1 minute read

Crítica Literária António Ganhão

Da meia-noite às seis, Patrícia Reis, Dom Quixote, 2021

Existem vários romances sobre espaços exíguos, náufragos presos numa praia rodeada de penhascos, gente aprisionada numa casa da qual não consegue escapar, obrigadas a partilhar entre si o labirinto das suas vidas. Este é um romance passado em plena bolha pandémica, com as suas perdas e reinvenções, impondo novas formas de luto e fugas possíveis, sem milagres, “não vamos ficar bonzinhos”.

As horas mortas de uma estação de rádio estabelecem laços de partilha entre pessoas que nunca se viram, nunca se falaram, mas com algo a dizer que é sentido por todos. A perceção de que a pandemia está lá fora, condenando-nos a viver relacionamentos de distanciamento, cada vez mais próximos aos das redes sociais.

Susana faz o luto pelo marido, pela sua ausência, como se a sua morte tivesse despoletado a crise pandémica ao revés de ter sido esta a levá-lo. O luto é sempre uma reinvenção do outro, tropeçando em palavras que o revelam por inteiro. O nosso mundo a minguar num universo abundante. O agitar das horas mortas para além do permitido, do esperado pela direção da rádio, a vida a surgir, inesperada, pessoas com algo para dizer, a desejarem ser escutadas, acreditando que a sua dor, de certa forma, também pertence aos outros.

O vírus que nos apanha à traição e as traições que a vida nos reserva. O viver dentro de si e esgotar as palavras que se reservam aos outros. Patrícia Reis oferece-nos um romance intenso, belo, de resiliência à bolha que nos confina e de sobrevivência aos equívocos que vamos alimentando e, nisso, é absolutamente intemporal.

“Morreu com a imagem de alguém dentro de um fato branco, uma viseira, alguém que lhe terá dito, vai em paz, pareceu-lhe ouvir isso mesmo, ela não queria ir, mas tinha de ser, estava tão cansada.”

This article is from: