AGOSTO '20 38ª Edição
FOTO DE AGUIAR PEREIRA
Direcção: Adelina Barradas de Oliveira Design e Produção: Diogo Ferreira Inês Oliveira Site: www.justicacoma.com Facebook: JUSTIÇA COM A
EDITORIAL É A REVISTA DO NOSSO DESCONFINAMENTO. TROUXEMOS CONNOSCO UMA PSIQUIATRA QUE NOS FALOU DO QUE NÃO QUEREMOS ENCARAR DE FRENTE. DEIXÁMOS UMA AJUDA AOS PROGENITORES SOBRE CYBERBULLING PELA MÃO DE 3 PSICÓLOGOS QUE SE DEDICARAM AO TEMA. ATTENTION PLEASE! DEIXAMOS UMA SUGESTÃO DE UMA QUINTA VEGAN EM PORTUGAL QUE É SEGURMENTE PEDAGÓGICA. FALÁMOS DE MEDOS SOB VÁRIAS FORMAS,...E TANTAS FORMAS QUE TEM O MEDO. E FALÁMOS DOS QUE NÃO TÊM MEDO E EMBRIAGADOS SABEM DE TUDO PONDO OS QUE VERDADEIRAMENTE SABEM EM CAUSA. PORQUE DE ESCRITA TRATA ESTA REVISTA FALÁMOS DA ESCRITA, DO LER E DO ESCREVER E DA MODA DE QUERER SER ESCRITOR. TROUXEMOS CONNOSCO A ARTE DA POESIA E DA FOTOGRAFIA QUE FAZ HIST´ÓRIA. ESPERAMOS QUE REGRESSEM RENOVADOS PARA UM ANO QUE TERÁ DE SER DE CORAGEM PARA OLHAR DE FRENTE O FUTURO. DESFRUTEM, LEIAM-NOS E DIGAM-NOS DE VOSSA JUSTIÇA SEM MEDOS.....
25 DE AGOSTO DE 1988 ARDIA O CHIADO , O GRANDELLA E A PERFUMARIA DA MODA DA TATÃO
FOTOS GENTILMENTE CEDIDAS PELO GRANDE FOTÓGRAFO PORTUGUÊS FERNANDO CORREA DOS SANTOS
10 16 FLORES NA ABÍSSINIA 20 CRÍTICA LITERÁRIA CYBERBULLYING 22 BOCA DE CENA 26 SOPHIA 30 E O MAR LOGO ALI 34 36 CANTINHO DO JOÃO RÉ EM CAUSA PRÓPRIA 38 ESCREVER ESTÁ NA MODA 40 42 VOCÊ CORTA A ETIQUETA? HAVIA TEMPO NESSE TEMPO 44 AQUELA TÉNUE FRONTEIRA MARIA ANTÓNIA FRASQUILHO
CARLA COELHO
ANTÓNIO GANHÃO
SÓNIA SEIXAS, LUÍS FERNANDES, TITO MORAIS
CARLA COELHO
JOSÉ LUIS OUTONO
ANA GOMES
JOÃO CORREIA
ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA
MARGARIDA VARGUES
MARGARIDA DE MELLO MOOSER
LICÍNIA QUITÉRIO
MARIA ANTÓNIA FRASQUILHO Tem 63 anos. É mãe de 3 filhos, casada. Foi médica de família. Fez pós graduação em medicina do trabalho. Tornou-se especialista de psiquiatria tendo obtido todos os graus. Exerceu clínica psiquiátrica hospitalar. Realizou actividade de apoio à gestão na ARS-LVT. Foi directora Clínica do grupo Hospitalar psiquiátrico de Lisboa. Foi docente de psiquiatria e saúde mental na Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa e professora na Escola Nacional de Saúde Pública. Mestre em Ciências da Educação, na área da educação para a saúde. Tem formação em Storytelling. Sub-especializou-se em psiquiatria forense e tem a competência de Avaliação do Dano Corporal. Actualmente apenas exerce na sua clínica privada - ALTERSTATUS, em Algés. Áreas de interesse: clínica psiquiátrica, stress e burnout, programas de apoio ao trabalhador, promoção da saúde mental, psiquiatria forense e perícias de avaliação do dano corporal. Pinta e escreve. Faz teatro amador.
AQUELA TÉNUE FRONTEIRA. DA SAÚDE À DOENÇA MENTAL.
Eu sinto-me a cair no poço… desespero, mas sorrio. Quando estou no trabalho, eu Alice, sou estupenda. Sou diligente, vivaça, sempre a parecer alegre e até tenho uma performance acima da média.
no bem bom. É claro que as colegas não a suportam, que preguiçosa! Ainda por cima vinha com uma declaração médica para tarefas melhoradas, qual quê?!...
Alguns colegas da contabilidade andam cinzentos, quezilentos. Li num livro que há gente tóxica, que extermina todos quantos estão á sua volta. Tenho uma chefia superior assim. Acho que se dá mal com a mulher e vem embirrar connosco. Mas eu sou de força, aguento.
Não fui eu, mas puseram-na noutra secção, numa secretária lá para os fundos virada para uma parede. Está com a área dos armazéns e exportação, mete para lá uns dados, mais mal que bem. Raramente fala. Também não terá muitos com quem falar. Todos a evitam. Já dei com ela com ar aluado, de boca aberta como uma patega, se calhar a fazer a gestão dos estoques em imaginação com o Exel projectado e os números a bailar na parede.
No departamento pelo qual sou responsável já houve 3 pessoas que meteram baixa psiquiátrica. Inadmissível como lhes dão importância! Dizem que estão em “burnout” por causa dos gritos e ameaças dele. E também por causa do sistema, acho eu. Uma delas voltou ao fim de 6 meses de descanso,
Ah, ah! A Manuela, a manager do departamento de sales, já me disse que ela estava a passar-se de dia para dia. Só a presença dela arrepia. Nem sabemos se será perigosa. Vá lá que se passa assim numa fúria e ataca alguém… Viu o filme “O Joker”? Não é para brincadeiras… e ainda por cima nem os
AQUELA TÉNUE FRONTEIRA. (...)
julgam como responsáveis. Todos desejam que ela enlouqueça de vez a um fim de semana. Que saia de cena. Pelo menos não nos dava chatices. Em casa é um bocado pior. Não tenho a mínima paciência para os miúdos. Não me apetece fazer aquelas chatices domésticas… mas também tenho direito a isso. O meu marido que se chegue à frente, não acha?! A verdade é que nem o posso ver. Cada vez que me toca enxoto-o. Coisas íntimas? Nada, nadinha. Há meses de dieta, entende? Também já estou a ir para os 50. Nem ele é o “action man” com quem casei, portanto eu também já não sou a “barbie”. Deve ser da prémenopausa. Tenho de lhe pedir umas análises às hormonas. Ah, mas olhe que a tomar qualquer compensação é só algo natural! A vida tem sido um pouco madrasta, mas eu defendo que não temos de estar com queixinhas. Atiro para trás das costas. Reprimo o rancor. Temos é de fazer por nós, pela nossa saúde. Eu vou todos os dias ao ginásio, suo lá as desilusões. Controlo o peso ao grama, só como dieta saudável. Convivo pouco, é certo. O tempo não estica e o trabalho ocupa-nos muito. Gosto de ir lendo as coisas no Google, isto de remédios é preciso muita cautela. A indústria farmacêutica controla o mundo, e os médicos, desculpe lá, também estão cercados sem darem por isso. O doutor é boa pessoa mas tem de compreender que é mesmo assim. Os químicos fazem bem a uma coisa e mal a muitas mais. Já viu o que diz naquele remédio que me mandou tomar no mês passado?
Aquele da serotonina, sim. É uma lista gigante de contraindicações. E os efeitos secundários? É melhor nem falar. E eu, que até sou rija, tive quase todos. Nem pensar… foge! Ao fim de cinco dias acabei logo com ele. E agora? Contínuo sem ser eu. Não durmo em condições. Tenho suores. Dói-me tudo, doí-me a barriga. Os intestinos estão desarranjados. Começo a chorar que nem uma desgraçada. Assim de repente. Sem razão. Eu disfarço. Que isto não saia daqui: até já pensei em desaparecer. Qual o propósito para isto tudo? Tenho um cansaço tão grande. Não acha que posso estar com um cancro? Pode ser da idade? Ou será que estou com um esgotamento? É melhor dar-me umas vitaminas. Definitivamente: não me fale em antidepressivos. Não vou tomar. E aquela ideia do psiquiatra até me enerva, então acha que estou maluca? Eu, não! Um psicólogo? Oh, doutor, eles são mais doidos que os doentes.
Pois é, as histórias são composições com raízes na realidade. Uma história tem aquele poder: desvenda a vida, desencobre-nos também a nós. E que tal jogar sobre a saúde e a doença mental centrados nesta ficção? Vamos fazê-lo de modo muito estruturado em torno de desafios. Se for a dois ou a três, melhor.
MITOS (o desafio é encontrá-los no texto) a) As pessoas com doença mental são fracas, preguiçosas e não trabalham. Errado três vezes. A maioria das pessoas com doença mental – psiquiátrica - estão activas no trabalho. Não são fracas ou fortes, zelosas ou preguiçosas. São como qualquer outra pessoa que pode adoecer independentemente do seu vigor e da sua vontade. Por vezes é necessária uma baixa médica, enquadrada no tratamento. E também pode fazer parte deste, o planificar dum regresso ao trabalho adequado, com uma atribuição de tarefas compatíveis com a sua capacidade ao momento. Tal e qual como o que se faz com outra doença qualquer. b) Ter saúde mental implica responsabilidade. Os doentes mentais são irresponsáveis. Errado. Claro que a melhor saúde mental exige responsabilidade ( mas também há pessoas muito sãs que a têm pouco). Porém, pessoas com doença psiquiátrica também podem ser muito responsáveis no dia a dia. E se foi cometido algum delito, a maior parte dos casos de doença psiquiátrica não impede a responsabilização pelos actos praticados, a menos que a pessoa esteja incapaz de compreender, tenha a consciência afectada ou não tenha a possibilidade de compreender e controlar o seu comportamento. A perigosidade não é uma cláusula da doença mental.
c) Pior que ter uma doença física é ter uma doença mental. Não se deve desvincular doença física da doença mental. Frequentemente as pessoas com doenças psiquiátricas têm também sintomas físicos. A própria hipocondria (fantasia aterrorizadora de ter certa doença), ou a somatização do sofrimento psíquico que acontece nas doenças psicossomáticas, são apresentações comuns de doenças psiquiátricas. Na ansiedade e na depressão as queixas físicas são vulgares e das primeiras a surgirem. Quem sofre destas patologias queixa-se de ser menosprezada e até prejudicada por as ter. Por isso, às vezes, dizem que é pior passar pela doença mental porque o sofrimento não é reconhecido pela sociedade, não beneficiam do apoio do próximo e, realmente, sofrem vexames e discriminações quando se torna conhecida a sua doença. Os próprios profissionais da especialidade também são estigmatizados. d) O “burnout” acontece porque as pessoas não sabem desprender-se dos problemas. O esgotamento é que é trabalho a mais. Uma pequena pausa resolve. Errado. A nossa energia vital não esgota. Pode é estar-se a viver de forma desumanizada e entrar em perda severa. O “burnout” definese pela exaustão emocional, a insatisfação profissional e a despersonalização. Não é culpa do trabalhador. Este não deve ignorar o que sente e deve por limites firmes às
AQUELA TÉNUE FRONTEIRA. (...)
exigências profissionais avassaladoras. E as condições de trabalho não podem ser um perigo para o trabalhador. e) Ter saúde mental é estar sempre bem Errado. Ter saúde mental é ter diferentes emoções, comportamentos, pensamentos conforme as circunstâncias em que se vive. É acima de tudo ter consciência de si, do que sente e faz, e do modo como se relaciona com os outros. É não fazer de conta. É reconhecer as dificuldades. É compreender o mundo e ter um propósito para a vida. É conseguir ser funcional e acrescentar algo à comunidade onde se vive. Saber discernir o que é adequado, gerir bem as emoções, ser flexível, não pensar “a preto e branco”, não querer controlar tudo, conseguir adaptar-se quando se deve ajustar, mudar aquilo que pode ser mudado. É ser criativo, lidar bem com os desapontamentos, e ser capaz de pedir e aceitar ajuda quando não se sente saudável. Ter um bom estilo de vida ajuda, mas não basta ir ao ginásio e ter cuidados alimentares. Há que praticar “ginásio emocional, cognitivo e comportamental”. f) O psicólogo é para os casos menos graves e o psiquiatra trata dos loucos. Errado. Ambos são especialistas na área da mente. O psiquiatra é médico, faz um diagnóstico médico (que inclui a vertente psíquica), pode diferenciar a doença segundo a sua origem (por exemplo, há doenças endócrinas, neoplásicas, até cirúrgicas que se revelam no inicio apenas
por sintomas mentais) e pode decidir por tratamento medicamentoso, psicossocial ou psicoterapêutico, ou todos em conjunto. Sabe e pode fazê-los. O psicólogo faz o diagnostico psicológico (personalidade, características da pessoa e dos seus contextos, avaliações psicométricas) e pode fazer aconselhamento e psicoterapia. Deverão trabalhar em equipa tanto para doenças graves como para situações mais banais. E mais importante: ambos fazem muita falta para a prevenção das doenças e promoção da saúde. g) Os fármacos psiquiátricos são drogas que devemos evitar. Errado. Hoje em dia já se conhecem os mecanismos neurobiológicos implicados nas doenças psiquiátricas. E também já há retratos imagiológicos e marcadores genéticos do que se passa em patologias especificas (se bem que para a clínica, no geral, não façam grande falta). Os medicamentos fornecem ao organismo o equilíbrio que está em falta em cada um dos casos. A serotonina, a noradrenalina a dopamina e muitos, muitos outros são químicos biológicos (sim, a natureza, o universo, nós somos químicos). Quando estão desestabilizados no nosso organismo os psicofármacos permitem alcançar esse melhor balanço. E na maior parte dos casos nem provocam efeitos secundários graves, incómodos e/ou habituação. Os benefícios são evidentes, e são como outro qualquer medicamento que tem de ser tomado sob vigilância médica.
h) As questões de doença mental são insignificantes. Sempre houve problemas na vida e cada um tem de os enfrentar por si. Errado. A doença psiquiátrica é muito comum: 1 em cada 4 pessoas sofrera na sua vida de episódios de doença mental. Nos locais de trabalho é hoje em dia a segunda causa de adoecer e prevê-se que devido aos altos stressores psicossociais se torne brevemente na primeira. No topo de perda de qualidade dos dias vividos estão as doenças mentais e ficam caríssimas aos estados e representam perdas enormes para as organizações e um peso tremendo para as famílias. Parte das causas da doença é biológica e hereditária(simplesmente médica) mas uma parcela significativa tem a ver com todas as circunstancias de vida actuais, A insegurança, a competição, o cada vez maior isolamento, o sentimento de não pertença, a desumanização promovem o sofrimento psíquico. Fazer face a esta calamidade exige coesão, capacitação pessoal e medidas transversais a diversos sectores sociais, muito além do sistema de saúde.
APÓS O JOGO, OUTRO GRANDE DESAFIO: Vamos combater estes mitos. É uma questão de valor social, diria mesmo um imperativo para o bem- estar e a dignidade. Constatamos, então, que esta história da
Alice representa bem a condição de fraca saúde mental tão generalizada ainda. Afirmo até que há evidentes sintomas e sinais de doença depressiva que a Alice recusa admitir. Quererão descobri-los no texto? É como um quadro de fantasia de omnipotência, de querer formatar uma realidade por medo do que existe. Lembram-se do clássico livro de Lewis Carroll? Alice no país das maravilhas. Há muitas pessoas a irem para trás do espelho. As aventuras, os amigos, a juventude eterna, todas as possibilidades desejadas estão abertas. Contudo, é tudo imaginário e faz falta lidar com a realidade sem fugir para paraísos artificiais, sem reprimir, não fazendo de conta. E mais falta ainda faz compreender-se e não ajuizar pejorativamente. Faz falta um pensamento que acolha a complexidade. Também faz falta a humildade de nos reconhecermos humanos, e como tal frágeis a precisar uns dos outros. É bem-vinda a fantasia depois do conhecimento e da sabedoria. Será o sortilégio bem dominado que nos permite flutuar entre as fronteiras da saúde e da doença sem perder o fio condutor. E que ténues são essas fronteiras e que frágil esse filamento.
A CIDADE E AS SERRAS Sempre pensei no Verão e, em particular, nas férias, como um tempo de aventuras, vividas na primeira pessoa ou através dos livros, os meus companheiros de eleição. Ainda hoje, parece-me que durante esse período é tempo de abrir possibilidades e ver como há tanto mais à nossa espera do que aquilo que nos é dado a experimentar no dia-a-dia. Outros mundos, outras possibilidades. Com isto em mente, o meu grande propósito de férias tem sido nos últimos anos viajar e tenho tido a sorte de o conseguir fazer de forma regular. Um dos desígnios que me vinha à mente de quando em vez era ir fazer voluntariado com animais. Uma pesquisa na net indicou-me como destino possível os santuários de elefantes na Tailândia, uma ideia alimentada (admito) pelas imagens nas redes sociais em que pessoas perfeitamente descontraídas tomam banho com elefantes num qualquer rio asiático. Contudo, o meu realismo sempre me colocou barreiras que, com o tempo, se solidificaram. Será que o santuário era idóneo? Que tarefas irei fazer? Provavelmente, limpar bosta e pôr fardos da
palha aos elefantes, uma vez que nada sei de veterinária ou mesmo de comportamento animal de modo mais detalhado. E fará mesmo sentido largar uns milhares de euros para fazer voluntariado nestes termos? Arquivei o projecto na gaveta à espera de uma melhor e mais próxima oportunidade. E ela surgiu, imagine-se, neste tão inesperado 2020, ainda por cima numa modalidade que me permitiu realizar o meu sonho sem necessidade de me meter num avião e ir para o outro lado do mundo a pensar no peso médio de um elefante adulto e a quantos quilómetros do santuário seria o hospital mais próximo. Foi através de uma publicação nas redes sociais que conheci o projecto A Quintinha da Liz e logo que li a descrição pensei this must be the place. Fica bem perto de Mangualde e é um santuário de animais, um projecto amigo do ambiente e que pretende ser autosustentável. Não há consumo de qualquer produto de origem animal, o que para mim é a mais elevada recomendação que poderia existir. Também não há televisão, nem internet.
