CONVERSAS COM O FÍGADO
CONHECER, PREVENIR E CUIDAR
José VelosaEdição E distribuição
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ISBN edição impressa: 978 989 752 839 2
1.ª edição impressa: outubro 2022
Paginação: Tipografia Lousanense, Lda. – Lousã Impressão e acabamento: Tipografia Lousanense, Lda. – Lousã Dep. Legal: 506439/22
Imagem da capa e das cortinas: José Manuel Reis
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Edições Técnicas, Lda.
ÍNDICE
AUTOR
INTRODUÇÃO
PARTE I O DOENTE, OU A ROTINA HOSPITALAR
O fígado 3
A origem do fígado 4
Origem histórica do termo hepático 6
O fígado e os humores 6
O que faz o fígado 8
No mundo dos órgãos, quem governa quem?
10
O fígado e as artes 11
Mitos e crenças sobre o fígado 41
A hepatologia popular 50
A gíria da doença hepática 76
O fígado como alimento 79
A nutrição e o fígado 92
Dieta e nutrição nas doenças hepáticas crónicas 115
Existem alimentos nocivos para o fígado? 145
Os especialistas do fígado
148
Quem está em risco de adquirir uma doença hepática? 155
PARTE II A DOENÇA, OU COMO LIDAR COM ELA
169
Como sei se o meu fígado está saudável? 171
Sintomas e sinais que podem indicar a presença de uma doença do fígado 174
Alteração das análises do fígado
199
As análises gerais como indicativo de doença hepática 212
O que significa ter cirrose?
215
A minha doença hepática está relacionada com a minha profissão? 221
O relógio circadiano e a doença hepática 225
Será que o meu filho vai herdar a minha doença do fígado? 234
As doenças do figado afetam a atividade sexual? 250
Quando devo escolher um especialista do fígado? 253
A perspicácia clínica e a descoberta das doenças hepáticas 257
Lidel
PARTE III O TRATAMENTO E O PROGNÓSTICO, OU O TEMPO DA ESPERANÇA 265
Como posso evitar uma doença do fígado? 267
O rosto é o espelho do fígado?
269
O estado psicológico pode influir na doença hepática? 278
A presença de gordura no fígado é sinónimo de consumo alcoólico? 288
As hepatites víricas crónicas têm risco para a saúde? 290
A eliminação da hepatite vírica 295
O tratamento antivírico cura a hepatite C? 299
É possível eliminar a hepatite C? 301
Tenho cirrose: posso tomar qualquer medicamento? 303
O que posso esperar das terapêuticas alternativas? 310
Tenho cirrose: posso ser vacinado?
317
As vacinas contra os vírus da hepatite vírica 321
A cirrose é irreversível? 322
Como evitar as complicações da cirrose? 323
Tenho cirrose. Quanto tempo me resta de vida? 329
Os idosos têm risco aumentado de doença hepática? 333
GLOSSÁRIO 339
ENCONTRE NESTE LIVRO 347
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AUTOR
José Velosa nasceu na ilha de Porto Santo, Madeira, em 1948. É médico especializado em Gastrenterologia e Hepatologia e professor catedrático jubilado da Facul dade de Medicina da Universidade de Lisboa. Desempe nhou vários cargos associativos, entre os quais presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, coordena dor da Comissão Técnica da subespecialidade de Hepatologia da Ordem dos Médicos e vice-presidente da Associação Portuguesa para o Estudo do Fígado (APEF). Participou, integrado no grupo de Santa Maria, na fun dação dos alicerces da Hepatologia em Portugal com a primeira consulta externa e a primeira Unidade de Hepatologia, sediadas no Hospital de Santa Maria. Foi o ponto de partida para o reconhecimento e divulgação desta importante área da Medicina. Desenvolveu, enquanto docente e investigador, intensa atividade científica centrada sobretudo nas doenças do fígado, em particular nas hepatites víricas e na oncologia hepática. É autor de numerosos traba lhos científicos, tendo colaborado na publicação de livros relacionados com a sua especialidade. Como corolário desta atividade foi distingui do em 1955 com o prémio Nacional de Gastrenterologia da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia. Foi, durante quatro anos, editor do Jornal Português de Gastrenterologia. Recentemente publicou o livro Hepatologia Clínica, pela Lidel. É presidente da Associação para a Inves tigação e Desenvolvimento da Faculdade de Medicina (AIDFM) e exerce atividade clínica no Hospital Lusíadas Lisboa.
