Indíce
OUTUBRO
....... Ré em Causa Própria | Adelina Barradas de Oliveira
....... Cantinho do João | João Correia
....... Flores na Abíssinia | Carla Coelho
....... Pano para Mangas | Margarida Vargues
....... A Jurisdição Internacional | Adriano Moreira
....... Pano para Mangas | Margarida Vargues
....... Chá de Poejo | Raquel Véstia
....... O Mar Logo Ali | Ana Gomes
....... Calendários | José Luis Outono
....... Liberalismo versus conservadorismo | Pedro Àlvares de Carvalho
....... Carta de Laura a Lauro | Lícinia Quitério
Editorial
DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA
No Outubro do seu 8º Aniversário Justiça com A veste-se com Ijab e tem o Mundo na mão agarrando a tecnologia ao serviço da Liberdade
Um mês de marcas Históricas sem dúvida
A morte de duas figuras que ficarão na História para bem ou para mal .
A rainha Isabel que dispensa repetições de frases feitas e o Professor Adriano Moreira que quer queiramos quer não marcou a História de Portugal
Podem passar 100 anos, podem passar 3000 anos, muitos mais mas não serão, olvidados. Gosto de dizer assim em tom vizinho e castelhano.
E desta vez, como sempre, falamos do Mundo, das imagens, das histórias, da depressão que nos assola a nós também como a todos, da actualidade, da poesia, da tecnologia….. de chá……...
Este Mês de revoluções de cidadania no Irão e pelo Mundo pelo direito de usar Ijah ou não, de querer ser inteira, cantar ou não um Hino, o Direito a ter Opinião, a existir na própria essência, (não há sombra de regimes ou religiões que desunem, mas de diferenças que serenam se aceites, e unem se respeitadas), JustiçA com A, resiliente, vem com novos textos, novas imagens, temas sempre presentes, objectivos sempre em vista, e o Direito à Liberdade de Opinião que sempre defenderemos.
Com uma Homenagem ao Professor Adriano Moreira com um texto dele que iria celebrar a data do seu nascimento e homenageia a data da sua morte e
Uma Foto Maravilhosa da rainha Isabel, que levou 30 Km a fazer-se, pela lente do nosso mais antigo repórter fotográfico Fernando Correa dos Santos.
Na capa mais um trabalho a aguarela da Arquitecta Ana Clemente que vestiu o nosso 8º aniversário.
Um excelente Outono No Natal continuamos ( num Outubro de Revoluções de Cidadania e Mudanças de referências históricas.)
Iniciamos o dia e espreitamos as notícias e o que nos ocorre é que está tudo vertiginosamente louco.
Putin supervisiona simulação de “ataque nuclear maciço” – em direto, Covid terá nova vaga entre Novembro e Dezembro, já não se fala de gripe nem nas estirpes, linhagens e afins deste bichinho.
Como ruído de fundo tenho o som do Parlamento que discute o Orçamento de Estado numa altura em que de um momento para o outro nos podem roubar tudo o que conquistámos depois de duas grandes guerras.
Nega-se o direito a decidir a interrupção voluntária da gravidez mas não se legisla sobre armas nos EUA e trata tudo de andar aos tiros nas escolas. Por cá até há imitações.
No Irão, um país maravilhoso que devia transpirar cultura por todos os poros, raparigas, que podiam ser nossas filhas, morrem por mostrar cabelos ou por não cantarem um hino.
No Afeganistão às mulheres é vedado o direito ao ensino secundário e minorias como a Hazara, são entregues ao extermínio silencioso.
Na Etiópia meio milhão de pessoas está, continua, em risco de morrer à fome e há sinais crescentes de “limpeza étnica”, como está na moda dizer.
Na Bielorrússia os refugiados, ali mesmo ao lado da Polónia e da Letónia, servem para fazer política. É mais fácil, como disse alguém há dias, fazer grandes e maravilhosas Conferências, que salvar pessoas. A burocracia é imensa.
Mudar de nome porque se quer mudar de sexo entre os 16 e os 18, uma idade em que não sabemos bem onde temos a cabeça, é permitido, mas votar só depois dos 18.
Em Berlim, monumentos ficam às escuras durante a noite e os hospitais e escolas só podem subir a temperatura dos aquecimentos até 20º
Em França, as lojas com ar condicionado devem manter a porta fechada na Grécia, os funcionários devem desligar computadores após o trabalho.
Na Venezuela a situação é critica, mas afinal é tudo resultado do “bla bla bla” das redes sociais e declara-se o apoio Total à Rússia.
Sob a égide da Noruega, Guevara, uma das figuras de oposição a Maduro, apelidado de terrorista é libertado. A Noruega fica onde?
“Mas está tudo maluco?”
Ré em causa própria
Quarenta dias passados sobre a morte de Mahsa Amini às mãos da polícia iraniana dos costumes e da moral, milhares de pessoas em várias cidades do Irão saíram à rua, esta quarta-feira, dia 26 de Outubro de 2022, para exigir o fim do regime que governa o país e Washington teme um aumento da repressão, com recurso a apoio da Rússia.
“As provas de que o Irão está a ajudar a Rússia a endurecer a sua guerra contra a Ucrânia são claras e públicas”, afirmou a porta-voz da Casa Branca, Karine Jean-Pierre, durante uma conferência de imprensa, esta quarta-feira, mas não apresentou as provas apesar de fazer a afirmação publicamente.
E eu pergunto, deve ser deformação profissional: Quais provas? Digam!
Quando em 2006 o Chefe de Estado que veio do frio discursava sobre direitos humanos dizia referindo-se à Rússia e à Europa :” As nossas posições quanto às questões de segurança internacional têm muito em comum.” Falava na altura da não proliferação nuclear e referia o dossier nuclear Iraniano. É curioso se pensarmos que constou que a Rússia estava a construir uma Usina nuclear no Irão!
Ou seja, o Mundo é um tabuleiro de Xadrez onde as peças se vão colocando conforme a conveniência porque a política é um jogo de conveniências, internas e externas, e nós nem os peões somos.
Assistimos ou morremos apenas.
O Mundo foge para dentro de si mesmo.
A invasão da Ucrânia pela Rússia precipitou uma série de consequências económicas e sociais pelo mundo, corte nos fornecimentos de cereais e energia, e o aumento dos preços do petróleo.... a fuga de mais de 14 milhões de pessoas de suas casas, de acordo com os mais recentes dados da ONU, que classifica esta crise de refugiados como a pior na Europa desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Eu abro os jornais e só vejo notícias tristes, angustiantes, ou fúteis como as do casaco desta e dos sapatos daquela, da banda gástrica da outra, e do 8º divórcio daquele.
Enquanto a Suécia constrói um aeroporto para naves espaciais, França irá abrir uma das maiores Minas de Lítio até 2027....
AH! Talvez agora uma boa notícia. Se calhar é do que estamos todos a precisar, é de Lítio. Tomem Lítio! Emmanuel Jean-Michel Frédéric Macron poderá comercializar lítio, pode até oferecer aos restantes chefes de Estado, nós até pagamos por isso, se calhar nem nos importamos de subir de escalão.
A França vai sair desta crise em alta vão ver.
E nós por cá? Todos bem??
GUERRA Chegam notícias da guerra. Disseram-me que as guerras visitam as cidades. Tenho medo.
A minha cidade é antiga.
As ruas têm pedras soltas em que os velhos tropeçam. Na torre da igreja maior faltou o azeite.
As corujas partiram. Os jardins estão pobres (a chuva tem sido salgada), mas na cidade eu habito e nela acolho os irmãos e os filhos deles.
Na pequena praça há o banco verde com uma criança ao colo. É uma cidade triste, mas antes de o ser já era a minha cidade.
Chegam notícias. Penso fechar as portas da cidade e convocar as cores.
A cidade será o ocre da planície, o cinzento do céu. Cidade sem cidade.
Licínia Quitério, “De Pé sobre o Silêncio”, 2008ed. autora
Ilustrações do artista russo Vladimir Kazak
CANTINHO DO JOÃO
João Correia
SOBRE TIRAR FOTOS
É curioso como, hoje em dia, somos quase espancados quando pretendemos tirar uma foto a alguém, no meio da rua, apenas porque achamos que a mesma, naquelas circunstâncias, ficaria muito bem. Não sei se já tiveram essa experiência, mas se não, também não vos recomendo, pois, a mesma pode dar origem a algumas complicações.
Na realidade, nem sempre foi assim pois houve tempos em que tirar um retrato a um casal de namorados em plena rua, a um polícia em serviço, ou a um empregado de mesa num café cheio de clientela era visto como algo desejado por aqueles que figuravam no retrato pois estes, de uma forma ou outra, sentiamse especiais por terem sido escolhidos por alguém que estaria disposto a retratá-los.
Percepcionei isto após uma visita a uma
exposição de fotografia de Standley Kubrick (sim, o realizador de cinema), em Cascais, onde aprendi que o mesmo foi fotógrafo no início da sua carreira, para a revista “Look”, e onde conseguia retratar inúmeros americanos, desde os famosos a cidadãos de uma imensa vulgaridade, os quais, quando interpelados para o efeito, até faziam pose. Vi um casal anónimo a dançar, polícias, namorados, senhoras a passear cães, pugilistas, entre muitos outros.
Ou seja, por aquilo que compreendi, antes do evento das redes sociais, quem era fotografado sabia de antemão que o seu retrato não circularia de forma incontrolável por este mundo fora, ao contrário de hoje. Por outro lado, e antes do evento das câmaras automáticas, alguém que circulasse com uma máquina fotográfica na mão poderia ser, muito
provavelmente, um jornalista ou, com sorte, um artista pois, só estes (ou gente muito rica) dar-seiam ao luxo de carregar uma câmara destas.
Assim, quem era interpelado por um suposto fotógrafo, poderia, quiçá, acabar com o seu retrato numa revista, ou com sorte, numa exposição, ao contrário de hoje, em que, com sorte, termina no Instagram de um influencer qualquer.
Em suma, tenho pena das circunstâncias actuais pois, independentemente das fotos de paisagens, ou da lua (que é difícil de fotografar, ao contrário do que se pensa), da comida em restaurantes sofisticados, ou por fim, de locais icónicos, não há nada melhor do que fotografar pessoas, sobretudo quando as mesmas comportam-se de modo natural, situação essa a qual é praticamente impossível de conseguir actualmente pois, cada tentativa de foto nesse sentido resulta, quase sempre, com o protesto de alguém.
Resta-me olhar para as fotos de Kubrick com inveja, tais como as de Abbas Attar, francês de origem iraniana que, devido ao seu aspecto muçulmano, era sempre enviado para o médio oriente como repórter fotográfico uma vez que passava discreto no meio da multidão ou, por fim, as de Vivian Maier, criatura enigmática, ama seca pouco paciente, mas que tirava fabulosas fotos, com uma Rolleiflex, na rua.
Por fim, duas referências mais, a primeira, a uma amiga minha que, perante a minha insatisfação, disse-me que tínhamos que ser “ninjas” quando tirávamos fotos a pessoas, situação essa que era possível, melhor, com o telemóvel. Ou seja, ser o mais discreto possível. A segunda, a um russo que conheci no final dos anos noventa e o qual me ofereceu, após um mês de convivência no
Reino Unido, uma câmara Lomo, muito básica, mas com uma lente muito boa, dizendo que a mesma custava cinco dólares nas ruas de São Petersburgo despedindo-se de mim, desta forma, com especial carinho. Nunca mais o vi e, francamente, não tenho muitas saudades pois o tipo era um pouco maluco, mesmo para o conceito da época, mas agradeço a câmara, a qual ainda guardo.
Enfim, desejo-vos boas fotos e, não se esqueçam de ser “ninjas”.
FLORES NA ABISSÍNIA
Carla CoelhoUMA PERSONAGEM
E A SUA HISTÓRIA
Era uma vez uma personagem que deu por si na inusitada situação de não ter história onde se integrar. Esse seu estado não lhe foi de imediato evidente. Apercebeu-se de que existia numa manhã de janeiro em que deu por si a caminhar pela Avenida da Liberdade, embrulhada em alguma confissão. Não sabia se tinha sido abandonada ou se, maravilhada com o sol de janeiro e a limpidez da manhã, se tinha perdido de quem a imaginara. Ficou ali por uns momentos até perceber que não tinha para onde ir, com quem se encontrar ou para onde regressar.
Observou um homem parado num passeio, de costas para uma sapataria. Nem gordo, nem magro. Não demasiado alto, mas também não poderia ser definido como baixo. Não trazia estampado um sorriso na cara, não se querendo com isto dizer que estava carrancudo. De repente, uma loura
de faces rubicundas, com gabardina e botas brancas aproximou-se do homem. Todo ele se iluminou quando a viu, deu-lhe um beijo na face e de braço dado afastaramse a conversar. A atenção da personagem sem história (ainda) concentrou-se depois em duas mulheres idosas que se cruzavam nesse momento do outro lado da rua. Saudaram-se, uma vinha já da praça (concluiu a personagem surpreendendo-se com a sua rapidez de pensamento, de onde lhe vem este conhecimento?), outra a julgar pelo trolley vazio que a segue deverá ir para lá. À personagem ocorre-lhe então que a verdade: todos os que ele via eram personagens, certamente de outras histórias, que tinham vindo ao seu encontro. O homem e a mulher que se tinham afastado, as duas mulheres à conversa, o rapaz que ao seu lado passava com o seu cão em passo lento. Bastava-lhe, pois, ficar ali à espera que a sua história viesse
ao seu encontro. Atravessou a rua e sentouse num dos bancos de pedra da praça. Aguardou.
O dia passou lento. Ainda de manhã, apenas lhe pareceu que ia ser abordada por uns rapazes que lhe pareceram ter um certo mau aspecto. Eram três, com ar de quem não estava de boas relações com água e sabão, trajando calças justas (excepto o do meio que envergava, não, arrastava-se num fato de treino encardido) e bonés a conduzir. Falavam alto entre si. A nossa personagem fingiu olhar para o horizonte, fazendo de conta que não os via. Não queria fazer parte de qualquer história em que aquelas figuras entrassem, nem como figurantes. Pegou num velho jornal que alguém tinha deixado esquecido no banco onde estava sentado mantendo o olhar nas notícias sobre a Ucrânia até os rapazes desaparecerem.
Manteve-se firmemente sentada no banco durante todo o dia. Ao entardecer, porém, teve de admitir para si (a mais ninguém o assunto parecia interessar) que o seu método não estava a ter sucesso. Uma menina de uns cinco anos aproximouse dele a correr, mas percebeu que queria apenas recuperar a bola que um pontapé mais enérgico tinha atirado para debaixo do seu banco. Dois cães dobermane vieram cheirá-la antes da dona lhe puxar
a trela. Observando as tantas pessoas que passavam à sua frente sem que nenhuma a interpelasse percebeu que não tinha encontrado a sua história. Consolou-se a si próprio. Talvez a sua história estivesse retida algures numa estação ou apeadeiro ou num cais mais para o norte da cidade. Quem sabe a história estava confusa, sem ter ainda percebido que lhe faltava uma personagem. Ou talvez o autor ou autora tivesse adormecido. Ou mesmo desmaiado. Poderia o seu criador ter levado com um tijolo na cabeça, ter sido atropelado, estar em coma? Respirou fundo. Era preciso ter calma. Não tinha, disse a si própria, qualquer indício que lhe permitisse concluir que quem a tinha imaginado estava fora de jogo. Mais, com tantas personagens, tantos enredos à sua volta, era preciso ter muito azar para logo a sua história terminar antes mesmo de ter começado. Iria à procura. Da sua história, de quem o tinha imaginado. Em último caso, se não os encontrasse entraria numa outra história que lhe parecesse interessante.
Tinha de recompor forças. Caminhou pelas ruas da cidade à medida que entardecia, não se deixando contagiar pela aparente pressa com que quase todos circulava. Pareciam estar a viver histórias frenéticas.
Entrou numa pastelaria e sentou-se à
Uma personagem e a sua história
Flores na abissínia
mesa. Antes de ter tempo de dizer o que queria, o empregado colocou-lhe à frente um pastel de feijão e uma bica. Levou o bolo á boca e soube-lhe como sempre (que estranho, pensou e pensamos nós, claro). Olhou à sua volta. Apreciou os azulejos com motivos azuis em fundo branco, o balcão já com poucos produtos (um ou outro folhado e uns pastéis de nata). Nada lhe parecia familiar, excepto o sabor do pastel que se lhe ia dissolvendo na boca.
Levantou-se da mesa e saiu. A noite quase cobria a cidade. Aproximou-se do rio, procurando sinais de alguma familiaridade. Nada. Absolutamente nada. Rien de rien (estranhou, sabia idiomas estrageiros? Ao menos dedilhava o francês).
Olhou para o lado e viu uma bola verde. Não, não era uma bola, era um cão verde, com o nariz rosa choque. Também ele lhe devolvia o olhar com estranheza. Ou parecia, pelo menos. Procurou disfarçar a surpresa perante o inusitado da situação. Durante o dia tinha visto diversos cães pela cidade (para além dos dobermane, um irritante caniche branco e um outro, simpático, de pelo curto cor de mel), mas aquele era inusitado. Verde, com pelo médio, olhos vivos e um nariz cor de rosa choque.
Quando se afastava o cachorro falou-lhe:
- Também te deixaram?
A nossa personagem ficou de boca aberta. Um cão que falava?! Isso era inesperado.
Indiferente (ou inconsciente da surpresa) o canídeo continuou:
- Sou o Bob, um cão marciano.
- Como?!
- Sim, sou um cão vindo de Marte, o planeta, sabes?
A personagem acreditava-se sofisticada. Por isso, perguntou com no tom mais natural que conseguiu:
- E como chegaste aqui?
- Olha, fui imaginado por um miúdo de cinco anos, o André. Estava ele muito bem a pensar em mim, a criar-me, quando teve a infeliz ideia de, na viagem de carro com os pais, falar de mim …
- Falar de ti?
- Sim, pôs-se a dizer aos pais que tinha imaginado um cão verde vindo de outro planeta , Marte, que falava e que tinha aventuras. Para meu azar, o pai disse-lhe logo que isso era uma estupidez, que cães verdes não existem, muito menos em Marte.
- E o miúdo?
- Começou a chorar, a teimar que existia, que era dele, que era o Bob … Um chinfrim, a mãe a tentar acalmá-lo e o pai a gritar por cima, a dizer que por estas e por outras é que ele tinha de ir ao psicólogo …Enfim, quando chegámos ali à esquina da Avenida 5 de Outubro com a Av. Da República, estás a ver?, o miúdo deitou-me fora.
- Deitou-te fora?
- Sim, de repente, dei por mim fora do carro. Largou-me ali. Fiquei por minha conta.
- Talvez te recupere ou lhe voltes à ideia …
Concedeu:
- Não sei … Quem sabe, daqui a uns dias ou quando for adulto, se for daqueles miúdos que gosta de ficção científica e histórias de dragões e tal. – Suspirou – E até, quem te deitou fora?
A personagem sorriu:
- Não fui deitado fora.
- Ah não? Então o que estás aqui a fazer?
- Olha, tenho estado a matutar nisso o dia todo. Pensava que também estava perdido. Mas quando te ouvi a contar a tua história, lembrei-me do que se passou.
- Então, conta lá …
- Evadi-me.
- Evadiste-te? Como assim?
- Fugi, pus-me a andar, dei às de vila-diogo, debandei …
- OK, já percebi. Mas porque fizeste isso?
- Bom, ia no carro com a minha criadora. Tudo certo, começou a criar-me, a dar-me vida, a pensar nas minhas características físicas. Altura, largura, peso, cor do cabelo, olhos, tudo muito bem. Imagina-me numa praia das Caraíbas, com roupinha de época, toda rota, como alguém foragido, tripulante de um barco de piratas ou assim… Já vejo uma história maravilhosa, com lutas, aventuras, uma história para a qual valia a pena ter saído do reino da imaginação. Mas, de repente, tudo muda.
- Sem mais? Do nada?
- Pareceu-me isso mesmo. Do nada. – Para dar ênfase à sua fala, a personagem estalou os dedos e atirou as mãos pelo ar – Pensando bem, começou a tocar uma musiquinha bem deprimente. Deixa ver, qualquer coisa como “(…) and that you’d be reminded that for me, it isn’t over/ Never mind, I’ll find someone like you”. O que se passou não sei. Sei que do nada desapareceu a roupa de época, a praia nas Caraíbas, todo o cenário e estou metido num T2 com alguém a chorar e a gritar para mim “porquê, porquê, porque me deixas”?, à volta copos e pratos partidos e a uns sacos de plástico cheios de roupa à porta. Pensei: não, não eu, Isto não é uma história para uma personagem como eu. E, vai daí, quando começou o noticiário das 8h00 saí do carro.
Houve um longo silêncio. Depois, Bob, o cão verde que veio de Marte, arriscou perguntar:
- Então e agora? O que vais fazer?
Abriu os braços num gesto largo (a personagem é um pouco teatral, conceda-se) e respondeu:
-Não é óbvio? Vou escrever a minha própria história.
Discurso do Sr Professor Adriano Moreira
Presidente do Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa
Professor Emérito da Universidade Técnica de Lisboa
A jurisdição internacional
As guerras de todos os tempos podem ser abrangidas com a expressão, que se tornou popular, e que é “ai dos vencidos”.
Mas a última chamada Grande Guerra, que foi a de 1939-1945, teve, no decurso, uma atitude mais correspondente à falta de caridade pelos adversários, antes de a sorte dos combates determinar quem eram os vencidos.
No caso desta última Grande Guerra sobressaiu, quanto à crueldade e desprezo por uma etnia, também a especifica aversão que os nazis alemães tiveram em relação aos judeus. Nas palavras de François Bédarida, o governo alemão tomou nesse domínio, sob a orientação de Hitler, antigo cabo do exército alemão vencido em 1918, e ferido nessa guerra, as seguintes decisões, na corrida ao poder, no decurso do ano de 1941: l) organizar uma força chamada “grupos de intervenção”, encarregada da liquidação física de todos os judeus do continente europeu, e também dos quadros do partido comunista russo; 2) proceder à chamada solução final, isto é, a liquidação de todos os judeus na Europa; 3) a criação de campos de extermínio,
que implicaram a morte programada de milhares de vítimas.
Este foi o maior massacre cometido na história dos conflitos militares europeus, não apenas pela crueldade dos meios, também pela motivação étnica, e ideológica, que o impulsionou.
Mas a evolução da ciência e da técnica que acompanhou a guerra, e que na guerra anterior chegara à utilização dos gazes que atingiram e cegaram o antigo Cabo Hitler, que depois viria a ordenar este genocídio na qualidade de Chefe do Governo alemão, também levaria nesta II guerra os aliados americanos à descoberta da utilização da energia atómica, que se tomou uma das ameaças mais temíveis em que se encontra hoje a própria terra, “casa comum dos homens”.
O processo de decisão política, ignorou a advertência da comissão de cientistas que descobriu e fez a primeira experiência da utilização, ao serviço dos EUA, no sentido de que nenhum Estado deveria usar tal instrumento, tendo Churchill registado o diálogo e motivações que levaram à decisão. Em primeiro lugar, ele e Truman,
A jurisdição internacional
Sr Professor Adriano Moreiraentão ocasional Presidente dos EUA, decidiram não dar conhecimento exato à Rússia do novo instrumento de guerra ao seu dispor. E, como argumento final para a decisão, depois de avaliar “a derrama ilimitada de sangue americano”, que seria causada para vencer o Japão com os armamentos até então disponíveis, o Presidente Truman assumiu que decidia pela poupança do sangue dos seus soldados, porque, “depois de Pearl Harbours, não achava que os japoneses merecessem qualquer espécie de “honra militar”.
Os efeitos do bombardeamento, correspondentes a uma decisão pragmática que obedeceu à regra maquiavélica de que “se a motivação acusa, o resultado absolve”, haveria de nos conduzir, neste ano de 2018, à terrível contingência de a pluralidade de contradições de interesses, que desencadearam a ambição de possuir esse instrumento infernal, na posse de governantes dificilmente confiáveis, ter colocado nessas mãos o poder de destruir a própria Terra.
Tudo isto, implica pessimismo depois de lidas as palavras com que Churchill informou que “no dia 1 de Julho (1945) os Exércitos dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha iniciaram a retirada para as zonas (europeias) que lhes tinham sido atribuídas, seguidos de massas de refugiados”.
