9 minute read

1.2.1. Uma análise de discurso feminista

pretendo agora fazer a análise de discurso das letras de músicas do álbum ÉPreta escrita por mulheres, ou em parceria com elas, verificando qual a compreensão de direitos humanos nessas letras, e questionando se esse samba pode ser uma ferramenta de emancipação em direitos humanos.

A análise de discurso é um método muito utilizado na área de estudos linguísticos e pouco conhecido no Direito. Somos acostumados a fazer análise de leis e jurisprudências, mas ignoramos o fato de esses também serem “discursos” – jurídicos – e, portanto, estão submetidos à historicidade, sugestionados idologicamente, possuem um sentido e são influenciados pelos sujeitos que os discursam16. Contudo, não é o discurso jurídico em si o objeto de análise desse tópico. Levando em consideração o debate sobre direitos humanos proposto no ponto anterior, entendo que os direitos vêm depois das lutas sociais pelos bens materiais e imateriais necessários para um vida digna. É nesse momento – anterior às leis e processos judiciais, nos processos culturais de luta por direitos humanos – que a análise de discurso será feita nesse trabalho. Buscando verificar se o samba, a partir das letras de músicas compostas por mulheres no disco ÉPreta, pode ser uma ferramenta de emancipação em direitos humanos, primeiro, precisamos analisar o que esses sambas falam, qual a linguagem empregada, ou melhor, cantada por essas mulheres, quem são essas mulheres, e como história e ideologia ajudam a dar sentido ao que elas falam.

Advertisement

1.2.1. Uma análise de discurso feminista

A Análise de Discurso é uma teoria17 com mais de 57 variedades (GILL, 2002, p. 245). Todas defendem que a linguagem presente no discurso não é considerada uma maneira neutra de refletir ou descrever o mundo, isto é, “o que estas perspectivas partilham e uma

16 Por óbvio que o princípio da imparcialidade deveria garantir a atuação isenta dos agente do Estado, visto que o representam. Contudo, temos visto cada vez mais o envolvimento do Poder Judiciário na política, o que nos impulsiona a questionar para quê e para quem se têm feito Direito. Pachukanis entende que “(...) uma parte significativa das construções jurídicas possui, na verdade, caráter frágil e condicional” (2017, p. 77) porque baseadas em abstrações derivadas das ideias de mercadoria e valor, e afirma que “só a sociedade burguesa capitalista cria todas as condições necessárias para que o momento jurídico alcance plena determinação nas relações sociais (2017, p. 75). Ou seja, enquanto a metodologia de ação social for o capitalismo, difícil imaginar de que outra maneira atuarão os juristas brasileiros [não em favor do capitalismo], visto que têm, cada vez mais, corrompido a própria Constituição a fim de manter os lucros do mercado.

17 A Análise de Discurso não é metodologia, mas sim uma teoria de bases discursivas, uma disciplina de muitas variantes. Irei me debruçar sobre a de linha francesa que compreende o discurso como efeito de sentido, isto é, que o sentido não está “grudado” às palavras, mas que ele está envolvido por condições de produção que são sociais, políticas e históricas. Seria impossível uma análise discursiva sem tomar essas condições em conta.

rejeição da noção realista de que a linguagem é simplesmente um meio neutro de refletir, ou descrever o mundo, e uma convicção da importância central do discurso na construção da vida social” (GILL, 2002, p. 244). Compreende-se que toda linguagem está inserida num discurso ideológico, contextualizado historicamente. Desse modo:

Para a análise de discurso a qual nos filiamos é a figura da interpelação ideológica que nos permite entender os processos de identificação que constituem o sujeito do discurso, a partir de sua inscrição no simbólico e na história. Processos de identificação que se caracterizam como um movimento contraditório de reconhecimento/desconhecimento do sujeito em relação às determinações do inconsciente e da ideologia que o constituem, materializadas nos processos discursivos (ZOPPI-FONTANA, 2017, p. 02, grifos no original).

Monica Graciela Zoppi-Fontana filia-se à Análise do Discurso de tradição francesa que faz uso dos conceitos de sujeito, história, ideologia, sentido e o próprio discurso, e suas inter-relações, na análise da linguagem. Explica brevemente Maria Cristina Leandro Ferreira:

A Análise do Discurso de tradição francesa (AD) apresenta, como é sabido, um quadro teórico-conceitual constituído de categorias que circulam livremente em outros aparatos teóricos. Isto se deve às particularidades da formação de seu campo epistemológico que abrange a linguística, a teoria do discurso propriamente e o materialismo histórico, cada uma dessas regiões com seus termos-chaves correspondentes (PÊCHEUS e FUCHS, 1975, p.8). Daí decorrem, por exemplo, num primeiro momento, os conceitos de língua (crucial na linguística), discurso (objeto da teoria do discurso) e história (relacionado ao materialismo histórico). Se considerarmos ainda que, segundo autores, as três regiões estão articuladas/atravessas por uma teoria da subjetividade de natureza psicanalítica, iremos agregar o conceito de sujeito. Ficam faltando, a rigor, dos conceitos a serem incorporados, o de ideologia, inseparável de uma teoria materialista, e o de sentido, já que estamos tratando de uma teoria do discurso, ou ainda, de uma teoria materialista dos sentidos (FERREIRA, 2003, p. 189).

Contudo, Zoppi-Fontana trabalha também com o “modo de inscrição das identificações de gênero no processo de constituição discursiva do sujeito” (ZOPPIFONTANA, 2017, p. 02), compreensão que nos é útil para ajudar a entender o lugar de fala das mulheres nas letras de músicas que serão analisadas. Para a autora:

Os lugares de enunciação, por presença ou ausência, configuram um modo de dizer (sua circulação, sua legitimidade, sua organização enunciativa) e são diretamente afetados pelos processos históricos de silenciamento. Esses modos de dizer mobilizam as formas discursivas de um eu ou um nós, de cuja representação imaginária a enunciação retira sua legitimidade e força performativa. É a partir desses lugares de enunciação, considerados como uma dimensão das posiçõessujeito e, portanto, do processo de constituição do sujeito do discurso, que se instauram as demandas políticas por reconhecimento e as práticas discursivas de resistência (ZOPPI-FONTANA, 2017, p. 3-4, grifo no original).

Por isso a necessidade da compreensão da interseccionalidade entre raça-classe-gênero para analisarmos o discurso dessas mulheres, já que sua força performativa vêm dos seus lugares de mulheres negras. Ou seja, o sujeito em seus discursos é atravessado pelas categorias raça, gênero e classe, sendo que por conta disso posicionam-se politicamente buscando o reconhecimento dessas identidades e fazendo resistência a partir delas. Essas categorias podem ser compreendidas também como condições de produção nas quais essas mulheres como sujeitos estão inseridas. A partir disso, Zoppi-Fontana propõe “pensar a articulação entre os processos de subjetivação e as formas históricas de enunciação política, para melhor compreender a relação entre o discurso, a prática política e a constituição de novos sujeitos/movimentos sociais” (2017, p. 04). Uma importante ressalva, no entanto, é necessária:

A análise de discurso não procura identificar processos universais e, na verdade, os analistas de discurso criticam a noção de que tais generalizações são possíveis, argumentando que o discurso é sempre circunstancial – construído a partir de recursos interpretativos particulares, e tendo em mira contextos específicos (GILL, 2002, p. 264).

