Monumento e Acidente | TFG FAUUSP 2021

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diante a emissão do sinal, toda possibilidade de conhecimento sobre eles é inviabilizada. O gorila não pode, com seus sinais, falar sobre a presa, sobre o inimigo, para os gorilas ausentes: ele não pode lhes comunicar o que são cada uma dessas coisas sem que elas se apresentem para eles conjuntamente ao sinal. Pode-se dizer que o lógos pelo qual Platão advogava não era, portanto, tão distinto assim da ‘protolinguagem’ espontânea demonstrada pelos gorilas. Como observou o paleontólogo André LeroiGourhan, em Gesture and Speech (1964), 36. André Leroi-Gourhan, Gesture and Speech (Cambridge: MIT Press, 1993) p. 114. T.M.

traço característico da ‘linguagem’ e das ‘técnicas’ dos grandes O símios é que elas são solicitadas espontaneamente em resposta a estímulos externos e são, de forma igualmente espontânea, abandonadas, ou deixam de ocorrer, caso a situação material que as provoque deixe de existir ou não aconteça36

A condição de surgimento da episteme, a condição mesma do que tradicionalmente temos por “ser humano” jaz, contrariamente ao que quis Platão, na possibilidade do signo. Todo signo, falado ou escrito, é uma forma de prótese, de memória-auxiliar. Em termos linguísticos, o signo é a forma perene do sinal: é, por exemplo, a palavra “inimigo” que surge não apenas para re-presentar o inimigo ausente, mas igualmente para antecipar a possibilidade da sua presença. Um animal dotado de signos será portanto capaz de, acoplando-os a si como próteses, rememorar e antecipar a realidade, ou então, conceituá-la. E dessa montagem entre ser e signo o que irrompe é precisamente o conhecimento, a episteme, ou o próprio “humano”. Mas por “signo” (ou então símbolo) entenderemos não apenas os instrumentos da linguagem, mas, de forma ampla, tudo aquilo que o ser humano “excreta” para além de seu corpo biológico e que é capaz de se conservar e sedimentar no tempo, podendo ser sucessivamente “retomado” e desenvolvido pelos ausentes e pelas gerações futuras. O signo é indistinguível de qualquer outra ferramenta ou objeto técnico. De novo, segundo Leroi-Gourhan, 37. Ibid., p. 114

( ...) as operações envolvidas na fabricação de uma ferramenta antecipam as ocasiões de seu uso, e a ferramenta é preservada para ser usada em ocasiões futuras. O mesmo é verdadeiro para a diferença entre sinal e palavra, a permanência de um conceito sendo comparável àquela da ferramenta37

38. Ibid., p. 113

A identidade entre o signo linguístico e a ferramenta se dá para muito além da simples analogia. Na verdade, como Leroi-Gourhan observou, as capacidades de construir ferramentas e símbolos dos seres humanos “derivam do mesmo processo, ou melhor, do mesmo equipamento básico do cérebro”38. Entretanto, a condição biológica para a fabricação de símbolos e ferramentas não é, como por muito tempo sugeriu a concepção “cerebralista” do humano, a existência de um aparelho cognitivo suficientemente desenvolvido, ou a preexistência de uma “episteme”. Pelo contrário, o desenvolvimento cerebral

Evolução da faca, dos primeiros estereótipos de pedra do Paleolítico até a faca moderna. Copiado de Leroi-Gourhan (1993), p. 303

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