação. É esse evento determinável que nos interessa aqui, e que em Brasília identificamos como a sua “síntese”. O momento da “síntese” diz respeito precisamente ao momento em que se desejou reunir, numa montagem retrospectiva, todo um conjunto outrora disperso e anônimo de enunciados, com a intenção clara de dar forma e imagem ao que, a partir daí, tornou-se um “mundo”: um ato de cosmografia, um “faça-se a luz”. • • • Da forma mais abrangente possível, e sob o risco de profanar um conceito caro à arqueologia e à antropologia contemporânea, podemos definir o cosmograma da seguinte forma: um discurso sobre o real. O cosmograma se utiliza de um aparato simbólico, verbal ou não, para explicar o seu próprio meio de codificação, o seu próprio contexto de origem: um aparato que produz “mapas”, diagramas, projetos, textos históricos e ficcionais, catálogos, legislações e todos os tipos de artefatos que detêm a autoridade para nomear os aspectos fundamentais do universo a que pertencem. O privilégio de nomear – isto é, simbolizar – conscientemente uma unidade cosmológica qualquer (um universo, uma nação, uma etnia, uma cidade, etc.) faz do cosmograma mais do que um simples objeto vestigial, ou um “subproduto” de nossa relação com o cosmos; pois esse privilégio permite, na verdade, que ele sirva como um estatuto do real. O cosmograma é um enunciado referencial sobre a realidade: ele nos diz do que ela é feita, no que, em troca, internalizamos essa representação e gravitamos em torno dela. Ele está atrelado, portanto, a um processo de autocognição social; aos meios pelos quais uma coletividade faz conhecer e transformar a si mesma. Enquanto estatuto, o primeiro compromisso do cosmograma é o mapeamento e a descrição de um conjunto possível de objetos e eventos que pertencem a essa unidade de mundo, seja ela qual for. Mas o que significa dizer que ele recorre a um “conjunto possível”? Podemos traçar dessa expressão duas observações (ou melhor, espe82


Deus Tetzcatlipoca conforme representado no Códice Borgia, um manuscrito pictórico pré-colombiano do séc. XVI contendo cosmogramas, encantamentos e instruções rituais da cosmologia asteca

culações) que nos ajudarão a fundamentar o nosso entendimento sobre o cosmograma. A primeira nos diz que, se um conjunto é “possível”, é porque foi previamente delimitado por uma autoridade ordenadora (mesmo quando sua autoria não é individualizável). Assim, o cosmograma pressupõe um exercício de poder: o gesto de demarcar uma fronteira de soberania, ou uma jurisdição dentro da qual sua autoridade narrativa se mantém coesa, e seu cosmos permanece explicável. O cosmograma é um discurso de situação, funcionando como a demarcação de um lugar, de uma situação no tempo e no espaço sobre a qual ele exerce controle. O conjunto possível que ele confina dentro dessas fronteiras simbólicas corresponde a um repertório limitado de coisas que podem existir em determinado mundo. Isso incorre em admitir que, no momento em que o cosmograma nomeia e autoriza o possível, ele também sugere e proíbe o impossível – ou seja, tudo aquilo que se encontra do lado de fora de um modelo da realidade, e cuja existência deve ser combatida ou, no mínimo, ignorada. Resumidamente, nossa primeira observação nos diz que os cosmogramas não são mapas, mas estatutos, modelos de mundo. O que nos leva à nossa segunda observação: como toda norma, a autoridade desse “conjunto possível” se refere também, para além do estabelecimento de fronteiras disciplinares, à sua capacidade de antecipação e previsão do futuro. Não me refiro tanto a uma “divinação” no sentido teológico (como é o caso em muitos cosmo83


gramas), mas em termos pragmáticos: se a linguagem do estatuto está sempre conjugada no imperativo – ele é uma ordem – então necessariamente o futuro deverá se desenrolar conforme ele prevê: o cosmograma é um projeto. Se quando, por exemplo, para realizar um certo trajeto pela cidade, sabemos de antemão que a única forma possível de locomoção será necessariamente a dos sistemas viários reticulados, isto é, a do movimento ortogonal, é porque um conjunto restrito de possibilidades foi, em algum momento, antecipado por um plano de urbanização. E se os planos de urbanização, até hoje, invariavelmente recorrem a alguma forma de ortogonalidade, é porque há milhares de anos o grid impera como um esquema epistemológico fundamental a qualquer forma de produção de mundo; um aparato normativo que antecipa e ordena os modos com que representamos, partilhamos e compreendemos a realidade. O cosmograma recorre, a um só tempo, a um ato de demarcação e a uma ordem de produção. Ele faz inscrever, na matéria, a imagem do domínio territorial de um poder, garantindo-lhe presença e continuidade num meio social. É que a necessidade de assegurar uma relação de poder corresponde precisamente à necessidade de conceber as imagens do mundo sobre o qual ela se estende: pois o poder só se legitima e reproduz na medida em que pode ser simbolizado, materializado, localizado. A noção que queremos fazer do cosmograma sugere, portanto, que a ideia que fazemos do mundo e o modo como engajamos com ele são sempre produtos de um modelo de realidade manifesto em certos objetos. Cosmogramas podem assumir muitas formas, ser novos ou antigos, mas serão sempre, invariavelmente, veículos de autoridade epistêmica e suportes para discursos de poder. Quer se trate das ancestrais imagos mundi ou do plano para uma cidade moderna, a discussão sobre o cosmograma deve reconhecer o seu papel, para além de um modo de representação (ou reflexão), de modelo. E todo modelo pressupõe uma ordem de produção – ou reprodução – de um evento ou entidade à imagem de sua matriz: ele orienta uma finalidade produtiva e um uso social. Como apontou John Tresch em um outro ensaio, “frequentemente, existe num cosmograma um objetivo que vai além da mera descrição ou representação: ele é muitas vezes uma redescrição, no tempo condicional ou futuro – não se trata do mundo tal como ele é, mas do mundo como poderia ser”25. O cosmograma nos remete a uma forma de representação do mundo que pode ser entendida também como uma forma de produção, ou projeto, de um novo mundo. É nesse sentido que dizemos que o cosmograma é um dispositivo: seu valor não 84

25. John Tresch, “Cosmogram” in: Ohanian, M.; Royoux, J. (orgs.), Cosmograms (São Paulo: Kristale, 2005), p. 74


26. Rebecca Lesses, “Image and Word: Performative Ritual and Material Culture in the Aramaic Incantation Bowls”, in: DeConick, A; Shaw, G. et al, Practicing Gnosis: Ritual, Magic, Theurgy and Liturgy in Manichaean and Other Ancient Literature (Boston: Leiden, 2013), p. 377

27. Ibid., p. 378

decorre inteiramente do que ele permite armazenar ou representar, mas igualmente do que ele permite produzir e transformar. Tomemos, como exemplo, as tigelas de encantamento aramaicas utilizadas entre os séculos 4 e 8 d.C. pelos povos cristãos, judeus e zoroastras na região da Babilônia, segundo descritas pela antropóloga Rebecca Lesses. Esses artefatos de barro, muito comuns à época, eram desenhados com inscrições verbais e figurativas sobre as diversas entidades espirituais, de diversas origens religiosas, que povoavam uma cosmologia comum. Essas tigelas, tal qual os pergaminhos e códices antigos, eram suportes sobre os quais se faziam representar e transmitir um conhecimento cosmológico. Eram, certamente, cosmogramas: mas não apenas em razão do que eles “armazenavam” desse conhecimento; na verdade, como apontou Lesses, esses artefatos não serviam ao mero registro de uma memória cosmológica e nem a fins ornamentais, mas eram sobretudo instrumentos mágicos, ou então dispositivos: as palavras e imagens gravadas nelas, contendo encantamentos escritos e figuras de entidades mitológicas, possuíam o objetivo claro de “exorcizar demônios, curar doenças, proteger contra espíritos malignos e salvar uma pessoa e seus filhos de Lilith e outros demônios”26. O mero título de “recipiente”, portanto, é insuficiente para explicar as tigelas aramaicas: pois a sua disposição, ou sua tendência à produção de um resultado material, fazia com que eles fossem usados da mesma forma que qualquer outra ferramenta, fármaco ou objeto tecnológico. Lesses observa, ainda, que as tigelas eram sempre enterradas em pontos estratégicos de residências e edifícios públicos, frequentemente de acordo com instruções contidas nos próprios artefatos. Esses pontos correspondiam muitas vezes aos quatro cantos de um cômodo, de forma a “selar” o edifício e garantir segurança e salubridade aos seus habitantes. Podemos dizer que essa prática ritual, que constituía uma etapa indispensável para que um edifício se tornasse habitável, em nada diferia de quaisquer outras tecnologias e sistemas de edificação, pois era empregada para os mesmos fins que elementos como fundações, paredes, isolamento térmico e portas, efetivamente escorando e delimitando o ambiente construído. As tigelas eram, literalmente, elementos construtivos daquela arquitetura. As instruções e encantamentos contidos nelas, além disso, funcionavam da mesma forma que um projeto ou uma ordem de produção, no sentido de uma linguagem simbólica empregada para fazer surgir um evento ou uma configuração desejada do mundo. O simbolismo contido em cosmogramas como a tigela aramaica pode ser descrito segundo a noção de “ato de imagem” (image act) empregada por Lesses, onde “palavras ou imagens não são meramente descrições do mundo, mas, assim como ações físicas, são empregadas para afetar o mundo”27. Projeto, feitiço, discurso e tecnologia 85


adquirem aqui um território comum: o uso do símbolo como um instrumento de produção do mundo. Mais uma coisa deve ser observada se desejamos atribuir a objetos como a tigela aramaica o título de cosmogramas. Quer dizer, por mais que sejam fundamentais para o desenvolvimento e reprodução da vida ideológica de uma sociedade, os cosmogramas são muitas vezes objetos cotidianos, banais, fragmentários. Esse ponto de vista é, de fato, extremamente contraintuitivo, dado que na maioria das vezes em que o termo “cosmograma” é empregado, é para designar uma classe de artefatos excepcionais e imponentes que parecem exercer autoridade total sobre um “todo” social: é o caso de objetos como os códices maias, as escrituras bíblicas, os mapas-múndi, os tratados gerais da ciência e os planos utópicos para “cidades ideais”. Quero defender, no entanto, que não são atributos como a extensão de seu conteúdo ou a centralidade monocrática que esses artefatos possam empenhar que fazem deles, em essência, cosmogramas. É comum que associemos o cosmograma – muito em função do peso que a palavra cosmos carrega no senso comum – à ideia de um estatuto fundamental, ou a uma representação integral e absoluta do cosmos em torno da qual se ampara um determinado grupo social (a Bíblia explicaria o mundo cristão; Brasília explicaria o Brasil etc.). Além do mais, essa concepção sacralizante do cosmograma frequentemente sugere que sua produção está detida e associada a uma única figura de autoridade (a Bíblia é um cosmograma elaborado pela vontade do próprio Deus; o plano para Brasília é atribuído às figuras mitológicas de Kubitschek e Costa). Mas essa visão unitarista inutiliza a riqueza por trás da ideia de cosmograma, reduzindo-a a alguns poucos exemplos notórios, da mesma forma com que o conceito de “cultura” frequentemente leva às mais rudes planificações sobre uma realidade social complexa. São inúmeros os casos, no discurso etnográfico ou no senso comum, onde a realidade de sociedades “exógenas” é frequentemente reduzida a alguns poucos conceitos, mitos, personagens e cosmogramas. Civilizações inteiras, em toda sua diversidade e profundidade histórica, parecem caber em uma única unidade “cultural”, desprovida de espessura e cronologia. Quando voltamos, no entanto, o olhar para nossa própria realidade, qualquer tentativa de “síntese” parece absurda: em torno de quais cosmogramas, exatamente, orbita o “Ocidente”? Ou então, num recorte mais apurado, em que consiste a cosmovisão brasileira? A impossibilidade óbvia de se responder perguntas como essas nos diz que é impossível reduzir um sistema cosmológico a um punhado de símbolos e expressões centrais, e que quaisquer tentativas de esboçar sua totalidade colidirão com uma 86

→ Bacia de encantamento do povo judeu-aramaico, séc. 5-6 d.C. Contém encantamentos escritos e pictóricos para a proteção dos limites da casa contra demônios


realidade cosmológica em constante construção e contradição, e povoada por inúmeros cosmogramas e agentes de cosmografia. Sem que deixemos de reconhecer a devida importância de alguns desses artefatos, no entanto, é preciso dessacralizar o cosmograma, submetendo-o não mais à autoridade de um único mito de origem, mas à ideia de uma operação, ela mesma frequentemente heterogênea mundana, de registro. O cosmograma é o produto de uma cosmografia: o trabalho, muitas vezes fragmentário e descentralizado, de registro de uma cosmologia. Um trabalho que nem sempre tem por objetivo a explicação “integral” do mundo, podendo ser empregado segundo intenções muito corriqueiras e em registros “pouco” abrangentes. Isso se torna ainda mais evidente em face da heterogeneidade mesma de uma concepção ampliada de “cosmos” ou “mundo”. Um mundo pode descrever qualquer coisa – microcosmos, macrocosmos – que se tenha por uma unidade discursiva suficientemente nomeável: haverá tantos mundos quantos forem os nomes de mundo. É a soma, ou a montagem dessas muitas cosmografias que nos interessa aqui; uma composição que pode ser descrita como uma espécie de infraestrutura nocional, ou cosmológica, irredutível a alguns poucos estatutos isolados, mas compreensível

87


apenas a partir da ideia de um sistema descentralizado e reativo a inúmeras forças sociais. Em outras palavras, é preciso devolver o um aos muitos. Não há, por isso, um único agente capaz de centralizar uma produção de mundo. Isso se deve ao fato de que os instrumentos que envolvem a cosmografia são sempre compartilhados: é o caso da linguagem, mas também de todos os outros sistemas simbólicos. Qualquer agente em posse de uma linguagem será capaz de nomear, delimitar e reorganizar um mundo, e o sucesso de seu empreendimento se dará em função da aderência de seu discurso num meio social. Deve-se, por isso, entender o cosmograma como um evento inserido em uma cosmografia compartilhada e em constante movimento, onde a quantidade de mundos será proporcional à quantidade de agentes dispostos a nomear a realidade; ou à quantidade de imagens-de-mundo que circulam num meio social. Sobre isso, Tresch escreveu: m um dado espaço e tempo, múltiplos cosmogramas estarão em E circulação em espaços públicos e compartilhados. Nós fazemos noção do ‘lugar cósmico’ de uma entidade, seu lugar na coreografia de contextos de uma cultura, ao triangulá-la a partir de múltiplos cosmogramas contemporâneos. Isso nos permite uma interpretação determinada, mas não definitiva, na medida em que a entidade será revelada diferentemente de acordo com os mapas sobre os quais ela é colocada. Além do mais, porque são concretos e públicos, cosmogramas são eles mesmos continuamente expostos a contestações, adições, rasuras e substituições28

Se identificamos, no ensaio anterior sobre Brasília, uma manifestação particularmente excepcional dessa cosmografia, indicando como uma noção aparentemente total da realidade brasileira parecia irradiar de uma única imagem-de-mundo, seria apenas para esboçar, de forma mais ou menos simples, um ponto de partida para o que chamamos de “cosmograma”. Sabemos, é claro, que após tantas décadas de sua fundação, não podemos hoje permitir que qualquer observação sobre a “capital da esperança” se deixe amparar cegamente em sua – hoje contestável – centralidade na “cosmovisão” brasileira. Sabemos que, assim como o discurso de uma arquitetura moderna nacional, tanto a noção que fazemos de Brasília quanto a imagem real da cidade tal qual ela se encontra hoje , deformaram-se completamente ao longo da história: evidência de que não há um único cosmograma, mas muitos outros planos, ou imagens-de-mundo, a circular e produzir a realidade brasileira de forma contínua, contraditória e acidental. Feitas as devidas ressalvas, e com a consciência de que isso que chamamos de “produção de mundo” não é nunca uma atividade centralizada ou um privilégio de um único agente, quero argumentar que a arquitetura, enquanto uma atividade particular de discurso, está 88

28. Tresch, J. (2007), p. 93. T.M. Aqui, Tresch utiliza o conceito de “mapa” de modo distinto do que desenvolvemos há pouco, partindo do vocabulário deleuze-guattariano. Para ele, tem-se que mapa = cosmograma.


sempre envolvida, em maior ou menor escala, na produção de cosmogramas – representação e produção de mundos. O lugar hierárquico da produção arquitetônica nos “sistemas cosmográficos” que organizam um meio social variará, é claro, em função do escopo de seu discurso (se, por exemplo, ela deseja fundar nações, cidades ou apartamentos) e da permanência ou degradação desse discurso no tempo. Mas a estrutura da arquitetura, enquanto atividade simultaneamente representacional e produtiva, e sua autoridade para conceber modelos da realidade, permanecerá essencialmente a mesma. Em outras palavras, o princípio cosmográfico que há pouco identificamos em Brasília é também observável, em diversos graus, em todo evento arquitetônico. Se admitimos que o trabalho da arquitetura, enquanto a operação de tudo aquilo que envolve a “linguagem arquitetônica”, é uma atividade representacional que tem por objetivo organizar e fazer surgir “mundos”, então ela está inevitavelmente atada, em diferentes escalas, ao cosmograma. Falamos, portanto, das diversas “cosmologias” nomeadas pelo discurso da arquitetura em todas aquelas coisas que ela produz: aqueles textos e objetos referenciais que configuram, na interface que fazemos com eles, um modo de “estar-no-mundo”. Percebamos ou não, conceitos como diagrama ou projeto arquitetônico, tão familiares à disciplina, representam modos de inscrição cosmográfica: quer falemos de uma simples planta-tipo ou de um plano geral de urbanização, de qualquer forma estaremos nos referindo ao esforço de nomear ou rearranjar um conjunto histórico de objetos, práticas e epistemologias sob a ordem de um único modelo do real. • • • Há, ainda uma outra forma de pensarmos a arquitetura como uma espécie de cosmografia; uma que permaneceu relativamente isolada até o momento, mas que introduzirá o problema central das próximas páginas deste trabalho. Pois bem: dissemos, até agora, que o projeto de arquitetura é uma espécie de cosmograma porque funciona como um instrumento de ordenação do real. Por um lado, ele é imagem-de-mundo: inscreve, delimita, representa, materializa. Por outro lado, é dispositivo: antecipa, deseja, prescreve e produz. Dissemos, além disso, que essas duas esferas do cosmograma compõem um estatuto, um “conjunto possível”, que revela a ambiguidade entre o ato de representar e o de produzir o real. Mas essa descrição permanece incompleta se não consideramos um terceiro componente dessa análise, e que compreende uma parte essencial disso que até agora temos chamado de “mundo” ou “cosmos”: a história. O cosmograma, 89


enquanto representação de um conjunto possível, está sempre voltado para a história. Pois o que é o “possível” se não, também, um conhecimento histórico, herdado? Se dizemos que aqui há um mundo, e que esse mundo é povoado por tais criaturas e por tais objetos, que ele deve ser dividido sob essas ou aquelas categorias, e que as relações entre os elementos desse mundo são explicáveis por certas regras fundamentais, sejam elas herdadas, deduzidas ou intuídas, então estamos delineando uma imagem historicamente constituída desse mundo. Todo cosmograma é, para além de uma imagem-de-mundo, um atestado histórico: ele co-memora, codifica e reconfigura tudo aquilo que se sabe por conhecimento de causa, tudo aquilo o que já foi visto e experienciado e que compõe um repertório cosmológico. Isso significa que qualquer relação epistemológica com o mundo, e qualquer atitude que tomamos conforme esse conhecimento, implica necessariamente uma relação com a história. E isso equivale a dizer que a arquitetura, tal qual o cosmograma, e enquanto discurso sobre o real, é também um discurso sobre a história. Discurso histórico Para tentarmos, mais uma vez, extrair do conceito de cosmograma algo que nos possa ser útil para o exame da arquitetura, desta vez sob o ponto de vista da história, talvez seja interessante recorrer a uma terminologia mais familiar. Em outras palavras: muitos dos problemas colocados em nossa discussão sobre o cosmograma podem ser transpostos, para o vocabulário arquitetônico, pela a ideia de monumento. Isso porque, embora trate-se de conceitos tradicionalmente alocados em diferentes áreas de estudo, o cosmograma e o monumento partilham de um esquema fundamental similar. Em primeiro lugar, porque ambos são o que identificamos há pouco como suportes de discurso: são artefatos caracteristicamente comunicacionais, veículos de intenção e autoridade epistêmica. Segundo, porque esse discurso tem sempre por objeto de enunciação (ainda que indiretamente) a história. Isto é, cosmogramas e monumentos não são simplesmente suportes de discurso, como também suportes de memória. Quando, há pouco, nos referimos ao discurso histórico, foi para delinear como isso que chamamos de “monumento” reúne essas duas formas de suporte. Assim, tudo aquilo que designaremos por monumental implicará essa capacidade bivalente de rememorar e produzir: o monumento é um discurso sobre a história. Por isso não faremos, a princípio, nenhuma distinção entre o monumento e qualquer outra forma de registro simbólico da história, seja um cosmograma ou um texto historiográfico. Por mais que estejamos 90


29. O monumento “volível” (gewolt) descreve, em Riegl, uma obra planejada e executada, desde o início, segundo uma função memorial, e com o objetivo de “nunca deixar (...) que um momento faça parte do passado, permitindo que permaneça na consciência das gerações futuras, sempre presente e vivo”. Essa classe de monumentos, a mais antiga de todas, nos interessará especialmente por sua natureza fundamentalmente discursiva, e pela sua identificação com a atividade arquitetônica. Ver: Alois Riegl, O Culto Moderno dos Monumentos (São Paulo: Perspectiva, 2014), p. 63

acostumados a associar, de um lado, a produção de monumentos à tridimensionalidade do fato arquitetônico, e por outro, a manipulação de símbolos ao espaço bidimensional da escritura e do desenho, vimos que essa diferença se mostrara cada vez mais difícil de sustentar. Isso porque, independentemente da materialidade de seus suportes, ambos os processos podem ser resumidos a uma mesma operação, a saber, o registro de um enunciado histórico: a partir daí, o território comum entre a “linguagem textual” e a “linguagem arquitetônica” se mostrará fundamental para a compreensão do monumento. Mas desde já, é bom que fique claro que, da multitude de objetos que conhecemos por “monumentos”, estaremos nos referindo primeiramente àqueles que são concebidos de forma intencional, ou ao que Alois Riegl chamou de “monumentos volíveis”29: aquela classe de monumentos conscientes daquilo que enunciam sobre a história. Veremos mais adiante que a ideia de monumento pode se estender a muitos tipos de suportes de memória, muitas formas onde a história se faz experienciar, mas que nem sempre estão sujeitas ao que entendemos por “discurso”. Se queremos, entretanto, sustentar nesse momento a correlação entre o cosmograma e o monumento, devemos compreendê-los enquanto artefatos originados de uma intenção simbólica: não apenas depositários de memória, mas igualmente seus ativos mediadores. Como vimos anteriormente, a diferença entre o “cosmograma” e o que John Tresch chamou de “coisa cósmica” é que, enquanto o primeiro tem o cosmos em si como objeto, o segundo pode apenas revelá-lo sob interrogatório: de qualquer coisa cósmica podemos mapear, retroativamente, seu significado cosmológico, mas apenas o cosmograma é capaz de nomear, por si só, uma cosmologia; ele é o próprio instrumento dessa cartografia. O mesmo se sustenta, em relação à história, na distinção entre monumentos intencionais e não-intencionais. Diferentemente daquelas formas tornadas monumento por sua persistência no tempo, por contingência histórica ou por deliberação coletiva, o monumento intencional nasce, desde o princípio, consciente de si e do significado que faz da história: sob sua tutela, a história surge como um enunciado inteiriço e lapidado. Não há contradições ou suturas nesse tipo de monumento; pelo contrário, ele é íntegro como um manifesto ideológico. Aparece para nós de forma perfeitamente apropriada, contínuo ao tempo, correto no espaço. O monumento intencional é planejado: deve ser coeso, bem articulado e possuir a soberba daquele historiador que, em posse da autoridade dos fatos, nos revela a história como ele bem deseja. Se no começo deste ensaio, ao expormos o termo “linguagem arquitetônica” ao que ele próprio sugere, isto é, à linguagem, nos foi possível identificar a arquitetura como uma forma de discurso, então a ideia de monumento, no que interessa a essa mesma linguagem 91


arquitetônica, nos permitirá verificar a incidência desse potencial discursivo sobre a história. Ou então: os modos pelos quais o discurso monumental toma de assalto a história. O monumento de que falamos pode ser, diante disso, resumido ao seguinte: uma historiografia. Assim, o projetista envolvido na concepção de um monumento disporá de muitos instrumentos em comum com o historiador e com todos aqueles agentes que procuram, cada um a seu modo, entrar na história. Isto é, ele tentará de todos os modos fazer com que o produto de seu trabalho se acomode perfeitamente numa cronologia histórica; que apareça para o público como se feito à imagem de seu tempo; que em nome da “objetividade” oculte a divisa entre história escrita e história vivida, discurso e realidade. Manfredo Tafuri, de certa forma, sugeriu isso em 1968 ao descrever esse híbrido entre historiografia e arquitetura que chamou de escrita operativa, e que resumiu como o “esforço de atualizar a história, de a tornar dúctil instrumento para a ação”30. Em outras palavras, sob essa forma de escrita (ora historiografia, ora crítica, ora teoria, ou todas simultaneamente), que podemos também nomear como monumental, a história adquire valor instrumental: esta acepção, a crítica operativa representa o ponto de encontro N entre a história e a projetação. Assim, pode dizer-se que a crítica operativa projeta a história passada projetando-a em direção ao futuro: a sua verificabilidade não reside em abstrações de princípio, mas avalia-se, de caso para caso, com os resultados que obtém. O seu horizonte teórico é a tradição pragmatista e instrumentalista. Pode-se ainda acrescentar que esse tipo de crítica, antecipando as vias da ação, força a história: força a história passada, dado que, ao investi-la de uma forte carga ideológica, não está disposta a aceitar os fracassos e as dispersões de que a história está impregnada; força o futuro, dado que não se contenta com registrar os acontecimentos, mas leva a soluções e problemas ainda por abordar (pelo menos, explicitamente). Para com a história passada, a sua atitude será, portanto, de contestação; para com o futuro, concretizar-se-á em profecias31

Tafuri sustenta que, a partir do Renascimento, uma nova historiografia humanista se desenvolvia em torno do que, pela primeira vez, seria identificável como uma atitude programática. No contexto das artes, e sobretudo da arquitetura, isso significava que o conhecimento histórico se disponibilizava agora à condição de meio para certos fins, adquirindo valor em função daquilo que ela permitiria produzir: em outras palavras, a história se deslocava para o contexto dos meios de produção. Com isso, o que hoje conhecemos como historiografia, crítica ou teoria da arquitetura passavam, elas mesmas, a ter algo de projeto, de construção arquitetônica. No centro desse movimento, ao mesmo tempo literário e produtivo, estava em formação uma nova concepção da história. Antecipando, 92

30. Manfredo Tafuri, “Crítica Operativa”, in: Teorias e História da Arquitetura (Lisboa: Presença, 1979), p. 180

31. Ibid., p. 168. Datando a “historiografia operativa”, originalmente, segundo alguns teóricos renascentistas, Tafuri observa que a tradição se mantém viva e observável na cultura arquitetônica mesmo em suas experiências mais contemporâneas: ele aponta, por exemplo, para o caso dos “historiadores militantes” do movimento moderno, como Giedion e Zevi, cujos livros mais importantes eram “simultaneamente, contributos historiográficos e autênticos projetos arquitetônicos” (p. 182). Ele comenta, também, sobre a influência da historiografia operativa sobre a prática profissional dos arquitetos do racionalismo italiano, como Rossi, Canella e Aymonino (que se dedicavam igualmente à escrita), que buscavam transfigurar o estudo histórico e tipológico das cidades em “hipóteses de projetação” (p. 194)


32. Jacques Le Goff, História e Memória (Campinas: Unicamp, 1990), p. 20

33. Barthes, R. (2004), p. 169. Grifo meu

34. Le Goff, J. (1990), p. 23

talvez, as tendências do pensamento evolucionista, essa concepção “operativa” concebia a história não mais sob a rigidez de um passado a priori, mas sob uma cronologia de causalidades, sob a ideia de um vir-a-ser: aqui, a história só tem valor na medida em que se projeta à frente, iluminando o presente e especulando sobre o futuro. O que se viria a entender por história não se limitaria mais a um passado mítico atemporal, mas envolveria sobretudo a perspectiva de um arco cronológico tripartite: o passado rememorado, o presente experienciado e, por extensão, o pressuposto de um futuro por vir. É essa “materialização” da história, seu desdobramento no espaço presente e disponível da ação, que permite que ela se faça objeto do artifício, da projeção e, portanto, disso que Tafuri chamou de escrita operativa. Podemos dizer que esse modo de escrita, fundamentalmente discursiva, envolve duas operações. Primeiro, ela se permite tomar a história como objeto, subordinando-a aos interesses e ao programa de ação de seu autor. Nesse momento, a história se maleabiliza, transforma-se em discurso: ela é posta então em uso como um utensílio, trazida ao presente e projetada no futuro – adquire uma “utilidade”. Nos termos da teoria da história, Jacques Le Goff observa, esse modo de apropriação da história foi chamado de “função social do passado”32. Em segundo lugar, essa forma de escrita deve como que se ausentar de seu próprio texto, pois a história deverá ser apresentada não como produto do artifício do historiador, mas como a manifestação inconteste da verdade: o texto histórico é então incorporado à paisagem natural, originária, dos fatos. Esse último processo funciona, complementarmente, como uma dissimulação do primeiro: pois o autor que recorre à autoridade do fato histórico para subsidiar um programa ideológico tenta com isso desautorizar a si mesmo, ou seja, ocultar da historiografia o seu autor e a sua natureza mediada, transferindo-a para o domínio da “objetividade”. Barthes, esboçando uma semiologia do discurso histórico, define essa reivindicação de objetividade precisamente nesses termos: a carência dos signos do enunciante. “Trata-se do caso em que o enunciador entende ‘ausentar-se’ do seu discurso e em que há, consequentemente, carência sistemática de qualquer signo que remeta ao emissor da mensagem histórica: a história parece contar-se sozinha”33. Essa operação de “distorção” historiográfica, que não pode de todo ser associada a um único movimento ou ideologia, percorre toda a história da ciência histórica e é considerada por Le Goff como um dos problemas seminais dessa área do conhecimento “essencialmente equívoca”. Pois ela nos sugere que, desde sempre, por trás de toda escrita sobre a história há um contexto histórico da escrita do qual o escritor em si é produto, e que, se queremos compreender o fazer histórico, devemos observar “as incidências do meio social sobre as ideias e métodos do historiador”34. Ou seja, a historiografia será, 93


independente do momento, um produto da relação entre a história e o sujeito/contexto histórico: ela é uma situação comunicacional que deve ser devidamente explicitada diante do risco de fazer da história um fato “dado”, mais do que construído. Mas não é do nosso interesse nos estender detalhadamente sobre os problemas internos à historiografia, a não ser no que concerne à discussão sobre a arquitetura enquanto discurso histórico, ou seja, enquanto produtora de monumentos. Antes, no entanto, de esboçarmos de forma mais direta o sentido disso que chamamos de “monumento”, convém nos determos em mais alguns aspectos da escrita operativa; pois, ao examiná-la, estaremos também explorando as relações entre história, linguagem, técnica e poder que nos introduzirão ao problema do monumento, e que fazem da arquitetura uma atividade essencialmente monumental. Como vimos anteriormente, a escrita operativa descrita por Tafuri surge, em todas as áreas do conhecimento, de uma noção progressivamente instrumentalista da história enquanto objeto de planejamento. Em Arquitetura, a origem e a disseminação dessa atitude possuem um contexto fundamental, em relação ao qual podemos traçar duas observações. Em primeiro lugar, essa concepção positiva da história surge concomitantemente à constituição da Arquitetura – para além de um conjunto de “saberes práticos” ligados à edificação – enquanto disciplina, ou seja, enquanto atividade informada por um estatuto epistêmico e prescritivo. Nesse sentido, o cenário do classicismo representa uma tomada de consciência da Arquitetura em relação a si mesma, de seu passado histórico e dos instrumentos para validá-lo. O período “clássico”, relativo à antiguidade greco-romana, que informaria conscientemente toda a produção arquitetônica a partir do Renascimento, coincidia com uma transferência institucional das competências sobre o estudo e o registro da história. Onde antes essa história, fosse transmitida oralmente ou em certos textos sagrados, era inteiramente referenciada em um passado mitológico e inviolável de custódia eclesiástica, agora ela transformava-se em objeto de estudo, exposta à verificação e contestação, e inscrita sobretudo nos espaços institucionais das “renascidas” academias do século XVII. Um passado elusivo, sustentado durante a Idade Média à imagem da arquitetura e das cidades pontificais, era então substituído, progressivamente, pelo passado clássico da arquitetura greco-romana: um passado observável, periciável e, sobretudo, reconstituível. Em resumo, há uma correlação direta entre a institucionalização da Arquitetura tal como a compreendemos até hoje – como disciplina autônoma – e o surgimento, na paisagem intelectual renascentista, de uma atitude crítica que parte de novos repertórios e modos de assimilação do passado histórico. Em segundo lugar, deve-se observar um aspecto fundamental do surgimento dessa “operatividade” na historiografia arquitetônica 94