Logo, não há uma intenção de buscar generalizações, ainda mais tendo em conta que cada sujeito fala diante da sua compreensão de mundo, inserido no seu contexto, e que ao analisar o discurso acabo estando envolvida “(...) simultaneamente em analisar o discurso e analisar o contexto interpretativo” (GILL, 2002, p. 249, grifo no original). É preciso destacar que “o termo “discurso” é empregado para se referir a todas as formas de fala e textos, seja quando ocorre naturalmente nas conversações, como quando e apresentado como material de entrevistas, ou textos escritos de todo tipo” (GILL, 2002, p. 247). Portanto, as letras das músicas que serão analisadas são consideradas um discurso. Nesse sentido, a música negra tem um forte papel de discurso de resistência ao fugir dos formalismos e ser uma constante na história cultural de enfrentamento da branquitude. O samba carioca é uma das modalidades dessa resistência ao apagamento das culturas negras e ao controle social imposto pela elite branca, apresentando, através da oralidade, outro modelo possível de conhecimento e de mundo. Nesse sentido:

De todas as formas de arte historicamente associadas à cultura afro-americana, a música atuou como a principal catalisadora no despertar da consciência social da comunidade. (…) se escravas e escravos receberam permissão para cantar enquanto labutavam nos campos e para incorporar a música em seus rituais religiosos, isso se deu porque a escravocracia não conseguiu apreender a função social da música em geral e, em particular, seu papel central em todos os aspectos da vida na sociedade africana ocidental. (DAVIS, 2017, p. 167).

Por conseguinte, destaca Paul Gilroy:

Examinar o lugar da música no mundo do Atlântico negro significa observar a autocompreensão articulada pelos músicos que a têm produzido, o uso simbólico que lhe é dado por outros artistas e escritores negros e as relações sociais que têm produzido e reproduzido a cultura expressiva única, na qual a música constitui um elemento central e mesmo fundamental (GILROY, 2012, p. 161).

Além disso, “desde cantigas, textos míticos, histórias de seres ou animais, acontecimentos importantes ou lendas, tudo explicita o universo cultural negro, sendo instrumentos de comunicação e ensino” (THEODORO, 1996, p. 62-63). Em vista disso, o som, a palavra, são tão importantes nas culturas negras, pois “são elementos mobilizadores que conduzem à ação, que propiciam o axé” (THEODORO, 1996, p. 63). Essa oralidade é um dos elementos que mais se destaca, tanto como resistência, como um novo espaço de formação de conhecimento. A oralidade foge do formalismo, e enfrenta o conhecimento produzido a partir do paradigma moderno de neutralidade, objetividade e cientificidade. Do mesmo modo, “a música se torna vital no momento em que a indeterminação/polifonia linguística e semântica surgem em meio à prolongada batalha entre senhores e escravos” (GILROY, 2012, p. 160), em outras palavras, ela passa a atuar também como uma linguagem. Destaca Nei Lopes:

Na tradição banta e negro-africana em geral, a canção desempenha papel relevante porque o material sonoro com que ela opera tem consequências importantes, tanto no plano cósmico quanto no da atividade cotidiana. O canto, associado ou não à dança, coordena e sustenta os esforços do remador, do caçador, do pastor, de todo aquele que trabalha, enfim. E isso da mesma forma serve para demonstrar a fé do iniciado, os sentimentos de amor e de orgulho pessoal (LOPES, 2008, p. 32).

Esse é o contexto histórico e ideológico onde se posicionam os sujeitos da música negra, de busca por outras maneiras de ser e estar no mundo que não se baseiem no racismo e que usa o canto como linguagem de resistência. Além disso, Gilroy afirma que a arte negra têm como desejo básico “(...) conjurar e instituir os novos modos de amizade, felicidade e solidariedade consequentes com a superação da opressão racial sobre a qual se assentava a modernidade e sua antinomia do progresso racional, ocidental, como barbaridade excessiva” (GILROY, 2012, p. 97). Desse modo:

É precisamente a partir de uma nova virada cultural que outras formas de pensar sobre a arte são propostas, descartando as raízes da criação artística como dominação hegemônica ao longo da história, afastando-nos dessa concepção elitista e patriarcal, e abrindo-nos a novas abordagens que aproximem a arte de sua

This article is from: