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Ré em causa Própria Adelina Barradas de Oliveira
RÉ EM CAUSA PRÓPRIA
Adelina Barradas de Oliveira
Lembro-me que aprendi a tratar bem todos os animais e recordo as partilhas que tinha com eles nas férias, de como criava laços e de como era o adeus que lhes dava quando se iniciavam os anos escolares longe de todas as folgas e criaturas de Verão.
É claro que a pressa da vida é cega e, com o tempo, esquecemos todas essas sensibilidades, sentimentos ou talvez ligações com os outros seres. Embora eu fosse apenas uma criança nascida e criada na cidade que se deslocava aos arredores e ao sul para poder correr, sorrir e respirar ar puro e partilhar o Verão com os primos e os tios, gostava de sujar-me sem restrições e andar com coelhos bebés e gatos ao colo, montar a cavalo sem sela ou estribo, alimentar o burro do Manel Valente e correr atrás das galinhas, não deixar o cão dormir ao relento e não deixar o gato sem comida.
Mas nós “crescemos” com uma pressa alucinada (também alucinante), e um desejo devorador de Ser, e perdemos essas vivências chegando mesmo a relegá-las para a gaveta das memórias infantis ignorando o Dever Ser.
Recordo como me senti feliz por, na altura do meu mestrado, me deparar com o livro do Professor Eduardo Vera Cruz – Curso Livre de Ética e Filosofia do Direito
Todo este título é de uma liberdade impulsionadora e o livro não o é menos. Eu que já tinha uma enorme consideração pelo Professor, rejubilei quando me deparei com as seguintes passagens no seu livro:
“Na literatura com autores bem conhecidos – em que saliento La Fontaine – os animais são motivo para a afirmação de regras morais destinadas à perfeição do humano, do Homem – e ao convívio entre humanos e essa dimensão das fabulas interessa ao Direito” (...) Porque por princípio de Direito fixado a pensar no Homem, não devemos sacrificar qualquer forma de Vida como modo de divertimento e só para isso, mesmo que quem mata se considere um artista e a encenação da morte corresponda a uma forma de arte ou a
RÉ EM CAUSA PRÓPRIA
As pegadas ecológicas e as chicuelinas hipócritas
expressão de uma tradição popular.” (...) O legislador de hoje poderia reler a legislação de D. Dinis e aprender algo sobre o valor jurídico da tradição e a sua formulação legal.
O Direito exige como dever a cada pessoa que respeite a Vida dos animais, que não os torture ou humilhe; que não os trate como humanos desrespeitando a sua condição animal.
Se o Direito é para os humanos, só há humanidade no Direito se este constituir como dever o respeito devido pelos homens e animais. “
É que na verdade é tudo tão simples. Será que não o intuímos? Será que desconhecemos as opções ou nem queremos conhecê-las ou vivemos submersos dentro dos nossos umbigos?
Os instintos predadores dos humanos, as ambições de lucro e sucesso a todo o custo, levam a espécie a esquecer que não habita sozinha este pedaço de Universo a que chamamos planeta e demos o nome de Terra. Terra, te-rra, como se Terra fosse o centro absoluto do universo, a célula mãe do Universo, e nós humanos fôssemos Deus.
É importante perceber que nos arrastamos nas mudanças ou na capacidade de mudar como se a Vida fosse eterna. Este debate sobre os direitos dos outros animais não é de agora, não surgiu com o equilíbrio ou desequilíbrio ambiental do séc. XXI. Os séculos XVI e XVII tiveram pensadores como Thomas Hobbes que lançaram a discussão que se estendeu até pelo séc XVIII e que se vê agora mais acesa no séc XXI.
Não podemos negar que é uma questão eminentemente jurídica.
Não deixa de ser depois, uma questão económica porque, sabemos bem que se mexermos com os lucros de mercado do fast food, conseguirse-á ter do lado dos direitos do animais os principais impulsionadores dessas indústrias de produção de carne para hambúrguer, de transporte desastroso e indigno de seres vivos, da poluição provocada por todas essas indústrias de abate de animais em série para alimentar um comércio voraz e inconsciente e, segundo dizem os entendidos aumentar o tal efeito de estufa que nos leva à extinção. E ficarão do lado dos que clamam por menos poluição e menos tratamentos desumanos a animais porque os seus lucros diminuírão com as nossas recusas de consumir os seus produtos.
É certo que terei de ler mais e estudar mais para entender esta ligação da indústria de carne com o meio ambiente, mas, diz-se por aí que juntas, as cinco maiores empresas de carne e laticínios do mundo já são responsáveis por mais emissões de gases do efeito estufa do que as empresas petrolíferas isoladas, como a Shell ou a BP.
Teremos de matar constantemente para nos alimentarmos? E de “produzir” animais para abate constantemente para nos alimentarmos? Não há uma forma menos predadora, pecadora, de não morrer à fome e habitar o lobo com o cordeiro?
Arrepiamo-nos, nós ocidentais, quando se fala de mercados que vendem cães e gatos para comer, mas não dispensamos um bom bife com batatas fritas, uma caldeirada de cabrito, um coelho à caçadora........ Estranho, não é?!
Voltando à minha mentalidade da infância e parando para pensar, pergunto-me muitas vezes se é difícil entender o sofrimento de outro ser, o entendimento que ele tem do Mundo em redor e dos seres que com ele se cruzam. Criar para consumir em série não é instinto predador? Não é gula e soberba? A soberba de se entender superior a todos os outros animais inferiores, indefesos, vistos como bens de consumo ou apenas animais de companhia. Sem dignidade, sem vontade, sem entendimento.
É por isso que entendo que a fixação da idade para entrar em touradas é hipócrita. Não se vende violência a menores de 16 anos mas deixamos que tenham liberdade para decisões que os poderão violentar uma vida.
Tentar numa chicuelina proibir a ida a touradas de menores de 16 anos é tentar “tapar o sol com a peneira”. A violência continua lá e não é para quem assiste, é para quem está no espetáculo, quem alimenta as palmas os bravos e as flores. Quem vai gosta, não se sente violentado. Quem corre atrás de um cavalo e é sucessivamente espicaçado, nas costas, no lombo, nos flancos, não quer aquilo a que o sujeitam.
Continuar a permitir as touradas nestes termos leva-nos a fazer escolhas pessoais com efeitos públicos e gerais. Continuar a fechar os olhos a uma indústria de carne poluente e desenfreada é ser hipócrita e esquecer a fome que há neste pedaço de Universo a que chamamos Terra.
No sentido de que pecado é aquilo que me pode prejudicar a mim ou aos outros, falo-vos de dois pecados neste texto: o pecado da Gula e o pecado da Soberba, de mãos dadas na nossa existência curta e cega.
Não vos peço que se confessem, peçam perdão ou se convertam. A única coisa que pretendo é que voltem à vossa infância e ao vosso relacionamento com os outros animais, que isto de ser pecador não nos enxameei-a com as fúrias do Inferno mas, cria-nos o inferno que já vamos vivendo e estamos a preparar para o Futuro. É que neste mundo é que se paga tudo e é cá que o aquecimento global tem lugar.
Somos feitos de pó de estrelas.... mas às vezes não parece.