FLORES NA ABISSÍNIA Carla Coelho Juíza de Direito
Há água corrente, electricidade e gás, caso se estejam a interrogar sobre outros confortos da civilização. Há uma horta e um belíssimo pomar com árvores carregadas de fruta. Há um local estratégico ao fundo da quinta onde se acompanha de forma privilegiada o pôr do sol sentadinhos num ramo de árvore deitado no chão. E, o mais importante, há animais humanos e não humanos que nos fazem acreditar que um mundo melhor, não só é possível, como já existe. Nós é que não fomos avisados. Mas estou a adiantar-me no meu relato. Trocados uns e-mails e agendada a viagem restou-me estar em Santa Apolónia numa bela manhã, pelas 7h30m para tomar o comboio rumo a Mangualde. Pelo caminho, algumas hesitações tardias, é certo. Mas não seria eu se assim não fosse. Além disso, tinha terminado a leitura de A Propósito de Nada de Woody Allen e a minha veia ansiosaespeculativa estava, por isso, ao rubro. Foi isto uma boa ideia? Mas o que sei eu de animais? Não vejo uma galinha ao vivo e a cores há mais de trinta anos … E os porcos, as cabras? Ouço dizer que são traiçoeiros. E se me mordem? Será que dói muito? Tenho as vacinas em dias …, certo? Bom, não tenho mesmo de estar com eles, não
é? Posso ir para a horta ou para o pomar, optar por ter o estatuto de hóspede e ficar a ler um livro todo o dia ou, em último caso, ir embora. Sim, posso ir embora. Este pensamento consolador levou-me a dar entrada na estação de Mangualde, não em triunfo (a capitulação como projecto nunca me entusiasmou), mas com alguma tranquilidade. Mas, afinal, durante os dias em que estive no santuário vir embora foi coisa que não me ocorreu e foi mesmo com tristeza que vi chegar o dia da partida. Desde o momento em que o Noel me foi buscar à estação num jipe tão sujo como o carro que deixei em Lisboa até ao momento em que me depositou na estação para ir apanhar o Intercidades de volta à capital, não senti outra coisa senão que esta opção de férias estava no top ten das melhores decisões da minha vida. Não que a experiência tenha sido isenta de dificuldades. Sou uma pessoa urbana, é o que é. Em miúda fiz férias na aldeia onde vivia uma das minhas avós e tinha algumas recordações românticas desse tempo. O riacho, os campos, as amoras colhidas e levadas à boca, as galinhas, a vaca e o
A CIDADE E AS SERRAS
vitelo e tal e coisa. Todavia, em criança eu era um bocado medrosa e nunca me cheguei perto dos animais, sem a supervisão de um adulto e por períodos limitados de tempo. Além disso, esses tempos de infância já lá estão atrás. Por isso, vivi cada situação na quintinha como nova. Até porque em cada dia era efectivamente nova, jamais me senti numa espécie de Grondhog Day rural. Veja-se a ida à capoeira. No primeiro dia era isso mesmo – ir à capoeira. A partir do segundo dia passou a ser ir ver, para além do mais, o Jorginho e a Luisinha (galo e galinha), o Magalhães e a Maria (peru e perua) e a Aurora, uma simpática porquinha com uma apetência por sestas longas. Mais uns dias e o objectivo era não só limpar o espaço, mas também perceber se as águas estavam à sombra e se, em particular, o Magalhães e a Maria tinham bebido água ou se era preciso incentivá-los. À medida que os dias passaram (e não foram muitos) fui conhecendo a alegria do Amor (um pequeno porquinho com um apetite homérico), o Sr. Silvas (um simpático bode), a reserva do Orfeu, um pato de penas negras e bico laranja-encarnado (o mais bonito que vi até hoje), entre outros habitantes do santuário. Habituei-me a encontrar a gatinha Keiko quando abria a porta do quarto e deixei de ter receio do Sebastião e da Inca, dois cães tão grandes em tamanho como em vontade de receberem festas. Todos estes animais (e outros que ali vivem) foram resgatados de situações de maus tratos (com excepção
do Amor, que nasceu já no santuário). Mas todos eles percebem quando lhes estamos a querer fazer bem. Posso dizer que um dos momentos mais felizes destes dias (férteis em felicidade e alegria, diga-se) foi quando percebi que a Maria já confiava o suficiente em mim para beber água do gargalo da garrafa que segurava nas mãos. Aos momentos de contacto com os animais não humanos juntaram-se momentos na horta e na estufa, embora tenha de ser sincera e dizer que apenas fiz coisas leves. O meu orgulho são os garrafões de água que enchi para utilização futura. Participar nestes trabalhos não é condição para ir passar uns dias à quintinha. Podese igualmente ir conhecer o espaço na qualidade de hóspede e há boas razões para o fazer. A quinta, na aldeia de Nesperido, é muito bonita e está rodeada de verde e estando próxima do rio Dão. Vale a pena passear pela zona e perceber o quão diferente pode ser a vida. Há ainda dois motivos adicionais para estes terem sido dias memoráveis. Um é a comida. Adoro comer e não gosto nada de cozinhar. Nestes dias tive o privilégio de comer pratos deliciosos de manhã à noite, feitos generosamente pelos habitantes da quinta que lá estão a receber os hóspedes e voluntários. Falei acima do apetite homérico do Amor, mas o meu não lhe andou muito atrás. Não
era possível resistir, ainda que o quisesse fazer (e não queria). Enumero algumas iguarias: a maionese do Noel (acabou-se qualquer hipótese de comer outra), uma espécie de gaspacho feito pela Alice que todos os dias espalhei generosamente no pão (afinal, pensei, vou trabalhar no campo, preciso de alimento), a massa à bolonhesa (acho que nunca estive tão calada como nessa refeição), as saladas, shepherd`s pie, batatas a murro (ou antes a copo, deliciosas com maionese do Noel), a massa com orégãos, a feijoada, o cheesecake da mãe da Lara e, já agora, o bolo com cobertura de chocolate feito pela Mafalda, que sei eu?
pelos animais para ver se tudo está bem. Receberam esta filha da cidade, mostraramlhe o que fazer, apresentaram-lhe os animais, aceitaram o que podia dar (que não foi muito, considerando a minha parca experiência rural) e arranjaram ainda tempo para longas conversas. E também a Rita e a Ana, o Gil e a Susana e os seus filhos, bem como a Mafalda e a Ana, que passaram pela quinta enquanto lá estive.
Senti-me numa deliciosa versão vegana de A Cidade e as Serras à medida que me ia servindo uma e outra vez.
Claro que isso resulta da atmosfera da casa e dos que lá estão a viver a título permanente, com a sua generosidade e abertura. Só isso explica que em tão poucas horas e por tão poucas horas cada pessoa que chega se sinta parte da comunidade como se sempre ali tivesse estado. Por mim, sabendo que a vida é imprevisível (não é um lugar comum, como este ano nos tem mostrado de forma exemplar) tenho em mim a certeza de que quero voltar. Reencontrar os amigos humanos e não humanos que fiz, ver o pôr do sol no meu spot uma e outra vez, meter conversa com o Magalhães e o Orfeu e fazer o caminho de volta à casa cogitando o que será o jantar.
Fiquei espantada quando pouco antes da partida fui vestir as calças e percebi que me serviam, talvez apenas um pouco mais apertadas na zona da cintura. Demonstração, como me disse a minha Mãe quando comentei o assunto com ela, de que se calhar não trabalhei assim tanto… O outro motivo (que, na verdade, é o primeiro de todos) foram as pessoas que encontrei, os residentes e os que foram aparecendo, todos de coração aberto e sorriso largo. By order of appearence, como se diz nos filmes, o Noel, a Alice, a Lara, a Soraia e o Fernando, que enquanto escrevo este texto estão certamente a fazer mais uma ronda
É incrível como sendo desconhecidos para mim há umas semanas, fazem agora parte daquele núcleo de pessoas que nunca vou esquecer, mesmo se não os tornar a ver.
A Quintinha da Liz fica no Largo da Fonte do Além, nº30, Nesperido e tem página no Facebook e no Instagram
ANTÓNIO GANHÃO Critico Literário
SOBRE...
A ÚLTIMA PORTA ANTES DA NOITE ANTÓNIO LOBO ANTUNES A conversa de velhos tem um nexo especial, feita de memórias breves, tremidas e por momentos de insana lucidez ou de pura inspiração. São elucubrações circulares, batendo sempre no mesmo ponto, sem nunca, verdadeiramente, regressar a ele. António Lobo Antunes capta isso com sensibilidade, sentido de humor e a maldade de quem já não se ilude com as qualidades da espécie humana. Na monotonia da vida só a maldade nos torna humanos.
frase ou concluir um pensamento. A permanente evocação do passado porque não se consegue ficar a sós, entregue aos nossos pensamentos, mesmo quando acompanhados, em silêncio, com a cabeça “noutro sítio”, onde não existe um ponto final.
Um livro que nos agarra logo nas primeiras linhas, numa escrita límpida, empolgante, sem que o leitor se aperceba que cada capítulo cabe numa única frase, num único pensamento que desliza por nós sem que disso nos demos conta. Uma constante ruminação, agitando o leitor num metro à hora de ponta, não lhe permitindo que se aperceba da pontuação esquiva que vai juntando ideias sem nunca terminar uma
A trama forma-se entre as inquietações do passado e os receios do presente, os lobisomens da infância que nunca deixam de nos perseguir, o medo do escuro, “e o musgo do ódio começa a crescer nos intervalos de pedra dos dias”. A suprema mestria das metáforas que dispensam apêndices justificativos ou de ligação – em todo o livro apenas encontrei seis construídas a seguir a um “como”. A
Uma trupe de extorsionistas, na sua própria voz, vai divagando ao longo do livro, esvaziando o “baú cheio de tralha antiga” que cada um traz na cabeça, a soma dos medos e as aberrações que os acalmam.
narrativa adensa-se em torno de um perigo invisível, o receio da polícia, das escutas, de alguém que chibe, o dinheiro que tarda em ser distribuído a cortar o sonho de uma vida nova, sem receios antigos. Toda a fragilidade que nos dá a força de sermos humanos e, nessa condição, celebrar a grande literatura. “… o problema não é descobrir a resposta, é escutar a pergunta…”
“GOSTO DE MORAR AO PÉ DE UMA ESCOLA DO ENSINO SECUNDÁRIO PORQUE AO CONTRÁRIO DE MIM, QUE ENVELHEÇO, AS RAPARIGAS MANTÊM SEMPRE A MESMA IDADE O QUE ME DÁ GANAS DE MATRICULAR ALI A MINHA MULHER...”
A ÚLTIMA PORTA ANTES DA NOITE, DE ANTÓNIO LOBO ANTUNES, DOM QUIXOTE, 2018.
CYBERBULLYING O BULLYING À DISTÂNCIA DE UM CLIQUE
SÓNIA SEIXAS
LUÍS FERNANDES
TITO MORAIS
Durante as últimas décadas, ouvimos as várias gerações de adultos, preocupadas e inquietas com o tempo excessivo que as nossas crianças e jovens passavam à frente aos ecrãs. A chegada, mais ou menos silenciosa, de um vírus invisível fez com que o paradigma se alterasse por completo. Agora vemos diferentes gerações unidas na quase obrigação de se fazer uma utilização massiva das tecnologias. Durante o tempo de confinamento, necessitámos, diríamos mesmo, estivemos profundamente dependentes, da tecnologia para conseguirmos manter “alguma normalidade” no que respeita a grande parte das nossas atividades diárias que, até à data, realizávamos presencialmente: fazer as nossas compras, contactar com os nossos amigos e familiares, trabalhar, estudar, assistir a eventos de lazer/culturais, participar em reuniões, e até mesmo ter aulas de atividade física. Para muitas crianças e jovens que durante anos foram vítimas de bullying, sendo constante ou diariamente humilhados, excluídos ou até agredidos fisicamente, perante a apatia de alguns adultos que teimam em defender a crença que “estes comportamentos são normais”, que apenas ocorrem em “meia dúzia de escolas” ou que “até é bom que aconteçam porque tornam os miúdos mais fortes”, a chegada do COVID-19 foi a melhor coisa que lhes aconteceu. Como nos dizia recentemente um jovem, “Não percebo que digam que o vírus é mau, foi a melhor coisa que me aconteceu!”. A verdade é que o COVID-19 não “matou” o bullying apenas o transformou, temporariamente, à sua vertente online… o bullying confinado chama-se cyberbullying e encontra-se, cada vez mais presente, na vida das nossas crianças e jovens, principalmente em idade escolar.
É crucial estarmos atentos e cientes que, face ao aumento da navegação e exposição das nossas crianças e jovens numa variedade de locais, aplicações e plataformas online, se criem mais oportunidades para a ocorrência de situações de agressão e abuso, nomeadamente de cyberbullying. Urge, principalmente por parte da geração adulta, o desenvolvimento de uma atitude de maior sensibilidade, orientação e supervisão, de modo a identificar potenciais comportamentos desta natureza, evitar a sua disseminação e agir, precoce e prontamente, em conformidade. Só assim conseguiremos gerar nas nossas crianças e jovens sentimentos de empatia para com os seus colegas que não dispõem dos meios para acompanharem as aulas online, em vez de, por essa razão, serem alvo de troça e chacota, agravando ainda mais a sua exclusão, como nos tem sido reportado. Considerado pelos mais jovens como uma situação inevitável e relativamente comum nas suas experiências e relações sociais online, o envolvimento no cyberbullying apresenta um forte impacto na saúde e bem-estar desta população. Alguns sinais de alarme a que os adultos devem estar atentos: •
aparentar um ar triste, ansioso ou preocupado, parecendo alheado da realidade, ou mesmo comportamentos agressivos, em especial após permanência online;
•
manifestar constantes alterações de humor, sem justificação aparente;
•
apresentar sinais de nervosismo, como dores de cabeça, de estômago, diarreia, vómitos, perturbações do sono (dormir muito mais ou
CYBERBULLYING
ter insónias ou pesadelos frequentes) e/ou alimentares (deixar de comer ou alimentar-se de um modo compulsivo e exagerado); •
diminuição do rendimento escolar ou um aparente aumento do número de horas de estudo, sem grandes melhorias de resultados;
•
evitar a utilização das tecnologias digitais, minimizar “janelas” visitadas na presença do adulto, tentar manter secreta a sua utilização da internet, eliminar contas, pedir ajuda para bloquear amigos e não querer atender telefonemas/videochamadas;
•
•
É importante promover, de forma continuada, diálogos francos e frequentes sobre a forma como as tecnologias digitais podem ser usadas, positiva ou negativamente, incluindo o seu uso abusivo. Reforce a confiança para que os seus filhos/educandos se sintam à vontade e de modo próximo para recorrerem a si, de forma a prevenir ou no caso de já existir algum potencial problema.
•
É fundamental que sejam estabelecidas regras para uma utilização adequada das tecnologias digitais. Diferentes dispositivos caraterizam-se por funcionalidades e utilizações distintas, por isso poderá optar por regras específicas para cada um deles e obviamente, tendo em conta a faixa etária dos mais novos.
•
Pesquise ou incentive o seu filho/educando a pesquisar pelos seus nomes e algumas variações e crie alertas no Google®. É importante saber o que se passa online de modo a procurar prevenir possíveis situações menos positivas.
•
Se os pais/encarregados de educação não conhecem e não costumam usar os
diminuição da autoestima, verbalizando frases depreciativas, tais como, “não sirvo para nada” ou “ninguém gosta de mim” ou “não tenho amigos”.
Uma atitude atenta e proativa e um conhecimento sólido sobre estas problemáticas são alguns dos “ingredientes” essenciais que podem fazer a diferença entre uma situação detetada precocemente, que não chega a atingir uma dimensão difícil de lidar e outra que ganha grandes proporções com efeitos significativos. •
tolerância, a responsabilidade, o respeito com que todos têm o direito a ser tratados.
Deixe claro quais os valores essenciais da vossa família, tais como a empatia, a
dispositivos, sites, plataformas e aplicações mais utilizados pelos seus filhos/educandos, eis uma excelente oportunidade para o fazer, pedindo-lhes ajuda nestas questões. É importante que seja claro que o pretendido não é fiscalizar as suas interações com os amigos ou colegas, mas sim atenuar o fosso digital que pode existir entre gerações. •
Promova a resiliência nos seus filhos/ educandos, ensinando-os a lidar com problemas, a resistir à pressão resultante de situações adversas, a superar obstáculos e a recuperar de momentos mais complicados. Em termos preventivos, esta é uma competência fundamental para:
e o mais eficaz para se prevenir potenciais situações de cyberbullying. Fazer uma pausa, afastar-se do computador ou da consola ou pôr o telemóvel ou o tablet de lado podem ser possíveis estratégias para evitar-se situações gravosas. Não tenhamos dúvida, o pior vírus com que podemos ter de lidar é a inércia perante comportamentos de bullying e de cyberbullying, seja esta apatia manifestada pelos pares ou pelos adultos, sendo que estes últimos deveriam estar especialmente atentos e atuantes ao quotidiano dos mais novos.