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INTRODUÇÃO
O doente é a razão de ser da Medicina: identificar a causa do seu sofrimento e aliviar as suas moléstias é a finalidade do médico. Um doente sentado ou deitado perante um clínico é, indubitavelmente, um ser vulnerável, pela doença e pelo desconhecido, em que o destino não está mais nas suas mãos; o Homem doente perde o domínio do seu corpo, deixa de ser senhor de si próprio, e entrega a sua Vida a um seu semelhante – haverá maior responsabilidade do que esta? Eis o escopo desta despretensiosa obra: desmistificar, explicar, informar – um contributo para a literacia médica! Uma devolução do saber à sociedade e aos pacientes!
Este livro trata-se de uma alegoria clínica sobre uma doença hepática, em que respondo às dúvidas e questões, expressas ou formuladas, por doentes e familiares, falando do órgão alvo da doença, da sua história e das histórias à volta das suas maleitas, porque o fígado tem um passado, um presente e seguramente terá um futuro. Se a vida está em jogo, o tempo urge, é preciso ser sintético, mas não obtuso, de preferência preclaro e cristalino. Deixei, tanto quanto possível, de parte o jargão médico e cingi me aos factos, como que no papel de confidente de um doente, amiúde ansioso, tendo a compreensão como objetivo do discurso.
O discurso redundante é relativamente comum e intencional neste livro, precisamente porque existe a preocupação em explicar e contextualizar. O glossário, no fim do livro, concorre para o mesmo objetivo. Não é, evidentemente, um livro científico, nenhum manual, nem um ensaio; tão pouco uma obra de ficção, um romance, e muito menos uma biografia. Possivelmente, a crónica de um órgão! É um livro que conta uma história, uma história real, comum porque frequente, que explica, mas que simultaneamente interpela os leitores e que convoca a curiosidade de doentes e familiares. Um livro que contém breves narrativas heroicas,
curtas histórias de exaltação da ciência e de mentes alumbradas que se distinguiram no combate à doença.
Gostaria de reproduzir uma consulta, isto é, uma conversa entre dois (ou mais) interlocutores em que, além da conversa médico-doente, incidindo em questões e dúvidas sobre a doença, ocorreria conversa coloquial, trivial, sem uma sequência pré-definida, que não é raro acontecer num consultório. Com os doentes não se aprende só medicina, também se aprende muitas outras coisas… Além do mais, a “conversa” teria um propósito científico, embora tão explícita e objetiva que não afaste o leitor menos erudito; as questões abordadas seriam pertinentes e atuais – imbuídas de preocupações pedagógicas, ou seja, um contributo para literacia em saúde.
Não é um livro puramente científico, organizado em capítulos estanques e repleto de termos médicos; também não é um livro temático, que corria o risco de se tornar árido e enfadonho; nem tão-pouco um banal livro de pergunta-resposta. O género que eu pretendia era: uma conversa com o fígado. Mas como? Como dar a palavra aos doentes? Resolvi contar uma história. Uma história clínica de um doente real. Este livro é, deste modo, uma grande história, que aconteceu num hospital, mas que poderia ter ocorrido num consultório. Pelo meio existem muitas outras pequenas histórias, também reais. Um livro que cumpre um dever e uma promessa (não explícita) aos doentes, concretiza um “contrato” tácito com os doentes, seus familiares e o público em geral – uma espécie de manual que lhes permita aceder a um conhecimento mais profundo sobre o fígado e obter respostas a questões que gostariam de ter formulado, mas que, por uma razão ou por outra, não tiveram oportunidade de as enunciar.
Pretendo que seja um complemento explicativo às dúvidas e aflições que o doente traz do consultório, ajudá-lo a conviver com o seu fígado doente, dar-lhe a conhecer a história, as lendas e os mitos que ao logo dos séculos o fígado foi suscitando e o seu papel como inspirador das artes. Como não tenho formação nem, tão-pouco, pretensões a escriba, e sendo o
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meu conhecimento das técnicas narrativas leve e fruto do empirismo e das leituras, não disponho, portanto, de um esteio que me servisse de amparo. Encontrava-me numa encruzilhada! Portanto, quando comecei a escrever faltava-me atar as pontas da longa meada, no que diz respeito à arquitetura da narrativa, não obstante possuir um arremedo de guião e uma clara noção da trajetória que a explanação deveria assumir: complemento da Hepatologia Clínica, sendo que este é um livro eminentemente clínico. Não rejeitando a possibilidade de ser o seu reverso, visto que alguns capítulos versariam a mesma matéria, só que abordadas numa perspetiva diferente: tendo como pano de fundo a resposta aos anseios e incertezas do doente. Ademais, seria a oportunidade para incluir novas temáticas, que não tinham cabimento numa obra de cariz clínico.
Foi necessário proceder a uma pesquisa aturada, já não só de artigos científicos, mas outrossim de livros. E que livros!... Mas assim exigia o fígado, um órgão escolhido pelos Deuses! Diversas fontes foram consultadas, na esperança de encontrar uma descrição, um nome, uma história, uma nota, um sintoma, uma doença, um tratamento, uma morte, uma receita, um poema, um soneto, uma pintura, em que o fígado fosse o protagonista. No imaginário popular, o conceito de fígado não está, felizmente, refém da doença, acolhe outras dimensões, entre as quais se encontra a culinária. Aventurar-me fora da clínica significa sair da minha área de conforto e entrar num terreno relativamente desconhecido, senão repleto pelo menos de alguns escolhos, quantas vezes à procura de “uma agulha num palheiro”. Um imperativo de rigor intransigente, uma recusa da solução mais fácil, fez com que esta obra se afastasse da ficção e se aproximasse do ensaio ou mesmo da crónica, o que obrigou a confirmar, complementar e a corrigir algumas ideias preconcebidas. O compromisso com o rigor e a exigência em não cometer erros científicos, que considerei um ponto de honra, deixou-me, ocasionalmente em assuntos triviais, suspenso numa frase ou num parágrafo durante horas, quando não dias, enquanto procurava a fundamentação; sim, porque a comprovação podia implicar a leitura de um livro!
Sabendo que Portugal é pródigo em médicos que são ou foram talentosos e consagrados escritores, averiguei, sobretudo através dos títulos, extratos e recensões críticas nas obras de diversos autores, todos médicos, e ainda noutros que não professavam a arte de Esculápio, uma abordagem “portuguesa” da doença hepática.
Pude concluir que a literatura portuguesa e, por arrasto, os escritores portugueses não têm dado mostras de grande interesse em abordar especificamente a doença. Pontualmente, a doença aflorou num ensaio ou num diário, amiudadamente como problemas pessoais – a velhice, a depressão –, mas só esporadicamente a doença surge como o fio condutor da narrativa. O silêncio sobre a doença hepática não deixa de ser estranho, especialmente num país em que o consumo de álcool e a doença hepática alcoólica atinge proporções assustadoras, originando problemas familiares e sociais graves: ciúme, violência doméstica, divórcio, absentismo, acidentes de viação, internamentos hospitalares e uma parcela importante de óbitos. A cirrose hepática é a nona causa de morte em Portugal. A doença hepática alcoólica é mais uma extensão deste problema!
O que sobressai dos relatos que encontramos na literatura, tratando-se de ficção ou realidade, é a dificuldade que a maioria dos médicos revela em dialogar com os doentes e familiares, menosprezando a desejável empatia e a necessária confiança: substituem a linguagem comum por indecifrável jargão médico, debitam catadupas de análises e outros exames, justificam com confusas estatísticas, e não se coíbem, pelo meio, de enaltecer as suas qualidades e méritos e exemplificar com outros casos. A relação entre o médico e o doente é um encontro singular, que vai muito para além de um mero encontro entre duas personalidades: um ser humano “por acaso doente” e um técnico. Uma relação proveitosa implica confiança, empatia, esperança e compaixão. A confiança, ou a capacidade de conquistar a adesão do doente para as orientações prescritas e a certeza de que estas são entendidas como adequadas e seguras, começa logo na escolha do médico e na crença de que aquele clínico é o mais adequado para tratar o seu caso.
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A confiança consubstancia-se na entrevista clínica; constrói-se na relação interpessoal, na transparência e na liberdade de opiniões. A confiança do doente é uma variável multidimensional, incluindo um componente afetivo, de tranquilidade em relação ao médico e às suas intenções, de consumação de expectativas que estiveram na base de uma escolha e no cotejo com informações e opiniões alheias. Aspetos tão comezinhos como a pontualidade, confidencialidade, atitude profissional, atenção e disponibilidade para ouvir com interesse o que o doente quer dizer (alguns doentes começam por dizer que vão começar do princípio…), sem constrangimento com a duração da consulta, trato respeitoso e realização de exame objetivo, são aspetos que o doente valoriza e que transmitem confiança.
A falta de confiança manifesta-se na omissão ou na sonegação de informação, no incumprimento das recomendações e na procura de outro médico – “saltar de médico para médico”. Alguns temas, como por exemplo a sexualidade, alimentação e a automedicação são amiúde omitidos intencionalmente se não existir confiança entre médico e doente. A ocultação dos hábitos alcoólicos é muito frequente, principalmente por parte das mulheres, exigindo delicadeza na abordagem e a renúncia às tentativas de culpabilização. Estou convencido de que o sucesso no tratamento das doenças funcionais, tão comuns na Gastrenterologia, beneficia muito da confiança do doente no médico que compreende e valoriza o sofrimento do doente.
A empatia, termo derivado do grego empatheia, que significa apreciação dos sentimentos de outrem, é uma qualidade cognitiva-emotiva, uma capacidade de compreender o estado de espírito de outra pessoa como se fosse seu; isto é, não se trata de partilhar os problemas do doente, o que é mais afim da simpatia. É antes uma capacidade de estabelecer com o doente uma relação de compreensão, valorando as suas queixas, preocupações e perspetivas; ou seja, “pôr-se na pele do doente”. Passa muito pela adoção de uma atitude humilde, sem ser subserviente, e comunicativa (já não
me lembro a quem pertence o seguinte aforismo: deixe o doente falar porque ele lhe dirá o diagnóstico), tendo o cuidado de não infantilizar o doente, usando diminutivos. Seguramente, não contribui para criar um estado de empatia, uma linguagem inadequada, denunciando desinteresse, arrogância, exibicionismo e vaidade; sem, contudo, cair numa posição contrária, pois “não há nada mais insuportável do que pessoas que se vangloriam da sua humildade”, escreve Marco Aurélio. Mas uma comunicação clara, cortês e calorosa contribuirá certamente para distender o ambiente, mesmo que seja preciso interromper “relatos de acontecimentos irrelevantes, descritos em mínimos detalhes”; ou intervir, com tato, numa disputa entre marido e mulher pela descrição das queixas do marido doente (“tu não sabes… não é assim senhor doutor”, intervém a esposa; “pronto… conta lá tu”, acede logo o marido, que permanece calado o resto da consulta, ou, então, reage com acrimónia: “o doente sou eu… eu é que sei… eu é que sinto”). Tão-pouco será bem visto pelo doente o descrédito de colegas, a troca de informação clínica e a recusa em transmitir o resultado de exames. A relação empática exige cumplicidade: seremos tanto mais empáticos quanto mais cúmplices formos com o sofrimento do doente, quão sensíveis formos aos problemas do doente, sentindo-os como se fossem nossos. O sorriso que expressa a compaixão ou a tristeza que revela a pena criam um ambiente de intimidade propício à abertura. Ao sorrir, o médico torna-se humano – o riso humaniza, não fosse o homem o único animal que tem a capacidade de rir! –, mediante o riso sóbrio, o médico perde a rigidez, e torna-se mais elástico, ou seja, torna-se mais acessível. Se bem que a compreensão empática implique a necessidade de o médico “se colocar na pele do doente”, isso não significa, nem tão-pouco deve significar, intromissão nos problemas do doente; é de todo conveniente conservar um certo distanciamento, que preserve a objetividade da intervenção médica.
Para que serve, então, a empatia? Alguns médicos dirão que não serve para nada…. Outros dirão que faz toda a diferença: a empatia ajuda a
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colher histórias clínicas mais completas e, portanto, acrescenta eficácia ao diagnóstico; aumenta a eficácia terapêutica ao reduzir a ansiedade, sobretudo em doentes nos quais a ansiedade é um importante componente das queixas (alguns doentes exclamam no fim da consulta: “Oh, doutor, gostei muito de falar consigo, já me sinto melhor!); melhora a adesão ao tratamento e, por acréscimo, os outcomes. Julgo ser pertinente mencionar que nem sempre o médico busca a sintonia emocional, podendo inclusive expressar emoções negativas, especialmente quando há tensão entre o médico e o doente. Esta situação ocorre particularmente com médicos muito ocupados e sobrecarregados de trabalho; não sendo de excluir nestes casos situações de burnout. Será que o diagnóstico interessa assim tanto ao doente? Acho que não! O presente e o futuro estão latentes na inevitável pergunta: “É grave?” Quase tudo está contido nestas simples perguntas: “Que doença tenho?”, “Que tempo de vida me resta?”, “Tem tratamento?” Para o doente, ao contrário do médico, o diagnóstico é secundário: o seu interesse está em saber se o seu problema clínico tem solução. A esperança numa cura ou no alívio dos sintomas é ansiosamente procurada pelo doente – recusá-la pela fidelidade aos dogmas hipocráticos, privilegiando o rigor científico, é desumanizar a Medicina, destruir a esperança e fomentar o desespero; o que pode ter efeitos devastadores no doente e na progressão da doença. Guardo na memória o repúdio, grafado na forma de um artigo de opinião, de um colega do meu departamento hospitalar, revoltado com a insensibilidade e a falta de compaixão dos médicos ingleses que, fazendo uso da sua tradicional frieza, renegaram a “mentira piedosa” e revelaram desabridamente a incurabilidade da sua doença oncológica, sem ao menos endossarem uma palavra de esperança – pois de esperança tratava o artigo.
A esperança terá de ser alicerçada numa base de verdade, de partilha da informação que deve ser transmitida ao doente com sensibilidade e sensatez. Julgo que o doente deve saber aquilo que quer conhecer e na medida da sua capacidade de compreensão, especialmente no que diz respeito ao tratamento.
Voltando à estrutura deste livro, ou à “arquitetura narrativa”, como diria Eugénio Lisboa (porque na realidade a incerteza sobre este aspeto acompanhou, paradoxalmente, a escrita até ao fim), a solução engendrada foi transformar o livro numa grande história clínica. Sim, uma prosaica anamnese! – a história natural de uma doença: “Não vês como o ano se desenrola em quatro fases no seu percurso, à imitação da nossa própria vida?” (Ovídio – canto XV). Com longos interregnos, que representam as dúvidas, as questões e as explicações devidas ao doente e aos seus familiares.
Este livro não se destina, portanto, a descrever doenças propriamente ditas. Pretende, primordialmente, abordar e compreender o que circunda a doença, nomeadamente as circunstâncias, as dúvidas e anseios dos doentes, de seus familiares e trazer para primeiro plano os protagonistas. Numa palavra: responder ao muito que, por uma razão ou por outra, ficou por perguntar! Os achaques e o sofrimento que cerca as peçonhas do fígado, tudo o que de malsão acompanha as enfermidades hepáticas. Aborda, sobretudo, a relação das doenças do fígado com os doentes, familiares e a comunidade. É, portanto, sobre o indivíduo que sofre do fígado e que vive a incerteza da doença, sobre um órgão que tem história, uma história que se funde com a memória e os mitos da Humanidade e que continua a habitar o imaginário popular.
PARTE I
O doente, ou a rotina hospitalar
Mais um dia igual aos outros. Oito horas da manhã. Os cumprimentos habituais, os olhares inquisidores de sempre: receios e dúvidas que a noite gera. Esperanças que um novo dia traz! A boa notícia que se deseja ouvir sobre os que já cá estão e as incertezas que trazem os que entraram. Isto é, as tribula ções que a noite propicia. Restabelecer as rotinas. Implementar os cuidados imediatos. Conhecer os doentes admitidos.
O estímulo do caso novo: uma promessa de novos desafios! O diagnóstico continua a ser a parte mais estimulante do ato médico! Este primeiro “contacto” com o novo doente tem muito de administrativo; mas não só… inclui também a informação sobre o seu estado clínico e as medidas a tomar no imediato.
Apenas um doente. Homem. Relativamente novo. Cirrose descompensada, primeiro internamento. Para os médicos mais jovens, o seu nome não despertou qualquer recordação, mas para os mais velhos, a interrogação foi imediata: Será quem o nome sugere? Uma figura conhecida do futebol? Vamos lá ver! Estava acamado na enfermaria de Hepatologia: primeira cama à direita, ou na última, se fosse seguida a numeração das camas. Calmo, olhar ausente, sem a angústia do primeiro internamento nem a placidez dos reinternados. Recostado contra o es paldar da cama, circunspecto, meditabundo, relanceava os olhos pela sala, alheio à azáfama das colheitas e das abluções. A posição em campo e as intermitências do jogo habituaram-no a ser um observador – do jogo e da multidão. Aqui estava fora do seu elemento, fora do seu habitat. Na expectativa. Sentia a falta do clamor da mole humana, aplaudindo ou verberando? Aqui, o jogo era outro – o jogo da vida! O cenário era desolador – os companheiros de infortúnio exibiam no corpo e na alma as vicissitudes do seu fígado doente. O ambiente era soturno. Esta é uma história do fígado. Igual a tantas outras! Como pode começar, como se pode revelar uma doença hepática crónica: um doente assintomá tico, considerando‑se saudável, que, subitamente, nota que algo está errado no seu organismo. Ninguém pensa nos órgãos internos até eles darem sinal! A doença, qualquer doença, tem uma vida própria, uma narrativa. Rara mente se sabe quando começa, mas sabe‑se como acaba! Uma coisa é certa: como diria Mariana, no meio de tanta gente estamos sós! “Todos estamos sozinhos”! (Tanta Gente, Mariana)
Que órgão é este que, silenciosa e sub-repticiamente, se deixa atacar? Que nos ataca!
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O FÍGADO
O fígado, o órgão mais volumoso do organismo humano (e de todos os vertebrados), pesando, em média, 1,5 kg, está localizado na parte superior do abdómen, no lado direito. Formado por dois lobos, correspondendo o lobo direito a dois terços do volume do fígado; o pequeno lobo esquerdo pode ser palpável na zona do epigastro, isto é, na região abdominal em for ma de triângulo que se situa acima do umbigo, entre as costelas e a extre midade do esterno. Um dos avanços mais significativos no conhecimento da anatomia do fígado deve‑se a Claude Couinaud, cirurgião e anatomista francês, que descreveu a segmentação do fígado. Este conhecimento re volucionou a cirurgia do fígado, permitindo a hepatectomia: ressecção de um ou mais segmentos do fígado. A vesícula encontra‑se na face inferior do fígado, junto ao bordo anterior, logo debaixo da última costela direita. O conhecimento destas localizações é fundamental para a interpretação da dor com origem na vesícula e para se perceber a importância que os médicos atribuem à palpação do abdómen na procura do bordo fígado –um bordo cortante significa que o fígado é cirrótico. Embora o fígado seja o órgão mais volumoso do corpo humano, a sua importância não deriva do tamanho, mas das funções que lhe estão atri buídas – a realização de quase todas as funções metabólicas do organis mo: síntese das proteínas, incluindo a albumina e os fatores da coagulação; produção e excreção dos sais biliares e da bilirrubina; armazenamento da glicose, o carboidrato energético, vitaminas e oligoelementos, incluindo ferro, cobre, zinco, etc.; destoxificação dos produtos nocivos; proteção contra os agentes invasores, pela presença de uma vasta rede de células imunitárias residentes. O fígado é o único órgão interno com capacida de regenerativa. Normalmente, as células hepáticas não se multiplicam, mas perante uma agressão, seccionamento ou ressecção, entram em mul tiplicação e restauram o órgão nas suas formas e funções. Esta capacida de regeneradora, aliada à estrutura hepática em lobos e segmentos, é o que permite a cirurgia de ressecção hepática e, em certos casos, algumas modalidades de transplante.