O Milagre da Santa Casa de Loreto, Federico Catani

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2020: JUBILEU LAURETANO

O Milagre da Santa Casa de Loreto

FEDERICO CAI.>\NI


O Milagre da Santa Casa de Loreto


O MILAGRE DA SANTA CASA DE LORETO Copyright © 2020, São Paulo Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, armazenada em sistemas de recuperação, ou transmitida de maneira alguma, seja eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio, sem autorização prévia do editor. Capa: Transladação da Santa Casa, Francesco Foschi, século XVIII, Museu do Antigo Tesouro da Santa Casa, Loreto, Itália. Fotografia e Projeto gráfico: Felipe Barandiarán Tradução: Helio Viana e João Luiz Vidigal Editor e revisor: João Luiz Vidigal Diagramação: Mayra Kadowaki © Copyright para a edição italiana original: Luci sull’Est, Roma © Copyright para a edição brasileira: Ambientes & Costumes Editora Ltda. Rua Itaquera, 475 – 01246-030 – São Paulo, SP Tel./Fax: (11) 3661-6678 contato@ambientesecostumes.com.br Impresso no Brasil na BMF Gráfica em data www.ambientesecostumes.com.br ISBN 978-65-87307-00-8


Federico Catani

O Milagre da Santa Casa de Loreto editora

editora

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editora


Agradeço o Prof. Giorgio Nicolini pelos preciosos conselhos e informações fornecidas. Faço também um agradecimento especial ao Sr. Nestor Fonseca por sua ajuda material e espiritual, sem a qual esse livro não seria possível.



O presente trabalho é um preito de gratidão a Nossa Senhora, oferecido de modo especial em reparação pelos pecados cometidos contra os seus privilégios, no espírito do que Ela mesma recomendou em Fátima.


Anunciação. Federico Barocci, capela dos Duques de Urbino, Basílica de Loreto.


Naquele tempo, o Anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré, a uma Virgem desposada com um homem chamado José, que era descendente de David. O nome da Virgem era Maria. Tendo entrado onde ela estava, disse o Anjo: “Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo”. Ela ficou perturbada com estas palavras e se perguntava que saudação seria aquela. Disse-lhe o Anjo: “Não temas, Maria, porque encontraste graça diante de Deus. Conceberás e darás à luz a um Filho, a quem porás o nome de Jesus. Ele será grande e chamar-Se-á Filho do Altíssimo. O Senhor Deus Lhe dará o trono de seu pai David; reinará eternamente sobre a casa de Jacob e o seu reinado não terá fim”. Maria disse ao Anjo: “Como será isto, se eu não conheço varão?”. O Anjo respondeu-lhe: “O Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra. Por isso, o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus. E a tua parenta Isabel concebeu também um filho na sua velhice e este é o sexto mês daquela a quem chamavam estéril; porque a Deus nada é impossível”. Maria disse então: “Eis aqui a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a vossa palavra”. (Evangelho de São Lucas 1,26-38)


Introdução – Tudo começou aqui…

13

Capítulo I – Como foi feita a Santa Casa?

17

1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 1.6

Trata-se realmente da casa de Nossa Senhora? Os ósculos nas paredes e o giro de joelhos na Santa Casa Por que Nossa Senhora é negra? Como a Santa Casa foi mobiliada? Onde foi celebrada a primeira Missa? A Casa dos milagres

19 34

Capítulo II – A Casa transportada pelos anjos

47

Índice

2.1 2.2 2.3 2.4 2.5 2.6 2.7 2.8 2.9

35 38 39 40

A trasladação contada historicamente 48 52 O tr plice milagre da primeira trasladação As duas tabuletas antigas 52 Primeira etapa: Tersatto 54 Segunda etapa: Ancona 58 Terceira etapa: a floresta da Senhora Loreto 60 Quarta etapa: o campo dos dois irmãos 64 Quinta etapa: a via pública 66 Algumas precisões 67


2.10 Os anjos ou… a família Angeli?

68

2.11 A misteriosa noite entre 9 e 10 de dezembro… 73

Capítulo III – Onde nasceu Nossa Senhora?