Os cinco tipos de coluna do cânone da arquitetura classicista (Toscana, Dórica, Jônica, Coríntia e Compósita), conforme ilustrados nos Cinco Livros de Arquitetura (publ. 1611), de Sebastiano Serlio



que passa ao largo das observações de Tafuri. Embora pretendesse esboçar uma cronologia da disseminação dessa operatividade na teoria das artes (cuja origem ele atribui ao gênero das biografias de artistas, escritas sobretudo por Vasari no séc. XVI e por Bellori no VII), com os primeiros indícios de uma historiografia prescritiva e ideológica, Tafuri não oferece explicações quanto às causas produtivas desse fenômeno teórico. Pelo contrário, ao desconsiderá-las, ele parece tomar como prosaico um fato de importância capital para esse desenvolvimento. Nos referimos aqui ao surgimento, quase concomitante ao dessa historiografia operativa, dos próprios tipos de suporte sobre o qual ela repousaria: o texto e a imagem impressos. Em outras palavras, à invenção, em 1440, da imprensa móvel de Gutenberg, e a posterior consolidação do livro impresso como produto reprodutível, nos permitem dizer que a atitude “operativa” e instrumental pela qual a Arquitetura se consolida como disciplina histórica está atrelada à repentina disponibilização da história por meio da mídia impressa. Embora fosse fundamentalmente revivalista e não estivesse atrelada a nenhuma inovação “construtiva” em termos de edificação, a emergência da arquitetura classicista era sobretudo um fato sociotécnico. Isso porque não teria sido possível à arquitetura se institucionalizar em torno dos signos da antiguidade clássica, ou de uma concepção generativa da história, não fosse o advento da mídia impressa. Como observou Mario Carpo, a doutrina do classicismo arquitetônico, baseada na imitação de modelos antigos e epitomizada nas “ordens clássicas”, não era apenas análoga ao esquema produtivo da imprensa móvel – copiar e reproduzir – mas era sobretudo um produto direto dessa revolução tecnológica. Para Carpo, a possibilidade de reprodução e difusão de textos e imagens impressos, agora capazes de re-presentar um passado até então pouco acessível e estudado, seria absolutamente central para o êxito do classicismo arquitetônico: projeto arquitetônico renascentista é baseado na imitação, com O graus variáveis de licença criativa, de um certo número de modelos antigos. Para imitar a forma visível de um modelo arquitetônico, é preciso tê-la visto. E para ver um edifício, desde a antiguidade até a difusão da xilogravura, havia apenas um jeito: era preciso ver o edifício em pessoa. Edifícios não podiam viajar, então as pessoas o faziam. Uma nova disponibilidade de imagens impressas confiáveis, portáteis e baratas da arquitetura facilitaram imensamente a tarefa dos arquitetos da Renascença35

Os edifícios e as ruínas greco-romanas sempre estiveram ali, aos olhos de quem quer que os rodeasse; essas formas tampouco foram redescobertas no Renascimento, como numa escavação arqueológica. Na Itália, por exemplo, e diferentemente do que o próprio termo “renascimento” sugere, o amplo convívio social com os edifícios da antiguidade nunca permitiu que a arquitetura “desaprendesse” o 96

35. Mario Carpo, Architecture in the Age of Printing (Cambridge: MIT Press, 2001), p. 6. T.M.


36. Embora De re aedificatoria (circa 1450), de Alberti, o primeiro tratado de arquitetura escrito na Renascença, tivesse sido concebido originalmente para o formato do manuscrito, sem nenhuma ilustração, e seu autor estivesse apenas parcialmente ciente das implicações da mídia impressa, Carpo aponta que a obra antecipava em muitos aspectos o teor sistemático e operativo das gerações subsequentes de tratados classicistas. “(...) De re aedificatoria não prefigurava uma antologia ilustrada de antiguidades arquitetônicas; essa seria uma invenção moderna que só se concretizaria duas gerações após Alberti e que seria completamente alheia ao seu projeto. Entretanto, Alberti de fato abriu o caminho para a padronização dos sistemas das ordens do século XVI. Permitindo o uso repetido, embora limitado, de componentes arquitetônicos descontextualizados, Alberti separou as ordens de qualquer associação com tipos particulares de edifícios – um passo que Vitrúvio nunca deu”. Carpo, M. (2001), p. 120. T.M.

clássico. Não teria sido possível, no entanto, falar em uma historiografia ou em qualquer outra disciplinação dessas formas (no sentido da elaboração de um sistema compartilhado, prescritivo e replicável de conhecimento), antes que elas pudessem se deslocar para o espaço do registro impresso; e que pudessem, enquanto fatos históricos, disseminar uma ideologia operativa do clássico. De forma semelhante, os manuscritos dos De Architetura Libre Decem, de Vitrúvio, que foram preservados e copiados durante toda a Idade Média no interior dos scriptoria eclesiásticos, não eram de forma alguma desconhecidos pelos intelectuais e construtores das catedrais romanescas ou góticas. Entretanto, seria somente com sua ampla disponibilização sob os suportes da mídia impressa, e com sua disseminação em toda a Europa, que os ensinamentos de Vitrúvio poderiam fundamentar um repertório público e uma gramática operável para o que viria a ser a disciplina arquitetônica. A antiguidade não era, portanto, “redescoberta”; era remidiatizada para um espaço abstrato, reprodutível, e posta a serviço de uma reorganização social. Com o livro impresso, suas formas concretas se tornariam, de repente e em toda a sua potência reprodutiva, símbolos: fatos compartilhados da memória social, instrumentos públicos de produção de significado. Emancipados da condição singular de artefatos únicos, ou da rigidez geográfica de edifícios, objetos como os manuscritos vitruvianos ou o Partenon eram transpostos, graças à reprodutibilidade técnica, para o campo público e universalmente apropriável da linguagem. Da mesma forma com que coisas concretas se tornam palavras para que sua memória nos permita agir sobre a realidade, os elementos da antiguidade clássica eram nomeados também com um objetivo produtivo, uma função social e um programa ideológico. Eis o gérmen da operatividade que caracterizaria a escrita arquitetônica durante os próximos cinco séculos. O livro impresso, e toda a literatura concebida e difundida por ele, tornariam-se, tanto quanto a edificação em si, parte fundamental da atividade arquitetônica. Era sobre esse suporte que se institucionalizariam disciplinas como a história, a crítica e a teoria da arquitetura, e sobre o qual seria possível que a arquitetura renascentista desenvolvesse seus primeiros códigos, estatutos e tratados36:

A partir do início do século XVI, tratados arquitetônicos passaram

a difundir uma nova teoria arquitetônica, conscientemente desenvolvida para os novos meios de comunicação. A teoria renascentista das cinco ordens da Arquitetura (Toscana, Dórica, Jônica, Coríntia e Compósita) é a pedra angular desse processo. O sistema das cinco ordens da Renascença, particularmente conforme definido no Livro Quarto (1537), de Sebastiano Serlio, era um catálogo de componentes gráficos padronizados e repetíveis – o que [Walter] Benjamin teria chamado de ‘projetado para a reprodutibilidade’. Cada elemento nesse sistema fora projetado para ser massiva97


mente reproduzido e, em seguida, montado e remontado com outros elementos37

Havia, portanto, uma estreita correlação entre a reprodutibilidade técnica do conhecimento possibilitada pela mídia impressa e a emergência de uma visão “operativa” ou instrumental da história, observável na doutrina das ordens clássicas e na reabilitação das teorias vitruvianas: um conhecimento histórico que se tornava objeto de planejamento e reprodução, ou de um “uso social da história”. A emergência da “escrita operativa” era, portanto, sintoma de um amplo fenômeno de institucionalização das faculdades humanas em torno de uma nova consciência histórica possibilitada pelo advento de novos suportes técnicos. Podemos dizer, ademais, que em arquitetura ela sinalizava uma importante reorganização de sua estrutura produtiva; pois dizer que a arquitetura se consolidava – para além de uma atividade estritamente ligada às linguagens e técnicas da edificação – enquanto disciplina, significa reconhecer que ela se tornava, também, uma atividade indispensavelmente literária; um fazer profundamente irrigado e operado pela escrita, pela imagem gráfica e por todo um aparato de significação anteriormente “alheio” à arquitetura. Se até então a “linguagem arquitetônica”, ou os modos pelos quais a arquitetura adquiria valor comunicacional, restringiam-se sobretudo ao simbolismo não-verbal e à experiência concreta do edifício, com o advento da mídia impressa a arquitetura não apenas passaria a dispor de outros meios de produção de significado, como reconfiguraria a si mesma como uma atividade amplamente discursiva e documental. A escrita, agora uma operação de amplo alcance e difusão, tornava-se parte fundamental do trabalho arquitetônico, e todo um corpo de documentação impressa passava a figurar, junto com o edifício, o território produtivo da arquitetura. Não é por acaso que, a partir do século XVI, a consolidação da arquitetura como uma profissão autônoma e liberal, tal como a reconhecemos hoje, e o crescimento do contingente de profissionais autoidentificados “arquitetos”, coincidia precisamente com a multiplicação do volume literário impresso sobre arquitetura e outras artes: os inventários arqueológicos, as reproduções dos “redescobertos” livros vitruvianos, os tratados de arquitetura, as biografias dos grandes mestres e os códigos de edificação, etc. Enfim, todo um corpo literário que passava a circular livremente pela Europa, e no qual a arquitetura poderia enfim ser nomeada, sistematizada, “arrancada” do edifício e de todo um simbolismo hermético cujo domínio era, até então, confiado a alguns poucos polímatas e clérigos. Tratados renascentistas como 98

37. Carpo, M. (2001), p. 6. T.M.


o de Serlio cumpririam precisamente essa tarefa de descentralizar os sistemas simbólicos e discursivos da arquitetura: 38. Ibid., p. 7

omo Serlio afirmou repetidamente, esse sistema [das ordens C clássicas] não foi concebido para arquitetos talentosos e não pretendia dar origem a obras-primas arquitetônicas. O projeto de Serlio não era apenas pedagógico, mas social: seu método buscava, sobretudo, criar uma classe mediana de profissionais da construção. Esse programa de educação popular só foi possível graças ao livro impresso38

Mas essa “democratização” do conhecimento e da prática da arquitetura, possibilitada pela difusão das tecnologias de impressão, não significava apenas que a disciplina era agora informada por documentos amplamente acessíveis. Significava, também, que qualquer profissional com acesso à literatura arquitetônica poderia ser igualmente capaz de se tornar, ele próprio, um agente literário e discursivo da arquitetura; que teria em mãos não apenas um vasto repertório de modelos do passado e textos que lhe diriam do que se trata o fazer arquitetônico, mas também os instrumentos para que ele mesmo pudesse falar sobre arquitetura. Em outras palavras, a era da literatura arquitetônica impressa sinalizava, para além da emergência de uma ampla categoria especializada de “profissionais da construção”, a consolidação de uma classe de profissionais do discurso. Foi nesse sentido que, alguns séculos depois, Walter Benjamin descreveria a especialização moderna do trabalho como uma transformação de leitores em escritores: 39. Benjamin, W. (2013), p. 76

om a expansão crescente da imprensa, que disponibilizava C à comunidade leitora sempre renovados periódicos políticos, religiosos, científicos, empregatícios, locais, uma porção cada vez maior da comunidade leitora (...) ingressava na comunidade escritora. (...) O leitor está a todo tempo pronto para tornar-se um escritor. Enquanto especialista (o que, bem ou mal, ele precisou se tornar, em um processo de trabalho altamente especializado – mesmo enquanto profissional em um processo mínimo), ele ganha acesso à autoria. O próprio trabalho ganha a palavra – sua apresentação em palavras compõe uma parte da habilidade exigida para a sua execução39

O que é um monumento? Já nos detivemos anteriormente nesse argumento, mas não custa repeti-lo aqui, agora que começamos a trilhar o problema por outros caminhos: é impossível observar a história da cultura arquitetônica, em todas os seus deslocamentos estilísticos e ideológicos, sem constatar a permanência desse componente invariável que é o discurso de arquitetura. De Alberti a Corbusier, e mesmo no espaço ideologica99


mente fragmentado que constitui o panorama da arquitetura hoje, o ato de falar sobre arquitetura sempre foi tão fundamental à disciplina quanto a edificação em si. De fato, podemos pensar no discurso arquitetônico como uma etapa produtiva não muito diferente daquelas como a projetação ou o assentamento de blocos. Pois o que fazia, por exemplo, o discurso arquitetônico renascentista vindo de figuras como Palladio, Alberti e Serlio (e repercutido por sucessivas gerações de arquitetos) se não fazer surgir por toda a Europa uma população inteira de novos edifícios, efetivamente transformando a paisagem física e psíquica de suas cidades? Mesmo hoje – ou talvez, especialmente hoje –, dificilmente veremos um empreendimento que aspire ao título de “arquitetura” sem que haja algum tipo de material falado anexado à obra. Reelaboremos aquele aforismo, sobre não haver “arquitetura sem construção”, à luz do que disse, com uma franqueza rara entre os arquitetos, Oscar Niemeyer: não há arquitetura sem explicação. Não há arquitetura sem a fala sobre a arquitetura. u sempre digo para os arquitetos, e digo para vocês, que estão se E iniciando: o importante é, justamente, a explicação. Por exemplo, quando eu faço um projeto, (...) quando eu chego a uma solução, eu começo a explicar. Porque se, numa explicação, eu não encontro argumentos para convencer as pessoas, eu volto para a prancheta. (...) E as pessoas que aprovam meus projetos, no geral, mesmo as do exterior, é pelo texto [sic]. Ninguém entende arquitetura, isso é fantasia40

Desde o Renascimento, o processo de formar-se arquiteto passa, indispensavelmente, por tornar-se também um orador da arquitetura. Trata-se de uma tradição tão firmemente ancorada na essência da disciplina, tão corriqueira nos compromissos cotidianos de estudantes e arquitetos, que mal precisa ser nomeada. Por exemplo: hoje em dia, nos exercícios acadêmicos de projetação, parece haver um acordo tácito, entre todas as partes envolvidas, de que um projeto só estará concluído quando satisfatoriamente defendido e explicado publicamente pelo aluno-autor. A esse aluno será ensinado, mesmo que muito tangencialmente, que a prática profissional é na verdade uma espécie de interlocução com a sociedade. Não à toa, a ritualística na qual consistem as chamadas “entregas de projeto” nas academias emula precisamente essa relação: assemelham-se ora a comícios políticos, ora a recitais de poesia, ora a demonstrações científicas, quando não a audiências judiciais nas quais o autor deverá se defender, perante o público, pelas barbaridades que acabou de cometer. Simulações, portanto, que o introduzirão a um dos atributos mais indispensáveis da arquitetura – a fala. Em outras palavras, não bastará para o receptor da arquitetura – o “público” – a legibilidade do objeto em 100

40. Depoimento de Oscar Niemeyer em entrevista contida no documentário “Niemeyer: o traço e o tempo” (2006), de Roberto Stefanelli, para a TV Câmara.


Still de “Niemeyer: o traço e o tempo” (2006), de Roberto Stefanelli

si, a minúcia do desenho ou a integridade aparente da forma arquitetônica; para que um edifício possa emergir na vida pública, de seu arquiteto será exigido igualmente que ele domine a fala sobre a arquitetura: essa espécie de “metalinguagem arquitetônica”, de elaboração conceitual que envolve o processo de incorporar à obra de arquitetura (uma espécie de “linguagem” em si mesma) uma segunda ordem de significado, situando-a num contexto discursivo mais amplo, em um destino social desejado. Assim, ele deverá responder, entre outras coisas: a que será útil, ou por que se faz necessário o objeto dessa arquitetura? Como se justifica a sua aparência estética? No que consistem os fundamentos históricos, críticos e teóricos dessas escolhas projetuais? (O maior horror que pode recair sobre um estudante de arquitetura é o juízo de que suas escolhas foram arbitrárias). Ou então, o que esse edifício representa ou simboliza? Quais são suas citações intertextuais, e em que universo narrativo ele busca se acomodar? E a pergunta-chave na qual recaem inevitavelmente todas as outras: como ele se insere em seu próprio tempo?

101


A ideia do discurso arquitetônico como uma metalinguagem (a fala da arquitetura incidindo sobre a linguagem arquitetônica, ou sobre a obra de arquitetura em si) nos leva à seguinte hipótese: a arquitetura é uma situação, é o ato de situar: não basta a ela estar diante de nós, pois para que isso aconteça ela precisa igualmente anunciar a si mesma. Além disso, a arquitetura como situação não implica apenas que seus objetos devam existir fisicamente no espaço, mas também que devam estar inscritos no tempo; devem justificar-se num esquema mais amplo, num “lugar histórico” ao qual eles buscam pertencer. E o ato de registrar um objeto ou um evento na história é sempre uma espécie de historiografia. Há uma íntima relação entre o fazer e o dizer no interior da disciplina arquitetônica – podemos dizer que ambas são operações de situação, de “edificação” –, diante da qual podemos nos perguntar: poderia uma obra de arquitetura qualquer manter-se em pé, não fosse suficientemente sólida a sua fundação retórica? Ou então, poderia sequer existir caso não parecesse surgir do “espírito de seu tempo”, esse conjunto de discursos que inscrevem um objeto na história? Em relação a essa ambiguidade congênita à disciplina, tão bem definida pela ideia de uma “operatividade” na historiografia da arquitetura, Tafuri observou: simples fato de cerca de 90% dos escritos de arquitetura serem O produzidos por arquitetos que exercem a profissão, é já um sintoma muito importante (...). Sobretudo porque, se se confrontar a produção literária dos arquitetos e de outras categorias de manipuladores ou criadores de formas – dos pintores aos realizadores cinematográficos –, será fácil notar uma diferença. Enquanto estes últimos, ao escreverem, têm bem presente a necessidade de dar uma forma discursiva a uma poética pessoal, ou de expor problemas relativos a uma ótica fortemente deformada, os primeiros tendem, na maior parte dos casos, a dar uma forma objetiva e uma dignidade científica à sua especulação41

Podemos dizer, sem receio algum, que o principal esforço da arquitetura humanista ao longo dos últimos cinco séculos (pois não houve, na disciplina, obsessão mais duradoura) tem sido o de situar seus objetos na história. E aqui, é bom relembrarmos, por “história” nos referimos a um espaço conceitual que não se resume apenas ao “passado”: quer falemos do resgate neoclássico a uma antiga “era de ouro” originária da humanidade, conforme propagado por um Laugier, ou da teleologia da “tradição do novo” presente nos enunciados arquitetônicos dos modernistas, devemos ter em mente que ambas essas configurações ideológicas são formas de situar a arquitetura no tempo; e que são tributárias do que podemos chamar de visão instrumental ou “evolutiva” da história42. Não há arquitetura, portanto, sem uma relação com o tempo, e isso será verdade tanto para as abordagens “historicistas” quanto para as “futuristas”. Dessa relação posicional com o tempo, e 102

41. Tafuri, M. (1979), p. 188

42. Alois Riegl, em Culto Moderno dos Monumentos (1903), escreveu: “Chamamos de histórico, tudo o que foi e não é mais nos dias de hoje. De acordo com os conceitos mais modernos, acrescentamos a isso a ideia mais ampla de que aquilo que foi não poderá voltar a ser nunca mais e tudo o que foi forma o elo insubstituível e irremovível de uma corrente de evolução ou, em outras palavras, tudo o que tem uma sequência, supõe um antecedente e não poderia


ter acontecido da forma como aconteceu se não tivesse sido antecedido por aquele elo anterior. O ponto-chave de todo conceito histórico moderno é formado pela noção de evolução”. Riegl, A. (2014), p. 32

desse discurso histórico autorreferente com o qual a arquitetura insiste em conceber seus objetos, diremos que compõem, de acordo com uma expressão empregada por Mark Wigley, a função monumentalizante da arquitetura. Diante dela, o monumento aparecerá para nós como o principal produto da arquitetura, pois a ideia moderna de monumento sintetiza tudo o que a arquitetura tem sido desde o renascimento: um suporte de ideologia e discurso histórico. Em suma, uma historiografia:

43. Wigley, M. (2000), p. 37. T.M. Grifo meu

ma noção do tempo é cautelosamente construída por todo U arquiteto. Cada um deles é um especialista nas nuances dessa construção. Eles contam histórias sobre o tempo que têm por efeito a naturalização de seus projetos. O edifício deve aparentar ajustar-se naturalmente a um determinado tempo. (...) Os arquitetos falam sobre o tempo da mesma forma com que falam sobre o lugar. O que é velado é que o arquiteto na verdade constrói a noção de tempo. Ele [o tempo] não é anterior ao projeto. Edifícios colaboram na produção da noção do tempo em relação ao qual eles parecem meramente responder43

Essa aptidão discursiva, que faz dos arquitetos mais do que meros construtores de formas e lhes concede o domínio semântico sobre o locus histórico da arquitetura, nos indica que a “efetividade” da arquitetura (essa métrica comumente aplicada por historiadores e críticos para avaliar a incidência de uma ideologia arquitetônica sobre um meio social) não descreve apenas a extensibilidade da adoção de um certo tipo de arquitetura ou, como no caso do modernismo, de sua potência de reorganização das esferas produtivas. Uma ideologia “eficaz” implica igualmente uma história (re)escrita, um repertório simbólico compartilhado: a literatura, a legislação, o mito, o monumento; ou seja, o controle de todo um aparelho subjetivo de memória e desejo social. É preciso que a arquitetura tenha um lugar nesse espaço narrativo da história, que emerja de um discurso sobre a “vontade do tempo”: de forma sucinta, que produza monumentos. • • • Tomemos alguma distância da arquitetura, por ora, para que possamos interrogar o monumento de forma mais geral. O que é um monumento? O monumento ao qual nos referimos pode ser descrito pela legitimação de um discurso histórico. Reparemos que, de acordo com essa nossa concepção, o monumento possui dois aspectos fundamentais. O primeiro diz respeito à linguagem, donde ele implica um discurso (o objeto desse discurso, a história, não compreenderá neste momento um atributo independente, uma vez que a história e a memória coletiva se desenvolvem essencialmente pelo signo – são coisas faladas). O segundo aspecto do monumento diz respeito à legitimação desse 103


discurso histórico; alude, portanto, a uma relação de poder que opera junto à linguagem da descrição histórica. O monumento ocorre na “legitimação de um discurso histórico”. Mas o que significa essa legitimação? Significa, no limite, o poder e o direito de fazer durar uma memória, uma pessoa, um poder ou um objeto no tempo. Àquilo que é legítimo, permitimos que sobreviva, que permaneça e que comande. Inversamente, aquilo que é ilegítimo ou falso relegamos ao desaparecimento, ao esquecimento. Diante disso, o que conhecemos por “história” nada mais é do que uma coleção legitimada, oficializada, de enunciados sobre a memória coletiva; enunciados aos quais se permitiu, por quaisquer meios que sejam, preservar. Preservação: palavra-chave que emerge obrigatoriamente toda vez em que o monumento é mencionado: ela aponta precisamente para a imperatividade do monumento como um artefato legítimo – a preservação é uma demanda, uma convocação ao ato de preservar. O monumento não convoca apenas a memória, mas igualmente a ação: é isso que implica o poder da legitimidade. Há muitas formas de conceder legitimidade à memória social. Talvez a mais antiga seja aquela que associamos ao sentido tradicional do conceito de “monumento”. Essa forma de legitimidade representa a permanência e a manutenção de um objeto pelo simples monopólio da força. Com efeito, os primeiros monumentos eram sempre encomendas de figuras políticas, aristocráticas ou religiosas, ou seja, instituições soberanas que detinham os meios e o poder de escolher e edificar, por direito inato, o que deveria ou não ser digno de integrar a memória social – digno, portanto, de co-memoração. Nesse caso, a legitimidade do monumento é concedida no próprio instante de sua concepção; é uma legitimidade congênita. Aqui, o discurso (como poder de linguagem) e a legitimação (como poder de validação) acontecem num mesmo ato. Além disso, essa legitimidade provém do fato de que, no monumento tradicional, o discurso histórico se faz explícito, em sua intenção e conteúdo, e aponta para um emissor, ou um “autor” facilmente localizável. Quando Trajano mandou construir em Roma uma enorme coluna como forma de preservar a memória de sua vitória nas Guerras Dácias, era evidente para todos que, por meio daquele monumento, era o próprio Trajano quem falava à cidade – e que, além disso, enquanto durasse em Roma a ordem social do Império, a coluna permaneceria intacta. No entanto, como é o caso de muitos ritos e tradições, a legitimidade dessa memória monumental é essencialmente frágil, pois só se sustenta enquanto se fizerem presentes e autoritárias as suas instituições de origem. Podemos relacionar essa “memória monumental”, uma memória fabricada e mantida pela simples autoridade do soberano, com a legitimidade débil do príncipe maquiavélico, conforme descrita por Foucault, em A Governamentalidade: 104


44. Michel Foucault, “A Governamentalidade”. In: Microfísica do Poder (Rio de Janeiro: Graal, 1998), p. 279

( ...) o príncipe está em relação de singularidade, de exterioridade, de transcendência em relação ao seu principado; recebe seu principado por herança, por aquisição, por conquista, mas não faz parte dele, lhe é exterior; os laços que o unem ao principado são de violência, de tradição, (...) laços puramente sintéticos, sem ligação fundamental, essencial, natural e jurídica, entre o príncipe e seu principado. (...) Na medida em que é uma relação de exterioridade, ela é frágil e estará sempre ameaçada, exteriormente pelos inimigos do príncipe que querem conquistar ou reconquistar seu principado e internamente, pois não há razão a priori, imediata, para que os súditos aceitem o governo do príncipe”44

Nesse caso, o domínio da memória social pode ser entendido, em termos topológicos, como uma estrutura concêntrica. Toda a autoridade – e, portanto, a sobrevivência – da memória coletiva está atrelada às condições de governabilidade de uma figura central: no momento em que o soberano perde o controle sobre seu território e súditos, perdem-se também seus monumentos e, com estes, a “história” de uma ordem social. Sobre a constante impermanência do monumento tradicional, ou “monumento volível”, Alois Riegl apontou: 45. Riegl, A. (2014), p. 39

( ...) os monumentos volíveis desapareciam irremediavelmente destruídos ou arruinados, tão logo desapareciam aqueles aos quais eles eram destinados e que tinham algum interesse na sua preservação. Em toda a Antiguidade e na Idade Média só se conheceram os monumentos volíveis45

O monumento, nessa primeira acepção, não desapareceu – ele continua sendo um instrumento eficaz de controle social, ainda que hoje assuma muitas formas. Mas embora nunca tenha deixado de existir, o modo de legitimação que associamos ao monumento tradicional perdeu espaço, ao longo do tempo, para novos mecanismos de registro e validação da memória social. Concomitantemente à ruína dos antigos sistemas autocráticos (baseados no modelo de governo que Foucault chamou de “soberania”), também o domínio sobre a inscrição da memória se reorganizou. Se o Iluminismo representou um deslocamento da teoria governamental em direção à autoridade da razão e em detrimento da soberania da tradição, também esse deslocamento se fez presente nas estruturas de memorização social. Isto é: porque a história é sobretudo uma ferramenta de poder e governabilidade, o nascimento do Estado era necessariamente acompanhado pela emergência de uma nova forma de produção da memória coletiva. Onde antes a legitimidade do soberano (ou seu direito de manter-se no poder) era reforçada no campo da memória coletiva pelo monumento tradicional, e baseado unicamente em “laços de violência e tradição”, agora o “governo da razão” que caracteriza o Estado moderno inventaria a ciência histórica como seu próprio instrumento de operação da memória coletiva. Esse deslocamento apontava para o que Riegl descreveria como o triunfo, 105



a partir do Renascimento, do “valor histórico” (o que aqui equivale a dizer “valor científico”) em detrimento do “valor comemorativo” vigente nos monumentos da Antiguidade. Mais tarde, Le Goff discorreria sobre o mesmo problema, mas nos termos de uma substituição do monumento pelo documento como o novo paradigma do conhecimento e do discurso histórico: 46. Le Goff, J. (1990), pp. 466-467

interesse da memória coletiva e da história já não se cristaliza O exclusivamente sobre os grandes homens, os acontecimentos, a história que avança depressa, a história política, diplomática, militar. Interessa-se por todos os homens, suscita uma nova hierarquia mais ou menos implícita dos documentos; por exemplo, coloca em primeiro plano, para a história moderna, o registro paroquial que conserva para a memória todos os homens. (...) O registro paroquial, em que são assinalados, por paróquia, os nascimentos, os matrimônios e as mortes, marca a entrada na história das ‘massas dormentes’ e inaugura a era da documentação em massa46

A memória coletiva, a partir de então, não estaria mais necessariamente ligada aos valores de comemoração e de tradição, mas se estenderia a todo um conjunto documental anteriormente desprovido de legitimidade. Mas a era da “documentação em massa” descrita por Le Goff não se fazia perceber apenas pela emergência da ciência histórica, essa nova instituição que usurpava do soberano a autoridade de legitimar a memória coletiva. Pois o documento se mostraria fundamental também como instrumento de governabilidade para os sistemas que se sucederiam às antigas soberanias. O nascimento da estatística, que para Foucault significa ciência de Estado, comprova isso. Pois a estatística surgia exatamente como um aparelho de memorização ligada a um contingente muito mais amplo de fatos dignos de serem legitimados (como registros paroquiais, arquivos cartográficos, levantamentos censitários, documentos judiciais, etc). Uma ferramenta de memorização muito mais eficiente em termos de governabilidade, porque serviria a objetivos mais amplos, mais “autênticos” do que aqueles representados pelos monumentos e leis do soberano, e que existiam para a simples manutenção de um poder privado. Em outras palavras, a ciência de Estado e a ciência histórica serviriam agora à memória de tudo aquilo que possuísse “utilidade pública”, tudo aquilo que possuísse valor para o conjunto da sociedade. Tal é o contexto por trás da ruína do monumento diante do que se convencionou por chamar “documento” ou, no caso de Riegl, de “monumento histórico”. Tal é, também, o sentido da máxima positivista de que “a história se faz com documentos”: uma história feita...

Coluna de Trajano, erguida em Roma em 113 d.C.

( ...) com palavras. Signos. Paisagens e telhas. Com as formas do campo e das ervas daninhas. Com os eclipses da lua e a atrelagem dos cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelos geólogos e com as análises de metais feitas pelos químicos. Numa palavra, 107


com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e maneiras de ser do homem47

47. Le Goff, J. (1990), pp. 466-467

Da ciência histórica ou documental, em oposição à história comemorativa ou monumental, surgia então o que Riegl chamou de “valor histórico”: um novo tipo de legitimidade conferida àqueles objetos que devem permanecer não pela vontade e poder de uma única instituição, mas por constituírem um “elo insubstituível e irremovível de uma corrente de evolução”, de onde “toda atividade humana e todo destino humano, dos quais nos ficaram testemunhos ou conhecimento, pode aspirar, sem exceção, a ter um valor histórico, ou seja, todo acontecimento histórico assevera-se como insubstituível”48. Mas a emergência dessa “revolução documental” não representava uma simples ampliação do domínio valorativo da memória coletiva. Pois ao mesmo tempo em que aumentava ao infinito o número de objetos passíveis de “contar a história”, a ciência histórica excluía, desde já, o monumento desse projeto de legitimação. Isso porque a condição de legitimidade do documento, que era o fundamento da noção de fato histórico, era a negação da própria essência do monumento: o discurso. O valor histórico, ou documental, é indiferente ao discurso. O sentido de “documento” aponta, ao invés, para um objeto neutro, para uma testemunha silenciosa da história da qual a verdade é extraída muito mais do que expelida. Por isso, ao monumento que se deparasse com o crivo da ciência histórica, só seria permitido sobreviver com a condição de que se transmutasse em documento; que se emudecesse, sendo permitido falar à memória coletiva somente aquilo que seu novo captor o permitisse. Isso significava que o monumento, transformado em documento, não possuiria mais qualquer legitimidade a priori, qualquer autoridade inerente sobre a memória coletiva, mas um valor gerado externamente, um valor comparativo, relativo a uma cadeia de muitos outros fatos históricos que só possuem valor enquanto conjunto. Se a Coluna de Trajano permanece até hoje em pé, não é porque a população romana sente ainda alguma necessidade de comemorar a vitória das Guerras Dácias, nem porque os fantasmas de Trajano e da ordem imperial exercem ainda alguma autoridade sobre a cidade. A coluna permanece em pé, após quase vinte séculos, sobretudo por conta do valor histórico que em certo momento foi atribuído a ela49: por constituir esse “elo irremovível” da corrente evolutiva da história romana; por ser muito mais um testemunho documental para a historiografia do império, das artes e técnicas antigas, da política e do urbanismo romanos, do que um simples monumento comemorativo. O Trajano por trás da coluna é, agora, menos o

48. Riegl, A. (2014), p. 32

108

49. É verdade que, no caso da Coluna, seu valor comemorativo perdurou por alguns séculos mesmo após a queda do Império e sem que ainda houvesse surgido o “valor histórico”: “Na Idade Média, uma obra como a Coluna de Trajano deveria ser considerada como fora do padrão vigente, quando já ruíra o velho império (...).


O fato de que ela tenha se mantido em pé, pode dever-se principalmente aos vestígios ainda vivos do patriotismo romano, que não chegara a desaparecer até então. Dessa maneira, devemos considerar a Coluna de Trajano, mesmo durante esse período histórico e de forma limitada, como um monumento volível. Entretanto, até o século XIV, sempre existiu o perigo de que a coluna pudesse ser sacrificada em nome de alguma necessidade prática, perigo que, a partir da Renascença até os nossos dias, foi eliminado e provavelmente permanecerá assim no futuro”. Riegl, A. (2014), p. 40 50. Fustel de Coulanges apud. Le Goff, J. (1990), p. 463

51. Barthes (2004) p. 169

emissor do monumento do que um dado contextual e descritivo de um documento histórico. Diferentemente do monumento, o documento só adquire valor a posteriori: sua legitimidade é julgada em uma montagem retrospectiva, pela observação de seu papel no curso causal e “objetivo” dos fatos históricos. A memória contida e legitimada no documento não se apresenta, como no monumento, como memória falada. Pelo contrário, para a tradição positiva da ciência histórica, quanto menores fossem os atributos discursivos do documento, e quanto menos ele revelasse uma possível consciência histórica de seu produtor (ou uma intenção memorialista qualquer), mais próxima a memória documental estaria da verdade científica e, consequentemente, mais digno seria de um lugar permanente no museu da história. Da mesma forma, o historiador dessa memória documental estaria tão mais perto da verdade quanto menor fosse a sua presença, enquanto mediador, no texto historiográfico, e quanto mais ele permitisse às suas fontes documentais falarem por si mesmas. Mas, se segundo esse ponto de vista, “a única habilidade (do historiador) consiste em tirar dos documentos tudo o que eles contêm e em não lhes acrescentar nada do que eles não contêm”50, então devemos nos perguntar que autonomia é essa que o documento detém para enunciar por si só a história. Não estaríamos, ao invés, diante daquilo que Barthes classificou como uma ilusão do autor ausente? Isto é, do mito da história que conta a si própria, como uma emanação orgânica da natureza, e que faz do historiador um mero disponibilizador, um agente neutro de transmissão, sem qualquer intenção própria que não seja a da pura facilitação de uma história caída dos céus e brotada nos “documentos”? Sobre as formas que assume esse modo de conceber a história, Barthes observou: ( ...) nesse caso, o enunciador anula a sua pessoa passional, mas a substitui por outra pessoa, a pessoa ‘objetiva’; o sujeito subsiste em sua plenitude, mas como sujeito objetivo; é o que Fustel de Coulanges chamava significativamente (e com bastante singeleza) de ‘castidade da História’. Em nível de discurso, a objetividade – ou carência dos signos do enunciante – aparece assim como uma forma particular de imaginário, o produto do que se poderia chamar de ilusão referencial, visto que o historiador pretende deixar o referente falar por si só. Essa ilusão não é exclusiva do discurso histórico: quantos romancistas – na época realista – imaginam ser ‘objetivos’ porque suprimem no discurso os signos do eu! A linguística e a psicanálise conjugadas deixam-nos hoje muito mais lúcidos com relação a uma enunciação privativa: sabemos que as carências dos signos são também significantes51 109


No que consiste, portanto, esse “fazer falar as coisas mudas” do historiador, esse “fazê-las dizer o que elas próprias não dizem sobre os homens”52, se não em si mesmo um gesto de intenção, um ato de linguagem, uma espécie de discurso? Não estaria esse historiador, esse “sujeito objetivo” que acredita não estar falando a história, mas fazendo falar os objetos nos quais ela habita, efetivamente falando por detrás deles? Estaria esse valor histórico, ou documental, inoculado em um objeto qualquer, tão distante assim do valor comemorativo com o qual se faziam falar, igualmente, os monumentos antigos? Foi nesses termos que, interrogando a tradição do conceito de documento, Le Goff buscou reaproximar a produção de monumentos com o fazer historiográfico, ou “documental”. Em sua crítica dessa concepção positivista da história, segundo a qual o trabalho do historiador só se aproximaria da “verdade” histórica se apoiada em documentos (ou “provas”) históricos, Le Goff observa que a legitimidade do documento reside menos em sua veracidade inerente e objetiva do que numa intenção historiográfica que é, em si mesma, fundamentalmente intencional e discursiva:

52. Lucien Febvre apud. Le Goff (1990), p. 466

ecolhido pela memória coletiva e transformado em documento R pela história tradicional (‘na história, tudo começa com o gesto de pôr à parte, de reunir, de transformar em “documentos” certos objetos distribuídos de outro modo’, como escreve Certeau), ou transformado em dado nos novos sistemas de montagem da história serial, o documento deve ser submetido a uma crítica mais radical53

53. Le Goff, J. (1990), p. 468

A legitimação do documento segundo um valor objetivo de “autenticidade” – como o valor que insere um fato no curso institucional e, portanto, “verdadeiro” da história – colide, então, com a ideia do documento como produto de uma intenção, de um artifício, ou de uma montagem operada pelo historiador54. Mas colide também, e isso é de especial importância, com uma realidade histórica subjacente ao documento e que precede o próprio historiador. Isso porque, como observou Le Goff, o documento está impregnado de discurso desde a sua própria concepção: ele “não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder”55. Diante dessa dupla realidade discursiva do documento – simultaneamente uma montagem a posteriori de validação historiográfica e o produto de uma conjuntura discursiva sedimentada no tempo e congênita ao documento – Le Goff conclui: documento não é inócuo. É antes de mais nada o resultado de O uma montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade que o produziu, mas também das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio. (...) O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades 110

54. Podemos encontrar em Riegl uma constatação similar, embora desprovida de crítica, dos monumentos sobre os quais incidem o “valor científico”: para ele, por ser atribuído a posteriori, tal valor resultava essencialmente da escolha e da vontade subjetiva do historiador. “A denominação de ‘monumentos’, usada para essas obras, deve ser entendida não em sentido objetivo, mas em sentido subjetivo. Seu significado e importância não provêm da sua destinação original, mas daquilo que nós sujeitos modernos atribuímos a eles”. Ver Riegl, A. (2014), p. 36. 55. Le Goff, J. (1990), p. 470.


56. Ibid., p. 472

57. Ibid., p. 470

históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias. No limite, não existe um documento-verdade. Todo o documento é mentira56

A história do problema documento/monumento nos coloca, por isso, diante de um falso antagonismo: trata-se de nomes distintos para um mesmo fenômeno. “O documento é monumento”; a diferença entre eles não é semântica, mas substancialmente histórica: ela diz respeito às diferentes instituições que, cada qual com os seus critérios e métodos, se apossaram dos meios de legitimação da memória coletiva ao longo dos séculos, de forma consciente ou não. A questão colocada pelo problema do documento/monumento não nos interessa tanto pelo suposto declínio do monumento frente aos novos suportes “objetivos” de memória que o sucederam. Pelo contrário, ela nos interessa na medida em que, nesse deslocamento, o monumento permanece intacto no interior do documento. O monumento é, por assim dizer, remidiatizado: passa a encantar uma multitude de outros objetos aparentemente fatídicos, objetivos e banais; transforma em produtos do artifício, da ideologia e do poder aqueles documentos virginais que sustentam os fatos históricos e científicos. A compreensão do documento enquanto monumento passa, para além de identificar função memorizadora que ambos compartilham, por restituir ao documento aquilo que lhe foi previamente negado: o discurso. Assim, o que une documento e monumento não é somente o que eles têm de suportes para a memória, mas igualmente uma intenção enunciativa que subjaz a ambos e que configura, essencialmente, uma relação de poder. “O que transforma o documento em monumento”, Le Goff nos diz, é “sua utilização pelo poder”57. E esse fato é de suma importância para a compreensão da memória coletiva e seus suportes. Pois se a história, como vimos, não pode ser pensada separadamente das estruturas de poder que a enunciam e legitimam, então há na essência dessa história um atributo que não diz respeito simplesmente ao passado e à memória, mas ao futuro: descrever a história nos termos do discurso histórico e das relações de poder significa descrevê-la no que ela tem de instrumental, no que ela se mostra uma forma de antecipação do futuro. Se a memória diz respeito, como acaba de nos dizer Le Goff, “ao esforço das sociedades históricas de impor ao futuro determinada imagem de si próprias”, então o mero passado contido em suportes como o monumento se mostrará em si mesmo insuficiente. Por isso deveremos nos perguntar, paralelamente, como essa memória se lança adiante: Como ela se manifesta na linguagem, ou como e por que ela é enunciada? Como ela serve a forças produtivas, instrumentais e disciplinares? Como ela serve, por isso, de meio para certos fins? 111


Ou então, como o ato de rememorar se desdobra em uma operação normativa, ordenatória? Assim, se falamos de monumentos, devemos ter claramente para nós que a sua função mnemônica – quer a chamemos “comemorativa” ou “histórica” não é, se não, uma das operações que o monumento realiza. Sua outra função diz respeito, necessariamente, à legitimidade dessa memória – o que equivale a dizer: a autoridade da qual essa memória se reveste para ordenar uma produção, ou ordenar que se configure um certo estado das coisas. Conforme disse Françoise Choay, “esse passado [do monumento] invocado e convocado, de certa forma encantado, não é um passado qualquer: foi localizado e selecionado para fins vitais”58. Uma memória institucionalizada, portanto: uma história escolhida, autorizada, narrada, posta em movimento e a serviço de um poder. “Faça-se lembrar”: o enunciado monumental está sempre conjugado no imperativo. Ele permite que representação do passado e ordenação do futuro coexistam num mesmo gesto de autoridade59. A ideia de monumento aponta, por isso, desde suas origens mais remotas, para uma espécie de legislação ou palavra de ordem: como nos lembra Le Goff, “quando Cícero fala dos monumenta hujus ordinis [nas Filípicas de 44 a.C.], designa os atos comemorativos, quer dizer, os decretos do senado”60. Há, na origem histórica do conceito, uma afinidade com a legislação que aderiria mesmo às definições mais modernas de monumento, e que nos faz supor que o que torna um objeto qualquer um monumento é, para além da memorização, a autoridade de disciplinação da memória social: o seu uso e controle segundo uma finalidade. Não é de se espantar que o mais seminal estudo sobre o conceito de monumento na atualidade, e um dos textos precursores do preservacionismo moderno, tenha sido concebido ele mesmo como o preâmbulo de uma legislação. Culto Moderno dos Monumentos (1903), de Alois Riegl, é nesse sentido duplamente significante: o estudo não apenas fora encomendado ao historiador pelo Estado para embasar uma nova legislação para a preservação de monumentos históricos, como sua própria definição de monumento parece apontar para uma espécie de artefato legislativo. Isto é, o monumento, assim como uma legislação, se refere em si mesmo à aplicabilidade da memória, ou ao seu uso para determinados fins. A ideia de monumento sugere que a memória não possui valor absoluto, mas relativo: ela só tem valor em função daquilo que permite construir. Já nas primeiras palavras de seu ensaio, Riegl chama atenção para essa prospectividade do monumento: or monumento, no sentido mais antigo e original do termo, P entende-se uma obra criada pela mão do homem e elaborada com o 112

58. Choay, F. (2014), p. 17

59. A própria etimologia da palavra “monumento”, do latim monumentum, evoca essa ambiguidade entre passado e futuro, memória e projeção. Como Le Goff observou, “O verbo monere significa ‘fazer recordar’, de onde ‘avisar’, ‘iluminar’, ‘instruir’. (...) Atendendo às suas origens filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação” Le Goff, J. (1990), p. 462 60. Ibid., loc. cit.


61. Riegl, A. (2014), p. 31 62. “Dispositivo”. In: Dicionário Online de Português Michaelis.

63. Aldo Rossi, A Arquitetura da Cidade (São Paulo: Martins Fontes, 1995), p. 142

64. Ibid., p. 116

objetivo determinante de manter sempre presente na consciência das gerações futuras algumas ações humanas ou destinos61

Aqui, a escolha das palavras não nos deixa dúvida: o monumento (volível ou não) é concebido segundo um objetivo; é endereçado às gerações futuras; e sua função é preservar não apenas a memória humana, mas igualmente seus destinos. Em outras palavras, o monumento está orientado para o futuro. Se recorrermos mais uma vez ao universo da legislação, encontraremos um termo bastante familiar que nos permitirá expandir a nossa compreensão do monumento: o dispositivo. No sentido jurídico, “dispositivo” significa a “parte de uma lei ou sentença que contém uma decisão”62. Mas independentemente do contexto institucional ou linguístico em que é utilizado (e lembremos aqui do significado que Agamben deu ao termo), qualquer emprego do termo “dispositivo” servirá para designar atos ou coisas que contêm a capacidade de produzir, decidir, ordenar, fazer, configurar, disciplinar, ou seja, toda uma série de operações que estão orientadas para uma finalidade, para um futuro. O monumento é, portanto, um dispositivo. Ele pertence àquela classe de coisas que funcionam, que possuem uma capacidade produtiva, generativa. O monumento não é um simples objeto no qual o passado se faz representar: ele está sempre inserido em um regime de práticas, ordens e funções num meio social. Se falamos dos monumentos arquitetônicos, podemos recorrer ao que disse Aldo Rossi, para quem “os monumentos são pontos de referência da dinâmica urbana; são mais fortes que as leis econômicas”63. No que pretendeu conceber como uma “ciência urbana”, Rossi classificou o monumento como um dos tipos de elementos primários que organizam um sistema, ou uma economia urbana: ( ...) os elementos primários não são apenas monumentos, como não são apenas atividades fixas; num sentido geral, são aqueles elementos capazes de acelerar o processo de urbanização de uma cidade e, referindo-os a um território mais vasto, elementos caracterizantes dos processos de transformação espacial do território. Eles agem frequentemente como catalisadores64

Mas a função monumental não é restrita apenas aos fatos arquitetônicos e urbanísticos. Se reduzirmos o monumento aos seus aspectos mais elementares, isto é, à sua capacidade de submeter a memória a uma produção, veremos que nenhum direito têm a arquitetura, as artes e o planejamento em geral de reivindicar exclusividade sobre a construção do monumento. Nem mesmo em relação ao campo mais geral dos fatos “discursivos” o monumento possui alguma exclusividade. Assim como há muitos dispositivos que em nada dependem de um operador, ou de uma intenção que os faça funcionar, também a capacidade de materializar e operar a memória (que define o monumento) 113


não é prerrogativa apenas daqueles monumentos que dizemos ser “intencionais”. Assim como vimos ser o caso dos “documentos”, não é simplesmente a incidência de uma intenção discursiva (a priori ou a posteriori) que faz de um simples “objeto” um monumento. O monumento não é produto apenas do discurso histórico consciente, mas da história mesma. Recuperando aquela passagem de Le Goff, ele é produto “das épocas sucessivas durante as quais continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser manipulado, ainda que pelo silêncio”65. O que é particular do monumento não é aquilo que ele diz, ou aquilo que lhe é feito dizer segundo um objetivo memorialístico e instrumental, mas aquilo que ele faz, nas relações concretas e pragmáticas – manipulações – que ele estabelece com seu meio e com seus interlocutores durante o tempo em que ele permanece funcionando na história. Relações que só num segundo momento poderão dar margem à cognição – interpretação e discurso. O monumento que tentamos pensar aqui é um dispositivo: mas isso não faz dele um objeto menos memorialístico, menos “histórico”. Significa apenas que a relação produtiva que o monumento tem com a memória não descreve, a priori, uma relação de enunciação. Mais uma vez, recorrer ao nosso conceito de “símbolo” pode ajudar a elucidar essa afirmação. Um símbolo não precisa ser empregado para narrar a história (isto é, não precisa integrar um discurso) para que ele contenha, efetivamente, a história. Por mais que todo discurso recorra ao símbolo, nem todo símbolo se deixa apreender pelo discurso, isto é, por uma intenção enunciativa. Como vimos anteriormente, o modo de existência do símbolo pode ter algo de caótico e fugidio: ele está sempre se ausentando de toda determinação discursiva, de toda finalidade. Ele não se deixa dominar por quaisquer que sejam seus mediadores, e está em constante movimento e transformação. O símbolo é um acúmulo histórico de significações, e no entanto ele não se deixa saturar por nenhuma delas. É que, antes de ser uma mensagem, o símbolo é uma “marca”. Em outras palavras, ele existe numa economia manipulativa de práticas históricas, antes de existir numa economia semântica de discursos sobre a história. O monumento é, sim, um dispositivo: ele é um suporte de memória orientado a uma produção. Mas isso só é verdade porque todo dispositivo é, também, um monumento. De fato, é preciso reconhecer que uma afirmação como essa soa imediatamente controversa. Para que se provasse verdadeira, ela teria de nos levar a admitir que todas as coisas consideramos ser “dispositivos”, mesmo aqueles objetos mais “mudos”, banais e documentais, seriam, ao seu modo, monumentos. Seria preciso admitir que todo objeto orientado a um fazer carrega, em si mesmo, uma espécie de dizer, mesmo que um dizer não-discursivo, sobre a história. Em outras palavras, seríamos levados a reconhecer a 114

65. Le Goff, J. (1990), p. 472. Grifo meu


existência de algo como um “monumento não-intencional”: mas não no sentido que Riegl, por exemplo, deu ao termo (um monumento cujo valor discursivo, isto é, intencional, lhe foi atribuído a posteriori e não a priori). Por “monumento não-intencional” queremos dizer: um monumento cuja tendência produtiva não lhe foi atribuída por nenhuma força externa e determinável. Um monumento cuja intenção não irradia de nenhuma forma de autoria, mas se origina e desenvolve, como que acidentalmente, a partir do contato progressivo com seu meio e com a história.

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3

Objeto Técnico

( ...) entre os seres inorgânicos das ciências físicas e os seres organizados da biologia, há de fato um terceiro gênero de ‘seres’: os ‘seres inorgânicos organizados’, ou objetos técnicos. Essas organizações inorgânicas de matéria dispõem de uma dinâmica própria se comparados com as dos seres estritamente físicos ou biológicos; uma dinâmica, além do mais, irredutível ao ‘agregado’ ou ‘produto’ desses seres - Bernard Stiegler1 1. Bernard Stiegler, Technics and Time, 1: The Fault of Epimetheus (Palo Alto: Stanford University Press, 1998). Publicado originalmente em francês como La technique et le temps, 1: La faute d’Épiméthée (1994)

Há um nome pelo qual ainda não chamamos o “dispositivo”, mas que permanece ainda fiel ao sentido que queremos dar ao termo: objeto técnico. Isto é, as coisas que em geral temos por “dispositivos” são mais comumente compreendidas como pertencendo à classe dos objetos técnicos. Assim como foi feito no capítulo anterior, as próximas páginas dispensarão temporariamente a discussão tópica sobre a arquitetura para que, num segundo momento, seja possível retornar a ela com alguns pressupostos deslocados sobre as ideias de “monumento” e “objeto técnico”, com todas as implicações que elas sinalizam para a discussão arquitetônica. Para o senso comum, o que parece definir um objeto técnico, diferentemente dos objetos tidos como “monumentais”, não é a capacidade de representar uma memória ou um significado anterior, mas unicamente a sua vocação para servir a uma produção, ou a um fazer em geral. E, como tudo aquilo cuja vocação é servir, o objeto técnico deve ser invariavelmente mudo; tal qual o servo, deve ser apartado de qualquer origem e qualquer intenção próprias. O objeto técnico parece para nós desprovido daquilo que parece “animar” o monumento, isto é, da capacidade discursiva de produzir em nós um efeito cognitivo. O monumento nos permite conhecer no monumento, na memória que ele armazena e re-presenta. O objeto técnico, pelo contrário, não parece oferecer nada à cognição, não parece em si mesmo capaz de representar um significado, um conhe117


cimento ou uma memória: ele é um instrumento que permite, quando muito, mediar a busca por um conhecimento que lhe é externo e que pertence, sobretudo, a um porvir. Ele aparece para nós como um meio para certos fins. Se o que geralmente entendemos por “monumento” é a expressão reflexiva de nós mesmos, de nossa história, do significado de ser humano, é porque o concebemos intencionalmente à nossa própria imagem: mesmo que se trate de um “objeto” e não de um “sujeito”, o monumento nos parece ainda assim uma espécie de objeto animado, falante. O monumento se torna, diante dessa perspectiva, não tanto um instrumento ou um produto de uma “técnica”, mas algo como um humanoide: a imagem de nós mesmos projetada na matéria. Uma imagem que, além do mais, conhece e fala como nós mesmos, que parece conservar memórias e intenções que são também as nossas, e com a qual estabelecemos uma relação de interlocução e autoconhecimento. Esse monumento é a matéria individuada e subjetivada: ele não é o meio para nada, mas um “fim” em si mesmo. Talvez por isso mesmo tenhamos nos acostumado a diferenciá-lo (junto com todos os outros objetos ditos “artísticos” ou “culturais”, isto é, humanoides), em uma relação opositiva e hierárquica, da categoria não-humana (não-humanoide) dos objetos técnicos. O ‘outro’ na tekhne O filósofo francês Gilbert Simondon, na introdução de seu seminal Do Modo de Existência dos Objetos Técnicos (1958), escreveu que a história da relação entre seres humanos e objetos técnicos se mostrou fundamentada numa profunda incapacidade de reconhecer o eu (humano) no outro (não-humano): cultura se comporta em relação ao objeto técnico como o homem A em relação ao estrangeiro, quando se deixa levar pela xenofobia primitiva. (...) Ora, esse estrangeiro ainda é humano, e a cultura integral é a que permite descobrir o estrangeiro como humano. A máquina é a estrangeira em que está encerrado um humano desconhecido, materializado e subjugado, mas que, ainda assim, permanece humano. (...) cultura é desequilibrada, pois reconhece certos objetos, como A o objeto estético, e lhes confere o direito de cidadania no mundo das significações, mas remete outros objetos, em particular os objetos técnicos, para o mundo sem estrutura daquilo que não possui significação, mas apenas uso, função útil2

Aqui, o domínio dos “significados” aparece, no senso comum denunciado por Simondon, dissociado do domínio das coisas que possuem função, que são úteis: uma relação de oposição que nos levaria a qualificar de forma distinta, por exemplo, os objetos técnicos e os monu118

2. Gilbert Simondon, Do Modo de Existência dos Objetos Técnicos (Rio de Janeiro: Contraponto, 2020), pp. 43-44


3. Aristóteles, Ética a Nicômano (São Paulo: Nova Cultural, 1991), p. 125. O trecho citado aqui apareceu para mim, originalmente, citado em inglês em Technics and Time (1994), de Bernard Stiegler. Para não incorrer em nenhuma imprecisão decorrente da tentativa de traduzir, do inglês, um texto ele mesmo traduzido previamente do grego, optei por recorrer à tradução portuguesa da Ética, feita por Leonel Vallandro e Geord Bornheim.

mentos. De um lado, teríamos os instrumentos, aqueles meios nos quais as intenções pré-concebidas dos seres humanos são veiculadas em direção a um efeito produtivo também pré-determinado. De outro, teríamos os monumentos, os próprios “produtos” dessa veiculação; os objetos nos quais nós projetamos a nossa própria imagem e história; objetos de certa forma “humanizados”, animados pela imagem humana refletida neles. O objeto técnico estaria para a caneta como o monumento estaria para o papel-texto; como a ferramenta para a obra de arte. Ora, mas não vimos anteriormente, a partir das palavras de Riegl, que o monumento é, também, um objeto essencialmente instrumental? Que ele tem uma clara função útil, a saber, a de “manter sempre presente na consciência das gerações futuras algumas ações humanas ou destinos”? Um papel contendo um texto não seria, tal qual a caneta, ao seu modo o veículo para a produção de efeitos ulteriores dos quais esse texto é, ele mesmo, o instrumento? De fato, o monumento está muito mais próximo do objeto técnico do que estamos acostumados a admitir. Mas é ainda compreensível que essa identificação seja, em geral, controversa (ainda mais se invertermos os seus termos, isto é, se dizemos que o objeto técnico é um monumento). Essa relutância parece se justificar pelo fato de que, por mais que o monumento seja também um instrumento, sua “instrumentalidade” nos parece ser de uma natureza completamente diversa da do objeto técnico. Eles parecem empenhar dois modos opostos de produção para os quais atribuímos diferentes valores morais. A produtividade do objeto técnico, da forma como estamos acostumados a entender o sentido de “produção”, parece se explicar por um movimento em direção ao “fora”, ao novo, à categoria do possível. Não só pelo fato de que os objetos técnicos estão em relação de exterioridade e alteridade com os seres humanos, como porque eles mesmos, se considerados como instrumentos, estão orientados para a produção de uma “finalidade” externa, de um porvir. Esse entendimento têm sua razão de ser, e é conceitualmente correto: ele é traçável ao pensamento de Aristóteles, para quem “toda arte [tekhne] visa à geração e se ocupa em inventar e em considerar as maneiras de produzir alguma coisa que tanto pode ser como não ser”3. Por outro lado, o que é produzido no monumento, como vimos, é a imagem humana, a imagem do “eu”, do “nós”: ainda que ele seja também algo “externo” a nós, que pertença ao “fora” da vida orgânica, ainda que não seja um ser humano em si mesmo, ele significa o ser humano e lhe conserva a memória. Como toda reflexão (pensemos no espelho), o monumento olha de volta para sua gênese, para a sua “essência”. Esse é, talvez, o motivo pelo qual costumamos separar, da imensa massa de objetos “estrangeiros” que nos cercam, alguns objetos “especiais” com os quais nos permitimos identificar. O monumento, 119


ainda que envolvido numa produção, numa tekhne, é tido por nós como um instrumento do conhecimento, da episteme: pois o que ele revela não nos parece tanto pertencer à exterioridade das coisas “possíveis”, mas à categoria das coisas que interiorizam, que nos remetem de volta a uma “origem”. No primeiro volume de Technics and Time (1994), Bernard Stiegler observa que a oposição histórica entre os conceitos tekhne e episteme, iniciada na filosofia clássica, explica a longevidade desse preconceito generalizado em direção aos objetos técnicos. a origem de sua história, a filosofia separa tekhne de episteme, N uma distinção que, até os tempos Homéricos, ainda não havia sido feita. A separação é determinada por um contexto político, no qual o filósofo acusa o Sofista de instrumentalizar o logos como retórica e logografia, isto é, simultaneamente enquanto um instrumento de poder e uma renúncia do conhecimento (...). É na herança desse conflito – no qual a episteme filosófica se lança sobre a tekhne sofista - donde todo conhecimento técnico é desvalorizado – que a essência das entidades técnicas é concebida4

Stiegler observa que, para Aristóteles, o objeto da tekhne (diferentemente dos seres vivos) não contém o princípio de sua gênese e de seu movimento em si mesmo; ele é inerte, e por isso mesmo qualquer produção (poiesis) que ele possa empenhar só pode ser causada por algo externo a ele (um produtor), para um desígnio ao qual ele serve de meio e com o qual ele não se confunde. “Nenhuma forma de ‘autocausalidade’ anima os seres técnicos. Em razão dessa ontologia, a análise da técnica é feita em termos de meios e fins, o que implica necessariamente que nenhuma dinâmica própria pertence aos seres técnicos”5. Além disso, esses objetos, por não possuirem o princípio da gênese em si mesmos, estariam por isso mesmo sempre isolados de sua origem, de um produtor do qual eles se diferenciam e se afastam, e cuja essência eles não compartilham. Se haveria alguma verdade na atividade da tekhne, portanto, não se trataria do objeto de um conhecimento real (episteme) do qual se ocupam os filósofos, mas de uma verdade aparente (dóxa), um simulacro desvinculado de sua origem e desprovido de “dinâmica própria”. O conhecimento técnico, ao se associar a esses simulacros, a esses objetos “órfãos”, de nada valeria ao conhecimento científico: ele não serviria à busca da verdade original (aletheia) porque dependeria de objetos inteiramente dissociados dela. O conhecimento técnico em nada serviria aos filósofos, mas apenas aos interesses dos falseadores da verdade, responsáveis (conscientemente ou não) por instrumentalizá-la para fins mundanos. Essa oposição entre tekhne e episteme teve em Platão um dos seus primeiros e mais importantes promotores, para quem ela apareceu sob o problema da escrita. Derrida, em A Farmácia de Platão (1985), 120

4. Stiegler, B. (1998), p. 1. T.M.

5. Ibid., loc. cit. T.M.


atribui ao filósofo grego a ideia de que a escrita seria incompatível com a verdade (aletheia) – e aliás responsável por falseá-la – na medida em que o texto escrito, ao se afastar de sua origem (ao comunicar o “querer-dizer” de seu autor em sua ausência, mas também ao empregar o graphein, o signo-marca, que é por excelência a re-presentação de uma realidade ausente), se degradaria, transformando-se em mito: um veículo para uma memória “órfã”, anônima e ilegítima. 6. Jacques Derrida, A Farmácia de Platão (São Paulo: Iluminuras, 2005), p. 23

7. Ibid., p. 34

8. Id. (1991), p. 354

estatuto desse órfão que assistência alguma pode amparar O recobre aquele de um graphein que, não sendo filho de ninguém no momento mesmo em que vem a ser inscrito, mal permanece um filho e não reconhece mais suas origens (...). À diferença da escritura, o lógos [a “fala”] vivo é vivo por ter um pai vivo (enquanto o órfão está semimorto), um pai que se mantém presente, de pé junto a ele, atrás dele, nele, sustentando-o com sua retidão, assistindo-o pessoalmente e em seu nome próprio6

Não seria possível recorrer à escrita sem abdicar, portanto, da presença de toda origem, de toda possibilidade de episteme. A fala (lógos), por outro lado, por mais que, ela mesma, uma forma de “representação”, não obstante ocorreria na presença de sua instância geradora, do “sujeito que fala” e do qual ela não se dissocia jamais: o lógos é o veículo privilegiado da aletheia, é a forma original de apresentação de um “pensamento divino já formado, um desígnio decretado”7. A fala não se dissocia do sujeito que fala, do ser vivo que é o receptor e o mediador da ideia (eidos) divina: ela está sempre referenciada num interior do qual ela nunca se separa completamente, pois a fala só permanece viva enquanto se fizer presente a sua origem, o seu “pai”. A escrita, por outro lado, promove um “parricídio”: confiante de poder conservar a verdade e a memória de sua gênese mesmo estando dissociada dela, ela profana e abdica de sua origem, tornando-se inútil ao conhecimento. Como vimos nos capítulos anteriores, com Derrida, o processo histórico de especialização do signo (ou se quisermos, símbolo) – sua progressiva instrumentalização, sua capacitação para servir a um uso social, ou seja, seu desenvolvimento como escrita – é precisamente o caminho pelo qual ele se distancia cada vez mais de seu referente. Ele desfaz, por assim dizer, seu vínculo significante com uma origem “real” (sua verdade, aletheia). O signo escrito, externalizado (tornado uma memória auxiliar, objeto técnico), para que seja capaz de “comunicar qualquer coisa aos ausentes”8, deve se ausentar a si próprio da realidade originária daquilo que ele comunica. Ele pode apenas comunicá-la de forma débil – não mais dizer a verdade do que se vê (ou do que se intui), mas apenas escrever o que se ouviu, escrever o que já foi escrito, e assim por diante. Em outras palavras, para lançar-se sobre o 121


futuro, para tornar-se instrumento, o signo deve progressivamente se ausentar de sua memória viva (mnéme), de sua origem e seu lastro na realidade. A oposição ontológica entre a fala e a escrita se justificaria, portanto, nos diferentes estatutos que elas fazem de uma origem: ou então, nos diferentes tipos de memória (mnéme) a que cada uma delas recorre. A memória à qual recorre o sofista, o produtor do discurso escrito, seria descrita por Platão como hypómnesis, uma memória menor, re-presentação órfã de uma apresentação original; o simulacro inautêntico da memória psíquica e interior conservada pela anamnese, a “verdadeira ciência” da qual se ocupa o filósofo. A hypómnesis, a memória protética promovida pela escrita, não é para Platão apenas ilegítima, órfã, mas verdadeiramente perigosa, parricida. Ele explica o motivo, no Fedro, por meio de Sócrates, quando este narra para Fedro o mito do deus egípcio Theuth. Theuth, tendo descoberto o “remédio” (phármakon) definitivo para a perda de memória – a escrita – vai até o rei Thamous (mensageiro e representante dos deuses, ele mesmo a personificação do lógos) na intenção de convencê-lo a ensinar, para todo o Egito, o conhecimento da escrita. “Eis aqui, oh, Rei, um conhecimento que terá por efeito tornar os Egípcios mais instruídos e mais aptos a se rememorar: memória e instrução encontram seu remédio”9. No que o Rei, rejeitando a descoberta de Theuth, lhe diz que o seu phármakon não é em nada um remédio, mas na verdade um veneno10: ois este conhecimento [o da escrita] terá, como resultado, naqueles P que o terão adquirido, tornar suas almas esquecidas, uma vez que cessarão de exercer sua memória: depositando, com efeito, sua confiança no escrito, é do fora, graças a marcas externas, e não do dentro e graças a si mesmos, que se rememorarão das coisas. Não é, pois, para a memória, mas para a rememoração que tu descobristes um remédio [phármakon]. Quanto à instrução, (Sophías de), é a aparência (dóxan) dela que ofereces a teus alunos, e não a realidade (alétheian)11

Mas, contraditoriamente ao que antes parecíamos supor, é na escrita – na tekhne, e não na episteme – que nos deparamos com o monumento. O que Platão disse a respeito da escrita, ele diria tanto dos objetos técnicos como de qualquer monumento. Qualquer forma de exteriorização promovida pela tekhne, seja ela escritura, monumento, instrumento ou qualquer outra coisa que se separe de sua origem (conservando dela, quando muito, a “aparência” da memória) para atender a um fim instrumental, é igualmente profana. “O sofista vende, pois, os signos e as insígnias da ciência: não a própria memória (mnéme), mas somente os monumentos (hypomnemata)”12. “Monumento” não seria, se não, um dos nomes da escrita, do 122

9. Platão, Fedro; apud. Derrida, J. (2005), p. 21 10. Como Derrida aponta, a palavra phármakon, do grego, pode significar tanto “remédio” como “veneno”. O emprego que Platão faz do termo para descrever a essência da escrita, embora tenda para o sentido negativo, expõe essa ambiguidade: a escrita, embora se apresente como “remédio” para a memória, como um instrumento para conservar o conhecimento dos seres humanos para além da sua morte, promoveria no entanto o efeito contrário; ela não só tornaria os homens menos aptos a exercitar a memória, como os afastaria cada vez mais do conhecimento da verdade, que só poder ser apreendida pela anamnese, pelo contato direto com a essência (eidos) das coisas. 11. Platão, Fedro; apud. Derrida, J. (2005), p. 49 12. Derrida, J. (2005), p. 54


“objeto técnico”, da memória artificial. Mais à frente, Derrida sintetiza o que queremos dizer: 13. Ibid., pp. 55-6. Grifo meu

que Platão visa, então, na Sofística, não é o recurso à memória, O mas (...) a substituição da memória viva pela memória-auxiliar, do órgão pela prótese, a perversão que consiste em substituir um membro por uma coisa (...). O limite (entre o dentro e o fora, o vivo e o não-vivo) não separa simplesmente a fala e a escritura, mas a memória como desvelamento (re-)produzindo a presença e a rememoração como repetição do monumento: a verdade e seu signo, o ente e o tipo. O “fora” não começa na junção do que chamamos atualmente o psíquico e o físico, mas no ponto em que a mnéme, em vez de estar presente a si em sua vida, como movimento da verdade, se deixa suplantar pelo arquivo, se deixa excluir por um signo de re-memoração ou de com-memoração. O espaço da escritura, o espaço como escritura, abre-se no movimento violento dessa suplência, na diferença entre mnéme e hypómnesis13