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Se quisermos prevenir, combater e intervir nas áreas do bullying e cyberbullying:
- As vítimas de cyberbullying conseguirem lidar com a situação; ●- As testemunhas passivas se tornarem ativas, intervindo e procurando auxiliar no fim dos comportamentos de cyberbullying; ●- Os potenciais agressores, não persistam com este tipo de comportamentos, ajudandoos a lidar com os seus problemas em vez de “descarregarem nos outros” as suas frustrações.
- não podemos “tirar férias”; - a nossa supervisão não pode ser colocada em quarentena; - devemos fazer “horas extraordinárias”; - temos de ser agentes proativos evitando o “confinamento” desta luta; - e nunca esquecendo que se trata de uma missão de TODOS!
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Ensine o seu filho/educando a resistir e a reagir de modo impulsivo e a pensar antes de partilhar. Pensar antes de publicar qualquer conteúdo online é o primeiro passo
Para “matarmos” os comportamentos de bullying e cyberbullying é fundamental deixarmo-nos contagiar… pela empatia, pela solidariedade, pela amizade.
BOCA DE CENA
CARLA COELHO
IDENTIFICA-SE COMO? Não me identifico, na verdade. Há vários anos li um livro do Amin Malouf (“As identidades assassinas”) que me levou a reflectir sobre a questão das identificações e identidades e perceber até que ponto são limitativas. Cada elemento de identidade que escolhemos é uma caixa para nos metermos lá dentro. O que nos limita e permite aos outros limitar-nos. Prefiro pensar em mim como um ser humano em construção.
PROFISSIONALMENTE REALIZADA OU INCOMPLETA? Sinto-me realizada nas minhas funções. Entrei para o CEJ em 2003 e já sabia que queria ser juíza. Ao longo destes anos nunca tive um momento de dúvida. Gosto da absoluta independência intelectual que está subjacente ao processo decisório, da possibilidade de mudar de jurisdição (coisa que já fiz algumas vezes) e sinto-me privilegiada por ter uma profissão que alia a exigência intelectual a um lado social muito forte. O papel dos Tribunais é contribuir para a pacificação social, um elemento essencial para que como país possamos avançar.
LANÇOU HÁ POUCO TEMPO UM LIVRO QUE TEM UM TÍTULO CURIOSO QUE CORRESPONDE AO NOME DE UM BLOG SEU E DE UMA CRÓNICA QUE TEM NA JUSTIÇA COM A. PORQUÊ FLORES NA ABISSÍNIA? O título surgiu de forma espontânea, quando estava a escrever um dos contos que integra o livro, com o título Ao teu encontro. Gostei muito e decidi dar ao meu blogue esse mesmo nome. Depois, quando fui convidada para escrever nesta revista decidimos que a coluna teria esse nome que, na minha modesta opinião, é bem bonito.
POR ORDEM DE APELO COLOQUE: JORNALISTA, PSICÓLOGA, ESCRITORA, MÃE, JULGADORA, PROFESSORA, ENFERMEIRA. Ah, são tantos os apelos que sentimos, não é? Porque não baterista, cozinheira, leitora ou astronauta? Quando era miúda, tive o sonho de ser arqueóloga. Imaginava-me num território algures na antiga Babilónia, desenterrando pedaços da vida esquecida e trazendo-a à luz do dia. Todas as actividades indicadas me chamaram, num ou noutro momento da vida. São tudo tarefas meritórias. A Mae West disse um dia qualquer coisa como “só vivemos uma vez, mas se vivermos bem, uma vez é suficiente”. Sei que a West era inteligente, mas neste particular, face à pluralidade de experiências humanas possíveis, tenho as minhas dúvidas.
BOCA DE CENA
COMENTE: AS MULHERES DECIDEM DE FORMA DIFERENTE DOS HOMENS. Sei que há quem pense assim, mas não concordo. Decidimos com a nossa mundividência, que procuramos colocar ao serviço de uma decisão o mais justa possível. Nunca me apercebi nas conversas que fui tendo com colegas de ambos os sexos que o facto de serem homens ou mulheres influenciasse o sentido da sua decisão. Creio que a questão do género é indiferente no processo decisório, como o são a orientação sexual, a raça, as crenças religiosas que cada um possa ou não ter.
COMO CONJUGA A CARREIRA COM A FAMÍLIA, A ESCRITA E A ACADEMIA? Como todos nós: uns dias melhor, outros dias pior. Para mim, os dois pontos essenciais são o trabalho e a família. É aí que não posso falhar. Quanto à escrita e à academia são dois interesses fortes, mas que na ordem dos meus dias, vêm em segundo lugar em relação aos outros dois tópicos.
EXERCE AGORA NA JURISDIÇÃO DE FAMÍLIA E MENORES. O QUE MUDARIA SE PUDESSE?
BOCA DE
Cheguei há pouco tempo, pelo que ainda há muito para aprender e apreender. No entanto, desde já seria importante dotar as equipas técnicas de mais meios: mais gente no terreno e mais instrumentos para apoiar as famílias e as crianças.
SER CIDADÃ EM 2020 IMPLICA O QUÊ PARA SI? Muito tempo em casa, não é? Bom, agora a sério. Cada vez mais acho que a cidadania exige muito de nós. A nossa vida é difícil e a atenção é dispersa por mil e um temas. Mas acho essencial que cada um tire um tempo só para si e pense nos seus valores, no que para si é importante a médio/longo prazo e depois invista um pouco da sua energia nisso mesmo. Serão coisas diferentes para cada um de nós. Há quem se preocupe com a causa ambiental, os direitos dos refugiados, o desemprego, as horas que as crianças passam na escola e a quantidade de trabalhos de casa que têm para fazer, enfim, coisas muito concretas onde cada um de nós pode fazer a diferença. Existe a ilusão no nosso tempo de que cada um de nós conta pouco, que não pode fazer a diferença para mudar o mundo. Mas a História mostra coisa diversa. Quem proclamou a independência de Portugal, por exemplo? Quem fez a Revolução de Abril? Quem lutou para termos fins-de-semana e férias? Estas são conquistas que não podem ser imputadas a A, B ou C. É certo que na história há pessoas inspiradoras. Mas elas pouco teriam conseguido se não houvesse uma massa anónima lutadora a abrir caminho. E isto é muito importante de se perceber a meu ver. Todos temos um poder de mudança e não o usar, desde logo por descrença, é cair numa desresponsabilização pessoal muito perigosa.
DO SEU LIVRO QUAL O CONTO DE QUE SE LEMBRA DE IMEDIATO. Castelos na Areia. É um texto em que fui buscar memórias que me são muito gratas: as idas para a praia com os meus pais e os amigos deles que por sua vez também tinham filhos da
minha idade. Lembro-me de chegarmos à praia cedo, de irmos ao mar, ler livros do tio Patinhas enquanto comia batatas fritas e bebia um refrigerante, recordo-me dos piqueniques nas matas à volta da praia. Fui uma criança sossegada e lembro-me de ficar sentada a tentar descascar pinhas ou a observar carreiros de formigas.
A JUSTIÇA É MUITAS VEZES RESPONSABILIZADA PELAS CRISES ECONÓMICAS. PORQUE ACHA QUE O FAZEM? Não vejo como se pode fazer essa associação. Não sou economista, mas penso que as crises resultam, por regra, de uma multiplicidade de factores, muitos deles até relacionados com um contexto internacional, atendendo ao mundo globalizado em que vivemos. Por isso, identificar a Justiça como a responsável pelas crises económicas parece-me sobretudo um problema de falta de informação.
O LIVRO QUE JÁ LEU MAIS QUE UMA VEZ: Vários, mas posso indicar aqui O Plano Infinito, de Isabel Allende. Allende foi uma das primeiras mulheres escritoras a ganhar notoriedade quando eu era miúda. E, de facto, as suas heroínas são bem diferentes das que saíam da pena dos autores masculinos. De todos os livros que escreveu este é o meu favorito, pois descreve a vida com as suas dificuldades e alegrias e tem uma galeria de personagens inesquecível.
E CENA
O FILME QUE NÃO PODE DEIXAR DE VER: Ana e as suas Irmãs. Já o vi dezenas de vezes e não me canso. Revi-o durante a quarentena e encontrei-lhe todo um outro sentido, mais esperançoso, de que não me tinha ainda apercebido. Acho-o um filme genial.
UM TÍTULO PARA UMA AUTOBIOGRAFIA: Viver, enfim.
QUEM GOSTARIA DE VER ENTREVISTADA OU ENTREVISTADO NA JUSTIÇA COM A ? Gostava que a revista entrevistasse mais pessoas ligadas ao sistema de justiça (juízes, MPs, advogados, funcionários), um pouco como me fez a mim agora. Em particular, acho que os juízes e juízas mais antigos na profissão têm imensas vivências e histórias interessantes para partilhar. Além disso, e pensando em tantos colegas que tenha conhecido, desde logo na primeira instância onde, naturalmente é onde conheço mais, acho que os cidadãos e cidadãs que estão fora do sistema judiciário gostariam de descobrir tantas pessoas sensíveis, cheias de curiosidade intelectual que ultrapassa o Direito, com gosto diversificados e muito sentido de humor.