77

Capítulo IV – A Igreja não tem dúvidas

81

4.1 4.2 4.3 4.4

81 84 85 99

A festa da Trasladação da Santa Casa As ladainhas lauretanas A voz dos Sumos Pontífices A presença dos santos

Capítulo V – Loreto, baluarte da Europa cristã na luta contra o Islã

105

5.1 A Batalha de Lepanto (1571) 105 5.2 A Batalha de Viena (1683) 113 5.3 A defesa heroica dos Estado Pontifício 117

Capítulo VI – Onde os grandes do mundo se fizeram peregrinos

119

Apêndice – Loreto, o santuário dos “princípios não negociáveis”

133

Bibliografia 137



Introdução

Tudo teve início aqui… Em 15 de agosto de 1993, na Carta que enviou por ocasião do VII Centenário do Santuário da Santa Casa de Loreto, o Papa João Paulo II o definiu como o “primeiro Santuário de alcance internacional dedicado à Virgem Maria e, por diversos séculos, verdadeiro coração mariano da Cristandade”1. Com efeito, o que temos em Loreto não é um templo como qualquer outro. E não somente porque durante muito tempo foi o mais importante centro de devoção mariana da Itália e da Europa, mas, sobretudo, pela preciosa relíquia que encerra e pelo modo como ela chegou àquela localidade da região das Marcas. A Santa Casa de Loreto é o lugar onde – como disse São Bernardo2 em esplêndida homilia – teve início a 1 Cfr. Carta de João Paulo II ao Mons. Pasquale Macchi por ocasião do VII centenário do Santuário da Santa Casa de Loreto, 15 de agosto de 1993, em https://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/it/letters/1993/documents/hf_jp-ii_ let_19930815_mons-macchi.html. 2 “Ouviste, ó Virgem, que conceberás e parirás um filho; ouviste que isto ocorrerá não por obra de um homem, mas por obra do Espírito Santo. O anjo espera a resposta; deve voltar a Deus e prestar contas do que lhe foi ordenado. Esperamos nós também, ó Senhora, uma palavra de compaixão, nós, os miseravelmente oprimidos por uma sentença de danação. Eis que te foi oferecido o preço da nossa salvação: se tu consentires, seremos logo liberados. Fomos todos criados pelo Verbo eterno de Deus, mas estamos sujeitos à morte; pela tua breve resposta devemos ser renovados e chamados de volta à vida. Suplicam-te em prantos, Virgem pia, Adão, exilado do paraíso com toda a sua mísera descendência; suplicam-te Abraão e David; suplicam-te insistentemente os santos patriarcas que são teus antepassados, os quais vivem também na zona tenebrosa da morte. Todo o mundo está à espera, prostrado junto aos teus joelhos: de tua boca depende a consolação dos miseráveis, a redenção dos prisioneiros, a libertação dos condenados, a salvação de todos os filhos de Adão, de todo o gênero humano”. Cfr. Homilia sobre Nossa Senhora, de São Bernardo Abade, Hom. 4,8-9; Opera omnia, Ed. Cister, c. 4, 1996, 53-54.


Redenção da humanidade. É a cela humilíssima na qual ocorreu o fato mais importante da História: a Anunciação da Bem-Aventurada Virgem Maria e a consequente Encarnação do Verbo divino. Entre as paredes que outrora estavam em Nazaré, um vilarejo perdido da Palestina setentrional, Deus se fez homem para salvar os homens do pecado, o Eterno entrou no tempo para restaurar o universo ferido pela culpa original. E tudo isso ocorreu graças à cooperação de uma mulher que, com o seu “Sim” e o seu


A Sagrada Família na casa de Nazaré. Afresco de Modesto Faustini. Capela espanhola, Basílica de Loreto.

“Fiat”, mudou para sempre o curso dos acontecimentos, contribuindo também Ela, de modo todo especial, como Corredentora, para a redenção do mundo. Aquela pobre residência onde ocorreu a concepção imaculada e nasceu Maria Santíssima pertencia de fato aos seus pais Joaquim e Ana, mas foi escolhida para ser o lar comum da Virgem e do seu esposo São José em razão da santidade que dela emanava, uma vez que ali se realizou a Encarnação. Portanto, naquela casa viveu a Sagrada Família


16 O Milagre da Santa Casa de Loreto e, acredita-se, ali Jesus foi educado e trabalhou até o começo de sua vida pública. As paredes que hoje se encontram em Loreto viram cotidianamente, durante muitos anos, a face santa de Jesus, Maria e José, escutaram suas vozes, seus respiros e suas orações. Foram tocadas por suas mãos, ficando impregnadas de santidade e divindade. Em suma, pode-se dizer que têm algo de uma antecipação do Paraíso nesta terra. Entre aquelas paredes morreu São José, nos braços de seu Filho e de sua Santíssima Esposa. Naquela Casa foi celebrado pelos Apóstolos o Santo Sacrifício da Missa, no qual Cristo se fez novamente presente na Eucaristia, tal como anos antes, no mesmíssimo lugar, se tornara homem no ventre de sua Santíssima Mãe, depois do anúncio do arcanjo Gabriel. A Itália tem a graça extraordinária de abrigar em seu território uma tão insigne relíquia, que segundo a tradição da Igreja – e o aval de inúmeros estudos históricos, arqueológicos e científicos – foi trasladada milagrosamente para Loreto por obra dos anjos. Um fato tão surpreendente merece ser conhecido ou redescoberto. Muitas vezes não se toma como certo ou não se dá o justo valor àquilo que se tem diante dos olhos. Contudo, não devemos nunca nos esquecer de que nada nos é devido: o presente da Santa Casa deverá frutificar e ser usado para ajudar todos a caminhar na direção da santidade. Portanto, o primeiro passo consiste em conhecer, para melhor amar. Para conhecer, é preciso obviamente ir aos fatos, aos acontecimentos e dados seguros e perfeitamente documentados. É o que pretende este livro.


Capítulo I

Como foi feita a Santa Casa? A história de Loreto se inicia em Nazaré, onde Maria Santíssima recebeu a saudação angélica. Na Palestina daquele tempo, as casas do povo humilde eram habitualmente formadas por três paredes ligadas a uma gruta, que constituía uma peça à parte. Não é de se excluir que pudesse haver outras peças menores e um pátio externo. De todo modo, a peça principal era a que estava ligada à gruta. Isto valia também, obviamente, para a Sagrada Família de Nazaré: uma família que – seja dito de passagem – mesmo não sendo tão miserável como gosta de dizer certo catolicismo miserabilista, era em todo caso humilde e austera, apesar de pertencer à estirpe real de David. Como se sabe, a sala onde se deu a Encarnação do Verbo de Deus por meio do “Sim” pronunciado por Nossa Senhora se transformou em lugar de culto e objeto de peregrinação, desde as origens do Cristianismo. Na prática, ela foi venerada ainda quando Maria Santíssima estava ainda nesta terra. Obviamente, no decurso dos tempos procurou-se tornar o ambiente mais adaptado para acolher o enorme afluxo de fiéis. A capela foi englobada de forma gradual em uma estrutura maior, de tal modo que de uma igreja sinagogal de época constantianiana passou com o tempo a ser uma basílica, primeiro de construção bizantina, depois cruzada. Ao longo desse período ocorreu sem dúvida que devotos peregrinos (mas também ladrões e simoníacos) levassem algumas pedras ou fragmentos retirados daquelas paredes sagradas, sem que os guardiões remediassem o problema acrescentando algum material novo naquele ponto. Em resu-


Gruta de Nazaré, Basílica da Anunciação. As casas comuns eram geralmente formadas por três paredes adossadas a uma gruta, que constituía uma peça à parte. Não se deve excluir que pudesse haver outras peças menores e um pátio externo.


Como foi feita a Santa Casa? 19 mo, o edifício sofreu algumas pequenas transformações que, contudo, foram funcionais para a sua melhor conservação. E constitui de fato um dado certo e inegável que o lar da Sempre Virgem Maria foi preservado durante séculos de todo e qualquer perigo. Até mesmo em 1263, quando os exércitos islâmicos arrasaram o piso da Basílica da Anunciação, a Santa Casa – que se encontrava abaixo dela – foi preservada. A presença dos Cruzados na Palestina, onde defendiam os Lugares Santos, terminou em maio de 1291 com a conquista muçulmana da última fortificação cristã, São João de Acre. Mas poucos dias antes da derrota definitiva do exército cruzado, a cela da Santíssima Anunciada desapareceu de Nazaré, de modo totalmente inexplicável. E todos os peregrinos que visitaram o lugar depois daquela data confirmaram ter visto apenas a gruta, mas não as três paredes.