Voltemos ao início. O que queríamos era justamente promover uma espécie de identificação do monumento em direção ao objeto técnico. O que antes tínhamos por um objeto nobre, humano (pois constituído à nossa própria imagem e memória), aparece sob a ideia clássica de tekhne como hypómnesis, um objeto profano, não-humano. Mas essa perspectiva, aberta pelo recurso à Platão, não é propriamente a constatação de uma identificação. Não identificamos o eu no outro, o humano na máquina, como quis Simondon. O que ela promove é muito mais o “desmascarar” de um impostor, de um falso-eu (a prótese, o signo do eu) a sua deportação de volta para o domínio do outro. Não há identificação nessa perspectiva, não há a derrubada do muro que divide tekhne e episteme: nesse sentido, dizer que o monumento é um objeto técnico é simplesmente expropriá-lo para o polo exterior do dualismo episteme/tekhne, que permanece ainda intacto. Se queremos, com a ideia de “monumento”, desfazer o dualismo entre episteme e tekhne (donde humano/não-humano, interior/exterior), é preciso que o monumento não apenas possa também transitar de volta para o campo da episteme, mas que possa trazer consigo o objeto técnico. Não basta que o “monumento” seja também objeto técnico: é preciso que o objeto técnico possa ser também “monumento” : que tekhne e episteme sejam uma coisa só. É preciso, para além de colocar os signos do eu (os objetos técnicos, re-presentações) no campo exterior do outro, identificar como esses mesmos signos são o lugar mesmo da identificação, da identidade entre eu e outro. Mas como observou Stiegler, o histórico problema da alterização dos objetos técnicos parece ainda longe de ser pacificado. Pelo contrário, quanto mais esses objetos se multiplicam ao nosso redor, mais opacos e estranhos eles nos parecem (lembremos de Derrida, para quem iterar significa tanto reproduzir e multiplicar como alterizar, 123


produzir “outros”). O problema do phármakon pareceu, na história do pensamento da técnica, apenas se reatualizar. A cada nova “promessa” operada nas constantes e sucessivas iterações da tecnologia, é feito soar o alarme platônico do afastamento da origem, da desumanização operada pela tekhne. Mas se em Platão, escreve Stiegler, “a tecnicização é o que produz a perda da memória”14 – donde por séculos a questão da tekhne teria despertado muito mais a preocupação e o desdém dos filósofos do que a atenção do debate público – a modernidade traria contornos muito mais graves à oposição tekhne/episteme. Com o advento das revoluções industriais e das subsequentes guerras mundiais, a realidade da “tecnologia moderna” mostrava-se substancialmente diferente da tekhne que havia sido problematizada até então pelos filósofos: reflexão filosófica defrontava-se agora com uma expansão A técnica tão abrangente que todas as formas de conhecimento eram mobilizadas e atraídas para o domínio da instrumentalidade, em relação ao qual a ciência, tendo seu estatuto epistêmico e seus fins determinados pelos imperativos da crise econômica ou da guerra, se encontrava cada vez mais sujeita15

Esse aparelhamento da episteme pela tekhne trazia ainda consigo, na esteira da evolução sem precedentes da tecnologia moderna, um novo “arquétipo” do objeto técnico, até então desconhecido pelo debate filosófico e substancialmente diferente dos tradicionais instrumentos da tekhne: a “máquina”. A máquina era ontologicamente irredutível à tekhne no sentido clássico, segundo a qual seus objetos não possuiriam um princípio de ação em si mesmos. Ela não era mais uma simples ferramenta, um objeto que só poderia ser animado pela vontade humana, por um princípio cinético externo a ela. Enquanto a “ferramenta” seria descrita por Simondon como o modo de existência mais “primitivo” do objeto técnico – sua interface produtiva com o humano, o “portador de ferramentas”, consistindo numa espécie de “simbiose instintiva”16 – a máquina possuía um novo modo de existência. Ela era, como o ser humano, em si mesma uma portadora de ferramentas, um “indivíduo-máquina”. Não tardou para que entre os humanos e esses novos seres começasse a se configurar, numa paisagem cada vez mais organizada pelas máquinas, novas relações de alteridade. Não se tratava mais de um outro servil, inerte até segundas ordens, mas de um objeto que em nada parecia depender da vontade humana. A ideia moderna de “máquina” teria dado origem, segundo Simondon, à representação mitológica do robô: a projeção da imagem humana no indivíduo técnico, uma forma ambígua de alterização que poderia motivar tanto um “tecnicismo descomedido, que não passa de uma idolatria da máquina”17, quanto a ideia de um inimigo hostil e usurpador. 124

14. Stiegler, B. (1998), p. 3

15. Ibid., p. 2

16. Simondon, G. (2020), p. 40

17. Ibid., p. 44. “O homem que quer dominar seus semelhantes invoca a máquina androide. Então abdica diante dela e lhe delega sua humanidade. (...) Transformada pela imaginação nesse duplo homem que é o robô desprovido de interioridade, a máquina representa um ser mítico e imaginário”.


Ainda que não mencionasse o problema platônico, Simondon parecia identificar no discurso da modernidade uma espécie de reencenação trágica do phármakon: 18. Ibid., p. 45

19. “Fragmento sobre as Máquinas” integra um conjunto de rascunhos, completado em 1858, que não pretendia ser publicado por Marx, mas que esboçavam sua crítica da economia política que seria publicada posteriormente n’O Capital (1867). Os rascunhos foram compilados em 1941 sob o título Grundrisse. Ver: Karl Marx, Grundrisse (São Paulo: Boitempo, 2011), pp. 929-951 20. Marx, K. (2011), p. 929

21. Ibid., p. 930 22. Ibid., p. 929

cultura comporta, pois, duas atitudes contraditórias em relação A aos objetos técnicos: de um lado, trata-os como puras montagens de matéria, desprovidas de significação verdadeira e que apenas apresentam uma utilidade; de outro, supõe que esses objetos também são robôs e são movidos por intenções hostis em relação ao homem, representando para ele um perigo permanente de agressão, de insurreição18

Entre os mais influentes críticos da tecnologia moderna, em especial no que diz respeito ao problema da automação maquínica, Karl Marx ocupou um papel evidentemente central. Em uma anotação de 1858 que ficaria conhecida como “Fragmento sobre as Máquinas”19, Marx já alertava para a condição dos seres humanos e do “trabalho vivo” diante da progressiva maquinização do processo de produção capitalista. Embora não falasse em robôs, Marx já postulava o surgimento da máquina como a emergência de um duplo do humano, um autômato que consistia numa “força motriz que se movimenta por si mesma”20. A substituição do trabalho vivo pelo trabalho maquínico não representava, para ele, uma simples relação de concorrência ou um processo de substituição do humano pela máquina, mas uma inversão hierárquica da relação instrumental entre sujeito e objeto. Em outras palavras, não era que a máquina passava, agora, a prescindir do trabalho e da presença humana, mas que ela passava a solicitar do ser humano um outro modo de existência e uma nova forma de trabalho. Se antes os meios de trabalho da produção industrial eram as ferramentas operadas pelo ser humano, pelo trabalho vivo – a ferramenta servindo a ele de prótese, extensão de seu corpo – a automação dos meios de trabalho deslocava o próprio ser humano à condição de órgão auxiliar de um “sistema automático de maquinaria”. Mas essa inversão se estendia para muito além do âmbito da relação entre trabalho vivo e trabalho maquínico, operador e máquina: era o estatuto mesmo da episteme, do trabalho científico e intelectual, que se reorientava em função das demandas da tecnologia moderna. “A ciência, que força os membros inanimados da maquinaria a agirem adequadamente como autômatos por sua construção, não existe na consciência do trabalhador, mas atua sobre ele por meio da máquina como poder estranho, como poder da própria máquina”21. Não era mais a episteme a operadora da tekhne, a força motriz que a movimenta e direciona, mas o contrário. Com a concepção de um sistema automático de maquinaria, uma montagem híbrida “consistindo em numerosos órgãos mecânicos e intelectuais”22, Marx alçava o problema da máquina para além do indivíduo técnico, e mesmo além dos limites da fábrica, extrapolando-o para todo o espaço social e para a “condição 125


humana” no geral. O autômato de Marx coincidia com a extensão mesma da formação social. Foi em termos bastante similares que, em A Questão da Técnica (1954), Martin Heidegger concebeu a relação entre seres humanos, natureza e “tecnologia moderna” como o que ele chamou de “Armação”23 (Gestell). A Gestell de Heidegger seria algo como o “poder estranho” com o qual, para Marx, a ciência moderna se conjugaria com as demandas maquínicas da tecnologia para subjugar o trabalho e as condutas humanas. Sob a Gestell, não é tanto “a máquina” em si que se torna autônoma, mas sim o sistema que dispõe dela, junto com os recursos naturais e humanos, transformando-os em “subsistências” (Bestand, em inglês “standing-reserve”), em reservas de energia permanentemente disponíveis e requeríveis para o seu funcionamento. Ainda que Heidegger reconheça que o ser humano (enquanto aquele que cultiva a técnica) é de fato o operador da Gestell, ele observa que não se trata de uma operação voluntária. Para Heidegger, é a Gestell que produz no ser humano, inversamente, a demanda de que ele ordene o real como reserva permanente. A tecnologia moderna, sendo ela mesma indissociável de um paradigma epistemológico que tende a representar a natureza como um “complexo de forças passíveis de cálculo”24, não pode por isso ser considerada simplesmente como os meios pelos quais o ser humano domina a natureza: sendo ele mesmo parte da “natureza” calculada, enquadrada e disponibilizada, o ser humano se torna a matéria-prima e o produto da máquina que ele supostamente governa. Como observou Stiegler, uma vez que “a técnica moderna se concretiza no aparato da Gestell de todos os recursos”, devemos nos perguntar “se o humano é o mestre de tal aparato, o mestre do destino humano, uma vez que o humano é ele mesmo parte de ‘todos os recursos’”25. técnica [para Heidegger] constitui um sistema na medida em A que ela não se permite descrever como meio – assim como, em Saussure, a evolução da linguagem, que forma um sistema de extrema complexidade, escapa ao arbítrio daqueles que a falam. (...) Assim como a máquina, o humano da era industrial depende do sistema técnico, servindo-o ao invés de fazê-lo servir a ele; o humano é o ‘assistente’, o auxiliar, o ajudante, de fato, os meios da técnica enquanto sistema26

Mas embora Heidegger concebesse, à maneira com que Platão havia concebido a escrita, a tecnologia moderna como a operação de um “desenraizamento” do humano diante de uma razão calculativa que o afasta de sua origem, por outro lado ele defendia que o estatuto atual da técnica seria menos um “desvio” do que a concretização mesma do ser humano enquanto ser essencialmente técnico. Como Stiegler observou, “a tecnicização do conhecimento” é para Heidegger a história mesma do ser, e a tecnicidade é parte da sua essência. A relação 126

23. “Armação”, ainda que pouco elucidativa, corresponde à tradução oficial de Gestell na edição portuguesa de A Questão da Técnica, provavelmente em referência à tradução inglesa, onde ela aparece como “enframing”. Penso que uma forma alternativa de pensar/traduzir a Gestell seria pela palavra disposição: não apenas ela remete ao conceito de “dispositivo” que, na obra de Foucault, possui um sentido bastante similar à Gestell heideggeriana, mas também porque o verbo stellen em alemão significa “colocar”, “posicionar” ou “dispor”. Heidegger usa uma família inteira de verbos com esse núcleo: stellen (colocar), berstellen (implantar), vorstellen (apresentar), herstellen (produzir), etc. O prefixo Ge-, significando uma espécie de “ajuntamento”, sintetizaria todos os modos de stellen, conferindo à palavra Gestell o sentido de uma disposição total e coletiva das coisas, algo bem próximo dos “dispositivos” de poder foucaultianos. 24. Martin Heidegger, “A Questão da Técnica”, in: Scientiae Studia, v. 5, n. 3. (São Paulo: USP, 2007), p. 386 25. Stiegler, B. (1998), p. 24. T.M. 26. Ibid., loc. cit.


27. Heidegger, M. (2007), p. 380

28. Stiegler, B. (1998), p. 7. T.M.

entre tekhne e episteme não é, para Heidegger, essencialmente uma relação de oposição, mas de identidade: ambas são formas complementares de um “desabrigar” da verdade, da aletheia. Diz ele: “Desde os tempos mais antigos até os tempos de Platão, a palavra tekhne segue de par com a palavra episteme. Ambas são nomes para o conhecer em sentido amplo. (...) A tekhne é um modo da aletheia. Ela desabriga o que não se produz sozinho e ainda não está à frente”27. A tekhne não consiste nos meios que o ser humano inventa para satisfazer os desígnios de uma verdade “original” que emana a priori de seu Ser, mas a própria condição de sua constituição enquanto Ser. O Ser não se produz sozinho, mas pela tekhne: ele é aquilo mesmo que a tekhne “desabriga”, revela. Por mais que o pensamento de Heidegger a respeito da tecnologia moderna seja assimilado, em geral, como um posicionamento reacionário, essencialista e no limite apocalíptico, Stiegler observa que uma perspectiva cuidadosa de sua obra deve reconhecer igualmente as possibilidades que o filósofo atribui à tecnologia moderna enquanto destino inevitável do Ser. Nas palavras de Stiegler, “o sentido da tecnologia moderna é ambíguo na obra de Heidegger. Ela aparece simultaneamente como o obstáculo último e a possibilidade última do pensamento”28. A tecnologia moderna é, afinal, obra do ser humano, ele mesmo parte da natureza (physis): e se o estatuto do “ser humano” parece se perder irremediavelmente no curso do progresso técnico da civilização moderna, essa perda irremediável é, ainda assim, aquilo que nos torna humanos; é a nossa verdade. A ideia de “ser humano”

29. Ibid., p. 16.

Para Heidegger, a existência do ser humano enquanto Ser (Dasein) é essencialmente histórica. O Ser se constitui em relação à história que o precede e que ele herda. Isso quer dizer que a essência do ser humano, muito mais do que uma propriedade genética, congênita a ele, deve ser adquirida, interiorizada por meio da interface com um substrato histórico que lhe é, a princípio e por natureza, externo. Nas palavras de Stiegler, “O Dasein só vem ao mundo na medida em que o mundo sempre lhe precedeu em sua facticidade, [um mundo que] é já sempre o já-aí [already-there]”29. O “já-aí” compreende o conjunto de tudo aquilo já exteriorizado pelos seres humanos: objetos, lugares, signos, marcas, textos, máquinas etc.; todo o conjunto de “seres inorgânicos organizados” que se acumulam no tempo e que permanecem após a morte biológica. Um conjunto sem o qual a existência humana se tornaria inconcebível ou, ao menos, indistinguível ontologicamente dos outros animais. já-aí [already-there] é o horizonte pré-concebido do tempo, O como o passado que é meu mas que eu todavia não vivi, e ao qual 127


minha única forma de acesso é por meio dos rastros deixados desse passado. Isso significa que não há o já-aí, e portanto relação com o tempo, sem suportes de memória artificiais. A memória da existência das gerações que me precederam, e sem a qual eu não seria nada, me é legada em tais suportes. Essa é a memória de experiências passadas, de epigêneses passadas que não se perdem, ao contrário do que ocorre em uma espécie estritamente biológica30

Precisamente porque aquilo que garante ao ser humano a sua essência não nasce com ele, mas está já-aí, é que não se pode falar em um “afastamento da origem” como uma condição “desenraizadora”. O ser humano não se constitui em relação à sua “origem”, mas ao seu processo mesmo de afastamento dela. “O destino do Ser”, diz Stiegler sobre Heidegger, é o “esquecimento do Ser”31: sua verdade não reside num antes ao qual ele deve sempre retornar e se compatibilizar, mas num devir (becoming) que ele só pode acessar pela hypómnesis, pelos monumentos que ele herda e por aqueles que ele constrói e transmite para as gerações futuras. De forma que, sendo esse substrato “monumental” de objetos técnicos uma memória sedimentar, cumulativa, o estatuto epistêmico do ser humano é necessariamente evolutivo, diferencial. É por ser próprio do ser humano excretar esses objetos, inscrevendo sua memória no espaço inorgânico da matéria, que se pode conceber algo como a “história” ou o “progresso”. Stiegler observa que o que torna os seres humanos ontologicamente distintos das outras formas de vida não é, como quis Platão, a capacidade de recorrer, por si só, a um aparelho inato de conhecimento da realidade. Pelo contrário, a episteme, o conhecimento verdadeiro e científico da realidade, só emerge com a possibilidade de recurso a uma memória que não é congênita a nós, mas artificial, externa e herdada em vida. Ele recorre, para isso, ao conceito de epigênese para explicar por que aquilo que nos torna “seres humanos” não se restringe ao nosso “interior” biológico e a uma suposta razão inata, mas se encontra num exterior protético e nos suportes de memória artificiais. Epigênese é o processo de desenvolvimento, diferenciação e individuação do ser: o processo pelo qual um indivíduo biológico vem a ser o que é. Essa formação, nas espécies não-humanas, é “programada” por duas formas distintas de memória: a memória genética, consistindo em determinações congênitas que conferem a ele seus aspectos “estáveis”, e a memória não-genética, isto é, a memória que o organismo adquire a posteriori no curso de sua experiência, e que é necessariamente contingente e variável de indivíduo para indivíduo. A memória não-genética, ainda que seja empírica e não-congênita, é igualmente determinante da individualidade, do modo de ser desse indivíduo: seus hábitos e tendências particulares, seus traumas, habilidades adquiridas, traços de personalidade, etc. Enfim, todo o “conteúdo” cognitivo que ele é 128

30. Stiegler, B. (1998), p. 159. Grifo meu

31. Ibid., p. 4

→ Still de "2001: Uma Odisséia no Espaço" (1968), de Stanley Kubrick



capaz de adquirir e cultivar em vida; uma memória que é produzida no seu contato com as contingências do meio (milieu), e que ele conserva em seu interior biológico. Essa memória empírica, no entanto, diferentemente da memória genética, é intransmissível em qualquer espécie não-humana, pois está encerrada no interior do indivíduo biológico: isso quer dizer que ela está fadada a desaparecer tão logo esse indivíduo morra. Tudo o que esse indivíduo aprendeu em vida, então, é irremediavelmente perdido e deverá ser reaprendido do zero pelos seus descendentes, aos quais a única memória que ele é capaz de transmitir é a sua memória genética. Como observou Stiegler, o surgimento do ser humano acontece, em termos evolutivos, precisamente na ruptura dessa condição: na passagem da transmissão genética para a transmissão não-genética. A memória epigenética é, por assim dizer, progressivamente “liberada”, exteriorizada, a partir do momento em que a memória orgânica é capaz de ser registrada em suportes não-orgânicos, artificiais. Nos seres humanos, ( ...) a camada epigenética da vida, longe de ser perdida com os viventes quando morrem, se conserva e se sedimenta, passando a si mesma adiante (...) para a posterioridade como um presente e como um dever, isto é, como destino. (...) essa sedimentação epigenética, uma memorização daquilo que veio a se tornar passado, [é] o que chamaremos de a epifilogênese do homem, querendo dizer a conservação, a acumulação e a sedimentação de sucessivas epigêneses, articuladas mutuamente. A epifilogênese é o rompimento com a pura vida, no que, nesta última, a epigênese é precisamente aquilo que não se conserva32

A “epifilogênese”, a memória sedimentar das sucessivas epigêneses humanas, é aquilo que permite o já-aí de Heidegger, a memória que rompe com o tempo, a repetição e a duração da vida orgânica ditada estritamente pela memória genética. Diferentemente dos indivíduos estritamente “zoológicos”, os primeiros hominídeos teriam se desenvolvido a partir não de dois, mas de três tipos de memória: “a memória genética; a memória do sistema nervoso central (epigenética); e a memória tecno-lógica (linguagem e técnica são aqui amalgamadas no processo de exteriorização)”33, ou então a “memória epifilogenética”. Exteriorizada para o espaço dos “seres inorgânicos organizados”, ou objetos técnicos, essa terceira memória poderia por isso mesmo ser sucessivamente retomada e progressivamente acrescida, segundo dinâmicas próprias que não mais obedeceriam aos ritmos da natureza biológica. Trata-se do processo mesmo de aparição da “memória coletiva”, não apenas como uma fonte exógena de identificação e 130

32. Stiegler, B. (1998), p. 140. T.M.

33. Ibid., p. 177


34. Ibid., p. 137

35. Derrida, J. (2005), p. 56

conhecimento, mas igualmente como um vetor de diferenciação e evolução não-biológica. Cada ser humano conhece e produz a si mesmo com base nos objetos técnicos (inclusos aí os objetos da linguagem, como palavras, conceitos e textos) que ele herda e recapitula das gerações antecedentes, e que o torna progressivamente diferente, no curso dessa acumulação, de seus antepassados. O ser humano de hoje só se identifica com o ser humano de ontem (ou com a sua “origem”) em razão da diferença entre eles. Se é possível, portanto, atribuir à espécie humana uma propriedade invariável, uma “essência” propriamente dita, não se trata de um “o quê”, um termo referencial, mas de um “como”, uma relação diferencial. Só o que se mantém constante na história humana, só o que constitui a sua identidade, é o seu princípio de diferenciação no tempo. E essa diferenciação não-genética do ser humano – do modo com que ele entende a si mesmo e a sua realidade, do modo com que ele se compromete com o mundo ao redor, em suma, da sua própria condição epistemológica – é indissociável da diferenciação evolutiva dos objetos técnicos, e vice-versa. “O técnico inventando o humano, o humano inventando o técnico. A técnica é inventiva assim como inventada”34. Se retomarmos ao problema platônico da escritura, veremos então que ela repousa sobre uma oposição entre um interior "humano” e um exterior “não-humano” que não mais se sustenta diante da realidade da condição humana, a saber, a da interdependência e formação mútua entre o Ser e a prótese. O Ser é, ele mesmo, irredutível às tradicionais fronteiras congênitas do “eu”, pois o “eu” é uma montagem necessariamente expansiva e reatualizável com os “outros” da técnica. O lógos (fala) de Platão não poderia existir sem o recurso ao exterior não-biológico, aos signos protéticos que constituem a língua falada que se conservam e atualizam sempre “do lado de fora” do Ser, e que ele só pode acessar por incorporação. Ainda que “originalmente” não recorra a uma inscrição no inorgânico (ainda que não seja “escrita”), a língua falada é, necessariamente, parte indissociável do “já-aí” que é necessariamente externo ao humano: ela é composta de signos, e todo signo é um objeto do mundo exterior. Como escreveu Derrida, “aquilo com que sonha Platão é uma memória sem signo”35: mas o que seria essa “memória sem signo” se não uma memória meramente zoológica, não-humana? Uma memória que não é capaz de sobreviver na ausência daquilo que ela comunica, uma memória não-significada, só pode ser transmitida sob a forma de sinal: por exemplo, o sinal fônico que o gorila emite não apenas na sua própria presença, mas na presença da presa, na presença do inimigo, etc. Não estando a presa ou o inimigo presentes 131



diante a emissão do sinal, toda possibilidade de conhecimento sobre eles é inviabilizada. O gorila não pode, com seus sinais, falar sobre a presa, sobre o inimigo, para os gorilas ausentes: ele não pode lhes comunicar o que são cada uma dessas coisas sem que elas se apresentem para eles conjuntamente ao sinal. Pode-se dizer que o lógos pelo qual Platão advogava não era, portanto, tão distinto assim da ‘protolinguagem’ espontânea demonstrada pelos gorilas. Como observou o paleontólogo André LeroiGourhan, em Gesture and Speech (1964), 36. André Leroi-Gourhan, Gesture and Speech (Cambridge: MIT Press, 1993) p. 114. T.M.

traço característico da ‘linguagem’ e das ‘técnicas’ dos grandes O símios é que elas são solicitadas espontaneamente em resposta a estímulos externos e são, de forma igualmente espontânea, abandonadas, ou deixam de ocorrer, caso a situação material que as provoque deixe de existir ou não aconteça36

A condição de surgimento da episteme, a condição mesma do que tradicionalmente temos por “ser humano” jaz, contrariamente ao que quis Platão, na possibilidade do signo. Todo signo, falado ou escrito, é uma forma de prótese, de memória-auxiliar. Em termos linguísticos, o signo é a forma perene do sinal: é, por exemplo, a palavra “inimigo” que surge não apenas para re-presentar o inimigo ausente, mas igualmente para antecipar a possibilidade da sua presença. Um animal dotado de signos será portanto capaz de, acoplando-os a si como próteses, rememorar e antecipar a realidade, ou então, conceituá-la. E dessa montagem entre ser e signo o que irrompe é precisamente o conhecimento, a episteme, ou o próprio “humano”. Mas por “signo” (ou então símbolo) entenderemos não apenas os instrumentos da linguagem, mas, de forma ampla, tudo aquilo que o ser humano “excreta” para além de seu corpo biológico e que é capaz de se conservar e sedimentar no tempo, podendo ser sucessivamente “retomado” e desenvolvido pelos ausentes e pelas gerações futuras. O signo é indistinguível de qualquer outra ferramenta ou objeto técnico. De novo, segundo Leroi-Gourhan, 37. Ibid., p. 114

( ...) as operações envolvidas na fabricação de uma ferramenta antecipam as ocasiões de seu uso, e a ferramenta é preservada para ser usada em ocasiões futuras. O mesmo é verdadeiro para a diferença entre sinal e palavra, a permanência de um conceito sendo comparável àquela da ferramenta37

38. Ibid., p. 113

A identidade entre o signo linguístico e a ferramenta se dá para muito além da simples analogia. Na verdade, como Leroi-Gourhan observou, as capacidades de construir ferramentas e símbolos dos seres humanos “derivam do mesmo processo, ou melhor, do mesmo equipamento básico do cérebro”38. Entretanto, a condição biológica para a fabricação de símbolos e ferramentas não é, como por muito tempo sugeriu a concepção “cerebralista” do humano, a existência de um aparelho cognitivo suficientemente desenvolvido, ou a preexistência de uma “episteme”. Pelo contrário, o desenvolvimento cerebral

Evolução da faca, dos primeiros estereótipos de pedra do Paleolítico até a faca moderna. Copiado de Leroi-Gourhan (1993), p. 303

133


dos hominídeos não era, para Leroi-Gourhan, senão um resultado de sua habilidade de produzir símbolos e ferramentas: a episteme emergindo originalmente da tekhne, e não o contrário. Leroi-Gourhan explicou essa teoria realocando a divisa evolutiva que tradicionalmente separava o humano do não-humano: ela não estaria mais no momento da consolidação do aparelho cognitivo do Homo sapiens, mas muito antes, no momento em que os primeiros hominídeos adquiriram a postura ereta. A conquista do bipedismo, que significava o libertar das mãos, daria início a um fascinante processo evolutivo que culminaria, apenas muito tempo depois, na consolidação do aparelho cerebral “humano” como o conhecemos. Ele defendia, portanto, que a partir do momento que os hominídeos puderam pela primeira vez pôr-se em pé, eles já eram essencialmente humanos: pois manter-se ereto significava liberar as mãos, e liberar as mãos significava a capacidade de fabricar ferramentas, ou a capacidade de exteriorização do indivíduo para além dos limites biológicos. Conforme apontou Stiegler, citando Leroi-Gourhan: elemento arqueológico determinante é o Zinjanthropus39, descoO berto em 1959, ‘acompanhado por seus implementos de pedra, (...) um homem com um cérebro muito pequeno, não um super-antropoide com um grande crânio (...). Essa descoberta requer uma revisão do conceito de ser humano’ (Leroi-Gourhan, 1993, p. 18), porque a consequência direta é a que o humano não começou com o cérebro, mas com os pés, e que na dinâmica geral então inaugurada – tanto antropológica quanto tecnológica – ‘até certa medida, o desenvolvimento cerebral é um critério secundário’. A postura ereta determina um novo sistema de relações entre esses dois pólos do ‘campo anterior’ [do corpo]: o ‘libertar’ da mão durante a locomoção é também o libertar da face de suas funções de agarrar. A mão necessariamente solicitará as ferramentas; as ferramentas da mão necessariamente solicitarão a linguagem da face40

O fato de o Zinjanthropus ter ‘liberado’ suas mãos, podendo então fabricar as célebres ‘pedras lascadas’ que ele utilizaria para caçar, possuiria profundas implicações evolutivas. Ele não mais precisaria de uma grande mandíbula, uma vez que não mais a empregaria para matar, mas apenas para processar presas previamente caçadas com o auxílio de suas novas próteses de pedra. Por isso mesmo, os sucessivos estágios de sua “hominização” envolveriam um encolhimento progressivo do aparelho mandibular, liberando espaço para o desenvolvimento do cérebro (e especialmente do córtex pré-frontal, a área responsável pelas ações coordenadas do aparelho facial e das mãos). Inaugurava-se uma espécie de “ciclo virtuoso” onde, quanto mais esses hominídeos produziam instrumentos, menos serventia tinham seus aparelhos mandibulares e, consequentemente, mais se desenvolviam seus córtices, responsáveis por suas aptidões manuais e faciais. LeroiGourhan argumenta que, para além da emergência da fabricação de 134

39. O Zinjanthropus bosei (ou Paranthropus bosei) foi uma espécie de Australopithecus que viveu há cerca de 2 milhões de anos na África. 40. Stiegler, B. (1998), p. 145. T.M.


41. Leroi-Gourhan, A. (1993), p. 113. T.M.

42. Ibid., p. 134

instrumentos, esse estágio evolutivo teria sido igualmente o momento da aparição das primeiras formas de linguagem, ou dos primeiros símbolos orais. Embora ainda escassos e representativos de situações “concretas”, esses símbolos já se diferenciavam dos simples sinais dos primatas por serem socialmente disponíveis, compartilháveis e reiteráveis na ausência daquilo que eles representavam. “Os humanos”, segundo Leroi-Gourhan, “apesar de terem começado com a mesma fórmula que os primatas, podem construir ferramentas assim como símbolos, ambos os quais derivam do mesmo processo, ou melhor, recorrem ao mesmo equipamento no cérebro”. De forma que “não apenas a linguagem é tão característica dos humanos quanto são as ferramentas, como ambas são a expressão da mesma propriedade intrinsecamente humana”41. A aparição da linguagem, e portanto a possibilidade mesma do lógos, estaria profundamente atrelada ao surgimento dos primeiros objetos técnicos, uma vez que ambos os processos se originariam dos mesmos mecanismos de “exteriorização” da memória, ou melhor, de criação de próteses. A teoria de Leroi-Gourhan parecia, portanto, apontar para uma noção do “ser humano” descrita como uma espécie de aparelho híbrido e descentralizado, muito anterior ao Homo sapiens: uma montagem produtiva entre esqueleto, cérebro, próteses (ferramentas e símbolos) e milieu. Um sistema sob um processo constante de diferenciação e “disseminação” do biológico em direção ao não-biológico, da memória genética à memória não-genética, do interior ao exterior. Um sistema que colocaria em cheque as tradicionais concepções essencialistas sobre um “espírito” humano que não se associa ontologicamente com os objetos técnicos. Se, portanto, o sentido de “ser humano” não admite mais ser mediado pelas fronteiras entre interior/exterior, episteme/tekhne; se não mais o primeiro termo antecede e controla o segundo, mas surge coextensiva e reciprocamente a ele, então a discussão sobre os fatos e os objetos da técnica – em qualquer área que seja – deve necessariamente ser deslocado das tradicionais relações de conflito que ela geralmente suscita. A técnica – a “tecnologia”, se quisermos – não está nem em uma relação de servidão com os seres humanos (ou com a “ciência”), e tampouco em estado de insurreição contra eles. A técnica, como tão bem definiu Stiegler, é a invenção do humano; uma proposição que imediatamente produz a ambiguidade com a qual ela deve sempre ser interpretada: “’Quem’ ou ‘o quê’ produz a invenção? ‘Quem’ ou ‘o quê’ é inventado?”42 Oposição x Recursividade A ideia de “objeto técnico” com a qual trabalhamos, portanto, nos remete à questão da invenção do humano pela técnica: uma invenção 135


operada pelos instrumentos, símbolos e por todas as outras próteses que ele cria e que, em troca, o constituem enquanto humano. Ou então: à ideia de que os objetos técnicos são irredutíveis à condição de instrumentos animados apenas por uma intenção a priori, ou imediatamente subservientes a uma função ou um desígnio externos pelos quais eles são “originalmente” concebidos. Essa conversa, no entanto, não nos parece nova: é a discussão mesma do phármakon platônico, da linguagem que “fala” o autor, do trabalho maquínico, da insurreição robótica ou, mais recentemente, das catástrofes anunciadas do “Antropoceno”, intensificadas pela progressiva “autonomia” dos sistemas técnicos organizados. Aporias teóricas que sempre nos alertaram sobre a falácia da unilateralidade instrumental entre seres humanos e tecnologia. Conceitualmente análogas, essas histórias se diferenciam apenas no que diz respeito ao nível de gravidade das calamidades que anunciam, ou aos graus de iminência do “limite” a ser transgredido. Em todas elas, subjaz a ideia de uma fissura entre aquilo que originalmente se diz sobre os benefícios da tecnologia, e a toxicidade constatada naquilo que os objetos técnicos efetivamente fazem ao entrar em funcionamento. De outro modo, trata-se de algo como um conflito entre o discurso humano (de forma ampla, o ato de “comandar” um conjunto de signos – ou próteses – segundo uma intenção pré-estabelecida, originada na episteme) e uma espécie de discurso não-humano (aquilo que os objetos técnicos parecem nos “responder”, segundo uma “intenção própria” que se forma em campo, e independentemente do desígnio humano). Somando-se a esse conflito a percepção de que o “humano” é cada vez mais dependente do “técnico”, o que se produz na maioria dos casos é o anúncio de uma crise, de uma “desumanização” operada pela tecnologia ou, como escreveu Stiegler, de “um divórcio, se não entre cultura e técnica, ao menos entre os ritmos da evolução cultural e os ritmos da evolução técnica. A técnica evolui mais rapidamente do que a cultura”43. O que queremos argumentar é que, na maioria desses casos, o real conflito não decorre de uma situação de “inversão” entre objetos técnicos e seres humanos, entre “cultura” e “tecnologia”. Na verdade, o que se lança efetivamente em crise é o conceito mesmo de humanidade, ou melhor, a ideia de “ser humano” que insistimos, a qualquer custo, em conservar. A história do discurso sobre a relação entre seres humanos e tecnologia é a história de uma oposição conceitual em desequilíbrio, onde um dos termos é submetido a uma evolução exponencial enquanto o outro, acometido por um profundo estado de negação, insiste em se conservar em um estado “originário”. O perigo, então, não é propriamente a artificialização do humano, no sentido de um suposto “desenraizamento” operado pelo não-humano, mas muito 136

43. Stiegler, B. (1998), p. 14. T.M.


mais a artificialidade do conceito de “ser humano”, conforme mantida historicamente pelas cosmovisões do antropocentrismo. Trata-se do perigo mesmo de conceber a tecnologia como um “monumento” no sentido tradicional: um veículo unilateral de discurso e autoridade epistêmica; a projeção de uma imagem e um desígnio humanos que desejamos que se conservem intactos em seu interior. A “monumentalização” da técnica, nesse sentido, pressupõe a representação, no objeto técnico, de um ser humano já bem-definido que narra e produz para si mesmo um destino planejado. Como escreveu Benjamin Bratton, em The Terraforming (2019), 44. Benjamin Bratton, The Terraforming (Moscou: Strelka Press, 2019), p. 15. T.M

( ...) a representação é, por vezes, revestida de um status especial, por meio do qual ela é percebida como a causa da coisa representada mais do que causada por ela. Disso se segue a noção de que as tecnologias sempre refletem, absorvem, ou então representam discursivamente a cultura humana mais do que moldam o contexto no qual a cultura opera44

Essa é precisamente a condição do desencanto: como é que podemos projetar uma imagem pré-determinada sobre a máquina, fazer dela um monumento à memória e ao desejo humanos, se as dinâmicas que governam o seu real funcionamento parecem fazer dela um ente cada vez mais indeterminável por funções e desígnios específicos? Como o signo de Derrida, a máquina se afasta cada vez mais de seu referente, da função representacional que ela originalmente cumpre e monumentaliza: seu curso evolutivo é necessariamente um acúmulo de indeterminações, pelo qual ele se torna indiferente (e diferente) a qualquer determinação discursiva específica. Ora, mas a história mesma da “hominização”, como vimos, é também a história da condenação humana a uma indeterminação evolutiva, a uma progressiva “desespecialização”, ou à sua emancipação de funções genéticas e biológicas específicas e determinadas a priori. Aquilo mesmo que, para Leroi-Gourhan, constituiu o rompimento da inércia biológica que inaugurou o “ser humano” – a liberação das mãos – define precisamente essa tendência de acúmulo de indeterminações que costumamos atribuir à performance dos objetos técnicos. Pois o que era o “libertar das mãos” se não o rompimento com uma determinação funcional prévia que, programada pela memória genética, fazia das mãos órgãos especializados unicamente para a sustentação e a locomoção? A partir do momento em que as mãos se “libertavam” da determinação quadrúpede, insubordinando-se ao apriorismo genético, elas adquiriam muitas outras funções imprevistas: “desespecializar” as mãos significava permitir a elas que acumulassem uma série de outras funções (como a produção de ferramentas e símbolos), sem no entanto se comprometer inteiramente com nenhuma delas. A “insubordinação” que emerge da evolução dos objetos técnicos em 137


funcionamento nada mais é do que o reflexo de uma propriedade bastante humana. Esse processo de acumulação funcional, desespecialização e diferenciação dos objetos técnicos corresponde ao que Simondon chamou de processo de concretização. Para Simondon, a única via realmente produtiva para se pensar o objeto técnico deve ser, ao invés de classificá-lo segundo estas ou aquelas funções, usos ou desígnios pré-determinados, a que considera esse objeto como um indivíduo inserido em um processo histórico de evolução e diferenciação. Atribuir a essência de um objeto técnico a uma classe particular de funções humanas que ele supostamente “cumpre” se torna uma tarefa ilusória, pois o critério da função pode reunir, sob um mesmo rótulo, um conjunto heterogêneo de objetos essencialmente distintos uns dos outros, e ao mesmo tempo separar em classes diferentes objetos tecnicamente correlatos. ( ...) um motor a vapor, um motor a gasolina, uma turbina, um motor movido a molas ou a peso são, igualmente, motores. No entanto, há mais analogia real entre um motor a molas e um arco ou uma balestilha do que entre esse mesmo motor e um motor a vapor; um relógio de pêndulo possui um motor análogo a um guincho, ao passo que um relógio elétrico é análogo a uma campainha ou um vibrador45

Segundo Simondon, “as espécies técnicas existem em número muito mais restrito do que os usos a que se destinam os objetos técnicos”46. Enquanto as necessidades e os desígnios humanos podem variar ao infinito ao longo do tempo, a tendência evolutiva dos objetos técnicos está sempre orientada para um estado de progressiva convergência funcional, onde um único tipo técnico tende a acumular cada vez mais funções em si mesmo. Simondon classifica essa tendência como a passagem progressiva de um estado abstrato (ou “analítico”, querendo dizer um estado de separação e independência entre partes) a um estado concreto (ou “sintético”, um estado de convergência e interdependência entre as partes) do objeto técnico. Em seu estado mais primitivo (abstrato) de evolução, o objeto técnico é composto pela combinação de elementos completos, em si mesmos autossuficientes, cada um deles altamente especializados em uma única função dentro da performance geral do objeto. Já no estágio concreto, considerado por Simondon o mais avançado, as partes do objeto técnico são inteiramente dependentes umas das outras no funcionamento geral do sistema. Nesse caso, não se pode mais falar em uma “montagem” de elementos autossuficientes, cada qual performando uma função particular, mas de um sistema de subconjuntos funcionalmente “superdeterminados”, isto é, onde cada um deles reúne uma pluralidade de funções. Um exemplo de concretização seria observável, segundo Simondon, quando comparamos um motor de automóvel de 1910 138

45. Simondon, G. (2020), p. 55

46. Ibid., p. 60


47. Ibid., p. 58 48. Ibid., p. 57

49. Ibid., p. 75

50. Ibid., p. 65

a um motor moderno. “No motor antigo, cada elemento intervém num certo momento do ciclo e, depois disso, supõe-se que não age mais sobre os outros elementos; as peças do motor são como pessoas que trabalham alternadamente, sem se conhecerem”47. No motor moderno, por outro lado, “cada peça importante é tão ligada às outras por trocas recíprocas de energia, que não pode ser diferente daquilo que é. A forma da câmara de explosão, a forma e as dimensões das válvulas, a forma do pistom, tudo isso faz parte de um mesmo sistema, no qual existe uma multiplicidade de causas recíprocas”48. O motor moderno não é mais uma montagem de elementos independentes, mas um único elemento que reúne diversas funções anteriormente separadas. “A concretização do objeto técnico”, escreveu Simondon, “pode ser traduzida como um traço de simplificação”49: o objeto técnico concretizado promove uma espécie de síntese, regido por um princípio de eficiência (mais com menos). E porque o objeto técnico concreto reúne uma pluralidade de funções, ao invés de uma única função especializada, ele tende a se tornar uma “máquina aberta” passível de ser empregada para um número indeterminado de usos. A concretização, no que ela reduz a especialização dos objetos técnicos, tende a aumentar a margem de indeterminação e as possibilidades funcionais desses dispositivos. Simondon observa que há duas condições distintas que influenciam na evolução dos objetos técnicos, ou seja, no seu processo de concretização. A primeira ele atribui aos fatores “econômicos” que incidem sobre o seu desenvolvimento. Trata-se de imposições sociais exógenas, como a exigência de diminuição das quantidades de matéria-prima, trabalho e energia empregados em seu funcionamento. Entretanto, embora esses fatores econômicos correspondam geralmente a critérios de eficiência, Simondon argumenta que nem sempre as imposições de natureza externa produzem um efeito positivo sobre a evolução do objeto, podendo até mesmo retardar ou fazer regredir seu processo de concretização. Podem haver, por exemplo, motivações sociais, políticas ou comerciais que induzem o objeto a se “fixar” a formas e funções predeterminadas, ou então a se diferenciar segundo critérios alheios à sua tendência técnica. Um exemplo desse “retardamento” técnico seria, para Simondon, o automóvel individual: um “objeto técnico carregado de inferências psíquicas e sociais”50 que tem seu desenvolvimento condicionado muito mais por tendências discursivas externas (como os ritmos da moda, a arte, a ideologia e os demais paradigmas “monumentalizantes” da cultura) do que por critérios propriamente técnicos. O segundo fator de concretização do objeto técnico seria, para Simondon, o que produziria os avanços mais significativos: trata-se das necessidades que emergem “internamente” do objeto técnico 139


no curso da experiência de seu uso. “O princípio desse progresso é a maneira pelo qual o próprio objeto se causa e se condiciona a si mesmo em seu funcionamento e nas reações de seu funcionamento ao uso”51. No nível de sua tecnicidade interna, o objeto técnico em funcionamento parece sugerir, retroativamente aos paradigmas científicos e culturais que o solicitaram originalmente, algo como um caminho, ou uma vocação técnica nem sempre antevista e planejada. Nesse caso, são os sistemas de necessidades e usos externos que acabam por se conformar ao sistema do objeto, “que assim adquire o poder de moldar uma civilização. O uso torna-se um conjunto talhado sob medida conforme o objeto técnico”52. ( ...) no objeto concreto, cada parte já não é apenas aquilo cuja essência é executar uma função desejada pelo construtor, e sim parte de um sistema em que se exerce uma multiplicidade de forças e no qual se produzem efeitos que independem da intenção de quem o fabricou53

51. Simondon, G. (2020), p. 66

52. Ibid., p. 62

53. Ibid., p. 76

Aqui, o que irrompe do objeto técnico não é apenas o vetor de sua diferenciação evolutiva, mas a possibilidade mesma de um conhecimento não intuído ou deduzido a priori. Ao invés de ser um produto de conhecimentos científicos aplicados ou, de forma geral, o veículo para funções e desejos sociais pré-concebidos, o objeto técnico se torna ele mesmo um operador da episteme, uma força “não-humana” capaz de, no limite, reconfigurar os modelos epistemológicos que o possibilitaram. Nas palavras de Simondon, os objetos técnicos concretos “já não são apenas aplicações de certos princípios científicos anteriores. (...) O estudo dos esquemas de funcionamento dos objetos técnicos apresenta um valor científico, pois esses objetos não são deduzidos de um único princípio; antes, testemunham um modo de funcionamento e uma compatibilidade que existem de fato e foram construídos antes que fossem previstos. Essa compatibilidade não estava contida em cada um dos princípios científicos separados que serviram para construir o objeto técnico. Ela foi descoberta empiricamente”54

As dinâmicas da concretização do objeto técnico nos trazem de volta ao problema de uma “vontade interna”, ou o que Simondon chamou de uma intenção profunda do objeto técnico, gerada independentemente do planejamento humano. Um problema que, quando interpretado pelo tradicional discurso “humanista” sobre a tecnologia, geralmente dá margem às costumeiras representações do “autômato” subversivo. Quando levado a sério, entretanto – quando assimilado por uma “consciência técnica” defendida por Simondon – o que esse problema revela é menos uma situação de “inversão” da tradicional relação instrumental entre humanos e objetos técnicos, e mais o que podemos 140

54. Ibid., p. 93. Grifo meu


55. Originalmente designado pelo nome A-4 (de Aggregat, termo alemão para designar uma espécie de montagem ou mecanismo mecânico) em 1937, o foguete balístico foi posteriormente renomeado pelo governo nazista para fins de propaganda política.

classificar como uma dialética de recursividade entre os campos da episteme (a ciência, a cultura, o pensamento em geral) e da tekhne. Só se pode falar em “inversão” quando se dispõe de termos mutuamente excludentes ou em relação de dominação, o que sabemos ser incompatível com a história da relação entre seres humanos e objetos técnicos. Trata-se muito mais, então, de um fenômeno de recursividade: aquilo que se estabelece, por exemplo, quando posicionamos um espelho de frente para outro. Nesse caso, o que se produz é um processo recíproco de trocas e diferenças incessantes: um “eu” que se lança sobre um “outro”, que nos lança de volta uma imagem diferente do “eu”, que em troca fabrica um outro “outro”, e assim por diante. Um movimento onde não há oposição entre origens e destinos, operadores e instrumentos, ciência e tecnologia, mas diferenciação e evolução mútuas. Bratton nos traz um exemplo emblemático, na história recente, no qual os efeitos recursivos da tecnologia moderna se tornam observáveis para muito além de transformações no pensamento “científico”, estendendo-se para o campo propriamente “monumental” dos discursos paradigmáticos da cultura humana. Trata-se da evolução técnica a que foi submetida o foguete nazista V-2 a partir de 1946, no contexto do progresso técnico-científico do pós-guerra. O V-2 (do alemão Vergeltungswaffe 2, ou “Arma de Retaliação 2”)55, projetado em 1937 por Wernher Von Braun a pedido do governo nazista, foi o primeiro foguete guiado de longo alcance, e teve seu desenvolvimento subsidiado com o objetivo exclusivo de bombardear os países Aliados da Europa (o que foi amplamente realizado entre 1944 e 1945). O V era, portanto, de vingança: mas não apenas uma vingança geopolítica, como também um exemplo paradigmático, para o discurso moderno, da sujeição da racionalidade humana ao progresso descontrolado e “irracional” da tecnologia. Mas como Bratton observou, após o término da Segunda Guerra, tendo demonstrado propriedades notáveis no curso de seu funcionamento, o uso bélico do V-2 se mostraria um mero rudimento do que a sua tecnologia permitiria posteriormente revelar. Este mesmo dispositivo de “desumanização” (originalmente encomendado para, literalmente, matar seres humanos), tendo sido confiscado pelos Aliados, seria posteriormente empregado para fins completamente diferentes. Em 1946, acoplado a uma câmera fotográfica, o V-2 foi empregado num lançamento vertical que, após cruzar a atmosfera terrestre, retornou não com um saldo de mortes, mas com a primeira fotografia da Terra tirada do espaço. A tecnologia do foguete nazista se tornaria, a partir de então, o gérmen para os primeiros empreendimentos de exploração espacial e sensoriamento remoto da Terra. Em 1972, o foguete tripulado Saturn V, desenvolvido pelo mesmo Von Braun 141



(agora a serviço dos EUA) e a partir do mesmo V-2, produziria a mais famosa fotografia do globo terrestre em sua totalidade. A imagem, batizada de Blue Marble, se tornaria uma espécie de monumento para um humanismo “planetarista” que começava a se esboçar: 56. Bratton, B. (2019), p. 11. T.M.

57. Ibid., loc. cit.

Foguete V2 capturado na Alemanha pelas forças Aliadas, 1945

V2 capturado em exposição ao lado da Coluna de Nelson, em Londres (1945)

“ Além de providenciar uma identidade visual para o nascente movimento ecológico, ela simbolizava o que Frank White posteriormente cunharia como o ‘efeito de visão geral’ [overview effect]: um efeito numinoso de profunda consciência [awareness], sentido por muitos que haviam experienciado o vôo espacial e visto a totalidade de nosso pálido ponto azul de uma única vez”56.

De alguma forma, um mecanismo originalmente concebido como uma arma de destruição humana adquiria, no curso de sua evolução técnica, novas funções que faziam dele menos um dispositivo de “desumanização” e mais uma espécie de aparelho de reflexão humana. As sucessivas iterações, ou concretizações, que transformavam o V-2 em Saturn V correspondiam a um acúmulo de novas funções pelo qual um simples projétil se tornava um mecanismo de sensoriamento e autoconhecimento humano. Se em 1946 a montagem entre foguete balístico e câmera fotográfica anunciava essa nova tendência técnica, em 1972, ao voltar para o espaço não apenas acoplado a dispositivos de sensoriamento mas tripulado por humanos, o foguete já se tornada algo como uma máquina senciente. Uma montagem recursiva e experimental entre humanos e não-humanos, de onde o que emergia era menos a confirmação de hipóteses e exigências humanas originais, e mais uma proliferação de novas hipóteses sobre a condição humana. A Blue Marble, o produto dessa estranha máquina, se tornava algo como um encontro inesperado com um espelho, onde o olhar projetivo do ser humano se deparava, sem querer, com o problema da sua própria imagem. Uma espécie de monumento acidental: uma representação não-planejada, ricocheteada de um aparelho originalmente concebido segundo os pressupostos instrumentais de um “ser humano” que seria, a partir de então, permanentemente deformado. “Um espelho”, escreveu Bratton, “que poderia despertar um desvio cosmológico para todos que o encarassem e honestamente buscassem sua lição”57. O V-2 saía da atmosfera como um monumento norte-americano, lançado em movimento pela ideologia nacionalista da Guerra Fria – e, num nível mais profundo, pelos postulados da tecnocracia humanista – e voltava carregando um estranho cosmograma, uma imagem-de-mundo sem quaisquer linhas demarcatórias, limites de soberania ou títulos de propriedade. E com esse cosmograma, era a ideia mesma de “ser humano” que começava a apresentar indícios de uma dissociação cognitiva, de uma reorganização das tradicionais demarcações cosmológicas e epistemológicas que separavam ser, natureza e técnica. Bratton identificou o caso da Blue Marble como pertencendo à uma linhagem (ocidental) de “Revoluções Copernicanas”, ou seja, a uma 143


sucessão histórica de rupturas com modelos cosmológicos que, de Platão a Heidegger, posicionaram o (conceito de) “ser humano”, em um lugar central e canônico de um mundo pensado “por e para o nosso ser”58. De forma similar ao deslocamento operado por Leroi-Gourhan em relação às teorias existentes sobre a singularidade originária do Homo sapiens, que ele só pôde contestar graças ao auxílio das técnicas modernas da paleontologia, a ideia de “Revolução Copernicana” representa uma ruptura com modelos antropocêntricos da realidade que só se efetuam por meio daquilo que a tecnologia nos “devolve” a despeito de nossas intenções iniciais. Posto de outro modo, trata-se de fato de uma operação de “desumanização”: mas uma desumanização que surge como a única possibilidade de um engajamento positivo com a inevitabilidade da condição humana enquanto condição tecnológica. Vale aqui citar uma passagem extensa, mas bastante elucidativa de Bratton: primeira revolução Copernicana implicava simultaneamente A uma desorientação da percepção e interpretação individuais (um sol aparentemente móvel agora percebido como estacionário), um desmantelamento de arquiteturas cosmológicas antropocêntricas (o senso-comum do heliocentrismo), [e] uma mudança disruptiva nas arquiteturas geopolíticas e geoeconômicas que se legitimam com esses modelos (...). Hoje, a revolução Copernicana significa também a reorganização da Terra não apenas como ela ‘realmente é’, mas como poderia ser. (...) nossos modelos cognitivos incluem abstrações narrativas que motivam e mobilizam uma cooperação extraordinária – mesmo quando obviamente arbitrárias –, incluindo a durabilidade e a coesão de instituições que mediam autoridade para impor essa cooperação. Entretanto, à medida em que a nossa cognição e agência se desenvolviam [sic] coextensivamente com as tecnologias, os novos aparatos perceptivos cumpriam as funções desejadas mas, por vezes, nos revelavam também uma realidade totalmente contraintuitiva, em conflito com o modelo de mundo que os havia possibilitado em primeiro lugar (modelos podem implicar a necessidade de máquinas que, quando usadas corretamente, provam que o modelo é falso). A resistência às implicações dessa surpreendente revelação, a fim de proteger a integridade do modelo inicial, é uma teimosa aderência tanto a uma ideia familiar do mundo, quanto à primazia da representação enquanto tal. As representações podem resistir à interferência das coisas representadas59

• • • A partir daqui, nossa intenção será isolar, da interminável gama de “objetos técnicos” que a nossa discussão poderia abarcar, um tipo que se mostrará particularmente interessante no contexto da discussão 144

58. Nesta passagem, Bratton se dirige especificamente a Heidegger, que muitos anos antes das missões espaciais, em 1938, já havia dito que a razão calculativa moderna fazia do mundo humano uma “imagem do mundo”, uma perigosa abstração. Bratton escreveu: “Em ‘Only a God can Save Us’, uma entrevista de 1966 (...), Heidegger celebremente disse: ‘Eu certamente me assustei quando vi as fotografias da Terra tiradas da lua. Nós nem mesmo precisamos de uma bomba atômica; o desenraizamento dos seres humanos já está em andamento’. A que tipo de humanos ele se refere, e que tipo de raízes eles deveriam ter? (...) A Terra que se perdeu para ele [Heidegger] é uma que havia aparecido na aura mistificada de um mundo que é singular, original e central, dado por e para o nosso ser”. Bratton, B. (2019), pp. 12-13. T.M. 59. Ibid., p. 15


"Blue Marble", a célebre fotografia capturada pela missão tripulada Apollo 17, da NASA, com o Saturn V (1972)

arquitetônica: a infraestrutura. Naturalmente, por se tratar de um domínio quase tão diverso quanto o campo geral dos objetos técnicos, não nos referimos a qualquer tipo de infraestrutura. Nosso foco estará, principalmente, no universo das infraestruturas urbanas e, mais especificamente, na parcela mais efetivamente “visível” desse conjunto. Ainda que essa seleção esteja longe de esgotar as implicações dos estudos infraestruturais para a arquitetura, ela nos possibilitará algumas reflexões interessantes, principalmente se considerarmos que o registro do visível é um dos pontos de maior identidade (e conflito) entre os “objetos arquitetônicos” e os “objetos técnicos”. Muito do que conhecemos por “infraestrutura”, na maior parte dos casos, diz respeito a objetos e/ou sistemas muitas vezes “invisíveis” ou de alguma forma periféricos. O próprio prefixo infra, designando “abaixo”, parece descrever justamente o caráter subalterno desses sistemas de objetos técnicos que, em oposição aos objetos “estéticos”, parecem não se apresentar a nenhuma forma de legibilidade, cognição ou apreensão estética em si mesmos. Na discussão arquitetônica, no entanto, o tema da infraestrutura adquire contornos mais particulares. Nesse caso, dada a própria natureza da disciplina, a ideia de infraestrutura parece solicitar, na maioria das vezes, aqueles objetos técnicos mais propriamente “visíveis” da paisagem urbana: pontes e viadutos, ruas, canais, instalações públicas e prediais, etc. Ou seja, todo o estrato infraestrutural visível e, portanto, passível ser observado não 145


apenas por seu caráter “funcional”, mas igualmente em função de sua interferência formal e estética na paisagem da cidade. Mas mesmo as infraestruturas efetivamente visíveis, salvo alguns casos interessantes que abordaremos adiante, via de regra estão comprometidas por alguma forma de “invisibilidade”, ou então condenadas a um estado de “mudez” próprio das coisas que classificamos como objetos técnicos. Como vimos anteriormente, a instrumentalidade e a servidão pela qual os objetos técnicos sempre foram caracterizados pelas epistemologias ocidentais descrevem também uma certa condição de invisibilidade, ainda que uma invisibilidade de coisas visíveis. Na arquitetura, ainda que se possa dizer que a relação com os “objetos técnicos” tenha atingido, com o movimento moderno, um estatuto relativamente novo (ainda que breve), a concepção “instrumental” da tecnologia nunca deixou de organizar o pensamento arquitetônico. Essa tradição está implicada no modo com que os arquitetos são tradicionalmente treinados para interpretar e intervir no espaço, e principalmente no espaço urbano: ela pressupõe que a cidade é organizada por uma hierarquia entre meios e fins, fundos e figuras, objetos de infraestrutura e objetos de arquitetura. Um modo de “ler” a cidade que, ademais, pressupõe que os limites do que os arquitetos se sentem confortáveis para chamar de “arquitetura”, enquanto sua jurisdição particular de autoria (e autoridade), coincidem com o perímetro formal do edifício, ou com o espaço figural da cidade. O volume “vazio”, ou o fundo da cidade, por outro lado, compreendendo todo o legado consolidado de infraestruturas urbanas e outros objetos “mudos”, aparece como um substrato neutro e factual: sua única função é mediar um sistema de atividades-fim que se encerram no interior das formas arquitetônicas, ou daquilo que Keller Easterling chamou de “formas-objeto”60. A responsabilidade sobre esse espaço infraestrutural costuma, então, ser delegada ao cuidado silencioso dos “técnicos” e experts (agentes versados nos conhecimentos herméticos da tecnologia, mas indignos do privilégio de falar em nome da cidade), para que todos possamos direcionar nosso olhar para coisas mais significativas. Mas se, por um lado, a ideia de fundo atribuída a esse conjunto “omisso” do espaço urbano composto por infraestruturas de transporte, distribuição, saneamento etc., revela uma hierarquia “textual” onde a camada discursiva ou visível da cidade se sobrepõe a um substrato não-discursivo e invisível, por outro lado uma perspectiva “materialista” da cidade nos permitiria inverter essa relação de subordinação. Poderíamos, então, dizer que a camada infraestrutural é a condição de existência da camada “figural” ou – por analogia com a teoria marxista 146

60. A ideia de “forma-objeto”, em Easterling, designa um paradigma conceitual do planejamento que tende a considerar o espaço arquitetônico e urbano como uma coleção de figuras, volumes e objetos (ou seja, formas extensivas), ao invés de uma rede associativa e dinâmica de formas ativas (intensivas).


– “superestrutural”. Como observou Brian Larkin, em Promising Forms: the Political Aesthetics of Infrastructure (2018), 61. Brian Larkin, “Promising Forms: the Political Aesthetics of Infrastructure”, in: Nikhil Anand, Hannah Appel, Akhil Gupta (eds.), The Promise of Infrastructure (Durham: Duke University Press, 2018), p. 178

62. Keller Easterling, Extrastatecraft: The Power of Infrastructure Space (Nova Iorque: Verso, 2014), p. 10

s infraestruturas possuem uma afinidade eletiva com essa A concepção [materialista], na medida em que elas são frequentemente vistas como uma tecnologia primária sobre a qual a forma é construída. (...) Existe aqui uma relação linear. A infraestrutura é primária; a forma, secundária61

Além do mais, a condição urbana das grandes cidades contemporâneas parece cada vez mais desafiar a tradicional interpretação de um espaço infraestrutural distinto e subordinado a um espaço figural. O acúmulo infraestrutural (a variedade e a densidade das “camadas” infraestruturais que irrigam um sistema urbano, da fibra ótica ao transporte ferroviário) não apenas parece se intensificar em um ritmo muito superior ao da demografia dos “objetos arquitetônicos”, como a paisagem infraestrutural que resulta desse acúmulo cada vez mais se confunde com a paisagem “figurativa” da cidade: a infraestrutura se torna a forma urbana por excelência. Como muito se falou nas últimas décadas da crítica arquitetônica, dessa espécie de “reversão” hierárquica parece resultar, de um lado, uma progressiva homogeneização dos aspectos formais e expressivos das cidades (dado o caráter genérico e padronizado dos sistemas infraestruturais), e de outro, uma gradual destituição dos tradicionais agentes “discursivos” da produção urbana (sobretudo arquitetos e planejadores) de sua autoridade sobre a paisagem das cidades. Como escreveu Keller Easterling, o espaço infraestrutural contemporâneo se torna o mais novo “assassino” da arquitetura e do urbanismo: gora, não apenas edifícios e parques corporativos, mas cidades A globais inteiras são construídas de acordo com uma fórmula – uma tecnologia infraestrutural. Nós não construímos mais cidades acumulando obras-primas singulares de edificação. Ao invés, a fórmula mais prevalente [é a que] replica Shenzen ou Dubai em qualquer lugar do mundo com uma bateria de arranha-céus genéricos. (...) a infraestrutura não é, nesse caso, a subestrutura urbana, mas a estrutura urbana em si – os próprios parâmetros do urbanismo global62

Mas mesmo quando não falamos exatamente do fenômeno das cidades globais (onde a ideia de “espaço infraestrutural” sugere, acima de tudo, tendências de homogeneização e padronização), uma consideração profunda de qualquer fato “infraestrutural” requer uma reorientação crítica e um distanciamento das tradicionais oposições entre infraestrutura e arquitetura, fundo e figura, objetos técnicos e monumentos etc., que há muito tempo mediam a discussão sobre as cidades. Em outras palavras, é preciso operar, nos estudos urbanos, um exercício 147


analítico que nas últimas décadas tem sido chamado de “inversão infraestrutural”. Segundo Penny Harvey et. al., “a inversão infraestrutural [tem] como objetivo abordar a tendência das infraestruturas de permanecer como panos de fundo invisíveis para a ação social, suas características sendo [comumente] explicáveis em função das forças, interesses e ideologias sociais que convergiram para criá-las”63. Trata-se de, nos termos mesmos do planejamento urbano, de uma reversão da tradicional relação “figura-fundo” segundo a qual, via de regra, as infraestruturas urbanas são compreendidas como reflexos de condições culturais preexistentes. Há diversos modos de se conceber uma inversão infraestrutural. Se a entendemos como um esforço analítico de “visibilização” das infraestruturas urbanas, ela pode, por exemplo, tornar a atenção para as relações de recursividade entre sistemas técnicos e sociais, revelando como, no funcionamento muitas vezes “invisível” das infraestruturas, “cadeias complexas de relações materiais reconfiguram corpos, sociedades e também conhecimentos e discursos de modos muitas vezes despercebidos”64. Ou então, como fez Brian Larkin, torna-se possível problematizar as infraestruturas não apenas a partir de seu funcionamento “de 148

↑ Aqueduto romano em Segóvia, na Espanha, construído no séc. I d.C. Gravura de J. C. Armytage (1847) 63. O conceito de “inversão infraestrutural” foi criado em 1994 por Geoffrey C. Bowker, que dedicou sua obra ao estudo das implicações sociotécnicas de diversos tipos de sistemas infraestruturais. Ver: Harvey, P., Jensen, C.B., Morita, A. “Infrastructural complications”, in: Harvey, P.; Jensen, C.; Morita, A. (eds.). Infrastructures and Social Complexity: a companion (Londres: Routledge, 2017), p. 3. T.M. 64. Ibid., loc. cit.


65. Larkin, B. (2018), p. 176. T.M. Grifo meu

fundo”, mas igualmente em função de suas propriedades formais e representacionais, voltando a atenção para uma certa vocação monumentalizante da produção infraestrutural. Ou seja, nos modos com que, na presença das infraestruturas urbanas, “racionalidades políticas são formadas, fazendo-se palpáveis, e disseminadas por veículos semióticos e estéticos orientadas a destinatários”65. Nosso objetivo será investigar dois desses modos de “inversão infraestrutural”, de forma a delinear alguns dos principais desafios enfrentados pela arquitetura e pelo planejamento em contextos urbanos cada vez mais condicionados por dinâmicas infraestruturais. Posteriormente, tentaremos esboçar, partindo da noção de espaço infraestrutural de Keller Easterling, algumas diretrizes para uma prática de arquitetura menos resignada e mais comprometida com os problemas suscitados pelos novos modelos de cidade inaugurados pela ubiquidade desses sistemas. Infraestrutura monumental

66. Ibid., p. 175

“No estudo das infraestruturas”, escreveu Larkin, “a forma é algo ubiquamente visível e, ao mesmo tempo, ausente da consideração analítica”66. Ou seja, muitas das análises que tomam a infraestrutura como objeto central de investigação costumam ainda pressupor que a invisibilidade é uma propriedade essencial desses sistemas. Talvez por isso mesmo elas tendam a se limitar, quase sempre, à análise de suas propriedades estritamente “técnicas” ou funcionais, concebendo as infraestruturas como sistemas imateriais de relações, mediações e finalidades entre coisas, pessoas ou formas propriamente ditas, estas últimas representando a parte “visível” da análise. Mesmo quando são mais imediatamente percebidas como “coisas” delimitáveis, por exemplo ao se falar de uma ponte, a forma das infraestruturas é quase sempre relativizada: a presença formal, os aspectos materiais e semânticos dessa ponte são fatos secundários em relação às coisas e agentes externos que ela permite interligar, relacionar e movimentar. Por analogia com os fatos linguísticos, as infraestruturas parecem pertencer muito menos ao universo dos signos e dos enunciados do que ao das regras morfossintáticas de uma “gramática da cidade”; quando muito, elas são algo como conjunções, advérbios ou outros elementos secundários de ligação. Os aspectos formais da infraestrutura, portanto, são geralmente dissociados e subordinados aos seus aspectos funcionais e logísticos; de forma que, mesmo quando efetivamente visíveis, as infraestruturas costumam estar sujeitas a uma prática de invisibilização. Essa concepção parece, ainda, por demais atada à metáfora marxista da formação social, onde “infraestrutura” designaria um conjunto imaterial e imutável de relações produtivas sobre os quais 149


se assentariam as operações propriamente formais ou “superestruturais” da política e da ideologia. Mas em se falando de infraestruturas urbanas, a analogia com a metáfora marxista atinge limites bastante claros. Isso porque a “ontologia peculiar” das infraestruturas, escreveu Larkin, “reside no fato de que elas são coisas e também uma relação entre coisas”67. O domínio das infraestruturas urbanas não é apenas o das relações, mas também o domínio dos objetos. Larkin defende, além do mais, que a forma da infraestrutura não diz respeito apenas aos seus atributos estritamente “visíveis” de coisa, mas se estende igualmente aos seus aspectos relacionais e funcionais. “A forma é (...) uma relação entre humanos e tecnologia assim como uma coisa em si mesma; é o meio onde infraestrutura e usuário se encontram. Não pode haver técnica sem forma”68. Nas infraestruturas, forma é a relação de interface entre sujeito e objeto técnico: uma relação que não pode ser abstraída à condição de simples “processos materiais”, pois na medida em que envolve sujeitos, ela adquire disposições necessariamente estéticas. Torna-se impossível, dessa forma, pressupor no contexto da cidade a existência de um “espaço infraestrutural” de objetos técnicos em oposição a um “espaço figural” de objetos arquitetônicos. Todo objeto ou sistema técnico, tal qual o “objeto estético”, solicita uma forma. A dimensão da forma nos diz que a atenção ao tema da infraestrutura não deve interessar apenas ao trabalho dos planejadores ou dos analistas técnicos, mas deve ser estudado também a partir de suas implicações antropológicas e políticas: a forma, afinal, é o encontro mesmo entre o humano, o não-humano e o político. Na introdução de The Promise of Infrastructure (2018), Nikhil Anand et. al. discutem, por exemplo, sobre o valor etnográfico dos estudos infraestruturais. Entendendo que “a política não é formada e constrangida apenas por práticas jurídico-políticas, mas toma forma também em um terreno tecnopolítico constituído de tubulações, grids energéticos e banheiros”, o estudo das infraestruturas “providencia um novo suporte para desfamiliarizar e repensar o político”69. A dimensão estética das infraestruturas, entendida de forma ampla pelo conceito de “interface”, diz respeito a esses modos pelos quais as determinações políticas são vividas pela população no contato cotidiano com esses sistemas técnicos. Não falaremos, portanto, de um espaço “visível” em oposição a um espaço “invisível”. Na verdade, nem mesmo há tal coisa como uma pura “invisibilidade” infraestrutural: mesmo os sistemas majoritariamente ocultos (pensemos, por exemplo, numa rede de fibra ótica) possuem aflorações, ou interfaces estéticas entre seres humanos e infraestruturas (um conjunto de aparelhos domésticos conectados a uma rede de fibra ótica representam essas aflorações estéticas do sistema). Quando falamos da paisagem urbana, a questão da “invisibilidade” se torna uma suposição ainda mais contestável, uma vez que a 150

67. Brian Larkin, “The Politics and Poetics of Infrastructure”, in: Annual Review of Anthropology, vol. 42 (Palo Alto: Annual Reviews, 2013), p. 329. Grifo meu 68. Ibid., loc. cit.

69. Nikhil Anand, Hannah Appel, Akhil Gupta, “Temporality, Politics and the Promise of Infrastructure”. In: The Promise of Infrastructure (Durham: Duke University Press, 2018), p. 4


tecnosfera infraestrutural é responsável por boa parte da experiência estética e afetiva nas cidades, podendo por vezes assumir uma presença bastante ostensiva. 70. Larkin, B. (2018), p. 186

71. Ibid., p. 176

→ Torre de TV de Brasília, 1990 (próx. pág.)

Complexo viário em Lagos, Nigéria, 1979 (próx. pág.)

( ...) as infraestruturas não são normativamente invisíveis, sendo trazidas à visibilidade [apenas] por algum tipo de ato excepcional. Visibilidade e invisibilidade não são propriedades ontológicas das infraestruturas; ao invés, visibilidade ou invisibilidade acontecem como parte de processos técnicos, políticos e representacionais. É por isso que a distinção entre infraestruturas espetaculares e mundanas não deve figurar uma relação de oposição, mas representando diferentes estilos de visibilidade70

Há ainda um segundo sentido que Larkin atribui à ideia de “forma” na infraestrutura. Trata-se da forma entendida como um veículo para discursos e racionalidades políticas que tomam forma nessas infraestruturas. As infraestruturas, tais quais os objetos artísticos, “são feitas de desejo assim como de concreto ou aço, e separar estas dimensões significa deixar escapar os poderosos modos pelos quais elas são consequenciais para o nosso mundo”71 . Para Larkin, as infraestruturas urbanas são os marcadores privilegiados do que ele chamou de “estética política”, ou os modos pelos quais os desígnios políticos são enformados, discursiva ou não-discursivamente, e trazidos à experiência e à subjetividade da população. A infraestrutura se torna, por assim dizer, a “textualização”, ou a materialização de racionalidades políticas e modos de governança. O problema da “estética política” nos conduz a uma primeira aproximação com o que podemos chamar de infraestrutura monumental. De fato, a ideia de que as infraestruturas urbanas podem cumprir (para além de funções puramente técnicas) objetivos políticos, representacionais e discursivos, descreve um fato tão antigo quanto a própria história das civilizações humanas. Dos milenares aquedutos romanos às modernas autopistas expressas, as infraestruturas urbanas sempre tendem a ser muito mais do que objetos técnicos: elas são, como observou Larkin, objetos conceituais que promovem, além de fluxos energéticos e materiais, também trocas simbólicas, cognitivas e ideológicas que são parte indissociável dos mecanismos de poder. A construção de infraestruturas, uma operação historicamente mediada pelo Estado (ou suas instituições correlatas), sempre foi uma operação bastante similar – e por vezes indissociável – à construção de monumentos. Não apenas pelas transformações estéticas e geográficas imediatas que a implementação de infraestruturas, tal qual a de monumentos, impõe à paisagem das cidades, mas igualmente por seus aspectos representacionais e discursivos. Segundo Larkin, a ideia de “infraestrutura” possui raízes conceituais no pensamento liberalista do Iluminismo, que reivindicava “um 151




mundo em movimento e aberto à mudança onde a livre circulação de bens, ideias e pessoas criava a possibilidade de progresso”72. Não há como dissociar a construção de infraestruturas dos efeitos co-memorativos que ela mobiliza: não só porque a própria natureza das infraestruturas faz delas objetos de práticas sociais cotidianamente ritualizadas, como porque os discursos de “modernidade”, “evolução” ou “progresso” tecnológico que costumam envolver esses empreendimentos produzem sempre modos coletivos de relação com o tempo histórico. Se, tradicionalmente, as práticas “monumentais” de Estado eram geralmente restritas à construção de edifícios, obeliscos e outros monumentos referenciados numa história sobretudo passada, a noção de “progresso” cultivada a partir do Iluminismo e das revoluções industriais envolveria não apenas uma reorientação do impulso historiográfico em direção ao futuro, como também a emergência novas tipologias monumentais mais adequadas à “vontade” do tempo. Fábricas, ferrovias, rodovias, barragens, aeroportos etc. se tornariam, na modernidade, os principais focos da cognição “monumental” da sociedade em relação à sua história. Embora tenha se consolidado principalmente nos países industrializados no início do séc. XX, a tendência da infraestrutura monumental adquiriria, ao longo das décadas, contornos especialmente dramáticos nos países emergentes do dito “Sul Global”. Nesses casos, onde a relação social com um passado histórico muitas vezes trágico (ou então recalcado, imaginado como inexistente) costuma mobilizar uma aderência particularmente forte às noções de progresso e modernidade, as infraestruturas se tornaram o principal veículo para a difusão de discursos políticos e representações monumentais. No Brasil, por exemplo, a ideia de “nação”, sobretudo a que se constituiu ao longo do século XX, se mostrou profundamente associada aos empreendimentos infraestruturais. Todo o período que se estende da Era Vargas, passando pela construção de Brasília, pelo nacional-desenvolvimentismo da ditadura militar, e culminando nos modelos neoliberais da “cidade global” da década de 90, podem ser interpretados como um esforço contínuo de construção identitária inseparável dos grandes projetos de “modernização” infraestrutural. Esses projetos não apenas materializavam novos vínculos geográficos, econômicos e produtivos entre uma multiplicidade de territórios antes dispersos; na verdade, esses gestos de integração infraestrutural correspondiam, em mesma medida, a esforços discursivos de coesão entre os signos que comporiam o sistema ideológico “total” da nação. Posto de outro modo, as infraestruturas nacionais dos vários períodos do “desenvolvimentismo” brasileiro eram também infraestruturas nocionais: elas serviam não apenas para transportar bens e produtos 154

72. Larkin, B. (2013), p. 332


Ponte Octávio Frias de Oliveira, inaugurada em 2008 na marginal do Rio Pinheiros, em São Paulo - SP 73. Brasília, Sinfonia da Alvorada (1959), de Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes, é um poema sinfônico composto para celebrar a inauguração de Brasília, em 1960.

ou comunicar populações, mas efetivamente para transmitir ideias, representações e agência política. Em muitos casos, a construção de infraestruturas se tornava um gesto cosmogônico, fundacional para diversas nações emergentes. Tomemos o caso de Brasília, onde, não por coincidência, o marco-zero da cidade (e, por extensão, da própria “nação” que nascia) é precisamente o ponto de intersecção entre os chamados eixo monumental e eixo rodoviário. Com esse gesto, associado ao contexto discursivo maior da construção de Brasília, tudo indicava que o Brasil nascia ali, naquele ponto mágico onde se instalou a rodoviária de Brasília: ao mesmo tempo infraestrutura, monumento e pedra fundamental. Ainda que boa parte do esforço publicitário do empreendimento recorresse a um antigo repertório de lendas e profecias para justificar um destino histórico inevitável, por outro lado tudo indicava que não havia um Brasil antes de Brasília, antes daquela fatídica rodoviária. “No princípio, era o ermo...”, anunciava a Vinícius em sua Sinfonia da Alvorada: “Não havia ninguém. A solidão mais parecia um povo inexistente dizendo coisas sobre nada”73. Aqui, integração territorial 155


e integração cosmológica, infraestrutura e nação surgiam como uma coisa só. A mesma convergência entre impulso monumental e produção infraestrutural se repetiria, uma década depois, com o Plano de Integração Nacional (1970) proposto por Médici, do qual a Rodovia Transamazônica seria o mais significativo fruto. De modo bastante similar à construção de Brasília, o projeto da Transamazônica envolvia muito mais do que a mobilização de recursos materiais e econômicos, pois seu sucesso estava condicionado a um esforço popular de engajamento ideacional com os signos do progresso. “Modernizar”, “desenvolver” e “integrar” eram muito mais do que mandamentos técnico-econômicos aplicáveis por simples atos jurídicos e administrativos, mas ideias que deveriam ser, antes de mais nada, devidamente germinadas no espírito da população. A Transamazônica era uma infraestrutura falada, mítica, que deveria integrar sistemas ideológicos antes de conectar territórios físicos. Nesse sentido, o Plano de Integração Nacional era também um plano de subjetivação nacional, do qual deveriam emergir, antes mesmo das infraestruturas, os sujeitos que a possibilitariam. A Transamazônica, como escreveu Matilde de Souza, deveria ser “a obra de um povo estimulado a desejar, a almejar ser uma nação”74. Aqui também a infraestrutura se torna a condição de surgimento de uma forma de coletividade que, sem ela, ainda não é “nação”, ainda não entende a si mesma como um “todo coeso”, interligado, compartilhando uma mesma história, as mesmas práticas e os mesmos desejos. A infraestrutura se torna monumento, um objeto reflexivo capaz de inventar uma nação e situá-la no tempo histórico: [ A rodovia] aberta na solidão, na infinitude, no semidesconhecido da selva, surge como a possibilidade da travessia: do passado, da tradição, de um ‘estado de natureza’, para o futuro, a modernidade, a história, a cultura; do semidesconhecido para o conhecido, codificado, relatado, civilizado75

Num recorte histórico mais recente, poderíamos destacar, como fez João W. Ferreira, o papel que tiveram as histórias e mitos da globalização, e seus respectivos agentes publicitários, na consolidação da região da Marginal do Rio Pinheiros, em São Paulo, como uma “centralidade global de negócios”76 nos anos 90. Como observou Ferreira, os grandes empreendimentos públicos de infraestrutura que reconfiguraram a paisagem da região (abertura de avenidas, construção de pontes e estações de trem, obras de drenagem, etc.) com velocidade e eficiência inusuais, pareciam ser menos produtos de demandas materiais e econômicas do que de um amplo esquema privado de “marketing urbano” – uma infraestrutura discursiva – que persistentemente reivindicava para a capital paulista o título de “cidade global”. Somando-se a isso a (já tradicional) exper156

74. Matilde de Souza, “Transamazônica: Integrar para não Entregar”, in: Nova Revista Amazônica, v. 8, n. 1 (Belém: Periódicos UFPA, 2020), p. 140

75. Ibid., loc. cit.

76. João Sette Whitaker Ferreira, São Paulo: o Mito da Cidade-Global (São Paulo: FAUUSP, 2003), p. 8

→ Mundo da Xuxa, parque de diversões que funcionou de 2003 a 2015 dentro do Shopping SP Market, numa zona industrial nos arredores do Rio Pinheiros, zona sul da capital paulista.



tise dos gestores públicos na extração de capital político e simbólico de projetos infraestruturais, a ideia da “cidade global” se tornava a mola propulsora de uma “máquina de crescimento urbano (...) baseada em coalizões entre as elites urbanas locais e o Poder Público”77. Mas a despeito da intensa campanha em torno da necessidade de reconhecer a capital paulista como um “ponto nodal” em uma rede planetária de cidades do capital financeiro internacional, Ferreira repara que: observação dos dados empíricos da cidade mostra que ela não A apresenta nenhum dos atributos típicos da ‘cidade-global’: ela não se situa na rota dos grandes fluxos da economia global, não sofre de um processo de desindustrialização estrutural nas mesmas proporções do que as cidades desenvolvidas, não vê o ‘terciário avançado’ se sobrepor aos outros setores da economia, etc.78

Não havia, portanto, demandas “concretas” suficientes que explicassem o desenvolvimento vertiginoso (e a proporcional injeção de recursos públicos) da região. O que havia, no entanto, era um eficiente e coordenado empreendimento de incorporação privada, iniciado ainda nos anos 70, que começava a povoar a várzea do Rio Pinheiros com “edifícios ‘inteligentes’ de porte nunca antes vistos”79: obras de arquitetura icônicas que já recorriam a uma certa estética infraestrutural (ou high-tech) antes mesmo das infraestruturas em si. Um projeto de marketing urbano que, com sucesso, atraiu ao longo das décadas seguintes um montante de investimentos e projetos públicos de infraestrutura sem precedentes. A subsequente associação do setor público àquele grande teatro de símbolos faria da marginal do Rio Pinheiros, nas décadas seguintes, um verdadeiro laboratório de infraestruturas monumentais, enclavado em um contexto urbano e político que mal havia abandonado os traços e “as dificuldades impostas por sua herança colonial”80. Todos os casos relatados acima nos sugerem que o problema da infraestrutura nunca pode ser suficientemente interpretado apenas em função dos atributos técnicos, materiais e econômicos que tendem a ser considerados como “específicos” dos objetos técnicos. Até porque não se trata de uma constatação nova: muito do que dizem os mais recentes estudos da “antropologia das infraestruturas” sempre foi bastante familiar ao conhecimento popular, especialmente nos países emergentes. Brasil adentro, são inúmeras as histórias sobre pontes que “levam do nada a lugar nenhum”, obras infraestruturais que buscam resolver problemas técnicos inexistentes, ou que funcionam como moeda de troca entre políticos e suas comunidades eleitoras. Todas elas parecem descrever o fato de que os sistemas técnicos são sempre, em maior ou menor medida, antecipados, regulados e condicionados por sistemas discursivos e representacionais – ou que se tem mais comumente pelo adjetivo “monumental”. Se retomarmos a 158

77. Ferreira, J. (2003), p. 8. Grifo meu

78. Ibid., loc. cit.

79. Ibid., p. 92 80. Ibid., p. 8


81. Larkin, B. (2013), p. 335

82. Id., (2018), p. 182

83. Ibid., p. 181

84. Ver: Anand, N. et. al. (2018)

Simondon, lembraremos que a forma e o desenvolvimento dos objetos técnicos estão sempre atrelados a condições sociais e discursivas, modelos epistemológicos, premissas científicas e racionalidades políticas externas que podem tanto contribuir positivamente para o funcionamento desses objetos como subordiná-lo a dinâmicas alheias à suas tendências técnicas “internas”. Brian Larkin, nos termos de sua “estética política” dos objetos técnicos, concebeu de forma bastante similar a ideia de uma poética da infraestrutura, ou o modo pelo qual “a forma é dissociada da função técnica”81. Nesse caso, o funcionamento efetivo das infraestruturas parece se dar muito mais no plano das técnicas representacionais da política do que segundo critérios de eficiência “interna” desses sistemas. Tomemos, como mais um exemplo, o estudo do próprio Larkin sobre a implementação da infraestrutura de rádio na Nigéria colonial nos anos 40. Apesar das condições extremamente desfavoráveis ao empreendimento – os racionamentos impostos pela Guerra, a urgência por infraestruturas mais prioritárias em uma colônia subdesenvolvida, a ausência de mão-de-obra capacitada e as resistências particulares dos modos de vida do país – os dirigentes da colônia fizeram de tudo para que o projeto fosse assimilado como uma prioridade absoluta para a Nigéria. Larkin observa que, para que isso fosse possível, toda uma infraestrutura discursiva teve de ser mobilizada; uma que, por meio de “reuniões, minutas, cartas e despachos” oficiais fizesse penetrar em todas as camadas administrativas da colônia o imperativo de uma modernização inadiável. “A expectativa era a de que o rádio pudesse produzir pessoas de mentalidade moderna, despertar as forças do progresso e refazer subjetividades – e assim, desencadear as forças circulatórias do capitalismo liberal”82. As ações dessas lideranças administrativas ( ...) eram impulsionadas por uma lógica de racionalidade governamental que proporcionava as condições externas para a existência do rádio. Sem elas, o cobre não era importado, os postes não eram erguidos e o pessoal não era treinado. A materialidade do rádio enquanto montagem tecnológica – seus microfones e autofalantes, amplificadores, fios elétricos, postes de telefonia – só se concretizava em razão dos argumentos não-materiais que governavam a existência desses elementos83

Esse modo de existência das infraestruturas, que descrevemos até agora como “monumental”, “poético” ou “discursivo”, tem sido expresso em estudos recentes pela noção de promessa da infraestrutura84. A ideia de “promessa” é particularmente interessante quando aplicada aos estudos infraestruturais, não apenas porque associa o universo dos fatos discursivos ao dos objetos técnicos, mas porque 159



85. Larkin, B. (2013), p. 333

descreve muito precisamente uma relação na qual as infraestruturas nos “formam enquanto sujeitos (...) através da mobilização de afetos e sentimentos de desejo, orgulho e frustração, sentimentos que podem ser bastante políticos”85. Anand et. al também descrevem a promessa das infraestruturas em termos similares:

86. Anand, N. et. al., (2018), pp. 20-1

s infraestruturas são lugares críticos através dos quais a política A se traduz de uma racionalidade para uma prática (...). Elas são um terreno material e aspiracional de negociação para as promessas e éticas da autoridade política, e para a construção e desconstrução de sujeitos políticos. Porque as infraestruturas distribuem recursos vitais que as pessoas necessitam para viver – energia, água, informação, alimento – elas frequentemente se tornam lugares de negociações ativas entre agências de estado e as populações que elas desigualmente governam86

87. Larkin, B. (2018), p. 182 88. Ibid., loc. cit.

Obras de retificação do Rio Tietê, em São Paulo. 1938

Still do filme "Bye-Bye Brasil" (1979), de Cacá Diegues. A cena mostra a companhia de circo Caravana Rolidei percorrendo a Rodovia Transamazônica, atraídos por rumores e promessas de glória da região amazônica

Lembremos, por exemplo, daquilo que implicam os “atos de fala”, dentre os quais a promessa pode ser isolada como um tipo interessante. Uma promessa, como todo ato de fala, é mais do que um fato comunicacional: é uma ordem de produção. A promessa é uma espécie de “monumento” no sentido tradicional; ela envolve o emissor da promessa, a promessa em si e o receptor da promessa numa relação contratual – uma “negociação” – da qual emerge um certo estado de coisas, sujeitos, histórias e expectativas. A promessa, como o monumento, é também um artifício de temporalização: primeiro porque ela tem algo de um marco histórico co-memorativo (“lembre-se do que você me prometeu...”), mas também porque ela representa e conserva suspenso um certo tempo futuro; a promessa produz uma antecipação, um desejo, uma expectativa que tem o poder de motivar e transformar os sujeitos aos quais ela é endereçada. Dizer que infraestruturas são promessas, nesse sentido, significa que elas se inserem sempre em um determinado arranjo afetivo e disciplinar entre sistemas técnicos e as populações que interagem com eles. Uma promessa infraestrutural pode surgir para apaziguar ou prorrogar conflitos urbanos, arrecadar capital político, construir identidades coletivas, e até mesmo para criar desejos antes inexistentes (o “marketing urbano”). No caso relatado por Larkin sobre a infraestrutura de rádio na Nigéria colonial, a promessa era a de expor uma população vista como “retrógrada” a “modos alternativos de vida que teriam o efeito cognitivo de libertá-los de seus tradicionais mundos-da-vida [lifeworlds]”87. A infraestrutura, enquanto promessa, “era uma máquina que operava sobre a cognição das pessoas, forjando novos sujeitos sociais”88. Da promessa infraestrutural emergem o que podemos chamar de sujeitos infraestruturais: os produtos de uma 161


“relação afetiva” entre Estado, população e infraestrutura moldada por “noções de futuridade”89. Mas a promessa da infraestrutura não é simplesmente um artifício representacional. Ainda que ela se refira à possibilidade de realização de um estado futuro das coisas (como um “destino” moderno), ela é ainda assim vivida no presente. A promessa das infraestruturas é uma realidade material e estética assim como representacional. Larkin descreve essa realidade não só como a assimilação consciente de um discurso político ou de uma representação, mas como “uma experiência encarnada governada pelos modos com os quais as infraestruturas produzem condições ambientes de experiência (...). As infraestruturas criam um senso de modernidade, um processo pelo qual o corpo, tanto quanto a mente, apreende o que é ser moderno, mutável, progressista”90. A nossa ideia de um “sujeito infraestrutural” descreve, portanto, um processo de subjetivação que não ocorre simplesmente no nível dos discursos e das representações que envolvem os objetos infraestruturais, mas no plano da experiência que o funcionamento dessas infraestruturas solicita dos sujeitos. Para atravessar uma ponte urbana ou percorrer uma via expressa, por exemplo, é preciso que nos tornemos um tipo específico de sujeito, um que se desloca a 90km/h, que vive a promessa na pele; que ritualiza cotidianamente a velocidade, o desimpedimento, a eletricidade, o ar-condicionado e os sons do rádio como atributos inalienáveis do seu modo-de-ser; um sujeito que já não é mais simplesmente humano e tampouco não-humano, mas uma montagem concreta entre ser, automóvel e infraestrutura. Mas essa dimensão concreta da experiência infraestrutural, pela qual a promessa da modernidade é vivida empiricamente no presente, nos coloca diante de novos problemas. Pois o que é particular das promessas – assim como das infraestruturas – é que, na realidade, elas estão constantemente sendo quebradas. Tomemos, por exemplo, os efeitos práticos relatados por Larkin sobre a implantação do rádio na Nigéria:

89. Anand, N., et. al. (2018), p. 27

operação técnica do rádio foi dramaticamente afetada pela vida A física que ele levava na Nigéria, onde ele interagia com cupins, umidade e com a poeira do harmatão, o que frequentemente fazia com que os componentes de rádio falhassem. Essas operações materiais não estavam sob o controle do desígnio humano, mas eram parte das contingências inesperadas de tudo aquilo que pode acontecer com máquinas na vida real91

91. Larkin, B. (2018), p. 183

Toda promessa está sujeita a uma série de eventualidades da realidade concreta, em função das quais ela se dá como cumprida ou frustrada. Ela está exposta a tudo aquilo que pode acontecer quando essa promessa é situada, posta à prova, deslocada da sua pureza discursiva. Em outras palavras, a toda promessa se sucede uma espécie 162

90. Larkin, B. (2013), pp. 336-7


de efeito feedback que nunca pode ser inteiramente previsto por quem a profere. Essa constatação é importante porque, se queremos compreender as infraestruturas urbanas enquanto fenômenos discursivos e simbólicos, devemos compreender, para além do “o quê” das infraestruturas, tudo aquilo que emerge do “como” de seu funcionamento real – exatamente como quando falamos, anteriormente, das indeterminações semânticas a que estão sujeitos os signos em um sistema social concreto. As próximas páginas serão dedicadas a essa dimensão retroativa – ou, como tem sido chamada, recursiva – da interação entre desígnio e realidade, sistemas epistêmicos e sistemas técnicos, seres humanos e infraestruturas. Monumento infraestrutural própria estrada parecia falar com ele. ‘Eu esmagarei a velha Fada – A eu mudarei tudo e todos dentro dela. Eu abolirei os velhos modos, as velhas ideias, a velha lei; eu trarei riquezas e oportunidades para o bem e para o mal, novos poderes para os homens e portanto novos conflitos. Eu sou a revolução (...). Eu sou a sua ideia. Você me fez’ – Joyce Cary92 92. Trecho do romance Mister Johnson (1939), de Joyce Cary (Londres: Michael Joseph, 1961), p. 169. T.M. Disponível online no site gutenberg.ca.

Quando nos referimos anteriormente às infraestruturas monumentais, entendemos como as infraestruturas podem se comportar à maneira dos “monumentos”, no sentido tradicional do termo. Dissemos, portanto, que as infraestruturas são frequentemente concebidas pelo Estado da mesma forma com que ele produz monumentos (de fato, ambos infraestrutura e monumento são tradicionalmente tecnologias de Estado): elas são instrumentos representacionais e “poéticos” que, para além de uma função estritamente “técnica”, operam discursivamente sobre seus usuários, solicitando deles um engajamento afetivo e ideológico com as mensagens veiculadas por elas. Nesse caso, a ideia de “monumento” descreve mais especificamente um objeto programado para materializar racionalidades políticas: diz respeito, portanto, ao conjunto de intenções (discursivas, representacionais, políticas) que confluem na concepção da infraestrutura monumental. Mas esta é apenas uma das perspectivas, e talvez a mais usual, pelas quais podemos interpretar os objetos que dizemos ter qualidades “monumentais”. O viés pelo qual queremos abordar essa questão, por outro lado, e à luz de nossas considerações sobre as infraestruturas, dirá respeito menos a o que é um monumento e mais ao modo como os monumentos funcionam e àquilo que eles produzem. Como podemos definir um “monumento”, da forma mais ampla possível, em função do modo com que ele funciona e daquilo que ele produz? O que faz um monumento? E por fim, o que queremos 163


dizer por “monumento infraestrutural”, e no que ele difere da “infraestrutura monumental”? De forma genérica, o monumento existe numa relação produtiva de comunicação entre um agente particular e uma coletividade; uma que nem sempre se reduz à comunicação de significados ou representações. Um monumento, como sabemos, pode sim funcionar segundo um desígnio semântico, como nas tradicionais obras memorialísticas, onde o que é veiculado é sobretudo um significado ou representação histórica (passada ou futura). Ele pode, além disso, servir a um desígnio predominantemente estético, donde, como observou Françoise Choay, o monumento parece comunicar muito mais “o poder, a grandeza, a beleza: compete-lhe explicitamente afirmar grandes desígnios públicos, promover estilos, dirigir-se à sensibilidade estética”, ou então causar “a admiração ou o espanto que provocam a maestria técnica e uma versão moderna do colossal”93. Neste último caso, o monumento se torna um objeto que nos “interpela no instante, trocando seu antigo estatuto de signo pelo de sinal”94. Mas em ambos esses casos, independentemente do desígnio pelo qual foi concebido ou de sua natureza semiótica, o monumento se inscreve numa relação produtiva da qual emerge um certo estado das coisas e um certo tipo de sujeitos. Dizer que os cidadãos produzem monumentos não é mais correto do que dizer que os monumentos produzem certos cidadãos, certos sujeitos e coletividades históricas. Por isso, toda relação produtiva da qual podemos dizer que emergem certos coletivos e subjetividades, certos modos de estar-no-mundo e na história, denominaremos monumental. Monumentos podem ser obras de arquitetura ou infraestrutura, romances ou decretos legislativos, cosmogramas ou panfletos imobiliários etc., desde que produzam um efeito monumental, por menor que seja. O nosso foco estará, portanto, naquilo que o monumento produz, nos resultados de seu funcionamento num meio social, ao invés dos desígnios (semânticos ou estéticos, memoriais ou promissivos) para os quais ele foi originalmente concebido. Essa constatação é importante porque nos permitirá deslocar a ideia de “monumento” de sua concepção tradicional (sob a qual ele aparece como “instrumento” para certas racionalidades políticas, ideológicas ou tecnológicas), para dá-lo um estatuto mais amplo. Deveremos, dessa forma, poder pensar o monumento menos como um “artifício”, ou como o fiel produto de um planejamento, e mais como um fenômeno, um efeito que tem o poder de produzir subjetividades históricas, comportamentos e epistemologias. Um fenômeno que, sobretudo, nem sempre corresponde a uma intenção originária, e que pode dar forma a resultados imprevistos. O monumento, para nós, é portanto muito mais aquilo que ele produz do que aquilo que ele anuncia ser. Essa concepção abre margem para que admitamos, em oposição ao monumento “ideológico” (semântico 164

93. Françoise Choay, Alegoria do Patrimônio (Lisboa: Edições 70, 2014), p. 19 94. Ibid., loc. cit.


95. Concebemos livremente a ideia de um “monumento ideológico” apenas para reassociar a tradicional distinção de Riegl entre os “monumentos intencionais” e os “monumentos históricos”. Ainda que correspondam a diferentes modos de mobilização da história social (o primeiro, concebido segundo uma intenção comemorativa a priori; o segundo por meio de um consenso social a posteriori), ambos monumentos volível e não-volível podem ser reunidos sob a ideia de um “monumento ideológico”. Isto é, entendendo que ambos são concebidos por uma intenção discursiva. 96. Em Latour, cada um dos agentes (humanos e não-humanos) envolvidos na realização de uma tarefa possui um subprograma: um “roteiro”, uma tendência intrínseca. Isso é verdade tanto para o ser humano que, por exemplo, opera uma máquina segundo um objetivo específico, quanto para a própria máquina, ela mesma dotada de subprogramaspróprios. A relação humano/não-humano, portanto, é sempre uma negociação entre subprogramas: uma dialética na qual, sobretudo, nenhum deles é inteiramente cumprido, pois o que emerge do contato entre humano e não-humano é um terceiro agente, uma montagem associativa com um programa de ação próprio que não se resume a nenhum dos subprogramas que o compõem. 97. Bruno Latour, Pandora’s Hope: Essays on the Reality of Science Studies (Cambridge: Harvard University Press, 1999), p. 191. T.M.

ou estético, “volível” ou “não-volível”)95, a existência de algo como um monumento acidental. Nos afastemos por um momento das infraestruturas e dos monumentos propriamente ditos, para que possamos esclarecer melhor a ideia do “acidente”. Um acidente é, por definição, o desvio inesperado, a quebra da promessa. Uma emergência: ao mesmo tempo um estado de crise e uma situação de onde emerge uma certa configuração não-planejada das coisas. Um acidente, enquanto emergência, tem o poder de reorganizar todo o conjunto de premissas, funções e objetivos que convergiram originalmente para atingir um objetivo que o acidente aparece para frustrar. A nossa ideia de “monumento acidental” pode ser explicada por aquilo que Bruno Latour, em sua discussão sobre os objetos técnicos, chamou de mediação: um fenômeno onde o modelo “instrumental” que idealizamos em nossa relação com esses objetos se vê subitamente corrompido por ocasião do funcionamento real destes objetos. A ideia de “mediação”, para Latour, descreve por que os objetos técnicos (ou a classe mais geral dos não-humanos) não podem ser compreendidos como meios para certos fins, ou instrumentos para intenções pré-concebidas. Pelo contrário, a “mediação” descreve aquilo que se se encontra, justamente, no meio do caminho da relação instrumental: o obstáculo em um percurso entre uma origem (premissa) e um destino (finalidade) originalmente concebidos, e cuja aparição suscita necessariamente um desvio, ou uma reprogramação de comprometimentos iniciais. Nas palavras de Latour, a ideia de “mediação” técnica ( ...) serve para designar um entrave, uma protuberância, uma surpresa, um contratempo no funcionamento uniforme dos subprogramas96, como quando dizemos que ‘há um problema técnico a ser resolvido antes’. Aqui, o desvio pode não nos trazer de volta para o caminho principal (...), mas pode ameaçar o destino original inteiramente. [A mediação] técnica não é mais um mero desvio, mas um obstáculo, uma barricada (...). O que deveria ser um meio se torna um fim, ao menos por um tempo, ou quem sabe um labirinto no qual nos perdemos para sempre97

Uma outra explicação da ideia de mediação descreve o modo pelo qual nós “inventamos” soluções e objetos técnicos, ou então os motivos que nos levam a recorrer a soluções e objetos existentes para resolver impasses em nossos objetivos iniciais. Imaginemos esta situação hipotética: quero abrir um coco para beber sua água; para isso, eu o arremesso repetidamente contra o chão. Um impasse sobrevém: o coco se recusa a quebrar, ou então se quebra mas seu conteúdo se espalha por todos os lados. De toda forma, uma crise se instala e me vejo incapaz de atingir meu objetivo inicial apenas com minhas próprias mãos, com meus próprios subprogramas. Sou obrigado, então, a desviar momentaneamente de meu objetivo principal, eventualmente chegando, “seja 165


por insight ou eureca ou por tentativa e erro”98, a um segundo agente com capacidades e subprogramas próprios, com o qual me associarei para abrir o coco, e que mediará meu objetivo: suponhamos, portanto, que encontro (ou invento algo como) uma faca. A associação entre esses dois agentes produz um terceiro agente, um híbrido entre o eu e a faca, com subprogramas e propriedades emergentes que não existiam individualmente em nenhum dos agentes anteriores: um agente composto capaz de abrir o coco e beber sua água. Mas aqui poderíamos nos perguntar se essa nossa hipótese, em primeiro lugar, faz algum sentido. Será que eu teria, antes de mais nada, sequer desejado beber a água do coco antes que eu dispusesse dos “meios” para obtê-la? Penso que estaríamos igualmente corretos ao dizer que quem deseja o coco não é nem o ser humano (agente 1), nem a faca (agente 2), mas o terceiro agente, o híbrido entre humano e não-humano que é capaz de abrir cocos. De forma que o desejo de coco ou, digamos, a “cultura do coco” não é uma vontade, uma tendência, um subprograma humano, mas uma propriedade emergente, inventada, composta. A “cultura do coco” é uma consequência da tecnologia de abrir cocos: ela só emerge a partir do momento em que existem agentes híbridos, compostos por humanos e não-humanos, que são capazes – e por isso desejam – abrir cocos. Agentes que querem porque podem, e não que podem porque querem. Essa hipótese descreve aquilo que Latour chamou de “translação de objetivos”, ou de composição, designando todo um conjunto de novas possibilidades, objetivos e conquistas (culturais, tecnológicas, científicas, filosóficas) que emergem não de uma vontade humana a priori, mas da associação (muitas vezes acidental) entre seres humanos, não-humanos e seus meios de atuação. atribuição de um ator para o papel de principal impulsionador A do movimento de forma alguma enfraquece a necessidade de uma composição de forças para explicar a ação. É por engano ou por desonestidade que nossas manchetes anunciam ‘Homem voa’, ou ‘Mulher vai ao espaço’. Voar é uma propriedade de toda uma associação que envolve aeroportos e aviões, plataformas de lançamento e balcões de ingresso. Os [aviões de guerra] B-52 não voam, a Força Aérea dos EUA voa. A ação não é simplesmente uma propriedade dos humanos, mas de uma associação de actantes, e esse é o segundo sentido da mediação técnica99

O segundo sentido da mediação está, portanto, na ideia de “composição”: os objetos técnicos não surgem para “mediar” (no sentido dos meios para certos fins) nossos objetivos; na verdade, nossos objetivos só podem existir porque são resultados de uma composição entre nós e eles. Os exemplos anteriores descrevem, portanto, uma relação dialética de onde emerge uma síntese “positiva” entre humanos e não-humanos, no sentido de um terceiro agente que surge, conciliando 166

98. Latour, B. (1999), p. 191

99. Ibid., p. 182. O termo “actante”, ou “ator”, é central para a Teoria Ator-Rede de Bruno Latour, e serve para designar, indiferenciadamente, todos os agentes humanos e não-humanos que se associam em rede no que ele chamou de coletivo (termo que substitui as noções opostas de “sociedade” e “natureza” por uma rede de associações entre humanos e não-humanos). O actante não é definido pelo que ele é, pelo que ele diz ou acredita ser, mas “pelo que ele faz – sua performance” (p. 303). T.M.


Diagrama explicativo do fenômeno da mediação técnica, Bruno Latour

100. Harvey, P. et. al. (2017), p. 11. T.M.

as propriedades dos dois agentes anteriores, para sanar um estado de crise e criar novas possibilidades de ação. Mas isso não quer dizer que toda mediação técnica seja, por natureza, “positiva”. Na verdade, o esquema da mediação proposto por Latour nos diz que a sequência crise > composição funciona também no sentido contrário. Trata-se do caso em que o funcionamento dos objetos e sistemas técnicos (enquanto composições entre humanos e não-humanos) é menos o resultado ou a solução para um problema prévio do que a própria origem de um impasse, de uma crise, de desvios e resultados inesperados. É talvez esse sentido que mais nos interesse aqui, e que mais nos aproxime dos objetivos deste trabalho. Em relação às infraestruturas urbanas, por exemplo, já mencionamos que elas estão sempre – como promessas – falhando. Segundo Harvey et. al., ainda que, “em razão de sua escala e escopo, [elas] sejam frequentemente retratadas como coisas colossais e dificilmente modificáveis”, a crise infraestrutural parece ainda assim ser um comportamento constante desses sistemas. Isso se deveria ao fato de as infraestruturas serem “constelações emergentes, e muitas vezes instáveis, de entidades heterogêneas”100. Infraestruturas são exemplos claros de associações complexas entre seres humanos e objetos técnicos que, por mais que possam ter sido concebidas para resolver certos problemas, frequentemente dão origem a novas complicações. 167



101. Ibid., p. 8

102. Não espanta que João Dória, o sucessor de Haddad, tenha sido eleito em 2016, em primeiro turno, com o slogan “Acelera SP”; e que uma de suas principais promessas de campanha fosse, precisamente, o aumento dos limites de velocidade nas vias arteriais – o que ele de fato cumpriu no primeiro mês de sua gestão.

Alagamento no Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo, 1967.

idades alagam ou sofrem blecautes (...). As infraestruturas digitais, C que não muito tempo atrás eram vistas como arautos de uma nova era de informação aberta e cidadania esclarecida, nos trouxeram novas formas de insegurança, terror e vigilância em escalas anteriormente inimaginadas. A dissociação entre desenvolvimento infraestrutural e a noção de progresso tem, de fato, se tornado cada vez mais evidente101

A “dissociação” a que os autores se referem é o resultado prático do funcionamento das infraestruturas: o conflito entre uma infraestrutura imaginada conforme um conjunto particular de modelos, premissas e objetivos anunciados, e aquilo que essa infraestrutura, uma vez em funcionamento, parece ela mesma nos “reportar do front”. A crise infraestrutural nos remete, por isso, a mais do que a crise em si: o que ela solicita é, também, um certo estado cognitivo emergente. Um estado de frustração que pode dar margem, por um lado, à pura e simples resignação (a emergência, por exemplo, de “sujeitos infraestruturais” resignados) ou que então pode ser capaz de reconfigurar, retroativamente, todo o conjunto de “promessas” e objetivos que originalmente mobilizavam essas infraestruturas. Já que, em especial na realidade brasileira, não nos faltam exemplos desse fenômeno, tomemos um caso bastante recente e particularmente ilustrativo dessa tendência das infraestruturas de solicitarem, em razão das suas crises, novas “emergências” cognitivas e culturais. Em 2015, o então prefeito da cidade de São Paulo, Fernando Haddad, determinou a redução do limite de velocidade dos automóveis, em todas as vias arteriais do município, para 50km/h. Nas vias expressas, como as marginais dos rios Pinheiros e Tietê, a velocidade máxima permitida passou a ser 70km/h, quando antes era de 90km/h. A providência se justificava pela constatação do número alarmante de acidentes fatais nas principais avenidas da cidade nos anos anteriores. A medida – que não era nada além de razoável e necessária – provocou, no entanto, a cólera de uma parcela significativa da população e foi criticada pelos principais veículos de imprensa. Os discursos de revolta, ainda que se amparassem no argumento – altamente especulativo – de que a medida tornaria a vida rodoviária dos paulistanos (ainda) mais difícil, pareciam mesmo assim descolados da realidade. O paulistano, afinal, há muito tempo sequer conseguia trafegar no limite da velocidade permitida na capital brasileira do engarrafamento. A única explicação possível para tamanha resistência era a de que a medida parecia, de certa forma, violar diretamente algumas das premissas mais fundamentais do estatuto ideológico do cidadão paulistano médio102. Um cidadão que, além do mais, havia aprendido a conviver quase que pacificamente com os estados permanentes de crise infraestrutural da cidade: acidentes de trânsito, engarrafamentos, 169


enchentes e poluição eram para ele atributos naturais da paisagem da cidade. Há algumas observações a se fazer sobre o caso relatado acima. A primeira é que o conflito deflagrado no debate público sobre a infraestrutura viária paulistana advinha, sobretudo, do reconhecimento de um estado de crise. O modo com que cidadãos, automóveis e autopistas estavam se associando – ou então, o modo com que funcionavam essas infraestruturas – estava, literalmente, matando os próprios beneficiários deste sistema. Sem falar, é claro, das crises indiretas que esse estado de coisas provocava nas infraestruturas “auxiliares” da rede viária, como os sistemas de saúde e policiamento, o corpo de bombeiros, a engenharia de tráfego, o regime tributário e o erário público de maneira geral. Em segundo lugar, esse caso evidencia, para nós, um fenômeno relacionado ao segundo sentido da palavra “emergência”: um estado de coisas que emerge da emergência. Com isso, queremos dizer que todo um conjunto de valores, normas, representações, discursos e ideologias era reprogramado por ocasião da crise, ou então, dos resultados empíricos obtidos com a implementação e desenvolvimento das infraestruturas rodoviárias. Por um lado, é verdade que, como vimos anteriormente, nem sempre as contingências do funcionamento dos sistemas técnicos dão origem a reconfigurações “negativas” dos paradigmas culturais. Se voltarmos no tempo, veremos que a própria cultura do automóvel (hoje chamada pejorativamente de “cultura rodoviarista”), enquanto fenômeno de apologia, pode ser lida como resultante da expansão e do funcionamento das infraestruturas rodoviárias a partir de meados do século XX. Ela surgia, por assim dizer, acidentalmente, como afloração “superestrutural” de processos “infraestruturais” – mesmo que esse “acidente” não produzisse ainda uma “crise”, mas algo a se celebrar. Um acidente que faria da cultura, por sua vez, uma força estimuladora do desenvolvimento desses sistemas infraestruturais. O fetiche do automóvel brilhante, a estética dos road movies com suas promessas de estradas sem-fim, e a celebração das grandes “obras de arte” da engenharia civil103 surgiriam todos da assimilação, pela cultura, das possibilidades abertas por esses “acidentes” infraestruturais. Por outro lado, é também verdade que esse mesmo processo de desenvolvimento das infraestruturas rodoviárias daria origem, ao longo de décadas de funcionamento e expansão, a sucessivas outras “emergências” cada vez mais alarmantes e consequenciais. De modo que as promessas e os monumentos da “cultura rodoviarista” passaram a ser progressivamente questionados em razão dos resultados empíricos de seus modelos. É nesse contexto que identificamos a crise da cultura rodoviarista das últimas décadas, da qual o nosso exemplo do 170

103. No vocabulário tradicional da engenharia civil brasileira, as grandes obras de infraestrutura (sobretudo as viárias, como pontes, viadutos e túneis) são, muito convenientemente, chamadas de Obras de Arte Especiais (OE)


→ Próx. página: 1. Congestionamento na Av. São Luís, centro de São Paulo, 1972; 2. Estátua do bandeirante Borba Gato em chamas após protesto contra o governo Bolsonaro na zona sul de São Paulo, julho de 2021

debate sobre os limites de velocidade (e, num nível mais profundo, sobre o estatuto da “velocidade” em si) é um sintoma. Aqui, a promessa era expressamente quebrada, e seus monumentos se tornavam obsoletos. As premissas e os objetivos mais básicos do humanismo “liberal-rodoviarista” (em seu culto ao desimpedimento, à velocidade, à instantaneidade e à livre circulação de pessoas, bens e ideias) havia produzido sistemas técnicos que, quando postos em funcionamento, revelavam-se contraditórios e mesmo impeditivos para o cumprimento de seus modelos ideológicos iniciais – quando muito, elas funcionavam sob um altíssimo custo humano e material. Esse é o sentido da “reprogramação”, ou da “translação de objetivos” que tem dado origem, ao redor do mundo, a novas políticas de regulamentação e incentivo do transporte urbano. Uma discussão que tem sido mobilizada, para além dos cálculos eleitorais e orçamentários, por tendências mais profundas de reavaliação da condição urbana e, no limite, do próprio “humanismo” que essas infraestruturas monumentalizam. Quem são esses sujeitos infraestruturais que emergem dos sistemas rodoviários e se deslocam a 90 km/h? Seriam eles sequer “humanos”, no sentido de um modelo com o qual nos comprometemos originalmente? Em que medida essas subjetividades foram prometidas ou planejadas por nossos modelos culturais, e em que medida elas são “acidentais”? Qual é o estatuto monumental dessas subjetividades – elas comemoram a velocidade ou lamentam o engarrafamento? Que tipo de emergência produz seus modos de pensar a si próprias, a coletividade à qual pertencem, seus lugares na história? E, por fim, quais são os novos monumentos que estamos dispostos a criar, em face da possível constatação de que os antigos se revelaram insustentáveis? • • •

104. A ideia de “contra-monumento” foi conceitualizada por James E. Young em alusão a uma obra de escultura de 1986 intitulada Gegendenkmal (literalmente “contramonumento”), de Jochen e Esther Gerz, encomendada pelo município de Hamburgo como um monumento contra o fascismo. Em uma tentativa de se distanciarem das

Tentemos, à luz de tudo o que discutimos até agora, concluir alguns problemas que deixamos, até agora, no ar. Em primeiro lugar, o que quisemos dizer, no início desta seção, com a ideia de um “monumento acidental”? Como o próprio termo sugere, trata-se do fenômeno inverso – ou melhor, a contraparte – do monumento intencional. É claro que, diante disso, nos perguntamos: qual seria o inverso da construção de monumentos? A não-construção de monumentos? A construção de não-monumentos? Ou, então, a produção daquilo que vem sendo chamado de “contra-monumentos”104? Ora, as questões do fracasso ou da contradição que a ideia de um “monumento acidental” sugere não nos soa de todo estranha. Nas últimas décadas, dos estudos decoloniais ao ativismo urbano, tanto a 171




ideia de “monumento” quanto os monumentos em si têm sido alvos de diversos procedimentos de contestação, revisão ou mesmo destruição. Em um artigo para a Folha de S. Paulo, Giselle Beiguelman observou que a tendência geral desses movimentos anti-, não- e contra-monumentais pode ser situada num esquema cultural mais amplo, em que se busca confrontar “a história oficial encarnada em monumentos que enunciam, entre dedos em riste, espadas, cavalos e homens brancos fardados, a presença das forças sociais que os ergueram”105. Os exemplos vão desde a pura e simples destruição de monumentos (o “derrubacionismo”) às estratégias não-destrutivas como a intervenção in loco ou o deslocamento desses objetos para espaços museológicos, em algo como um enxerto crítico. Em muitos desses casos, podemos dizer que a contestação não se limita apenas às mensagens específicas veiculadas por esses monumentos (como a memória de um ditador ou uma ideia de “progresso”), mas se estende à própria ideia de “monumento”. O monumento, como escreveu Françoise Choay, ( ...) é uma defesa contra o trauma da existência, um dispositivo de segurança. Desafio à entropia, à ação dissolvente que o tempo exerce sobre todas as coisas naturais e artificiais, o monumento procura apaziguar a angústia da morte e da aniquilação106

O monumento, nesta acepção, é uma negação do tempo, das transformações inevitáveis que a história impõe à condição humana. Ele conserva à força certas premissas (e promessas) contra as eventualidades acidentais da história que têm o poder de frustrá-las por completo. O monumento decreta guerra ao tempo, ao acidente. Ele só pode, por isso, ser um dispositivo de violência: por mais nobres que sejam suas intenções, e por mais “humano” que seja o ato de rememorar, o monumento é ainda assim um objeto essencialmente reacionário. Ele não admite a insurreição, seja a do tempo ou daqueles sobre os quais ele impõe a sua versão pétrea da história. O monumento tradicional (ou “ideológico”) existe na dominação dos modelos do real sobre a realidade em si. Aquilo que foi chamado de “contra-monumento”, por outro lado, busca contestar essa mesma relação entre o monumento tradicional e o tempo que ele tenta, em vão, estancar. Nas palavras de James E. Young, ( ...) a real consequência da rigidez intransigente dos memoriais (...) é também a sua morte no tempo: uma imagem fixa criada em um certo tempo e transferida para um novo tempo subitamente nos parece, em geral, arcaica, estranha ou irrelevante. (...) O tempo zomba da rigidez dos monumentos, da reivindicação presunçosa de que, em sua materialidade, um monumento pode ser considerado eternamente verdadeiro, como uma estrela fixa na constelação da memória coletiva107 174

tradicionais premissas e formas assumidas pelos monumentos tradicionais (e do papel que eles ocuparam sob o regime nazista) os artistas propuseram um monumento “autoevanescente” que, ao invés de perpetuar uma memória, a delegaria aos próprios cidadãos e então desapareceria. Eles construíram um obelisco e propuseram à população que escrevessem seus nomes sobre ele para que, assim, se comprometessem a “permanecer vigilantes”. À medida em que a superfície da escultura se preenchesse, ela se afundaria gradualmente no solo, até que sumisse por completo. Ver: James E. Young, “The Counter-Monument: Memory Against Itself in Germany Today”, in: Critical Inquiry, vol. 18 (Chicago: University of Chicago Press, 1992). T.M. 105. Giselle Beiguelman, “Ataques a Monumentos Enunciam Desavenças pelo Direito à Memória”, in: Folha de S. Paulo. São Paulo, 12 de junho de 2020. 106. Choay, F. (2014), p. 18

107. James E. Young, “The Counter-Monument: Memory Against Itself in Germany Today”, in: Critical Inquiry, vol. 18 (Chicago: University of Chicago Press, 1992), p. 294. T.M.


O contra-monumento, nesse sentido, 108. Ibid., p. 296

109. Jorge Peñuela, “El contra-monumento, concepto del año 2018”, artigo para o site Liberatorio Arte Contemporaneo, 3 janeiro de 2019. Disponível em liberatorio.org. T.M.

( ...) busca sua satisfação no – e não em oposição ao – tempo histórico. Ele reconhece e afirma que a vida da memória existe primeiramente no tempo histórico: nas atividades que concedem existência aos monumentos, nas trocas contínuas entre as pessoas e seus marcadores históricos e, finalmente, nas ações concretas que tomamos à luz de um passado memorializado108

Trata-se de uma estratégia cultural que admite o acidente, a crise e a contingência com os quais o monumento tradicional se recusa a engajar. Aquilo que o contra-monumento enuncia não é uma memória particular, mas os próprios processos pelos quais essa memória é construída, conservada ou contestada. Seu objeto de enunciação, portanto, é menos a história em si do que a ideia de história; o contra-monumento é um monumento que pondera sobre si mesmo. Mas o que queremos dizer por “monumento acidental”, embora possua similaridades com o “contra-monumento” no que diz respeito às formas monumentais que emergem de um estado de crise, é algo bastante diferente. Isso porque o contra-monumento designa, na verdade, a resposta que damos aos monumentos acidentais; são monumentos “reprogramados”, conscientes daquilo que as crises e os acidentes do tempo nos revelam sobre nossos monumentos passados. “O contra-monumento”, nas palavras de Jorge Peñuela, “é uma estratégia cultural onde as mentiras do poder são postas em evidência”109. O nosso “monumento acidental”, por outro lado, não pode ser traçado a nenhum paradigma cultural ou suporte comunicacional específico. Pelo contrário, ela permeia todas as formas que podemos dizer que carregam desígnios “monumentais”, seja na arquitetura, na literatura, na ciência, na tecnologia etc. O monumento acidental nem mesmo é um objeto, uma forma delimitável: ele é mais propriamente um estado, ou um efeito em si mesmo. Ele não é a negação intencional de um discurso, a subversão de um paradigma historiográfico ou a insurreição contra ícones decadentes, mas a condição mesma para tais práticas. Ele é o subproduto, aquilo que ricocheteia do próprio monumento: sua obsolescência, abandono e ruína; suas rachaduras, recalques e infiltrações; sua hiperventilação, superaquecimento ou congestão; mas também suas surpresas, revelações e eurecas. O monumento acidental é aquilo que “volta” do monumento em si; que reage com o meio e retroage sobre a cultura que o programou. As reações físico-químicas, mecânicas ou psicossociais às quais um monumento (uma promessa) se submete a partir do momento em que toma forma concreta. Um discurso posto à prova. Ele existe na tensão entre o desígnio das palavras de ordem e a realidade que se configura ao invés. 175


A nossa ideia de “monumento acidental” designa os estados cognitivos, epistemológicos e materiais que emergem acidentalmente do funcionamento empírico de nossos modelos – ou monumentos – iniciais. A abrangência do termo corresponde à amplitude que queremos dar à ideia de “monumento”: ele pressupõe que onde há modelos, desígnios ou promessas (mas também, necessariamente, acidentes, crises e emergências), há monumentos. A ideia de “monumento acidental” é para nós, portanto, tão ampla quanto a própria classe dos monumentos. Podemos, para dar um exemplo relativamente alheio à ideia de “monumento”, projetá-la sobre a história da construção dos fatos científicos. Quando o modelo geocêntrico da Terra (e seus paradigmas epistemológicos correspondentes) foi posto em crise sob o próprio regime científico e social que ele havia posto em funcionamento, podemos dizer que toda uma estrutura monumental ruía por efeito de sua operação. Tratava-se, em outras palavras, de uma espécie de “acidente monumental” – ou então, como vimos anteriormente, daquilo que Bratton nomeou como “revolução copernicana”. Podemos, por fim, dizer que o monumento acidental é também um exercício analítico que nos permite observar, à maneira das “revoluções copernicanas”, as crises e indeterminações a que estão sujeitos os modelos antropocêntricos, uma vez aplicados. • • • Mas quais as implicações desses problemas para o contexto geral deste trabalho? Quando falamos de arquitetura ou de cidades, e especialmente em relação aos desafios que a ubiquidade e autonomia dos sistemas “técnicos” impõem aos arquitetos e planejadores, penso que a ideia de um “monumento acidental” pode ser bastante produtiva. Podemos pensá-la, nesse caso, a partir do “monumento infraestrutural” que expusemos há pouco: o fenômeno pelo qual os desígnios monumentais da arquitetura e do planejamento urbano são frustrados pelos próprios meios que pareciam antes servir aos seus propósitos. Se o século XX foi marcado pela fertilidade com a qual arquitetos e urbanistas falavam sobre o futuro das cidades, pelas promessas que permeavam seus discursos e projetos, e pelas possibilidades abertas para o planejamento pelo “progresso tecnológico” e seus novos instrumentos, nas últimas décadas essa tendência parece ter se alterado substancialmente. A era dos desígnios “monumentais” do planejamento parece ter dado lugar a um amargo consenso, sob cuja paralisia vivemos até hoje, de que alguma coisa tomou o lugar da arquitetura e do urbanismo. 176


110. Easterling, K. (2014), p. 16. TM.

As transformações ocorridas nos próprios gêneros do discurso acadêmico e profissional parecem, hoje, dar prova disso. Onde antes eles pulsavam com as escritas “operativas”, os manifestos, panfletos e as campanhas, eles hoje parecem tomados por erratas, sermões, caricaturas ou então pelo silêncio apático de quem se recolhe por frustração ou cansaço. Em meio às sucessivas crises enfrentadas pelas cidades no último século (como emergências climáticas, habitacionais, econômicas e infraestruturais), o próprio estatuto ideológico do “progresso” – um conceito antes balizador das tendências monumentais do urbanismo moderno – passou a designar menos um futuro desejado do que um futuro a ser, a todo custo, evitado. Um diagnóstico destes discursos certamente nos revelará que todos os principais entraves e “fins de linha” encontrados pela produção arquitetônica e urbanística contemporânea estão relacionados, em alguma medida, aos problemas suscitados por aquilo que Keller Easterling chamou de espaço infraestrutural. Uma condição urbana gerada por uma complexa matriz de protocolos, padrões e sistemas técnicos/informacionais, cujo domínio escapa não apenas aos arquitetos e urbanistas, mas a todas as esferas institucionais e disciplinares que cultivam alguma forma de “planejamento”, inclusive as de Estado. O espaço infraestrutural de Easterling evidencia a completa ruína dos modelos instrumentais pelos os quais os planejadores tradicionalmente pensaram o espaço urbano, e a falência da ideia de que a “mediação” infraestrutural responderia às funções designadas pela cultura. Ele é o produto da “desconexão entre as histórias e promessas associadas à tecnologia e aquilo que o espaço urbano está efetivamente fazendo”110. O conceito de “espaço infraestrutural” não descreve um fenômeno necessariamente novo. Koolhaas, para citar um dos exemplos mais recentes, descreveu em 2006 o “espaço-lixo” [junkspace]: um espaço urbano saturado pelas parafernálias residuais – ou acidentais – da “marcha moderna”, em meio ao qual o legado monumental da arquitetura “propriamente dita” parece irrisório: arquitetura desapareceu no século XX; temos estado a ler uma A nota de roda de pé de página com um microscópio, na esperança que se transforme num romance; a nossa preocupação com as massas nos impediu de ver a Arquitetura do Povo. O espaço-lixo parece uma aberração, mas é a essência, o principal... o produto de um encontro entre a escada rolante e o ar condicionado (...). A continuidade é a essência do espaço-lixo; este aproveita qualquer invento que permita a expansão, revela uma infraestrutura ininterrupta: escadas rolantes, ar condicionado, aspersores, portas 177


corta-fogo, cortinas de ar quente... É sempre interior e tão extenso que raramente se vislumbram limites111

Poderíamos dizer que a cidade, para Koolhaas, se tornou um imenso um monumento infraestrutural: um espaço inteiramente acidental, emergente, e insubordinado aos modelos culturais – arquitetônicos, urbanísticos, filosóficos – que o puseram em funcionamento. Um espaço com propriedades monumentais (estéticas e cognitivas) próprias, e que produz sujeitos igualmente acidentais: neste caso, identidades completamente privadas de qualquer senso de orientação histórica (“o espaço-lixo é pós-existencial: faz-nos não ter certeza do lugar que estamos, oculta para onde vamos e anula o lugar onde estávamos”)112. Mas se a preocupação de Koolhaas é principalmente descritiva dos efeitos cognitivos, estéticos e culturais do “espaço-lixo”, Easterling propõe uma análise aprofundada sobre a rede de agentes, parâmetros e instituições da qual o “espaço infraestrutural” é o produto – ou melhor, subproduto. Para ela, essa urbanidade residual é a expressão espacial do que ela chamou de “extraestadismo” (extrastatecraft): um paradigma de governança globalmente distribuída que opera dissociado dos tradicionais mecanismos de planejamento, legislação e regulamentação de Estado, e que se estende para além de fronteiras de soberania. O extraestadismo produz suas próprias formas urbanas, entre as quais as Zonas Especiais – termo amplo que designa enclaves urbanos “excepcionais” destinados à otimização do comércio global, e incentivados por isenções fiscais, desregulamentação trabalhista e ambiental, e amplo acesso à infraestrutura – são o exemplo mais paradigmático. Mas ainda que a zona especial – e suas iterações contemporâneas, como o campus corporativo e a Smart City – tenha se tornado, graças a intensas campanhas de marketing, um verdadeiro modelo de “cidade ideal”, os atributos espaciais dessa nova urbanidade são inteiramente secundários, e frequentemente resultam de fórmulas espaciais repetíveis ao redor do mundo. Essas cidades, mesmo quando erguidas do zero, não são mais objetos de planejamento: elas são muito mais os efeitos colaterais de uma composição heterogênea de forças e interesses globais que operam, desimpedidamente, alheios às suas consequências urbanas e sociais. nquanto o espaço pode ser imensamente consequencial E nesses empreendimentos infraestruturais, a iniciativa privada e outras forças do extraestadismo [extrastatecraft] frequentemente falam em outros idiomas técnicos. Os analistas da indústria financeira formatam a paisagem habitacional, os mercados de carbono regulam as paisagens florestais, (...) e a ISO [Organização Internacional de Padronização] dita o jargão administrativo. Apesar de sua relativa durabilidade, o espaço infraestrutural é 178

111. Rem Koolhaas, “Espaço-lixo”. In: Três Textos sobre a Cidade (São Paulo: Gustavo Gili, 2014), pp. 41-2 112. Ibid., p. 52

Empreendimento residencial da incorporadora Gafisa em Barueri, no Estado de São Paulo → Vista 3D do Google Earth do Distrito Internacional de Negócios de Songdo (Songdo IBD), uma 'cidade inteligente' construída na Coréia do Sul e inaugurada em 2015.



frequentemente tratado como um subproduto de mercados e jogos políticos mais voláteis. Quem está tratando o espaço em si como informação? Quem está escrevendo os softwares ou protocolos nos quais as variáveis espaciais assumem a dianteira?113

113. Easterling, K. (2014), p. 16. T.M.

Uma outra consequência do extraestadismo para a formação das cidades é aquilo que alguns autores têm se referido como um efeito de “fragmentação” [splintering] dos sistemas infraestruturais que compõem o espaço urbano114. Se, durante o século XX, a implementação e a administração de infraestruturas urbanas eram atribuições centralizadas de Estado, hoje essa autoridade se encontra progressivamente dissolvida “entre muitos donos e regimes de propriedade diferentes”115 do extraestadismo. Somando-se isso à tendência globalizante desses regimes, incentivada pela permissividade dos governos neoliberais, o resultado é uma paisagem urbana cada vez mais modulada por agentes privados e organizações transnacionais que, presentes simultaneamente em todo lugar e em nenhum em particular, abdicam de qualquer compromisso com os efeitos urbanos de seus empreendimentos. Longe de ser um efeito positivo das tão celebradas políticas de “descentralização” (leia-se, privatização, financeirização e globalização) da gestão urbana, a fragmentação do espaço infraestrutural produz “um conjunto emergente de complicações que não são significativamente atenuadas por esforços dispersos de regulamentação, monitoramento e controle”116. De um lado, podemos dizer que essas dinâmicas estão estreitamente ligadas à emergência das tão faladas “cidades informais” e “cidadãos invisíveis”, produtos de uma distribuição desigual e desregulamentada do acesso à infraestrutura, e da substituição das lógicas de planejamento pelas lógicas espontâneas de mercado. Por outro lado, essa mesma “fragmentação” de um espaço infraestrutural delegado a uma miríade de agentes, instituições e interesses particulares produz um fenômeno de crescente de complicação e indeterminação. O resultado, como escreveram Harvey et. al, é a impossibilidade de se determinar “a extensão pela qual aqueles que estão no poder são capazes de prever, para não dizer controlar, transformações infraestruturais. A relação imprevisível entre intenção política e resultados infraestruturais são mais uma consequência da complicação”117.

114. O termo splintering urbanism [algo como “urbanismo fragmentário”] é de Stephen Graham e Simon Marvin, autores de livro homônimo (Routledge, 2001). O conceito também é discutido na introdução de Harvey et. al (2017).

o ponto de vista da complicação, as infraestruturas são moldadas D por inúmeros agentes, com interesses e capacidades concorrentes, e envolvidos em um número indefinido de interações ao longo de um período estendido de tempo. As características das infraestruturas emergem dessas interações, fazendo com que seja 180

115. Harvey, P. et. al. (2017), p. 9. T.M.

116. Ibid., loc. cit. 117. Ibid., p. 10


118. Ibid., loc. cit.

119. Rem Koolhaas, Nova York Delirante (São Paulo: Cosac Naify, 2008), p. 107

120. Ibid., p. 109

extremamente improvável que elas funcionem de acordo com os planos de qualquer um em particular118

Mas embora produza novas emergências culturais e formas urbanas a cada dia, essa propriedade “acidental” dos sistemas infraestruturais não é um fenômeno novo, e os desafios que ela impõe para arquitetos e planejadores estão há bastante tempo anunciados. Se, até agora, identificamos a “fragmentação” como um modo de se olhar para o espaço infraestrutural como um acidente logístico-administrativo altamente consequencial para o espaço urbano e para o trabalho dos planejadores, resta ainda pensar o “acidente” em função das próprias tendências técnicas destes sistemas. Podemos nos questionar, então: de que modo a performance das infraestruturas, seu funcionamento real e frequentemente imprevisível, dá forma às cidades? E qual é a arquitetura, quais são os monumentos que emergem destes acidentes intrínsecos ao funcionamento das infraestruturais? Rem Koolhaas, em Nova York Delirante (1978), observou que a paisagem da metrópole novaiorquina resulta, em boa parte, de alguns dos mais consequenciais “acidentes” da tecnologia infraestrutural na modernidade. A invenção do elevador de passageiros em 1852 (ocorrida na própria cidade), conjugada ao posterior surgimento da estrutura de aço, faria de Nova York o laboratório para o surgimento de uma série de novas configurações urbanas, arquitetônicas e sociais impensáveis por qualquer modelo cultural preexistente. A consequência imediata do elevador, implicada em sua própria tendência técnica (a conquista do deslocamento vertical irrestrito), era a de que “qualquer área poderia ser multiplicada ao infinito para criar a proliferação do espaço em andares que chamamos de arranha-céu”119. Mas a acidentalidade do arranha-céu, enquanto tipologia arquitetônica, não se resumia apenas ao fato de ter sido, ao invés de planejada por arquitetos, induzida pela tendência técnica interna ao mecanismo do elevador. Na verdade, o arranha-céu era, ele mesmo, um proliferador de novos acidentes. É que a própria tendência técnica do arranha-céu (em sua capacidade de replicar uma área urbana genérica, sem destinação particular) fazia dele, por natureza, um dispositivo de indeterminação: m termos de urbanismo, essa indeterminação significa que um E terreno deixa de corresponder a uma finalidade predeterminada. Daqui em diante, cada lote metropolitano acomoda (...) uma combinação instável e imprevisível de atividades simultâneas, o que faz com que a arquitetura já não seja tanto um ato de antevisão e que o planejamento seja um ato de previsão bastante limitada. Tornou-se impossível ‘demarcar’ a cultura120

À maneira do objeto técnico de Simondon, a tipologia do arranha-céu surgia de um processo quase autônomo de “concretização”: um acúmulo cada vez maior de funções (elevador: deslocamento vertical irrestrito; estrutura metálica: planta livre, etc.) integradas em um 181


único sistema, fazendo dele uma “máquina aberta” com propriedades emergentes e resultados muitas vezes imprevistos. O arranha-céu como objeto técnico “concreto” significava que ele poderia conquistar um número indeterminado de funções, sem no entanto se especializar em nenhuma delas. Seu espaço era composto por terrenos abstratos, dissociados de qualquer determinação geográfica, cultural ou programática, que podiam ser multiplicados indefinidamente uns sobre os outros e em qualquer lugar do mundo. omo cada um desses terrenos deve encontrar seu próprio destino C programático particular – para além do controle do arquiteto –, o arranha-céu é o instrumento de uma nova forma de urbanismo incognoscível. Apesar de sua solidez física, ele é o grande desestabilizador metropolitano: promete uma instabilidade programática perpétua121

Essa propriedade desestabilizadora significava que os “subprogramas” intrínsecos à forma do arranha-céu possuíam implicações para muito além do interior arquitetônico (libertado do arquiteto), mas se estendia a todo o conjunto da cidade, agora emancipado do urbanista. O arranha céu se tornava uma das principais matrizes da megalópole (ela mesma um fenômeno novo, “emergente”), um dos principais protocolos organizacionais de uma urbanidade acidental. Mas o caso da Nova York “concreta” não evidencia apenas como a evolução dos sistemas técnicos repercutia no surgimento de novas arquiteturas e modelos urbanos acidentais. Na verdade, desse acúmulo de acidentes infraestruturais não emergiam apenas novas formas, mas igualmente novos tipos de cidadãos, novos sujeitos e novas monumentalidades imprevistas. Podemos dizer, por exemplo, que se o arranha-céu é o subproduto do elevador, graças ao qual “o edifício se torna um empilhamento de privacidades individuais”122, então o habitante metropolitano é ele mesmo um subproduto do arranha-céu; ele mesmo aquilo que é empilhado. Um sujeito residual, resultante das possibilidades e contradições intrínsecas ao funcionamento dessa nova tipologia arquitetônica. De um lado, o arranha-céu produzia a possibilidade inédita da completa desarticulação entre o individual e o coletivo: não só cada um de seus patamares era “tratado como um terreno virgem, como se os outros não existissem”123; como quanto maior o afastamento do chão, maior o desinteresse pela dimensão pública da cidade, e mais os patamares eram habitados como cidades em si mesmas. Por outro lado, essa mesma lógica do empilhamento que intensificava o individualismo era aquela que ocasionava, contraditoriamente, o superadensamento populacional. O preço da máxima individualidade e desarticulação entre as partes é, portanto, o da condenação dessas partes a uma coexistência cada vez mais intensa: uma dimensão 182

121. Koolhaas, R. (2008), p. 110

122. Ibid., p. 109

123. Ibid., p. 108


“pública” que consiste, na verdade, em uma multidão de individualidades desarticuladas. O arranha-céu é algo como o monumento infraestrutural para o paradigma urbano que Koolhaas chamou de “manhattanismo”, ou “cultura da congestão”. Um monumento retroativo, resultante dos progressivos acidentes aos quais foram expostos os modelos e promessas do “cosmopolitismo” que haviam originalmente fundado a cidade. Desenho e acidente: algumas conclusões Implícito aos termos “projeto”, “plano”, “modelo” ou “desenho”, tão comuns à cultura do planejamento, está o pressuposto de que os produtos da arquitetura e do urbanismo devem conservar – tal qual os monumentos tradicionais – a memória de uma matriz ou uma intenção prévias, dos quais eles são a expressão fiel e inviolável. O projeto antecipa, prevê o objeto; o objeto rememora e reflete o projeto: o círculo perfeito do planejamento. Tradicionalmente, o trabalho do arquiteto acaba no instante em que emerge o edifício, com o encerramento dos perímetros que compõem a forma do objeto. Ele acredita que, daí em diante, seu objeto estará encarregado de, por si só, conservar as intenções e programas ao qual foi destinado. O objeto planejado é uma lápide, um monumento inerte: de fato, tudo aquilo que parece estar vivo, que se move e que funciona, está completamente fora da jurisdição da arquitetura, não é um “objeto”. Aquilo que se move não tem lugar, não parece se deixar encerrar por nenhum limite ou programa. O “limite”, para o planejamento, designa portanto a restrição ou a impossibilidade da ação. O objeto arquitetônico ou urbanístico possui limites claros porque não se move, porque possui uma “forma” bem definida, porque é feito de tijolos e concreto, e porque certamente estará lá amanhã, no mesmo lugar que o construímos etc. O problema do “limite”, no entanto, é que ele confunde, ingenuamente, o objeto com a sua imagem, com um perímetro visível e aparente do qual ele – teoricamente – não escapa. Talvez por estarem há séculos debruçados sobre desenhos, diagramas, modelos, mapas e fotografias, os arquitetos e urbanistas tenham se acostumado demais a pensar com imagens. O resultado natural desse hábito é que o planejamento desconsidera todo e qualquer movimento ou recalque, todo e qualquer atrito ou acidente, todo fator de traição entre desígnio e realidade. Tudo aquilo o que, em suma, acontece no meio entre o projeto e o objeto, ou então tudo aquilo o que ocorre após o objeto. Arquitetos e urbanistas são tradicionalmente treinados, portanto, para conceber o espaço e os produtos do seu planejamento em termos meramente instrumentais: eles pensam em desígnios e finalidades, e 183


geralmente tratam os meios como instâncias neutras e factuais a serem desconsideradas. Isso talvez explique a tão frequente perplexidade dos arquitetos e urbanistas diante da condição das cidades contemporâneas, e do “espaço infraestrutural” no geral: um espaço que lhes parece desprovido de qualquer modo tradicional de “desenho”, de quaisquer limites ou finalidades, mas inteiramente saturado pelos meios que eles costumam desprezar. A “cidade informal”, que tanto preocupa arquitetos e urbanistas, não é só o espaço urbano desprovido de planejamento ou regulamentação, mas um espaço que não conhece limites ou formas fixas. É “informal” porque não tem forma, apenas movimento e contingência. Não tem “pé” nem “cabeça”, apenas meios. A “cidade informal” é tanto a favela quanto o business park. É a própria “forma” de uma cidade sem autoria; de um espaço que, como escreveu Koolhaas, “não tem autor, contudo é surpreendentemente autoritário”124. Easterling propôs uma metáfora que resume bem essa aporia: para ela, a arquitetura e o planejamento urbano produzem “objetos únicos – como seixos dentro d’água – enquanto um fluxo constante de fórmulas espaciais repetíveis constrói um mar de espaços urbanos”125. Mesmo quando tem por objeto de consideração aquelas formas menos propriamente “arquitetônicas” como as infraestruturas urbanas, essa visão de planejamento parece ainda demasiadamente atada ao domínio das formas, perímetros, áreas e outras qualidades extensivas, ou inertes, do espaço. Para empregar uma distinção proposta por Easterling, a arquitetura e o urbanismo estão, tradicionalmente, muito mais preocupadas com as chamadas “formas-objeto” – imagens, “signos”, silhuetas, monumentos – do que com as “formas ativas”. As formas ativas não são propriamente “objetos”, tampouco coisas que se movem, mas as relações, intensidades e parâmetros que regem, “com o poder e a vigência dos softwares”, as dinâmicas de produção do “espaço infraestrutural” que hoje dá forma à arquitetura e às cidades. espaço infraestrutural é uma forma, mas não do modo com que O um edifício é uma forma; ele é uma plataforma atualizável que se desenvolve no tempo para lidar com novas circunstâncias, codificando a relação entre edifícios ou ditando logísticas. Existem formas-objeto, como os edifícios, e formas ativas, como os bits de código que organizam a edificação. A informação reside nas atividades, muitas vezes não declaradas, desse software – os protocolos, rotinas, cronogramas e escolhas que ela manifesta no espaço”126

Easterling observa que as mais consequenciais transformações urbanas da atualidade não estão sendo operadas nas tradicionais linguagens da arquitetura e do urbanismo; suas “formas-objeto” são, quando muito, os aspectos isolados ou residuais de uma “confusa matriz de detalhes e fórmulas repetíveis que gera a maior parte do espaço no mundo”127. São esses detalhes e fórmulas que Easterling 184

124. Koolhaas, R. (2014), p. 56

125. Easterling, K. (2014), p. 10. T.M.

126. Ibid., pp. 10-11. T.M.

127. Ibid., p. 9


Vista aérea do primeiro subúrbio de Levittown, construído entre 1947-51 no estado de Nova Iorque, Estados Unidos.

chamou de “formas ativas”: formas que devem ser interrogadas muito mais em termos de um “como” do espaço infraestrutural, do que dos “o quês” declarados pelas histórias, discursos e monumentos que costumam dissimular seu real funcionamento. Em outras palavras, o domínio das formas ativas nos remete muito mais à performance dos objetos – sua atividade associativa com outros objetos e agentes em um meio dinâmico – do que às suas qualidades formais, estéticas ou simbólicas. Compreender as formas ativas em jogo nas dinâmicas urbanas é, talvez, o primeiro passo para entender a natureza dos acidentes dos quais emerge a cidade contemporânea. Um acidente, afinal, é a crise entre aquilo que é declarado, anunciado, projetado e aquilo que de fato acontece. Interrogar os acidentes arquitetônicos e urbanísticos do espaço infraestrutural passa, portanto, por identificar aquilo que essas formas de fato fazem, para além do que elas dizem. s rodovias, originalmente promovidas por histórias sobre liberA dade e movimento ininterrupto, possuíam uma lógica organizacional que, na realidade, causava congestionamento. (...) Os subúrbios produzidos em massa venderam singulares casas de campo, mas entregaram produtos virtualmente idênticos organizados em linha de montagem. O Facebook, uma plataforma criada para o relacionamento social num campus universitário, 185


revelou mais um potencial inicialmente não-percebido quando, na Primavera Árabe, foi empregado como um instrumento de dissidência. (...) Em todos estes casos, alguns dos resultados políticos mais consequenciais do espaço infraestrutural permanecem não-declarados nas histórias dominantes que o retratam128

O caso dos (hoje mundialmente familiares) subúrbios habitacionais norte-americanos do pós-guerra – um fenômeno, como o arranha-céu, resultante de diversos acidentes infraestruturais, bem como o causador de muitos outros – é recordado por Easterling para exemplificar o funcionamento e as tendências das “formas ativas” no espaço infraestrutural. Ela descreve a primeira experiência dessa emergente tipologia suburbana – o empreendimento Levittown, de 1947 – não tanto como o produto de um planejamento, mas o resultado de uma espécie de equação com diversas variáveis, de cujas interações surgiam não apenas os subúrbios em si, mas também os seus respectivos fenômenos socioculturais. As casas de Levittown não eram obras de arquitetura (a despeito do que diziam seus discursos promocionais), mas um tipo particular de formas ativas que ela chamou – empregando um termo da cibernética – de “multiplicadores”, dando entender que o empreendimento era, literalmente, o produto de um tipo de software espacial. Levittown era o resultado de uma linha de montagem: a composição e multiplicação de uma “população de commodities” tecnológicas, desde os insumos de construção (todos comercialmente catalogados) até as televisões e máquinas de lavar inclusas nos imóveis – além, é claro, as próprias casas, elas mesmas os parâmetros geradores de uma emergente composição sociotécnica. Nenhum de seus componentes eram propriamente “objetos”, mas informação: “a casa não era um objeto singularmente elaborado, mas um multiplicador de atividades”129. Levittown é um caso paradigmático de um “espaço infraestrutural” que não se limita mais à parcela da cidade ocupada pelas formas típicas da infraestrutura urbana, mas que passou a ser a própria matriz do espaço “figural” – arquitetônico, monumental etc. – da cidade, anteriormente uma instância do planejamento. Mas não só isso: emergências espaciais como a de Levittown, que há décadas tiram o sono de arquitetos e urbanistas, sinalizam também a relutância histórica desses agentes em compreender as dinâmicas “extra-espaciais” ou informacionais que configuram o espaço infraestrutural, bem como a sua incapacidade de intervir nele com suas tradicionais ferramentas de projeto. edesenhar uma única casa, ou a forma-objeto da casa no contexto R do subúrbio, pode não ser tão poderoso quanto interpelar a sua forma ativa – nesse caso, o multiplicador. Um projetista que intervém nos campos repetitivos do espaço suburbano com uma única casa causará pouco impacto. Mas projetar algo para ser 186

128. Easterling, K. (2014), p. 56. T.M.

129. Ibid., p. 58


130. Ibid., loc.cit.

131. Ibid., p. 57

132. Ibid., p. 67

multiplicado em uma população de casas tem o potencial de recondicionar o espaço suburbano maior, ou hackear o software suburbano. Por exemplo, quando o carro chegou no subúrbio, ele era um multiplicador que exigia que garagens fossem anexadas a todas as casas; hoje, recalibrar ou redesenhar o carro e sua garagem multiplicaria e difundiria mudanças espaciais ao longo de todo um território de casas130

Easterling faz um apelo para que as disciplinas da arquitetura e urbanismo reconsiderem o modo com que foram historicamente programadas para compreender a produção do espaço, segundo o qual os “espaços e organizações urbanas são normalmente tratados não como atores, mas como coleções de objetos e volumes.”131 Pensar em termos de “formas ativas” – forma como ação – ao invés de “formas-objeto” – forma como objeto – é a condição para que eles possam compreender e intervir, em níveis mais significativos, nas reais dinâmicas de produção do espaço contemporâneo, das quais eles se vêem progressivamente isolados. Para Easterling, as formas ativas do espaço urbano são os marcadores do que ela chamou de “disposição”, querendo dizer as atividades, tendências e propriedades que emergem da performance dessas formas quando associadas umas às outras em um dado contexto. O conceito de “disposição” serve para deslocar certos pressupostos instrumentalistas, na arquitetura e no urbanismo, que tendem interpretar as dinâmicas urbanas como produtos de funções ou desígnios concebidos como atributos fixos dos objetos. Ainda que o termo “função” aluda a “funcionamento”, ele é frequentemente empregado para designar propriedades inerentes de uma forma, independentemente de sua performance real, ou incidente. De modo que, quando essas formas, uma vez postas em funcionamento, não respondem às funções a que foram designadas, ou então revelam funções e tendências acidentais, não antevistas, o resultado tende a ser interpretado como um mero “erro”. Pensar a “disposição” desses objetos, pelo contrário, é considerá-los de acordo com as associações e trocas concretas que eles estabelecem com outros objetos e formas ativas, ou seja, em seu contexto de atividade. É pensá-los não como detentores de qualidades “internas” (função, significado, etc.), mas qualidades relacionais, dispositivas: uma forma é aquilo que ela faz, não aquilo que acreditamos que ela seja. O conceito de “disposição” nos permite acessar os modos pelos quais “uma organização lida com variáveis no tempo – como ela absorve ou deflete as formas ativas que se movem dentro dela. A disposição não descreve uma constante, mas conjunto variável de ações a partir das quais se pode constatar ações, potencialidades e capacidades”132, para além de simples “funções” originalmente programadas. A disposição não emerge, como a “função” para os planejadores, da previsão das 187


atividades e comportamentos futuros de um objeto. Pelo contrário, ela surge de um exercício de engajamento ativo com as performances e resultados reais de um sistema, a despeito das funções inicialmente atribuídas aos seus elementos. Dizer que uma tipologia arquitetônica qualquer, digamos, a casa unifamiliar, corresponde a uma função determinada – nesse caso, a função “morar” – é uma planificação grosseira, resultante de uma concepção abstrata da “casa” que só existe na mente do arquiteto. (Até porque, como sabemos, “morar” se tornou apenas uma das inúmeras funções acumuladas no interior da habitação contemporânea). O que é, exatamente, o morar? O morar em uma casa suburbana é o mesmo que o morar em uma casa em um bairro urbano central? O que a função “morar” nos diz da realidade de cada uma dessas casas, para além de uma categorização genérica? De fato, muito pouco. Se seguirmos, ao invés, aquilo que o termo “função” implica – o funcionamento – veremos que nem mesmo duas casas perfeitamente idênticas e situadas a poucos quarteirões de distância uma da outra funcionam da mesma forma. Digamos que uma delas está situada numa tranquila rua local, e a outra margeia uma movimentada avenida arterial na divisa do bairro. Se entrevistássemos os respectivos habitantes dessas casas, certamente cada um deles nos forneceria relatos completamente distintos do “morar” em suas casas – ao passo que um arquiteto ou urbanista, sentado diante de uma planta-tipo ou um plano geral, do conforto de seu escritório, dificilmente saberia distinguir entre elas. Nesse caso, a diferença é que, enquanto os habitantes dessas casas as descreveriam nos termos de suas disposições, os planejadores o fariam de acordo com uma função identificável apenas pelos atributos formais ou extensivos do tipo “casa”. A disposição, portanto, é aquilo que emerge da performance real de um objeto em seu meio de atividade, onde ele interage com uma série de “formas ativas”, compondo com elas um sistema com propriedades emergentes que não podem nunca ser inteiramente premeditadas. O teórico da arquitetura Stavros Kousoulas escreveu que a dificuldade das disciplinas de planejamento em identificar essa disposição nas organizações espaciais decorre de seu condicionamento ao que ele chamou de “falácia do input-output”. Segundo ele, a cultura arquitetônica está acostumada a pensar por meio de “caixas-pretas”: um mecanismo de compreensão do espaço que “recebe inputs” – modelos, desígnios, funções – e produz a “manifestação, causalmente linear, quase mágica, dos outputs”133 – os objetos arquitetônicos. Uma concepção que, em outras palavras, concebe o pensamento e a prática da arquitetura “como um mero regime de projetar, representar e anotar ‘propriamente’ aquilo que será posteriormente executado”134. 188

133. Stavros Kousoulas, “Shattering the Black Box: Technicities of Architectural Manipulation”. In: International Journal of Architectural Computing, vol. 16 (Nova Iorque: Sage, 2018), p. 295. T.M 134. Ibid., loc. cit.


Em lugar desse pensamento, Kousoulas defende que a arquitetura siga o caminho inverso: são os outputs – os resultados, as performances – do espaço que devem condicionar a produção de hipóteses, premissas e modelos da arquitetura, e não o contrário. Ao invés de se restringir aos chamados processos dedutivos (a produção de inferências com base em juízos e modelos a priori) e aos processos indutivos (inferências baseadas em dados estatísticos prévios) que costumam orientar a produção arquitetônica, Kousoulas defende que ela deva se orientar por aquilo que Charles Sanders Pierce chamou de raciocínio abdutivo. A abdução, ao contrário da dedução e da indução, é aquilo que faz de nós 135. Ibid., p. 299

organismos ativamente testadores da realidade. De acordo com [o teórico das mídias Steven] Shaviro, [os organismos] estão sempre envolvidos na testagem de seus ambientes com ações variáveis e ininterruptas para, apenas depois, avaliar o feedback sensorial. Esse é o exato oposto do modelo do input-output. É o output que vem antes, modulando a atividade persistente e contínua de sondagem realizada pelo ente135

136. Ibid., p. 296

Para explicar o processo abdutivo, Kousoulas recorre à distinção, feita pelo filósofo Gilbert Ryle, entre o “saber que” (um conhecimento propositivo) e o “saber como”, um tipo de conhecimento emergente que só pode ser acessado por meio da manipulação ativa de um sistema em funcionamento. “Não se pode aprender a nadar”, diz Kousoulas, “lendo um manual: é preciso entrar em uma composição [assemblage] com a água e tentar diferentes modos de propulsão por meio do movimento corporal”, para então adquirir o saber emergente do como nadar136. Kousoulas defende que a única forma de compreender sistemas de atividades complexas – antes mesmo que tenhamos modelos para explicá-los – é intervindo ativamente sobre eles por meio de processos abdutivos. Em sua leitura do filósofo Reza Negarestani, ele descreve o que seria essa espécie de razão manipulativa:

137. Ibid., p. 298. Grifo meu

egarestani observa que, se desejamos examinar o que um sistema N é, então não podemos fazê-lo sem estudar o que o sistema pode fazer. Além disso, aquilo que um sistema é nunca se esgota na aparência daquilo que ele parece estar fazendo. (...) Deve-se ativamente intervir em múltiplos níveis, e então intuir a afetividade recíproca das ações no sistema, não apenas em relação àquele que intervém, mas igualmente em relação aos próprios níveis organizacionais específicos do sistema. De forma mais simples, para examinar um sistema é preciso manipulá-lo. Compreender tendências materiais [de um sistema] envolve a aplicação de uma epistemologia que é, ao mesmo tempo, heurística e manipulativa137

138. Ibid., p. 297. Grifo meu

Diferentemente da dedução e da indução, (que “nunca inventam: apenas repetem, predizem e reproduzem dados quantitativos”138) a abdução é o princípio mesmo da invenção: é uma operação interrogativa (“e se...?”), e não propositiva (“se X... então Y”). Uma invenção não descreve apenas – embora certamente inclua – a ideia de um “salto” abdutivo, 189


uma eureca. Podemos chamar de “invenção” toda composição que emerge de uma manipulação ativa – tentativa e erro – de um sistema que nunca pode ser inteiramente conhecido de antemão. No exemplo que citamos há pouco, o corpo que nada é a invenção, a disposição que surge das trocas recíprocas entre o corpo e seu meio, a água. Para empregar um exemplo da arquitetura, podemos dizer que a invenção do arranha-céu não partia de nenhum modelo a priori, mas era o resultado empírico do encontro entre formas ativas (o elevador, os perfis de aço, o sistema viário, os códigos de obra, os engenheiros civis e diversos outros eventos do ambiente metropolitano), bem como das disposições que essa associação revelava acidentalmente. Uma associação da qual emergiam, em troca, não apenas o arranha-céu e toda a “cultura da congestão” modulada por ele, mas igualmente a conquista epistemológica que é a própria crítica desse fenômeno. “Cultura da congestão” não era o nome de um modelo imposto à cidade, e sim a constatação abdutiva de uma emergência, de um fenômeno que só foi conhecido após ter sido ativamente experimentado. Koolhaas certamente teria dito que Manhattan aprendeu fazendo: ao citar a proeza realizada pela equipe de engenheiros liderada pelo construtor Theodore Starret (que, em 1911, era o responsável por metade dos arranha-céus da ilha), Koolhaas nos lembra que, ali, não havia nenhum modelo ou manual, enhum manifesto, nenhum debate arquitetônico, nenhuma lei, n nenhum planejamento, nenhuma ideologia, nenhuma teoria (...) apenas – o arranha-céu (...). Não havia ‘desenho’, apenas a extrapolação dos temas e das tendências irreprimíveis de Manhattan; não por acaso, não havia arquitetos na equipe”139

A lição para arquitetura – ao invés de seu decreto de falência – deve ser, portanto, o reconhecimento de que o puro e simples projeto não nos salvará das emergências constantes que assolam a cidade contemporânea. Não se por “projeto” entendermos a pura e simples aplicação de modelos e teoremas, ao invés do que deveria ser o princípio fundamental da atividade arquitetônica: uma “prática de indeterminação espacial”140, um engajamento ativo e recíproco com o ambiente no qual deixamos esses modelos se proliferarem, bem como um acesso crítico a tudo aquilo o que volta, tudo o que ricocheteia do funcionamento necessariamente acidental dessas composições. Se podemos concordar que toda atividade arquitetônica envolve alguma forma de invenção, então ela é, também – gostemos ou não – a produção de alguma forma de emergência. Não se pode, para usar 190

139. Koolhaas, R. (2008), pp. 113-15

140. Kousoulas, S. (2018), p. 299


141. “Os arquitetos nunca conseguiram explicar o espaço; o espaço-lixo é o nosso castigo pelas suas mistificações. (...) O espaço lixo é um Triângulo das Bermudas de conceitos, uma placa de Petri abandonada”. Koolhaas, R. (2014), p. 42 142. Paul Virilio. The Original Accident (Cambridge: Polity Press, 2007), p. 10 143. Ibid., p. 5 144. Ibid., p. 6

145. Ibid., pp. 23

uma expressão de Koolhaas, abandonar a placa de Petri141: é preciso, eventualmente, voltar para enfrentá-la. • • • ‘ Não existe uma ciência do acidente’, Aristóteles advertiu muito tempo atrás. Apesar dos estudos de riscos, que acessam riscos, não há uma acidentologia, mas apenas um processo de descoberta fortuita, uma invenção arqueotecnológica. Inventar o veleiro ou o navio a vapor é inventar o naufrágio. Inventar o trem é inventar o acidente do descarrilhamento. Inventar o automóvel familiar é produzir o engavetamento na rodovia142

Em The Original Accident (2005), o arquiteto e filósofo Paul Virilio nos diz que toda nova invenção tecnológica não apenas soluciona um problema prévio como, necessariamente, produz novos problemas, novos tipos de acidente. Embora não se trate de uma constatação nova – como ele observou, desde Aristóteles o acidente é aquilo que “revela a substância”, no que a invenção é “um modo de ver, de ler acidentes como signos e oportunidades”143 – Virilio nos diz que estamos ainda longe, enquanto “cultura”, de desenvolver uma inteligência do acidente. Ou então, uma “inteligência da crise da inteligência”144, uma acidentologia. Ademais, essa carência ocorreria precisamente num momento histórico em que os acidentes do “Progresso” moderno se multiplicam de tal forma que, contraditoriamente, se tornam o atributo mais característico e corriqueiro – a própria paisagem – da vida contemporânea. A ubiquidade dos acidentes contemporâneos não descreve a frequência e magnitude cada vez maiores com que ocorrem, mas também pela assiduidade com que somos ativamente expostos a eles. Para Virilio, as mídias de massa e seus operadores – ele dá ênfase ao telejornal, com sua “programação do escândalo” (a Internet não era, ainda, o que é hoje) – nos submeteram à condição de espectadores cotidianos do acidente em tempo real. Não apenas somos superexpostos a acidentes e catástrofes sem que sequer precisemos vivenciá-los “materialmente”, como a instantaneidade do regime televisual nos condicionou a engajar com o acidente de forma inteiramente a-histórica, uma vez que a história, agora, é aquilo que se passa ao vivo diante de nossos olhos. Em outras palavras, “uma sociedade que irrefletidamente privilegia o presente, real time, em detrimento do passado e do futuro”145, é também incapaz de rememorar ou antecipar – e por isso obrigada a reproduzir – o acidente. Ela está condenada a eternamente experienciá-lo. Submetidos aos sobressaltos e espantos ininterruptos da condição de espectadores, somos incapazes de pensar o acidente, de 191


conceber a própria ideia de acidente, e de situá-lo historicamente como um marcador cada vez mais constitutivo da atual condição humana. Em lugar desse regime de superexposição, Virilio defende uma política de engajamento crítico com o acidente. Ao invés de sermos expostos a ele – uma situação onde só o que pode emergir é o pânico ou a apatia – deveríamos assumir “a abordagem oposta, que consistiria em expor o acidente – exibi-lo – como o grande enigma do progresso moderno”146. Ele propõe, dessa forma, um Museu do Acidente: uma espécie de museografia dos desastres (assim como dos “acidentes felizes”) congênitos à evolução técnica, que tenha o poder de nos deslocar da vivência casual da catástrofe em direção à sua reflexão e assimilação. Assim como toda invenção ou descoberta científica é o resultado cognitivo que se sucede à manipulação de um sistema em funcionamento do qual nunca temos total controle, um “museu do acidente” surgiria, similarmente, como a emergência benigna de uma cultura inteiramente imersa no acidente. O que é particular do museu de Virilio é que a invenção que emerge do acidente não é, imediatamente, a solução – e o decorrente esquecimento – de um problema. O que se inventa é a própria ciência do problema, uma vigília do acidente. Embora a nossa discussão, neste trabalho, possa parecer algo marginal em relação à tipologia dos acidentes enunciados por Virilio (ele está sobretudo preocupado com as dimensões ecológicas e planetárias de um “acidente integral”), a discussão por trás de sua museografia do acidente têm muito a contribuir para as disciplinas da arquitetura e urbanismo diante da condição das cidades contemporâneas. Até porque não há como distinguir, quando falamos de habitat (o objeto de intervenção dessas disciplinas por excelência), entre crises arquitetônicas/urbanísticas “locais” e o domínio “externo” das catástrofes globais (emergências climáticas, geopolíticas, migratórias etc.). Não apenas porque o habitat – a cidade – é o lugar mesmo de onde experienciamos toda e qualquer emergência, local ou global, como porque o próprio problema da cidade não pode mais ser dissociado de qualquer outro tipo de emergência planetária. Afinal, em termos de espaço infraestrutural, “cidade” é aquilo que, hoje, cobre a totalidade da superfície terrestre. Não há, portanto, arquitetura ou urbanismo simplesmente locais: enquanto fenômenos do “espaço infraestrutural”, qualquer projeto, ou melhor, qualquer forma de invenção arquitetônica ou urbanística será tributária, em algum nível, de uma ecologia global de acidentes. (Qualquer dúvida a respeito disso pode ser sanada pelo exercício de reconstituir os caminhos (genea)logísticos de um componente qualquer em um edifício arquitetônico: traçar a origem e os percursos de uma simples ferragem é descobrir uma rede de acidentes em escala planetária). 192

146. Virilio, P. (2007), p. 23-4


O que seria, portanto, uma museografia do acidente para a cidade contemporânea? Quais seriam os modelos e os monumentos – para além dos que já colocamos em funcionamento e que se mostraram insuficientes – que, recorrendo a um termo de Benjamin Bratton, podem emergir dessa megaestrutura acidental? Como ele mesmo interrogou, 147. Benjamin Bratton. The Stack: On Software and Sovereignty (Cambridge: MIT Press, 2015), p. 10. Grifo meu

oderia essa ‘cidade’ agregada que envolve o planeta servir como P a condição, o referente legítimo, do qual um novo (...) sufrágio universal pode ser derivado e desenhado? Poderia essa cidade-máquina compósita (...) servir como alguma forma de terra natal? (...) Caso ela pudesse, ou caso de alguma forma já seja, então nossas categorias e critérios convencionais falham em descrevê-la corretamente para nós. Isso ocorre, possivelmente, porque ela não é planejada, mas sim um acidente em processo”147

Bratton defende algo como uma tecno-logia – no sentido forte do termo, ao mesmo tempo reflexiva e instrumental – para o acidente. Na mesma chave do Museu do Acidente de Virilio, Bratton descreve esse modelo (que não é propriamente um modelo, e mais um protocolo) como uma abordagem projetual que, ao invés de encontrar no acidente um fim de linha, o antecipa e assume nele sua razão de ser. O acidente se torna não apenas o produto inevitável, como também uma ferramenta de desenho. 148. Ibid., p. 9

s vezes o emergente define o arcaico por oposição, e às vezes ele À se torna um colaborador essencial. Nós descrevemos isso como a consolidação de sistemas culturais e técnicos, um realinhamento de instituições e discursos, [que] tenta reconhecer e engendrar seus efeitos e acidentes. Isto é, um horizonte de design (...) que deve ser considerado, simultaneamente, nos termos daquilo que ele conquista enquanto tecnologia ideal e, talvez o mais importante, de como seus acidentes não-desenhados caracterizam seus resultados reais148

Das tabulas rasas às “requalificações urbanas”, a atividade da arquitetura e do urbanismo sempre se alimentou de alguma forma de delírio de controle ou grandeza. Fomos historicamente treinados à doutrina do gesto demiurgo, ou então – para empregar um vocabulário atualmente mais celebrado – à obrigação de encontrar soluções (pensemos em quão constrangedoramente banal é ouvir um arquiteto se referir às “soluções” de tal ou tal projeto). De certo modo, há algo nesse gesto solene, nessa “solução”, que soa estranhamente familiar à ideia de “monumento” que tentamos, ao longo deste trabalho, criticar. É que a solução é, ao seu modo, ela mesma um tipo de monumento, de lápide: não no sentido daquilo que ela traz à memória mas, ao contrário, de algo que é enterrado, deixado para trás. De fato, assim como a “solução” é o gesto – nobre, monumental – de obliterar o contratempo, aquilo que o monumento parece 193


frequentemente comemorar é menos a memória de um evento (de um acidente da história) e mais o próprio desejo de esquecê-lo. Como escreveu James Young, “uma vez que atribuímos forma monumental à memória, nós em alguma medida nos desvencilhamos da obrigação de lembrar”149. Não espanta, portanto, o cenário contraditório no qual a arquitetura e o urbanismo se encontram hoje. Um cenário fruto do conflito entre, de um lado, a obstinação quase amnésica com a qual continuamos a exaltar monumentos e soluções e, de outro, uma condição urbana por nós mesmos considerada “insolucionável”, repleta de monumentos acidentais. Se queremos, enquanto arquitetos e urbanistas, deixar de ser espectadores (ou comentaristas) do acidente – ou então, nas palavras de Easterling, se queremos poder “hackear o software” da megaestrutura acidental que se tornou a cidade – é preciso que estejamos dispostos a “expandir hábitos disciplinares para questionar a autoridade de [nossas] ciências, ou a pureza de [nossas] narrativas mestras”. Para ela, “ao invés de reforçar as presunções da teoria”, a arquitetura e o urbanismo devem descobrir “o que está realmente acontecendo em campo”150. Engajar ativamente com o acidente e com a indeterminação, fazer dele o objeto do planejamento – seu próprio monumento – e não algo a ser, ingenuamente, superado. Talvez esse modo de conceber o acidente como um dispositivo de planejamento se assemelhe, de certa forma, do “contra-monumento” do qual falamos anteriormente. Para James Young, o princípio do contra-monumento é a constatação de que “engajamento mais certeiro com a memória” – donde poderíamos acrescentar, com a acidentalidade da história – “reside na sua eterna irresolução. Ao invés de uma figura fixa para a memória, o próprio debate – perpetuamente irresoluto, em meio a condições dinâmicas – pode, em si mesmo, ser consagrado”151. O contra-monumento é algo como um monumento ao acidente. Ao invés de monumento, portanto, o contra-monumento; ao invés de solução, exposição do acidente; ao invés de projeto, práticas de indeterminação; ao invés de modelos, protolocos; ao invés de arquitetura, quem sabe uma “arquitetura de sistemas”.

194

149. Young, J. (1992), p. 273

150. Easterling, K. (2014), p. 16

151. Young, J. (1992), p. 270



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Este trabalho foi impresso e encadernado pela Inove Gráfica Digital em julho de 2021. O papel usado é o pólen 90g/m², e as fontes são ITC Stone Serif (títulos), Spectral (corpo) e Times New Roman (capa). O projeto gráfico da capa é do João Pedro Nogueira (@oujuca).




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Julio Shalders Pitol


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