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A Dignidade da Pessoa Humana e os Mariscadores do Tejo | Paulo Graça

PAULO GRAÇA

A Dignidade da Pessoa Humana e os Mariscadores do Tejo

princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP), enquanto “dado prévio (a «precondição») da legitimação da República como forma de domínio político” nas suas dimensões, intrínseca do ser humano, aberta e carecedora de prestações, públicas e privadas, e expressão de reconhecimento recíproco, através da compreensão e respeito recíproco de uns com os outros fundamenta e fortalece outros direitos, como os direitos fundamentais dos trabalhadores enunciados no artigo 59.º. Desde o Século XIX que a evolução social da Europa, em que geográfica e culturalmente nos situamos, foi gerando, paulatinamente, uma classe de pessoas cuja sobrevivência assenta em exclusivo na capacidade de ganho através de um salário que lhe é disponibilizado num “mercado”. Seja esse salário prestado por instituição pública seja por instituição privada, tenha a configuração que tiver, ele é o correspectivo de uma prestação que constitui parte fundamental do modo de vida de quem a presta, assegura as necessidades de quem o recebe e constitui para estes um limite da acessibilidade aos bens que o “mercado” produz. Enquanto elemento fundamental de diferenciação, quer face ao número, cada

Ovez mais residual, dos que sobrevivem de rendimentos, quer face aos que por razões várias sobrevivem de prestações de natureza social, quer face aos demais trabalhadores, o salário e os termos de que a obrigação laboral de que é sinalagma se estruturam, escoram-se em imperativos jurídicos, que o são porque o valor da dignidade da pessoa humana é sua pré-condição, e porque esta, porque socialmente fundada, aceite e absorvida, impõe que o sejam e o sejam da forma juridicamente reforçada que advém da sua inclusão no texto da Constituição. O salário, enquanto factor de satisfação das necessidades básicas de sobrevivência do trabalhador e sua família, supõe-se digno, isto é, de valor que não só corresponda de forma justa ao valor da prestação que o gera mas, também, que permita pelo menos a sobrevivência condigna de quem o recebe. Por isso, a CRP impõe que a retribuição garanta uma existência condigna e a existência de um salário mínimo que atenda, simultaneamente, às necessidades dos trabalhadores e à dimensão e características de cada momento do “mercado” em que o mesmo é pago. O salário, enquanto prestação regular, é parte do desenho legal da subordinação,

na relação que se estabelece com quem o paga e que se qualifica como “de trabalho” (artigos 11.º e 12.º, do Código do Trabalho), implicando um regime jurídico tendente à protecção de quem tem no salário o fundamento e a medida da sua da sua dignidade. Por isso, a lei protege o salário, impedindo, designadamente, o mecanismo da compensação, salvo nos casos expressamente previsto na lei (artigo 279.º do CT).

Mas a dignidade da pessoa humana não esgota a sua projecção no salário: ela impõe que a relação que o gera conheça limites.

O trabalho deve ser organizado em condições socialmente dignificantes, permitindo a realização pessoal e a harmonia com a vida familiar; deve ser

prestado em condições de higiene,

segurança e saúde; deve ser limitado

no tempo, de forma a permitir o repouso físico e intelectual do trabalhador; em caso de perda involuntária, deve ser suprido por prestação social; em caso de acidente de trabalho ou doença profissional, deve gerar obrigações de assistência e justa reparação;

Estes princípios, que a CRP enuncia no seu artigo 59.º são também projecções do princípio da dignidade da pessoa humana e, como tal, estão (ou devem estar) absorvidos no nosso viver social. Ou não ?!

Recentemente, e a propósito do surto de Pandemia que varreu o concelho de Odemira foi trazida aos olhos da opinião pública uma realidade, já conhecida, já denunciada, que jaz submersa na ignorância ou na indiferença de uma sociedade mais desperta para a “espuma dos dias” do que para as questões que a confrontam consigo própria.

Não é preciso ser jurista para perceber que a realidade dos trabalhadores

agrícolas de Odemira, na sua maioria imigrantes (ou migrantes - para que a ablação do “i” dê o conveniente ar da sua transitoriedade), pagos com salários abaixo do salário mínimo, obrigados a pagar a angariadores para trabalharem, sob condições fisicamente penosas em largas jornadas de trabalho, atafulhados à dúzia em cubículos, afronta a dignidade humana e não pode orgulhar o País que tal permite.

Não é uma realidade única: às portas de Lisboa, outro fenómeno com características semelhantes exerce-se debaixo dos olhos de todos nós.

Os mariscadores do Tejo,

maioritáriamente cidadãos de países do Leste Europeu ganham a sua vida na recolha dos bivalves, geralmente em dois tunos diários, que coincidem com as marés. Para além de ser um trabalho perigoso, pelas correntes que caracterizam aquela zona do rio, estes cidadãos trabalham nas mesmas condições que os imigrantes de Odemira. Tal como aqueles são engajados e explorados por máfias que se portam como os negreiros do passado.

Nestes casos a dignidade da pessoa humana não conseguiu sair das folhas da Constituição e não motivou as autoridades competentes, com a Autoridade para as Condições do Trabalho e o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras à cabeça, a colocarem cobro ao regime de semi-escravatura que se exerce a céu aberto às portas da capital de um País da União Europeia. Proh pudor!

FOTOGRAFIA DE JORGE CASTRO

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