4 minute read
INTRODUÇÃO
from “Pra matar preconceito eu renasci”: O samba como uma ferramenta de emancipação em Direitos Humanos.
INTRODUÇÃO
Sou criola/ Neguinha, mulata e muito mais, camará!/ Minha história/ É suada igual dança no ilê/ Ninguém vai me dizer o meu lugar Sou Zezé, sou Leci/ Mercedes Baptista, Ednanci/ Aída, Ciata/ Quelé, Mãe Beata e Aracy Pele preta nessa terra/ É bandeira de guerra porque vi/ Conceição ou Dandara/ Pra matar preconceito eu renasci. [Pra matar preconceito eu renasci, Manu da Cuíca e Raul DiCaprio]
Advertisement
As mulheres negras são as vozes, os corpos e as almas do Brasil. Foram elas que com seus trabalhos construíram nosso país educando novas gerações, mantendo famílias unidas, criando cultura, alimentando corpos e almas. Mesmo assim, dentro de uma lógica capitalista, branca e patriarcal, elas foram invisibilizadas, colocadas à margem na contação da história da produção de bens e saberes. As dores delas foram ignoradas e suas pautas postergadas. Hoje, no Rio de Janeiro, um grupo articulado de mulheres sambistas busca através do samba visibilizar esse protagonismo feminino negro e questionar o patriarcalismo que historicamente as subjuga. Pretendo, assim, analisar neste trabalho esse movimento de mulheres sambistas que vem priorizando uma agenda feminista na produção cultural do samba na cidade do Rio de Janeiro e verificar se esse samba, produzido, composto e cantado por essas mulheres, pode ser uma ferramenta de emancipação em direitos humanos a partir da perspectiva delas. A (in)visibilização da mulher negra no constante movimento de construção do samba carioca é marcada pelo patriarcalismo. Historicamente, enquanto as mulheres brancas foram excluídas do mercado de trabalho, restando-lhes o trabalho doméstico, não monetizado, do qual se aproveitaram os homens duplamente, as mulheres negras foram objetificadas sexualmente e tidas como mão de obra barata, trabalhando frequentemente para as mulheres brancas, além do trabalho de cuidado nas suas próprias casas. Com os movimentos feministas protagonizados pelas mulheres negras e socialistas, a partir das décadas de 1970 e 1980, a ausência dos debates de raça e classe dentro do próprio movimento feminista passa a ser questionada, junto com um movimento de descolonização do pensamento ocidental. A inclusão desses debates no movimento feminista traz à tona o racismo que segrega e oprime as mulheres negras, maioria na sociedade brasileira, questionando esse modelo de ser e estar no mundo de inspiração capitalista neoliberal. Por isso, busco também mostrar como a subjugação das mulheres, inclusive no samba, por intermédio do patriarcalismo, é a base da solidificação do neoliberalismo como modelo econômico global, ressaltando não só o debate de raça e gênero, mas também de classe. As mulheres, dentro de uma lógica colonial, são pequenos subtítulos dos livros e
textos que falam sobre o ritmo musical nacional, marginalizadas na história do surgimento do samba carioca. Tia Ciata é citada quase sempre em pequenos parágrafos, se não em notas de rodapé, ainda que todos saibam da sua grande importância e que cada vez mais pesquisadores busquem destacar a sua história1 . Chiquinha Gonzaga, primeira maestrina brasileira, filha de uma mulher negra com um general do Exército Imperial Brasileiro, branco, foi educada numa família aristocrática, o que lhe possibilitou o letramento musical e o espaço para desenvolver sua genialidade sonora. Além disso, quebrou diversos paradigmas de gênero na sua época. Além dessas duas precursoras, posso citar as grandes intérpretes na história do samba, como Clementina de Jesus e Jovelina Pérola Negra; compositoras dos anos dourados como Dolores Duran e Maysa; sambistas legendárias como Dona Ivone Lara, Alcione, Beth Carvalho e Clara Nunes, que alçaram o samba carioca a ritmo nacional; Elza Soares, que começou do samba e hoje é uma das cantoras negras mais reconhecidas, tanto por sua história de luta, quanto pelo seu posicionamento político antirracista; e tantas outras que, por diversas vezes, foram ignoradas e invisibilizadas, colocadas em segundo plano e tiveram seus nomes tirados de suas composições, diante de uma lógica patriarcalista que domina a indústria cultural.
Nos últimos anos, no Rio de Janeiro, os grupos de sambistas mulheres têm conquistado espaço cada vez maior, apesar das dificuldades, produzindo rodas de samba só de mulheres, cantando músicas que questionam o machismo e o racismo, compondo sambas que buscam na ancestralidade negra outra maneira de estar no mundo2, em especial a roda de samba ÉPreta. A música que dá título à dissertação e abre essa introdução, faz parte do disco do ÉPreta, e resume o objetivo principal deste trabalho, qual seja, analisar o protagonismo que essas mulheres conquistaram a partir da luta contra o patriarcalismo, contrariando o colonialismo que buscou lhes subjugar, investigando a possibilidade do samba cantado por elas ser um instrumento de emancipação em direitos humanos.
1 Em 2017 foi lançado o documentário “Tia Ciata”, dirigido pelas cineastas Mariana Campos e Raquel Beatriz.
O curta narra a história de Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, a partir da perspectiva da visibilidade da mulher negra na sociedade brasileira. Ver mais em: <https://tiaciata.com.br/sobre-o-filme/>. Acesso em 10 dez. 2018.
2 Nesse contexto surgiu, por exemplo, a roda de samba Samba que Elas Querem e Moça Prosa, o projeto
Primavera das Mulheres, a roda de choro Chora - Mulheres na Roda, e outros diversos grupos e eventos que passaram a ter uma maior presença feminina, além de muitas vezes proporcionar debates políticos e feministas.