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i.2. Caixa de ferramentas: para pensar os direitos humanos
from “Pra matar preconceito eu renasci”: O samba como uma ferramenta de emancipação em Direitos Humanos.
Nosso compromisso, na qualidade de pessoas que refletem sobre — e se comprometem com — os direitos humanos, reside em “colocar frases” às práticas sociais de indivíduos e grupos que lutam cotidianamente para que esses “fatos” que ocorrem nos contextos concretos e materiais em que vivemos possam ser transformados em outros mais justos, equilibrados e igualitários. Por isso, a verdade é posta por aqueles que lutam pelos direitos. A nós compete o papel de colocar as frases. E esse é o único modo de ir complementando a teoria com a prática e com as dinâmicas sociais: chave do critério de verdade de toda reflexão intelectual (HERRERA FLORES, 2009, p. 25).
Num contexto de mundo de neoliberalismo global, em que o Brasil tem sentido nos últimos anos uma maior pressão do mercado com a recessão econômica, o impeachment midiatizado da primeira mulher eleita presidenta e a eleição de um governo com pauta ultraconservadora e ultraliberal, falar sobre direitos humanos olhando os agentes das lutas sociais e os processos culturais exige esse posicionamento político compromissado com o respeito às diversidades e a luta pela igualdade.
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i.2 Caixa de ferramentas: para pensar os direitos humanos
A investigação que pretendo fazer nesse trabalho, de verificação do samba como ferramenta de emancipação em direitos humanos, só é possível desde que se entenda direitos humanos como os processos de luta que buscam os meios necessários para uma vida digna, como ensina Herrera Flores:
Os direitos humanos, mais que direitos “propriamente ditos”, são processos; ou seja, o resultado sempre provisório das lutas que os seres humanos colocam em prática para ter acesso aos bens necessários para a vida. Como vimos, os direitos humanos não devem confundir-se com os direitos positivados no âmbito nacional ou internacional. Uma constituição ou um tratado internacional não criam direitos humanos. Admitir que o direito cria direito significa cair na falácia do positivismo mais retrógrado que não sai de seu próprio círculo vicioso. Daí que, para nós, o problema não é de como um direito se transforma em direito humano, mas sim como um “direito humano” consegue se transformar em direito, ou seja, como consegue obter a garantia jurídica para sua melhor implantação e efetividade. Os direitos humanos são uma convenção cultural que utilizamos para introduzir uma tensão entre os direitos reconhecidos e as práticas sociais que buscam tanto seu reconhecimento positivado como outra forma de reconhecimento ou outro procedimento que garanta algo que é, ao mesmo tempo, exterior e interior a tais normas (HERRERA FLORES, 2009, p. 28, grifo no original).
Direitos humanos são um produto da reação cultural frente aos processos de luta pela dignidade humana. Dignidade humana aqui significa os bens materiais necessários para uma vida digna, quais sejam, “expressão, convicção religiosa, educação, moradia, trabalho, meio ambiente, cidadania, alimentação sadia, tempo para o lazer e formação, patrimônio histórico-
artístico, etc.” (HERRERA FLORES, 2009, p. 28). Em outras palavras:
Falar de dignidade humana não implica fazê-lo a partir de um conceito ideal ou abstrato. A dignidade é um fim material. Trata-se de um objetivo que se concretiza no acesso igualitário e generalizado aos bens que fazem com que a vida seja “digna” de ser vivida (HERRERA FLORES, 2009, p. 31).
Pensar a dignidade humana a partir da materialidade é urgente em um país em que a desigualdade social sempre foi marcante, apesar das políticas públicas de redistribuição de renda das duas primeiras décadas do século XXI. Faz-se necessário também pensar o conceito de cultura, ainda que ele também venha a ser melhor trabalhado no segundo capítulo, e que seja um termo difícil de se conceitua. Quero propor, porém, nesse trabalho, pensar a cultura como um ponto de partida, que não é estática, mas se modifica conforme mudam os tempos, e que guia a maneira como agimos no mundo. Por isso, como afirma Herrera Flores, “(…) mais que de culturas, preferimos falar de processos culturais a partir dos quais vamos nos instalando no mundo que recebemos ao nascer com o qual necessariamente nos encontramos ao crescer e nos desenvolvermos como seres humanos (HERRERA FLORES, 2005b, p. 64)”4 . Desse modo, processos culturais seriam, então:
(…) os processos de reação frente ao conjunto de relações sociais, psíquicas e naturais em que nos movemos; processos, enfim, que nos condicionam, mas, ao mesmo tempo, podem ser condicionados por nós mesmo em função da capacidade humana genérica para nos transformarmos e transformarmos os entornos em que nos desenvolvemos, seja essa transformação usada para o bem ou para o mal (HERRERA FLORES, 2005b, p. 64-65)5 .
A cultura, ou melhor, os processos culturais, podem ser entendido como metodologias de ação social, isto é, como maneiras de acessar a realidade. Essas maneiras podem incluir ou não diversas formas de compreender e ser no mundo, podem regular ou não a realidade, podem se apresentar como neutras e objetivas ou podem afirmar uma posição política. Uma metodologia de ação social que seja emancipadora, contudo, certamente nos colocará em
4 Tradução livre. No original: “(...) más que de “culturas”, preferimos hablar de procesos culturales a partir de los cuales nos vamos instalando em el mundo que recibimos al nacer y con el que necesariamente nos topamos al crecer y desarrollarnos como seres humanos”. 5 Tradução livre. No original: “(…) procesos de reacción frente al conjunto de relaciones sociales, psíquicas y naturales en las que nos movemos; procesos, en fin, que nos condicionan, pero que, al mismo tiempo, pueden ser condicionados por nosotros em función de la capacidad humana genérica para transformarnos a nosotros mismos y a los entornos en que nos desarrollamos, sea esta transformación –tal y como estamos repitiendo en estos párrafos- usada para bien o para mal”.
contato com a história, exigirá atenção ao contexto social, a superação dos dogmatismos e a construção de possibilidades de crítica ao conjunto de interpretações dominantes (HERRERA FLORES, 2005b, p. 94-95). O feminismo, por exemplo, pode ser entendido como um processo cultural, uma metodologia de ação social, e será debatido com mais profundidade no terceiro capítulo. Conforme bell hooks, “feminismo é um movimento para acabar com sexismo, exploração sexista e opressão” (hooks, 2018, p. 17). Entendo o feminismo como a luta pela igualdade e respeito às diferenças, contra o patriarcalismo – patriarcalismo, e não patriarcado, por entender o patriarcalismo como “base e sustento de topo tipo de dominação autoritária e totalitária” (HERRERA FLORES, 2005a, p. 29), ou seja, que se relaciona com todas as formas de opressão e dominação das relações sociais capitalistas. O conceito de patriarcalismo, então:
(...) tem mais a ver com o conjunto de relações que articulam um conjunto indiferenciado de opressões: sexo, raça, gênero, etnia e classe social, e o modo em que as relações sociais particulares combinam uma dimensão pública de poder, exploração ou status com uma dimensão de servilismo pessoal (HERRERA FLORES, 2005a, p. 29, grifo no original – nota de rodapé 12)6 .
Assim, como o feminismo, a branquitude também é um processo cultural, mas diferentemente, um processo cultural regulador, e é sobre o viés da imposição da branquitude que se dará esse trabalho. Nesse sentido, é necessário apresentar o racismo como um problema branco, já que o conceito de raça foi criado como ferramenta de subjugação dos não-brancos pelos brancos. O racismo surge como a consequência da necessidade de uma justificativa para a captura, venda e exploração de pessoas não-brancas que sustentou o sistema escravocrata por mais de três séculos – e continua até hoje, através do encarceramento em massa da população negra, do extermínio da juventude negra nas favelas, da menor remuneração das mulheres negras. Isto é, o racismo continua estruturando a sociedade sob outras máscaras, desde outras justificativas, mas segue presente – mesmo que hoje a luta do movimento negro tenha consolidado políticas públicas importantíssimas para mulheres e homens negros, e.g., a política de cotas nas universidades públicas. Ao racismo e à imposição da branquitude, o processo cultural que envolve o samba, de diversas formas, buscou de opor. O samba é arte e como arte “(...) funciona como uma das
6 Tradução livre. No original: “(...) tiene más que ver con el conjunto de relaciones que articulan un conjunto indiferenciado de opressiones: sexo, razam género, etnia y clase social, y el modo en que las relaciones sociales particulares combinan una dimensión pública de poder, explotación o estatus con una dimensión de servilismo personal”.