A Rússia soviética firmarase no coração da Europa. Foi um marco fatídico para a humanidade. O marco fatídico é seguramente que o Tratado de Paz a assinalar o fim da II Guerra, não era senão um Tratado de Armistício, que
foi vigente durante o Período da Guerra Fria que se seguiu com a formação dos Tratados opostos da NATO - VARSÓVIA.
De facto, talvez esta Paz seja o sinal do início do outono ocidental, embora coberto por um período que foi enganosamente chamado de “regresso da Europa Ocidental”, marcado pelo “crescimento individual dos Estados e da sua marcha para a unidade”.4
0 famoso Jacques Barzun, ocupando-se do percurso que chamou de “A Grande Ilusão”, “a civilização ocidental tem de acabar”, escreveu: “a segunda grande guerra do século, como a primeira, deixou povos a arder em muitos lugares e apenas duas potências que pareciam suficientemente fortes para influenciar o curso do mundo, os Estados Unidos e a Rússia.
Incapazes de se entenderem, confrontaram-se durante quarenta anos numa Guerra Fria; isto é, uma guerra por procuração . E esta descrição que sublinha a distância entre as esperanças que animaram a criação da ONU, a descolonização do Império Euromundista, a Declaração de Direitos Humanos, e, finalmente, a criação do Tribunal Internacional de Justiça.
A ONU declarava que “nós, os povos das Nações decididas a precaver as gerações futuras do flagelo da guerra, que por duas vezes durante a nossa vida infligiram à humanidade sofrimentos indiscritíveis, a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e valor da pessoa humana, na igualdade dos direitos dos homens e mulheres e das
Nações grandes e pequenas”, tudo para “promover o progresso social e a elevar o nível da vida dentro de um conceito mais amplo da liberdade”.
John Locke (1632-1704) deveria, se vivo, sentir-se consagrado, por ver reconhecida, não apenas para cada Estado, mas para a comunidade dos Estados, as suas justificações de governos limitados por “direitos naturais”, pela importância que assumiam os seus dois Treatises of Civil Government (1690), a sua Letter on Toleration (1689), tudo apoiado na “Law of Nature”, definida por Deus para os seres racionais.
Em suma, o “direito internacional”, um conceito que se apoiava no pensamento que ligara São Thomas de Aquino (122674), Hugo Grotius (1583-1645), Pufendort (1632-99), e Kant (17241804).
Tudo tradições ocidentais, apoiadas pela “jurisdição eclesiástica”, que várias religiões cultivaram, sendo que neste “texto da ONU a tradição católica era a que estava mais presente, e nela se continha a ideia do “direito natural”, transcendente às leis dos poderes temporais.
Todavia, antes de um projeto imperativo do futuro globalismo ainda mal pressentido, a avaliação das origens e consequências da II Guerra Mundial tinha originado o recurso à criação e efetiva ação do Tribunal de Nurembergue. Tratouse da criação de leis sobre os “crimes contra a humanidade”, em que avultava o trágico sacrifício dos judeus, objeto da política Hitleriana da “solução final”.
Parece que tal ódio a essa
etnia nascera em Hitler ainda quando, pouco instruído cabo do exército alemão vencido na primeira guerra mundial, “em Viena convivera com grupos extremistas nacionalistas alemães, e fora aí que ouvira histórias acerca de atividades sinistras, destrutivas, perpetradas por outra raça, inimiga e exploradora do mundo nórdico — os judeus. A sua ira patriótica fundiu-se com a inveja que sentia em relação aos ricos e bemsucedidos, dando origem a um ódio avassalador”. Na história da Humanidade não se encontra facilmente uma intervenção tão cruel e desumana como a que o nazismo praticou contra os judeus, mesmo percorrendo a história da perseguição que os acompanhou ao longo dos séculos, em muitos dos países que estavam incluídos nos vitoriosos ou libertados no fim da guerra.
A decisão dos vencedores implicou a suspensão de um princípio fundamental do direito ocidental, que era o da não retroatividade das leis penais. Não se tratou da simples e famosa questão levantada pelo jurista Ronald Dworkin (Taking Right Seriosly, 1977), segundo o qual “hard cases make bad law”, por não haver antecedente ou lei precedente, mas de assumir um considerado uso da “força política” sem precedente ou analogia no passado dos conflitos militares: tratouse de formular uma definição inovadora de crimes contra a Humanidade, que obrigasse a não admitir a aplicabilidade da não retroatividade da lei incriminadora.
Não se tratou de afastar, por
exemplo, a já então corrente doutrina de Hans Kelsen (1881-1973), cuja conceção da legalidade do Estado, obediente à lei positiva, (Genaral Theory of Law and State, 1995) era validada pela básica Grundnorm, cuja orientação, de facto utilitária, é promover a paz, a ordem, o bem estar dos povos.
Mas isto, que dizia respeito ao futuro, não era o que a decisão de definir os crimes contra a Humanidade e um competente Tribunal para os julgar, tinha apenas o futuro como princípio; tratava-se de, com lei retroativa, julgar, e punir, o passado, abrindo caminho à memória que impediria a repetição.
Os responsáveis nazis foram executados, mas com outra inovação. Os exércitos vencidos estiveram obedientemente envolvidos nas atrocidades cometidas, e foram incriminados pelo estatuto do Tribunal criado, mesmo os que estavam conscientes da distinção entre a moral e a decisão política, uma questão sempre presente quando as ações, mesmo formalmente legais de uma pessoa ou instituição, têm consequências na vida de terceiros, sobretudo não havendo uma instância moderadora, que não atue ultravires.
Mas a instituição militar tradicionalmente era justificada pelo dever de obediência. O conceito de Kant segundo o qual o valor moral implica o seu respeito por qualquer ser racional, tinha na obediência militar a oposição do conceito de Maquiavel de que qualquer forma de guerra implica a supremacia do uso da força.
O Tribunal de Nurembergue estabeleceu que a obediência militar tinha de ser racionalizada pelo executor das ordens, e no caso afastou a regra da obediência, condenando os chefes militares. Mas, para tomar mais evidente, e inesquecível, este castigo do passado sem lei, privou-os da tradição do fuzilamento, substitui-o pela forca humilhante.
Na história portuguesa temos um exemplo na condenação do General Gomes Freire de Andrade, mandado executar desse modo pelo Marechal Beresford em 1817, que não ganhou com isso a estima dos portugueses.
A questão é que o recurso em Nurembergue aos tribunais transestaduais ficou na memória coletiva como um elemento fundamental de garantia de um futuro que obedecesse aos pressupostos do “mundo único”, isto é, sem guerras, e da “terra morada comum dos homens”, isto é, em que o desenvolvimento sustentado fosse o “novo nome da Paz”.
Independentemente do Tribunal Penal Internacional, cujas intervenções têm sido eficazes, discretas, respeitadas. E pelo que toca aos povos que foram juridicamente submetidos pelo colonialismo à situação de “Terceiro Mundo” como recorda o Juiz António Augusto Cansado Viegas, da Corte Interamericana de Justiça (CIJ), quando prefaciou o notável livro sobre a Escola Ibérica da Paz, recolhendo os ensinamentos das Universidades de Salamanca, Coimbra, Évora, Valladolid e Alcalá de Henares,
A jurisdição internacional
Sr Professor Adriano Moreira
que enfrentaram a realidade dos séculos XVI e XVII, as suas palavras são estas:
“Com o despertar da consciência humana, do mesmo modo, os seres humanos deixaram de ser objeto de proteção e foram reconhecidos como sujeitos de direitos, a começar pelo direito fundamental à vida, abarcando o direito de viver em condições dignas.
Os seres humanos foram reconhecidos como sujeitos de direitos em quaisquer circunstâncias, em tempo de paz como de conflito armado”.
0 número de Tribunais Supraestaduais multiplicou-se, e na própria União Europeia o Tribunal, discreto e respeitado, tem agido de maneira exemplar, isento das críticas ao funcionamento da União. Mas o tema diz agora respeito, no que toca ao mundo em que vivemos, a avaliar se o pensamento que animou Nurembergue tem renascido reflexo no globalismo em que vivemos. A cuidar pelas palavras de um dos mais escutados filósofos do nosso tempo, a situação é altamente preocupante.
Uma das vozes mais escutada no Ocidente, que foi Heidegger (1889-1976), embora seja tão complexo o seu pensamento, foi claro ao antecipar e advertir que “a decadência espiritual é tal que sobre os povos da Terra impende a ameaça de se perder a última força do espírito, aquela
que permitiria ver e apreciar a decadência como tal (pensada em relação com o destino do “ser”).