JOSÉ LUÍS OUTONO Escritor, por vezes fotógrafo ou pintor
SOPHIA Na minha agenda cerebral, este descobrir belezas do planeta Terra, não é fácil. Nos meros acasos de passagens apelativas, entro num parque verdejante e convidativo onde passeiam figuras interessantes. Olhamse, dialogam sumariamente, e continuam no circuito de um espaço confinado pelo verde e florido cenário de um parque … que descubro quase no final da visita, estar homologado Parque dos Poetas. Num recanto bafejado pela Estrela Sol, cruzome com uma senhora sorridente, que me cumprimenta num tom amigo, apesar do ar altivo num relance inicial. - Bom dia, como está ? - Estou num relance de descoberta destes espaços da Terra, e confesso-me surpreendido com belezas inéditas e difíceis de imaginar, como este parque. - Queira-me desculpar, noto nos seus olhos e contornos da face, algo diferente … gosto muito de ser frontal – nunca tinha visto! - É natural, apesar de já ter nascido neste
Planeta, tenho origens de Marte. Os meus avós decidiram analisar o Planeta Terra em pormenor, por cá ficaram e fizeram brotar os meus pais, infelizmente já desaparecidos face a uma gripe viral que torturou todo o vosso Planeta. Eu, doutorado em Ciências Planetárias, nunca tinha imaginado horrores desta grandeza. Aliás, a vossa história é complexa de guerras de várias estirpes, num esgrimir complexo. Peço desculpa, o meu nome é Gualter, e tenho o prazer de falar com??? - Sophia. Curioso, fala tão bem o Português … - Sabe … falo o idioma, do país onde esteja. No meu cérebro está implantado um sistema identificador de culturas, que traduz … permita-me, poeticamente o sentir do local onde estou. Escreve poesia? - Sim. Tenho livros editados, e com orgulho sinto-me lida pela maioria cultural deste país. - Pode dizer-me um poema, caso não incomode.
- “Quando eu morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar.” - Fabuloso, sou um apaixonado pelo mar, ouso mesmo dizer que é a mais bela força da vossa natureza, mesmo quando está zangado. Lembro-me vagamente de ter lido num livro esta citação. Sem dúvida, e das imagens que vejo na vossa televisão há dimensões marítimas belas, necessárias e … fará o favor de me perdoar, tão poluídas de formas selvagens onde o teor ambiente parece ser um vírus a combater. Aliás, se me alongar, mandeme calar, por favor … não entendo como são eleitos governantes acéfalos, onde a equação cerebral é um zero, logo demolidora de índices culturais, operacionais e vivenciais. Nesse aspecto, a cultura de Marte é soberba. Mesmo que o cérebro falhe, podemos adaptá-lo sem cirurgias perigosas e desnecessárias. - Meu caro, falou em Comunicação Social, e entrou nos horrores da minha mente, perante um desprezo absoluto, a nível profissional e informativo. Agora sou eu que lhe digo, desculpe alongar-me nas minhas reflexões, mas quando vejo jornalistas a questionarem em modos irracionais figuras públicas ou não … é o desconexo total. Imagine … portanto o senhor afirmou … não, eu não afirmei … mas irá fazê-lo de acordo com o que pressuponho dever ser dito … mas quem é o entrevistado… portanto está apenas a demorar um pouco na resposta … desculpe nem comento … caríssimos espectadores fica a prova de que os factos aconteceram, como as palavras que supomos deveriam ter acontecido … Olhe, vou mais longe. Lembrei-me de repente.
É muito frequente os rodapés conterem erros inadmissíveis da nossa ortografia. Curioso, foi lançado o primeiro voo espacial tripulado e com visitantes, de iniciativa privada. No rodapé apareceu escrito – MISÃO ESPACIAL COMPROMETIDA PELO MAU TEMPO. De repente pensei … queriam dizer MESÃO, depois dei uma palmada na testa e culpei-me – Sophia … MISSÃO !!! Há pouco pediu-me para lhe dizer um poema. Foi uma honra, acredite. Mas, nem vai acreditar no que sucedeu, já lá vai uma década ou um pouco mais, e passei a ser a autora de um poema, muito bem gizado e tocante, escrito por uma senhora, se a memória não me falha de nome Adelina, e magistrada. Se não se importa, vou socorrer-me de uma cábula e vou lê-lo.
o mar nos olhos “Há mulheres que trazem Não pela cor a Mas pela vastidão da alm dos e nos sorrisos E trazem a poesia nos de Ficam para além do tempo levasse Como se a maré nunca as s Da praia onde foram felize o mar nos olhos Há mulheres que trazem ão da alma pela grandeza da imensid abarcam as coisas pelo infinito modo como e os Homens... ré em noites de Há mulheres que são ma tardes...e calma.”
SOPHIA
Confesso, que adoraria ter escrito algo tão criativo e apelativo, como esta senhora teve a ousadia intelectual de o fazer. Mas o seu a seu dono. Foram escritos livros, feitas teses, análises temáticas, durante dez anos … ou mais, e só agora a situação foi descoberta de que eu era uma falsa autora desta “obra” de boa envergadura. A Comunicação Social foi estrondosamente incorrecta no esclarecimento do erro. Repare … enquanto eu fui a falsa autora, o escrito em causa era um poema gigante de energia apelativa e sedutora. Depois da descoberta, passou a ser um “poemazito” de uma magistrada, que de vez quando atirase ao papel, e escreve umas coisas, a que chama poemas. Doentio, e ainda mais porque grandes nomes da literatura ainda continuam a errar na verdade autoral deste poema. Sabe o que lhe digo? “Porque os outros se mascaram mas tu não Porque os outros usam a virtude Para comprar o que não tem perdão. Porque os outros têm medo mas tu não. Porque os outros são os túmulos caiados Onde germina calada a podridão. Porque os outros se calam mas tu não. Porque os outros se compram e se vendem E os seus gestos dão sempre dividendo. Porque os outros são hábeis mas tu não. Porque os outros vão à sombra dos abrigos E tu vais de mãos dadas com os perigos. Porque os outros calculam mas tu não.” Meu caro Gualter, desculpe-me. Abusei da sua paciência. Aceite as minhas desculpas!
- Não tem que pedir desculpa. Hoje senti essa flor chamada cultura invadir o meu cérebro especial e pode crer, que irei escrever algo alusivo a este nosso encontro, se não for contra a sua vontade. Como é conhecida no mundo literário? - Sophia de Mello Breyner Andresen - Aconselha-me um livro para eu comprar? - Tenho ali um velho exemplar que terei todo o gosto em lhe oferecer. Já agora faça-me um pequeno favor. Face à minha idade, e estar confinada a este espaço verdejante … é difícil contactar o mundo, onde gostaria muito de conhecer em pormenor Marte. Mas isso é apenas um sonho. Se encontrar a genial autora daquele poema, convide-a a vir tomar um chá comigo … e consigo, neste Parque dos Poetas. Adoraria conhecê-la e dizer à Comunicação Social … “Mesmo que eu morra o poema encontrará Uma praia onde quebrar as suas ondas E entre quatro paredes densas De funda e devorada solidão Alguém seu próprio ser confundirá com o poema do tempo.” - Posso fazer uma fotografia sua, ilustre poeta? - Deixe-me sorrir e agradecer este momento ímpar. Primeiro não disse poetisa, que detesto. Logo aí revelou uma estrutura cultural digna de um Planeta que gostava de conhecer … o seu Marte. Segundo, a conjugação correcta de fazer uma fotografia e nunca “tirar uma fotografia”. Odores e manchas poluidoras de mares, que nunca gostaria de navegar. Parabéns! Estou bem assim???
E O MAR LOGO ALÍ Ana Gomes Juíza de Direito
Passei o dia no quarto, sem comer nada, a sentir a iniquidade na boca (…) a janela a deixar entrar a luz, sem se importar com a nossa dor, a luz não quer saber dos nossos momentos de escuridão, varre tudo, extermina as sombras, mas esquece-se de iluminar por dentro (…) Afonso Cruz, Enciclopédia da Estória Universal Mar, 2015, Alfaguara
A LUZ E A ESCURIDÃO Depois de dada permissão para sair, há quem tenha permanecido fechado. A casa já não é a prisão como foi durante o estado de emergência – só apetecia dar um passeio pela praia, remar no rio, entrar em lojas e conviver ao fim da tarde no bar, mas não se podia. Fim da proibição. Acorda às 6 para correr, depois do trabalho bebe umas cervejas com os colegas porque as grandes ideias aparecem nos momentos mais descontraídos e três vezes por semana ainda vai ao restaurante de um amigo, dizendo que a economia precisa de reanimar e todos temos de ajudar. A maioria sente-se na Noruega a aproveitar o sol da meia noite. São tais as saudades de fazer outras pequenas coisas que não se fazem em casa, que a sede está difícil de matar. É custoso o regresso aos limites que as paredes, mesmo de casa, representam, porque é como se fosse de dia e o sono é um desperdício, mesmo ao lado da mulher. Lília reagiu exatamente ao contrário. Habituou-se a ficar e a trabalhar à distância. Não voltou a desenhar a sua casa como o ninho onde regressa depois de doze horas. Para ela, é impossível voltar à nova normalidade. As amigas gostariam de a visitar, levariam umas frutas, até uns bolos para celebrar o reencontro depois de dezenas de horas em videochamadas. Lília recusa. Tem medo do vírus e diz que tem razões para isso. Os cento e dez quilos de massa distribuídos por um metro e cinquenta e cinco de altura e as doenças associadas não ajudam. As colegas ligam preocupadas porque não voltou ao Tribunal e sentem falta da sua alegria. Por agora, recusa ajuda e nem vai de férias. Como a personagem de Afonso Cruz, por dentro, Lília está em TromsØ, em dezembro, mas sem a beleza da aurora boreal.
O CANTINHO DO JOÃO João Correia Juiz de Direito
DO ENDEUSAMENTO DA ACADEMIA AO ELOGIO DA MEDIOCRIDADE Poderia começar de imediato a discorrer sobre este tema porém, sinto-me na necessidade de justificar a razão de ser do mesmo. Quanto mais não seja para que não se crie a ideia de que aproveito as férias para filosofar sobre questões como esta. Assim, o tema em questão assenta num episódio que vivenciei quando me cruzei com um tipo que conheço há muitos anos e o qual julgo não ter a escolaridade mínima obrigatória (digo isto sem desprimor nenhum, as coisas são como são). O tipo é bruto, explora um bar de vinhos e petiscos (muito bom por sinal). É uma versão moderna de um tasqueiro ou taberneiro. Mais sofisticado do que dos de antigamente, mas mesmo assim sem saber ler convenientemente ou quanto muito, extrair significado sobre aquilo que lê. Porém, quando o interpelei sobre como é que o negócio corria em tempos de Covid o mesmo apresentou a sua tese. A mesma tinha todas as razões que, no seu entender, estão na sua génese, culpando os chineses e temperando a sua teoria com muita conspiração, sobretudo com um profundo descrédito sobre todas as teses ditas oficiais. Posto isto, Questiono-me sobre porque é que todos, hoje em dia, têm uma opinião sobre assuntos
complexos assumindo ou, que os mesmos não o são ou, que a sua opinião sobre temas como a medicina, a física, sociologia, psicologia, justiça, entre muitos outros, é merecedora de tanto crédito como aquela que é manifestada por um especialista na matéria. A situação assume tal dimensão que qualquer analfabeto, actualmente, opina sobre a génese do vírus e da pandemia, entre outros temas, mas sempre com aquela postura de quem, após ouvir a versão dos especialistas, entende que estes não percebem nada do assunto e que, ele sim (o analfabeto entenda-se), é que sabe quais as causas que estão na origem deste problema. Aliás, não são poucas as vezes em que basta que uma opinião seja emitida por um especialista para que de imediato (e apenas devido a isso), seja desvalorizada. A isso chamase o elogio da mediocridade a qual surge como reação ao endeusamento da academia. Ou melhor, como reação à crise do mesmo. Passando a explicar, se nos remetermos aos anos cinquenta e sessenta assumimos que, naquela época, uma certa esquerda pugnava por um ensino tendencialmente universal e gratuito apregoando ideias que sustentavam que se o povo não pode chegar à universidade então a universidade deverá chegar até ao povo da mesma forma que, uma certa direita
entendia que o aumento de licenciados significaria necessariamente um aumento da competitividade das empresas com as vantagens daí decorrentes, entre as quais o aumento do bem estar geral. Existia assim um consenso alargado no que respeita ao ensino superior que culminava na ideia de que quanto mais especialistas existissem no mundo melhores seriam as opções tomadas pela humanidade. No extremo, existindo tantos especialistas em direito, medicina, gestão, economia, engenharia etc., e caso estes trabalhassem em conjunto, haveria uma séria probabilidade de acabar com a fome no mundo, assim como a injustiça, a guerra, o desemprego, a iliteracia, etc., à semelhança do que, aquando do iluminismo, se esperava de um monarca iluminado. Mais e melhor educação significaria melhor decisão com prevalência da razão. Sucede que, após algumas décadas e sem prejuízo do número de especialistas que saíram das universidades constatou-se que o mundo continua muito semelhante ao que era dantes. Continua a existir fome, guerra, injustiça etc. a que acresce o facto de boa parte dos licenciados não conseguir arranjar trabalho na sua área de especialidade. Tudo isto conduz ao desânimo sobre a academia e ao elogio da mediocridade reforçada por uma
certa esquerda que entende agora que, uma vez que não se consegue uniformizar as pessoas por cima, haverá que as uniformizar por baixo, rebaixando assim a figura do especialista e reduzindo tudo a medíocres aliada a uma certa direita populista que entende que as mais básicas noções de ciência, lógica e racionalidade não passam de conversa de intelectuais que as usam para enganar as pessoas e que esperto é o taberneiro que se está nas tintas para as versões oficiais e arranja a sua própria explicação para fenómenos científicos reduzindo o prémio nobel da física a um fala barato. Entre o endeusamento da academia e o elogio da mediocridade sou a crer que a melhor solução estará em não endeusar ou elogiar seja lá o que for mas apenas em submeter a uma crítica razoável todas as soluções apresentadas. Porém, no que toca a assuntos complexos, o melhor é mesmo seguir a opinião dos especialistas pois caso contrário acabamos a combater um vírus com vinhos e petiscos tal como o taberneiro de que vos falei. Tal, sem prejuízo das vantagens decorrentes (da parte que me toca tinto, acompanhado de um bom queijo e chouriços) de nada serviria em termos de imunidade, com muita pena minha.
JOSÉ MALHOA
RÉ EM CAUSA PRÓPRIA Adelina Barradas de Oliveira Juiza Desembargadora
ME MYSELF AND I... E O CAOS ( NUMA REFLEXÃO SÚBITA EM ANO DE COVID )
Portugal é uma República soberana baseada na Dignidade da Pessoa Humana. Um Estado de Direito não é um Estado de Exceção.
Caos, o que cria a Lei para ordenar o Caos ou, Soberano é o que se elege para que seja controlado o Caos? Então, serão os eleitores e não os eleitos, o Soberano.
Duas afirmações que mexem com o nosso “eu”, a nossa dignidade e a Soberania dos Estados que, não são mais do que o conjunto da vontade dos seus cidadãos. Passam ainda, estas duas afirmações, pela forma como queremos ser tratados, devemos ser tratados e, pelos resultados desse tratamento.
O nosso enorme problema é que nos descansamos (e de forma ausente), naqueles que escolhemos para falarem por nós, para nos protegerem a nós, para ordenar qualquer Caos que ameace a nossa Liberdade, Individualidade e Dignidade.
Somos. E somos mera existência biológica ou homem político? Vida Nua ou Soberano? E, se soberano, decidimos sobre o Caos? Determinamos o Estado de Exceção? Não é assim a realidade. O que nos acontece é continuarmos a ser Vida Nua e a ver, os que elegemos para assumir o Poder em nosso nome, decidirem, eles sim, sobre o Caos determinando as regras do Estado de Exceção e, pior do que isso, o tempo de duração, que deveria ser excecional, desse mesmo Estado. O Soberano é o que cria a ordem dentro do
Esquecemos que ao conferir tanto poder ao escolhido, nós (o verdadeiro Soberano e, portanto, aqueles que escolhem), demitimonos e, na ordenação do Caos, passamos a fazer parte dele, a subjugarmo-nos à lei criada pelo eleito apenas porque, temos medo. Eleger significa exigir, estar alerta e participar sempre vigilante. Na pureza da liberdade e do humanismo, a nossa vivência caracteriza-se por ser sempre feita em Estado de Exceção. Na verdade há sempre quem legisle, quem execute e quem verifique se foi a Lei respeitada dentro da Polis.
A nossa vivência é de respeito às regras e, para coexistirmos há que respeitar a ordem que é o mesmo que dizer, a Lei e o Poder. Há uma necessária distinção entre Poder e Soberania, entre Poder e Lei, entre Lei e Soberania e entre todos eles e Direito. Há também necessariamente uma inevitável diferença na vivência e existência de todos eles uns com os outros e connosco. Sujeitos como estamos, desde Março de 2020, a um Estado de Exceção ansiamos que termine brevemente porque, a vida nua não se compadece com tanta norma e tanta punição aplicada para que o Caos não se instale. Mas, simultaneamente, tememos sobressaltos que agilizem as regras instalando-se o Caos. Então, a solução estará, talvez, na auto responsabilização de cada um de nós para que os direitos não colidam e o Caos não se instale e, também e principalmente, na noção de que o Soberano é sempre o que elege, submetendose o eleito à sua vontade.
Entrega as tuas mãos ao medo e não viverás. há um espaço de arbítrio - entre acaso, ética, responsabilidade, dever uma fenda para a coragem. a vida caminha pela terra passos decididos entre tudo e nada, uma brevidade impercetível a roçar os nossos rostos. nada restará depois que as horas calarem. entrega tua face ao medo e não a verás viva. Silvia Chueire
Escrever está na moda Escrever está na moda. Definitivamente na moda! Já ler, é algo que está a cair em desuso. Perdoem-me a analogia mas é um pouco como os políticos de bancada que resolvem todos os problemas do país e, quase de certeza, em dia de eleições vão para a praia porque está um “um calor de ananazes”, deixando a urna para os mortos... Ou para aqueles que ainda lhe conferem alguma importância. Enfim...É a realidade que temos à nossa volta. E porquê? O fenómeno da escrita compulsiva, quero dizer, criativa, é algo que se expandiu graças às redes sociais. Basta ler os comentários a uma qualquer polémica notícia para perceber o quanto as pessoas gostam de escrever. E com criatividade, se tivermos em conta os neologismos - vulgo, erros - usados por estes autores de pena sem tinteiro. A culpa é sempre do corrector ortográfico, da falta de óculos, do empurrão que levaram enquanto escreviam ou até de digitar enquanto conduzem – provavelmente isto não era para dizer. E logo aqui se percebe que a leitura não é o forte desta onda de novos-escritores, pois o que escrevem é fruto da leitura das gordas e não se darem ao trabalho de passar os olhos, sequer, pelo lead da notícia que comentam. Um bom escritor, a meu ver, passa, em primeiro lugar por um bom leitor. É aí que vai beber as palavras, o conhecimento, os
recursos expressivos - que depois se explicam numa gramática (já agora, e para quem quiser, recomendo a Nova Gramática do Português Contemporâneo de Celso Cunha e Lindley Cintra). É aí que se inspira e até copia até criar um estilo próprio, seja ele qual for. O estilo é uma marca. É o que leva o leitor a querer repetir, ou não. Pessoalmente não gosto de ler mais do que dois livros de seguida do mesmo autor – às tantas parece-me tudo igual, embora saiba que é diferente. Faço intervalos espaçados, talvez porque – por defeito de formação – faça uma leitura analítica da obra: o tipo de volcabulário, os nomes dos personagens, os espaços, as fontes de inspiração. Já tentei não levar a leitura por este caminho, mas é-me impossível. Acabo sempre no drama do professor de literatura que procura mais do que aquilo que está escrito – e por vezes é apenas aquilo. Nada mais! O certo é que escrever está na moda! As prateleiras e os tops de vendas enchemse – salvo raras excepções – de escritores mediocres e capas lamentavelmente feias, que recorrem a lugares comuns para vender. E vendem! Oh, se vendem! Multiplicam-se os maneirismos, as citações, o parafrasear de outros autores ou a si mesmos. E notase a ausência de revisão, de edição ou até de correcção. Há pouco tempo lia que “ Luís Sepúlveda (...) disse um dia que, depois de acabar um romance, o lia para um gravador, depois ouvia a gravação e, quando uma
MARGARIDA VARGUES Professora
palavra ou frase fazia «ruído», destoava, não tinha o mesmo ritmo, a corrigia” (NORTON, Cristina, Os Mecanismos da Escrita Criativa, Temas e Debates, Setembro de 2001). Dá trabalho? Oh se dá! Até reler um texto para o rever é trabalhoso... Também nas redes sociais se multiplicam os cursos de Escrita Criativa, com programas mais ou menos complexos, dados por anónimos ou conhecidos. Tenho curiosidade em saber o que é escrito nessas aulas, porque há pessoas a escrever muito bem e, das que conheço, as que melhor escrevem são as que melhor lêem.
os textos que enchem os manuais são deveras aborrecidos e desajustados a uma realidade cada vez mais veloz. Se a isto somarmos factos como: pais que não lêem, pais que não contam histórias, pais que passam demasiado tempo agarrados aos smartphones – porque assim a vida os obriga –, professores que têm um programa mais burocrático que didáctico para cumprir e que, como se soube há pouco, também não lêem, o cocktail é perfeito.
Escrever está na moda, repito. Ler melhor também deveria estar.
Dificilmente se formam leitores... porém os escritores estão lá: com “há”, sem “à”, com “haviam” e, das profundezas do inferno, os “há-des” ou “hádes”, conforme o teclado, a condução ou a falta de visão.
E como criar um bom leitor? Como cativar uma criança, um jovem ou um adulto para a leitura? É mais fácil desmotivá-lo do que o contrário.
Antes de terminar e já que a escrita está na moda, gostaria de propor um exercício a todos os leitores e respectivas famílias.
Infelizmente sei do que falo, apesar da pequena amostra com que trabalho, para chegar a esta conclusão. A partir do momento em que os professores entregam aos alunos as listas do PNL o ar de enfado ao percorrer os títulos dá dó. Até para os adultos são poucos os livros que despertam o verdadeiro interesse.
É um exercício para ser feito dos 8 aos 80!
As obras de leitura obrigatória são, praticamente, as mesmas de há trinta anos,
Boa sorte!
Em 84 palavras – nem mais, nem menos, escrever um pequeno texto, com sentido, em que todas as palavras – todas mesmo! – comecem por uma vogal (não são admitidos “de”, “com” ou afins) e cada frase deverá ter, no máximo cinco palavras.
VOCÊ CORTA A ETIQUETA? Margarida de Mello Mooser Comunicação e Protocolo
Na verdade, nada será como dantes, nem mesmo no quartel-general em Abrantes. O mundo mudou. As pessoas vão tornar-se melhores, porque um tornado desta dimensão só pode trazer um mundo melhor, dizia-se nos longínquos meses de Março e Abril deste longo ano. Olhando para tràs, como essas vozes se enganaram redondamente! Temos visto tantos exemplos ...
Á L Á L U T U . . . T Á . . . C Á U C T U T
importantes do que nunca. De facto, ninguém anda à vontade mas, em contrapartida, há gente de mais a andar à vontadinha. As empresas tratam os clientes por tu, como se isso fosse a coisa mais normal do mundo, nuns casos, noutros, tratam-nos pelo nome próprio, como se se tivessem conhecido desde pequeninos ...
O protocolo e a etiqueta social sofreram uma transformação radical. Cumprimentar já é só cotovelar. Que saudades de um vigorante aperto de mão, de um repenicado beijo, ou de um beijo, simplesmente, de um apertado abraço. Que saudades de um sorriso rasgado, uma gargalhada estrondosa, um palmadão nas costas ....
Que pretensa intimidade! Que coisa mais desagradável! É um tratamento agressivo, ofensivo, que parece querer obrigar-nos a ter um relacionamento informalissimo para o qual nunca estivémos virados. E, sim, protesto. Não estou apenas a desabafar. Reclamo ao telefone, por mensagem, por correio electrónico ... E reclamo pessoalmente, constantemente e vezes de mais.
A cordialidade, a civilidade, as boas maneiras, parecem coisa pouca, sem qualquer importância. A mim, parece-me, que são mais
O mundo está virado do avesso. Mas temos que bater o pé. Só porque sim, não vamos deixar de ser quem
Á Á
somos, não vamos deixar que os outros tomem decisões por nós, não vamos deixar que nos destratem. É isso que estamos a sentir todos os dias, vezes de mais. Sem máscara, aqui me comprometo a continuar a pensar o que penso, a dar a opinião que é a minha, a defender as minhas convicções, a achar o que acho, verdadeiramente. Não me ofende que pensem diferente, apenas não aceito ser obrigada a pensar o que os outros acham que devo pensar. Dito isto, e respondendo à pergunta que aqui está sempre pendente: “você corta a etiqueta?”, posso dizer que cada vez menos isso acontece, porque cada vez mais se vê a importância do protocolo social ou etiqueta. Cada um de nós deve, devia, ocupar o seu lugar, porque afinal de contas não é possível que duas pessoas ocupem ao mesmo tempo, o mesmo lugar - e está tudo dito.
HAVIA TEMPO NESSE TEMPO LICÍNIA QUITÉRIO
Havia vento nesse tempo. É dele que me lembro a arrastar segredos há muito resguardados nas areias e nos grãos de sal amolecidos. Ainda a boca se recorda do sabor dos murmúrios nascidos no deserto, das vozes negras, desgrenhadas, perdidas dos alfabetos sobrevivos. Esse vento foi o mais misterioso de todos que por mim se anunciaram. Acontecia, apenas, como acontece a morte ou a paixão. E não havia tempo de o pensar, de o acolher, no sono ou na vigília. Deixava um odor a searas maduras que nos punha no colo um gesto largo, uma açucena por detrás do olhar. Inadiável é um novo vento que diga donde vem, para onde vai, que sopre diligente sobre o mar, a emprenhar os barcos de força e abundância, os homens de sossego e inocência. Das Áfricas virá que dela veio a vida e se perdeu, ensandeceu, num vento norte de gelo e inclemência. Licínia Quitério