Esta simples comprovação não tem nada a ver com o pessimismo cultural, nem obviamente com o otimismo. Com efeito, o obscurecimento do mundo, a retirada dos deuses, a destruição da Terra, a massificação do homem, e a insidiosa suspeita contra aqueles que criam e são livres, alcançaram no planeta tais dimensões que categorias tão pueris como as do pessimismo e otimismo já se tomaram ridículas há muito tempo” (Introdução à Metafisica).
De facto, e no que respeita à governança do globalismo em que nos encontramos, o que se toma evidente é o conjunto convergente de inquietações expressas, designadamente por Amin Maalouf em El desajuste del mundo (2009), por Ian Kershaw em A Beira do Abismo — a Europa 1914-1949 (2016), por Anthony B. Arkinson em Desigualdade O que fazer (2016), Norman Chomsky em Who Rules de World? (2016), Charles Derber, em A maioria Deserdada (2016), ou John Micklethwait e Adrian Wooldridge em A Quarta Revolução — A Corrida Global para Reinventar o Estado (2014), e o Ocidente, em particular, com a solidariedade atlântica enfraquecido pela tortuosa política da nova presidência americana, com o turbilhão das migrações a desafiar vários Estados da Europa a avaliar a relação entre segurança e deveres humanitários, com
os micronacionalismos a ameaçar a unidade de alguns desses membros, com a crise económica e financeira a impedir o regresso à vida habitual, com o desastre vigente a levar governos a recordar a história como imperativo de regresso ao passado, com os conflitos militares ou em definição de ameaça ou tendo passado à ação, com o fraco a desafiar o forte dando lugar de presença constante ao terrorismo, com os populismos a desafiarem as estruturas políticas formalmente vigentes: em síntese, os direitos humanos a exigirem não apenas redefinição clara, mas realidade efetiva.
A desordem mundial chama à evidência o conflito entre a moral e o direito quando existe, e os combates desordenados que se multiplicam, levando à insistente exigência, sobretudo religiosa, de definir os paradigmas que devem presidir à nova ordem, como os sucessivos Bispos de Roma, Papas da Igreja Católica, têm feito dirigindo-se à Assembleia Geral da ONU (Paulo VI, João Paulo II, o Papa Emérito Bento XVI, e agora o Papa Francisco) a lutar pela atenção a que Cristo não implorou o “Meu pai”, mas o “Pai Nosso”, isto é, todos os Humanos.
O que significa dar forma à governança do globalismo, cuja estrutura mal conhecemos.
Não há outro ponto de partida para a definição de uma governança do globalismo que responda às alterações das
estruturas que deram origem às práticas que, por sua vez, deram origem ao que chamamos direito internacional, sem conseguir firmar um sentido mundial viável e garantido aos direitos individuais.
De facto a situação voltou a alarmar a relação entre a ética, não apenas com o direito escrito nos tratados, mas com as práticas que nos colocam perante a eminência de uma cascata atómica.
A circunstância de a desordem internacional ter perdido a rota que foi designadamente traçada pela Virgínia Declaration of Rights of 1776, sem inocência dos EUA, enfraqueceu a imperatividade da Carta da ONU, o mesmo se passando com o Helsink Accord de 1975, que não impediram as violações do sovietismo não obstante a sua Constituição de 1977, pouco representando de resultados as discussões sobre violações de todos os limites atribuíveis aos outros titulares, se alguns não praticam o que os franceses e a doutrina do Estado Social chamou “droits prestation”, porque o maior parte dos Estados que fazem parte da cerca de duas centenas já inscritos na ONU nem sequer têm capacidade de defender os seus povos dos ataques da natureza, furacões, inundações, terramotos,
pestes, paz civil, ou que os pobres morram mais cedo.
Admitindo que uma das causas poderosas se encontra na desordem mundial, cuja estrutura mantém ignorada pela ciência política a realidade dos poderes por vezes não conhecidos, que partilham as hierarquias e as interdependências, vaise tomando evidente que as chamadas “due process”, e “judicial Independence” da tradição britânica, e que os Tribunais Supraestaduais cultivam salvaguardados das criticas e insuficiências das restantes organizações internacionais, a começar pela ONU, é cada vez mais evidente o apelo às instâncias que apelam a uma ética universal, como acontece com a Fundação Ética Mundial (1990) fundada pelo teólogo Hans Kung, nem sempre obediente à hierarquia da Igreja Católica, ou outras, como esta, que, sobretudo a partir de 11 de Setembro de 2001, quando foram surpreendentemente destruídas as Torres Gémeas de Nova York, pensaram que “it was too late for Man, But early, yet, for God”.
Enquanto uma ordem nova não garanta vigência e estabilidade, não é por desespero, mas olhando à experiência da II Guerra Mundial, que ocorre a
urgência de rever a capacidade de intervenção do Poder Judicial Supraestadual, colocando o tema do que chamaram “imperativos” inspiradores do novo direito de governança a instituir a retroatividade para incluir os atos preparatórios dos crimes contra a humanidade, antes que os poderes vigentes, em mãos irresponsáveis, cometam qualquer das leviandades que, segundo Bismark, possam, desta vez, colocar em perigo a existência do planeta terra.
O poder existe; a leviandade existe; o esforço de impor o imperativo do “mundo único”, isto é, sem guerras, e reconhecer que a terra é “a casa comum dos homens”, não tem resposta suficiente de prevenção.
O poder da justiça, que usa ser o último enunciado nas discussões políticas teóricas, é o que parece voltar a dever ser o primeiro a poder dar a resposta ética renovada de Nurembergue para presidir a uma futura ordem que o risco global exige. Os atos de tentativas não podem continuar a ser ignorados, mesmo ressuscitando o espírito de Nurembergue.
Um texto para homenagear os 100 anos de sabedoria que acabou por ser uma homenagem póstuma
PANO PARA MANGAS
Margarida VarguesQuem nunca ouviu ou disse algo do género? Quem nunca ficou boquiaberto com a destreza com que os mais jovens manuseiam as novas tecnologias?
Dê um passo em frente se nunca passou para a mão de um miúdo um telemóvel, ou tablet, para o entreter num momento de tédio, para pôr fim a uma birra, para que se calasse um pouco, para conseguir fazer algo sem ser incomodado? As hipóteses são imensas e, com certeza, haverá um elevado
“Tão inteligente! Tãopequenino e já sabe ir aoYoutube sozinho!”
“Criança esperta! Dominao telemóvel melhor quequalquer um de nós!”
número de pessoas a sair do lugar onde está. Com medo, com culpa ou sem qualquer sentimento ou emoção, pois este é um gesto já irreflectido, imediato e normalizado perante uma “situação de crise”.
É tudo muito interessante até ao momento em que, já desesperados, os pais não sabem o que fazer, pois os filhos estão viciados em redes sociais, em jogos, em amigos que não conhecem. Saem de casa, de manhã, já com os olhos fixos num qualquer ecrã portátil; na escola, caso não seja proibido, passam aulas e intervalos agarrados ao whatsapp, ao TikTok e outras aplicações onde o mais provável é estarem a trocar mensagens com o colega que está sentado mesmo ao lado - não, não estão a contar segredos, são conversas banais nas quais poderiam usar um sistema muito mais desenvolvido: o aparelho fonador do qual somos naturalmente dotados; ao final do dia, depois de aulas, explicações e mil e uma atividades extracurriculares, chegam a casa e enfiam-se no quarto, onde continuam com os dedos e os olhos esgazeados pelos aparelhos que têm à mão.
E assim vão crescendo.
Os fabricantes de jogos para as mais diversas consolas existentes no mercado alegam que os seus produtos fazem desenvolver capacidades e competências que, posteriormente, são facilmente concretizadas na vida real. Há, no entanto, estudos que provam o contrário. Em jogos de combate ou de velocidade, em que são necessárias destreza, rapidez de raciocínio e acção, tudo isso não passa de ficção. Nada disso é aplicável em circunstâncias reais. Saber jogar FIFA - um dos jogos mais populares entre os amantes de futebol - não significa que se saiba chutar uma bola. Super Mário, GTA, Clash of Clans Minecraft, Simms... Há tantos outros exemplos
São horas, dias, meses, anos de ecrã. Tempo que se perde, em que pouco se aprende e com consequências devastadoras a todos os níveis: cognitivo, emocional, social e físico. Tudo acontece demasiado rápido, não há tempo de espera, logo não há tédio, logo perde-se a oportunidade de descobrir o que fazer com o tempo que se tem entre mãos.
Há miúdos que têm os melhores amigos num computador sabe-se lá onde, com todos os riscos que isso possa acarretar, porém se se cruzarem na mesma sala são incapazes de trocar uma palavra ou até um olhar. Há outros tantos cuja caligrafia é imperceptível, porque não desenvolvem a motricidade fina. Há jovens incapazes de resolver uma soma ou uma multiplicação simples, porque a calculadora fá-lo por eles. E, por incrível que pareça, uma boa parte desta geração não sabe e não
consegue fazer uma pesquisa no Google!
Responsáveis? Nós!
Nós que inventámos os computadores, as consolas e os telefones espertos.
Nós, que lhes colocamos nas mãos o primeiro ecrã antes de completarem um ano de idade. Nós, que cedemos a chantagens baratas em troca de um pouco de sossego.
Nós, que caímos na conversa do bandido, acreditando que o último modelo da marca fará dos nossos pequenos uns génios.
Nós, que compensamos a nossa ausência com tecnologia.
Acredito que nem tudo seja mau, mas para que não se torne pior, teremos de ser nós, adultos, a fazer alguma coisa. Adiar os ecrãs, criar outros estímulos e, consequentemente, adoptar hábitos diferentes. Fomentar tempo de qualidade com os mais novos e criar-lhes memórias - como dizia Johann Paul Richter “a memória é o único paraíso do qual não podemos ser expulsos”
SABIA QUE...
(...)“o excesso de utilização do ecrã lúdico atrasa a maturação anatómica e funcional do cérebro em várias redes cognitivas relacionadas com a linguagem e a atenção”(...)
(...)“as novas gerações também têm grandes dificuldades em processar, triar, organizar, classificar e sintetizar a quantidade gigantesca de dados armazenados nas entranhas da web”(...)
“Quanto mais “inteligentes” se tornam as aplicações, mais substituem o nosso pensamento e mais nos permitem tornarmo-nos idiotas.”
“Apenas 1% dos jovens portugueses com 13 e 14 anos considera ser capaz de seleccionar informação mais relevante encontrada na internet e avaliar se é útil e de confiança.”
“ Quando só havia máquinas [fotográficas] analógicas, normalmente com rolos de 24 ou 36 fotografias, era preciso fazer três coisas que provavelmente [os mais jovens nunca precisaram] fazer: pensar bem na fotografia (...); pagar para revelar as fotos numa loja especializada; esperar que esse trabalho ficasse pronto(...). As câmeras digitais varreram tudo isso para um canto.”
RAQUEL VÉSTIA CHÁ DE POEJO
As coisas mais nobres da nossa vida, ficam por vezes sepultadas no passado, e nem o tempo consegue desvendar a memória, dos dias em que fomos felizes.
Na verdade, um gesto pueril e efémero, pode revelar a mais gloriosa e eterna verdade, que se espelha nas recordações dos cheiros, sabores e da vida, que nos parece inconcebivelmente bela, eternizada em breves memórias.
Vem-me à lembrança, o tempo em que se celebrou a vida e a humanidade, vertida numa grande caneca de barro, com chá de poejo, sorvida em tragos de esperança.
Nos dias frios, a avó reunia todos em volta da lareira. Eu, o Jaime, o Manel e o gato Zacarias, que ficava a admirar-nos, não que fosse dado a contemplações, mas era o seu destino.
Havia uma hora sagrada, a do chá! Uma oração, que durava uma meia hora.
A avó era dada a poucas falas. Contida nas palavras, mas imensa nos gestos. Trazia, um enorme cesto de pão torrado e compota de cereja, que espalhava pela mesa, em jeito de banquete.
Recordo-me dos dias, em que a via arqueada, debruçada sobre o fogão,
onde se sobrelevava um fumeiro rico de enchidos.
A avó junto à panela, com a água fervida em ebulição, preparava o nosso chá, mexia o caldeirão, como o bálsamo dos deuses.
Olha-a tão pequena, tão franzina, num esforço sempre sereno, a juntar água à panela, limão e mel, mais ervas de perlimpimpim. Esta era a poção dos deuses, contra gripes e maleitas.
Aquele chá dava para tudo!! Diziam que a dona Chica, amiga da vizinha, não tinha sobrevivido à pneumónica, se não fosse aquele elixir sagrado.
A receita era passada de geração em geração, servia para curar febres altas, cefaleias, dores da separação, e divórcio, males de amor, inveja e arrumação. Hoje teria o mesmo efeito que o Mestre Xacroculto, que cura a inveja e é especialista em trabalhos espirituais, bruxaria, bruxedo, mauolhado e magia negra. O vidente trazia o amor de volta, ajudava a livrar-nos do “ maus-hábitos”. A minha avó trazia-nos de volta, à mesa, quiçá magia branca, e unia-nos no hábito da comunhão da vida.
Ficávamos horas no silêncio do chá.
Uma hora de silêncio, preenchia uma imensidão de fantasias e coagitações
Todos esperavam atentamente que fosse servido, com a máxima religiosidade, horas ocas, a sorver cada trago do presente e a embriagar-nos com cada hausto do futuro.
Fagulhas da lareira, centelhas de fogo.
O Manel atirava uns pequenos gravetos e pinhas, remexia, e ficava a olhá-las em combustão. As fagulhas às vezes soltavamse e davam o seu aparato ao festim.
A avó repreendia-o, só de abrir os olhos e serrar o lábio inferior.
Eu via-o, e traduzia em palavras.
-C`os diabos Maneelllll, está quieto!! Vê lá se não arranjas lenha para te queimar.
Ele ouvia e logo se resguardava.
O endiabrado do Jaime, era de todos o mais dado a brigas e arrufos. Às vezes ria-se, atirava umas larachas e frases em tom de gabarolice, a contar as suas epopeias.
- Sabem que há um terreno para os lados do Soajo?....daqui a uns anos é meu...
-Vais comprar? - retorquiu o Manuel.
-Não…. achas?- replicou em jeito ufanosochego lá como um forasteiro, e invado tudo. Sabes que há povos, que fizeram o mesmo?
A avó tinha ficado mais de dez anos, sem beber chá.
Certo dia, um vizinho bateu-lhe à porta, em tom de sobressalto. -Dona Lina, não sei como dizer-lhe, mas o Jaime morreu, encontrámos a bicicleta perdida, junto à estrada, num terreno perto do Soajo, lamento muito.
A avó, fechou as portadas do seu casarão, nunca mais, pelas redondezas, alguém a viu sair de casa. Há quem achasse que tivesse morrido. Todos receavam o seu futuro. Sabe-se que o corpo, fora encontrado mais tarde, num campo verdejante e deserto, junto a um rio selvagem, onde jaziam roseiras. A avó ia visitar o campo toda as tardes, para que as rosas não perecessem.
Plantou uma árvore de copa robusta, e prontamente nasceram gramíneas perenes, com grandes limbos, que presenteavam a planície.
Cultivou, mais tarde, várias plantas aromáticas, como o poejo, de todas a mais tolerante às intempéries, que resistiu e celebrou a vida.
A avó só retomou o ritual, anos mais tarde. Essa hora do chá, transformou-se num silêncio sepulcral.
O terreno ficava perto de um vale, que dava para uma rua, pouco plana e sinuosa, onde se cruzava uma planície de cedros.
Numa outra encruzilhada, esmorecia um campo abandonado, pela tarde em silêncio, onde no Verão se colhiam cerejas.
A AVÓ ENCONTRAVA NAQUELE MOMENTO DO CHÁ, A SUA FORMA
DE SE REUNIR CONNOSCO, DE COMUNHÃO COM A VIDA, ERA A SUA FORMA DE ENCONTRAR A PAZ, O SEU PRÓPRIO DEUS!!
Ainda relembro a sua voz, como um chamamento:
-Meninos... venham. Hoje preparei chá! -dizia rejubilando.
Foi nesse momento, que vi, que se tinha conciliado com o mundo.
Não há bálsamo, como aquele da minha avó Lina. Uns toques de perlimpimpim, pó do aroma eterno da saudade e ervas de quem sorveu num trago, toda a Humanidade!
E O MAR LOGO
INFELICIDADE
INFELICIDADE
Carla aguardava por entrar no consultório. Era a 25.ª vez. Apesar de anotar tudo – e daí saber que estava prestes a completar meio ano de tratamento - não estava ali por alguma obsessão.
Eram quatro e meia. Carla não parecia aborrecida com a espera. Na verdade, fazia tudo para chegar mais cedo e levava um livro. Só assim conseguia ler algo diferente de processos, códigos, teses de doutoramento, artigos científicos, acórdãos de outros Tribunais ou os projetos dos seus próprios acórdãos ou de colegas.
Ao longo dos meses anteriores, a consulta nunca se tinha atrasado e terminava exatamente uma hora depois. O psiquiatra não trazia relógio de pulso ou de bolso, nem havia um alarme. Era mesmo um relógio de parede, redondo e enorme cujos ponteiros anunciavam as seis horas, a hora de sair. A conversa terminava onde estivesse, sem final aberto ou fechado. Haviam de retomar o fio da meada na semana seguinte.
Das sessões havidas já tinha tido conhecimento do diagnóstico: burnout seguido de depressão. Parece que anda meio mundo, ou mais, exausto e Carla pediu ajuda quando já quase não comia e após ter ido ao supermercado e colocado no tabuleiro rolante vinte latas de bebidas energéticas. O psiquiatra aconselhou-a a ficar um tempo sem trabalhar porque apesar de ela dizer que era o que mais gostava de fazer, os processos não estavam a fazê-la feliz e a forma de organização do trabalho tinha-a levado ao colapso. Como se não bastasse, sentia que naquele estado ainda carregava todas as desgraças do mundo, fosse a guerra, a pobreza ou a anunciada falta de água, essencial à vida.
Depois da consulta, Carla lembrou-se da frase de Digo Santiago, o remédio para a minha depressão (…) a depressão era chamada de infelicidade. Ficou a pensar naquilo, foi para casa, acordou pelo meio dia porque os remédios faziam-na dormir à força. Tomou o pequeno-almoço. Saiu para dar um passeio. Os colegas repetiam-lhe que era bom andar ao ar livre. Num repente, virou para a estação de Entrecampos. Pediu um bilhete. Entrou no Intercidades às 14H10 e, no caminho, reservou o hotel mais perto da praia, *
À tarde e ao sul, as gaivotas ocupam o areal, ocupam o mar, mantêm-se estranhamente sem emitir qualquer som, como num filme mudo. O silêncio das aves é entrecortado pelo mar feito ondas a fechar contra a areia e, no intervalo, a respiração controlada de um nadador experiente. Carla entra no mar. A temperatura está poucos graus abaixo da que se sente cá fora, o suficiente para sentir uma frescura que lhe percorre o corpo e que a faz sentir-se viva e feliz (?)
A chuva há-de vir …
JOSÉ LUIS OUTONO
Calendários
Um ribeiro soltou a sua cadência e dialogou com as margens.
Nas possibilidades adjacentes de um desaguar pleno há contratempos disformes, que rasgam novos caudais e soletram uma espera ardilosa de encontros entre palavras e ditos programas tecnológicos, que tudo facilitam.
As notícias tentam meter as argumentações válidas para um encanto de reportagem, e as bancadas da defesa, ou do ataque, simulam sorrisos com assinaturas de carimbo usual onde tudo está bem, onde tudo correrá melhor, onde tudo será mais um enredo de tempos enervantes, onde a espera é o arguido número um da ânsia de quem quer ver calmantes nas novelas, sem precipitações de pensamentos envolvendo cortes.
As telas multiplicam-se em filas de espera, enquanto os pincéis programados agilizam rastos para rasgar o branco sincero da canção finalista.
Hoje, amanhã, depois … os calendários vão agilizando a programação de um viver num dialecto surdo de ânsias provocadoras, enquanto as páginas agitam “gordas” num jogo de compra em primeira mão.
Rios, mares, grutas, rochedos … horizontes infindáveis de pensamentos constantes, e um dia tudo acaba na inocência dos tempos perdidos … ou ganhos!
in «ENREDOS & OUTROS MARES»
José Luís Outono Edição 2021
Pedro Álvares de Carvalho
LIBERALISMO VERSUS CONSERVADORISMO.
A convergência entre dois polos e maior operacionalidade dos mesmo, em relação ao tradicional binómio “esquerda”/”direita”, na análise da Ordem Internacional Liberal
CONTINUAÇÃO.....
A natureza meta-humana, acéptica, amoral, da O.L.I. teve, sobretudo, origens bem mais pragmáticas.
A ideia de livre comércio mundial, apenas sujeito a regras de índole económica e/ou financeira e a uma regulação privada via, sobretudo, Tribunais Arbitrais, gerou-se nas mentes dos que viam aí uma oportunidade única de enriquecer sem os limites de um simples Estado-Nação. A possibilidade de movimentar capitais financeiros a seu bel-prazer; de fazer engenharia fiscal agressiva; de “deslocalizar” as cadeias de valor por forma a colocar nos cantos mais pobres do mundo as menores-valias (em regra a produção em massa) e fazer retornar as mais-valias aos centros financeiros globais.
Tudo isto é puro capitalismo desregulado, a adopção da Lei da Natureza, isto é, a lei darwiniana do mais forte.
Como desculpa, sim, apenas isso, como
desculpa, porque nós sabemos que eles sabiam que era inviável, os “poderes que são” afirmaram que o acolhimento, no seio da O.L.I., de países de matiz claramente autoritária e antiliberal ou iliberal, como a China, os iria enriquecer, fazer crescer a respectiva classe média e, como no Ocidente sucedeu, a mesma iria acabar por ser tão forte e reivindicativa que o regime Comunista Chinês acabaria por
ceder e permitir o nascer, na China, de uma sociedade com valores liberais ocidentais. Por razões que melhor se explicarão abaixo, tal não sucedeu, nem sucederia nunca.
Por estes motivos, os defensores da O.L.I., tal qual ela foi desenhada, esventrada de conteúdo ético ou axiológico, não podem ser considerados como “liberais” em qualquer sentido, político, que eu conheça. Enquadrar-se-ão, porventura, na destemperada ideia do Neoliberalismo, que não é, na verdade, um Liberalismo, pois que ignora, espezinha, despreza, a individualidade, a nobreza do ser indivíduo, reconduzindo-o a mero alvo para o consumo imediato. E, se uma coisa isso não é, é, precisamente, Liberalismo.
Na verdade, quem leu e aprendeu, em Portugal, com Castanheira Neves ou quem conhece a obra de Hans-Georg Gadamer, que Castanheira Neves transmitia para quem quisesse de facto aprender, saberá que qualquer abordagem do social, em sentido lato (cultural, político, jurisdicional, direito, económico, etc), implica uma forma de compreensão ou experiência de sentido que desenvolve uma capacidade natural do ser humano, qual seja, a capacidade de orientação e eleição num mundo vivido em mediação ou comunidade e que a relação dentro e entre a(s) comunidade(s), aquela forma de compreensão ou experiência, constituem meios de formação e recordação do que na humanidade do homem é imutável (Maria Luísa Portocarrero F. Silva, “Problemas da Hermenêutica prática”, Revista Filosófica de Coimbra, nº 8, 1995), apesar da pressão social da estandardização ou repetição e da vivência contemporânea do primado do consumo, da solidão e da alienação,.
É por essa razão que, mesmo dentro de um país pequeno e culturalmente bastante coeso, como é o caso de Portugal, a aplicação de uma norma tão simples como a que prevê, no Código Penal, o crime de injúria, deverá ser feita mediante um percurso interpretativo que tenha em atenção a realidade social em que o funcionamento da mesma é,
abstractamente, despoletado, o mesmo sucedendo, sendo caso de aplicação ao caso concreto, na determinação da natureza e medida da pena.
Transpondo o exemplo para outras circunstâncias de leitura, opções, e constructos políticos e sociais, o que se exige será, então, essa relação dialogante, de via dupla, entre conceituação e realidade e vice-versa.
Oakeshott, Scruton, Hayek e Popper igualmente defenderam o demoliberalismo tendo por referência o racionalismo evolucionista/tradicionalista, sendo classificados, Scruton e Oakeshott, como conservadores.
Na essência, entre todos eles (conservadores e liberais9, verifica-se que não dispensam aquela humanidade imutável do homem social, como critério e medida de todas as coisas.
Ora, para a instauração da Ordem Liberal Internacional, a presente, sem qualquer substrato axiológico concreto, que vem conhecendo um processo de desagregação, ou uma outra qualquer, tal como foi desenhada e implementada desde meados do século passado, será sempre necessária uma dose de autoritarismo, ou mesmo, um total autoritarismo. Esse autoritarismo mostra-se
Liberalismo versus conservadorismo
Pedro Álvares de Carvalho
necessário na medida, precisamente, da ausência, propositada, de qualquer referência ou âncora ética e axiológica.
E este autoritarismo, por sua vez, só é possível e viável garantida que esteja a existência de grandes massas inanes cujo sacrifício seja mero dano colateral e, por essa via, “aceitável”, baseandose na dominação permanente de todos os indivíduos em todas as esferas da vida, isolando o indivíduo e colocando-o em organizações de massa indiferenciadas, deixando-o isolado e mais facilmente manipulável, transformando a cultura em propaganda, ou seja, a transformação de valores culturais em produtos vendáveis, o que passa pela desvalorização propositada do “conhecimento científico” ou do simples conhecimento especializado, dos intelectuais, tudo transformando em cultura pop, não reflexiva e acrítica.
Ou seja, uma desumanização do homem, na sua essência.
Por essa razão a China comunista, autoritária, dirigida pelo respectivo P.C.C., não experienciou qualquer mudança de paradigma de organização social e de governação, no sentido de qualquer tipo de aproximação às democracias liberais, nem, sendo o produto de uma cultura milenar de subjugação e submissão, alguma vez tal aconteceria.
Por, como e em que sentido ir a partir deste ponto a que chegámos?
Não me parece possível ou, melhor dito, realista, voltar, sem mais, a um passado de total soberania nacional, de desvinculação global, de isolamento e nacionalismo.
Aqui talvez devamos fazer um parêntesis para abordar, com ligeira profundeza, o Conservadorismo.
Este é um conceito que vulgarmente se mostra como oposto ao Liberalismo.
Sucede que a polissemia que existe na
conceituação do Liberalismo sucede igualmente no Conservadorismo, ou, conforme melhor descreve Edmund Fawcett (“Conservadorismo –
A luta por uma tradição”, Edições 70, 2021), «[t]al como o liberalismo, o conservadorismo não tem um Decálogo, não tem um Código para a Propagação da Fé, não tem uma Declaração de Independência fundadora, tampouco um compêndio doutrinário à altura da Edição Standard de Marx e Engels».
Na verdade, penso, podemos, precisamente com a mesma origem histórica da bifurcação da semântica liberalista, vislumbrar dois conservadorismos.
Na sequência, lá está, da mesma já mencionada Revolução Francesa, dois escritos seminais foram produzidos. Por uma banda temos o por demais conhecido Edmund Burke, com o seu “Reflections on the Revolution in France - and on the Proceedings in Certain Societies in London Relative to that Event in a Letter Intended to have been sent to a Gentleman in Paris”, (Penguin Books). Por outra banda surgenos o menos divulgado, mas igualmente importante, Josephe de Maistre, que escreveu o “Considerations on France” (Cambridge Texts in the History of Political Thought).
Ambos se apresentam, e justamente, a meu ver, como fortemente críticos da Revolução Francesa ou, melhor dito, dos seus desenvolvimentos que, no entanto, mais não foram do que consequências naturais das suas – da Revolução – origens ideológicas.
No entanto, ao passo que Burke se debruçava sobre questões como a importância da tradição, criticando os políticos/intelectuais franceses que, ignorando-a, ignoraram também a organicidade vulnerável da sociedade, não pretendendo um “regresso ao passado” ‘tout court’, já De Maistre via a Revolução Francesa como um mero interlúdio, defendendo o retorno a um passado que via como idílico e totalmente virtuoso.
Não espanta, por isso, que, apesar de um e outro
não acreditarem, verdadeiramente, na capacidade de autogoverno do “povo”, Burke, pelo seu lado, tenha dado origem a um conservadorismo sustentado em puro bom senso esclarecido e competência prática, ao passo que De Maistre, por sua vez, tenha sido o gérmen dos autoritarismos não comunistas e fascismos do século XX. Apesar do pessimismo antropológico de ambos (que confessadamente partilho), Burke (com o qual partilho o entendimento) distancia-se de De Maistre num ponto fundamental – é que o primeiro entendia que as pessoas reconheciam as regras do bom viver e confiavam que as outras as seguiriam, reconhecendo-as, ao passo que o segundo não admitia que, em liberdade, as pessoas disso fossem capazes. Para o primeiro era o costume, a tradição, a fonte das regras sociais, ao passo que, para o segundo, essa fonte apenas podia ser Deus.
Burke, apesar de arauto conservador, aproxima-se do conservadorismo moderno de Oakeshott e Scruton, os quais, por sua vez, se mostram perfeitamente compatíveis com um liberalismo não construtivista de autores liberais como Isaiah Berlin, na medida em que a ortodoxia, se quisermos, conservadora daqueles é baseada, no essencial, no costume, que, lá está, Isaiah Berlin não renega, bem ao contrário, no âmbito do liberalismo.
Nesta medida, o conservadorismo de Burke e seus sucedâneos, não sendo construtivista, de todo e obviamente, mas sendo reformista na medida certa, aproxima-se daquilo que José Adelino Maltez designa, aqui se parafraseando, como o “liberalismo do que deve ser”, um conservadorismo que admite a reforma, no momento, no modo e na medida certos, sem disrupções.
Ao invés, o conservadorismo sucedâneo de De Maistre é reaccionário, no sentido em que está sempre com o pensamento num passado que desenha como idílico, perfeito, ao qual quer retornar.
Temos, deste modo, quatro conceitos operativos para análise político-sociológica – Liberalismo Progressista, Liberalismo, Conservadorismo e Conservadorismo reacionário – bem mais úteis, aqui se defende, do que os simplistas “esquerda” e “direita”..
LICÍNIA QUITÉRIO CARTA DE LAURA A LAURO
Aí por onde andas agora, duma coisa tenho a certeza, nunca de mim dirás a “minha mulher”, ou a “minha” companheira, ou a “minha” seja o que for. O meu nome dirás, ou o nome que me deste e que é meu também, precedido do artigo bem definido “a”. Nunca fui tua nem tu és meu. Somos assim, dois, não os mesmos, bem diferentes, a cada um a sua virtude, a cada um o seu defeito, a cada um o seu gostar, o seu fazer. De tão desiguais que somos se faz uma peça única, na alegria e na tristeza, na celebração dos ritos, no não dito desencanto. Não decoraste a cor dos meus olhos, nem dos meus cabelos, mas sabes de cor a minha voz e eu a tua, cada uma com seu timbre, único, intransmissível, todavia conjugáveis. Se tivesses um duplo, um duplicado, um outro igualzinho ao que de ti sei, e ele cruzasse o meu caminho, talvez eu me perdesse e na próxima carta te dissesse, de certo modo já voltaste, de certo modo não te foste embora. Sei que, se isso pudesse acontecer, dirias, tu é que sabes, ainda que a tua mão tremesse e acendesses mais um cigarro, havendo outro a arder no cinzeiro. Não, por agora é por ti que espero, imperfeito e original, de liberdade feito, impaciente nos dias, meditativo nas noites, afirmando não saber de poesia, que isso é comigo, a indicar-me o caminho sem nunca o dizeres, a preparar a viagem sem nunca dela falares. Lembrei-me hoje de te falar disto, da diferença que fizemos, que fazemos, porque encontrei aquele amigo que era teu e passou a ser meu também, o A., e referiu a noite da passagem de ano em que eu bebi demais e desatei a falar sem parar. Foi o serão em que eu declarava, disse o A., para que todos soubessem, numa repetição inflamada, “com ele eu sou eu, com ele eu sou eu, com ele…” e tu olhavas-me, sorrias e abanavas a cabeça, numa fingida censura ao meu entusiasmo, à minha exuberância desusada. Confesso que me senti um pouco envergonhada com a lembrança que o A. me trouxe, tantos anos depois, de que já não me recordava e que agora aqui te trago, nem sei bem porquê, ou sei, mas não te vou dizer hoje. Tu adivinharás, sempre adivinhas.
Laura