1.1 Trata-se realmente da casa de Nossa Senhora? Ao longo dos séculos – começando pelos protestantes, que foram seguidos pelos iluministas – não faltaram vozes críticas que colocaram em dúvida a autenticidade da Santa Casa de Loreto. O pensamento racionalista e materialista desde sempre procurou refutar tudo o que pareça sagrado e milagroso, porque não aceita a existência de algo ou, melhor, de Alguém, que transcende e supera o mundo terreno. Em poucas palavras, não quer reconhecer a irrupção do sobrenatural na História. Entretanto, para a Santa Casa de Loreto tampouco faltam provas, sendo a maior parte delas fruto da pesquisa técnico-científica. Mesmo sabendo que todos aqueles que se obstinam em não acreditar encontrarão sempre um motivo de justificação para sua opinião falaciosa, Loreto é um milagre permanente, visível a todos. Examinemos agora alguns ele-


20 O Milagre da Santa Casa de Loreto mentos graças aos quais é possível afirmar racionalmente que sim, as paredes, íntegras e intactas que se encontram no santuário são exatamente aquelas entre as quais viveu a Sagrada Família em Nazaré e que foram milagrosamente transportadas para a Itália.

• Uma construção sem fundação? Diante das características da Santa Casa, é impossível não maravilhar-se com esse milagre, que perdura por sete séculos. Ou seja, não se trata de “acreditar”, mas simplesmente de constatar. Cabe, portanto, aos críticos o ônus de provar a sua posição. 1) Considerando que do ponto de vista técnico-construtivo os estudos confirmaram que o edifício não sofreu nenhuma variação substancial no curso do tempo3, devemos antes de tudo sublinhar um dado muito curioso. As três paredes da Santa Casa não têm um fundamento próprio e estão colocadas sobre a terra nua, sobre um terreno irregular, em níveis desiguais, porque uma parte está suspensa sobre o vazio de um fosso. O que é absolutamente inconcebível em qualquer construção, mesmo rudimentar, exceções feitas aos edifícios – como os da Palestina da época de Jesus – que, estando ligados a uma gruta, tinham como fundamento a própria rocha. Mas se uma casa (ou um lugar de culto) é construída do nada, como sempre insinuaram os críticos de Loreto, como fazê-la sem fundação e, além do mais, suspensa sobre um fosso? Acrescente-se que durante as várias escavações arqueológicas se descobriu um arbusto gramíneo com uma 3 Para uma visão mais ampla sobre as escavações arqueológicas e a estrutura da construção da Santa Casa, ver G. Santarelli, La Santa Casa di Loreto, edizioni Santa Casa, Loreto, 2014, págs. 95 e seguintes.



As paredes são formadas por um tipo de pedra e de argamassa inexistentes na região das Marcas. Trata-se de um estilo de construção e de material típico da Terra Santa. Sobre as diversas pedras estão gravados grafites de clara origem judaico-cristã.


Grafito com escrita em grego, onde se lê lesou Xriste Yie Theou (Jesus Cristo, Filho de Deus). Também podem ser identificadas duas letras hebraicas (lamed e waw).

Grafito representando uma cruz semicósmica, símbolo judaico-cristão de Pleroma e Krenoma, isto é, um sinal de plenitude e de imperfeição do Céu e da Terra.


As três paredes da Santa Casa não têm fundamentos próprios e jazem na terra nua; além disso, em terreno irregular, não no mesmo nível, porque uma parte está suspensa no vazio de uma vala.

parte esmagada por uma parede da casa4 e a outra parte se projetando sob a mesma parede, exatamente como se as paredes tivessem descido e se apoiado a partir de cima, sobre um terreno poeirento que não tinha sido limpado por ninguém antes de serem colocadas ali. Que construtor trabalharia assim? Somente algum tempo depois, por temor de que a relíquia pudesse desmoronar ou então ser danificada, os habitantes de Recanati – em cujo território a Santa Casa finalmente chegou – fizeram algumas fundações subterrâneas e sustentáculos para as paredes, o chamado “muro dos recanetenses” (o qual, como se verá adiante, está situado a certa distância das 4 Ver G. Nicolini, em Nuovi studi confermano l’autenticità della Santa Casa di Maria a Loreto, Agenzia Internazionale Zenit, Roma, 28 de março de 2006.


Como foi feita a Santa Casa? 25 santas paredes). Intervenções como essas – que se explicam somente reconhecendo a preciosidade do edifício, aparentemente tão pobre e insiginificante –, deixam, contudo, em aberto uma pergunta de fundo: se realmente tivesse sido uma operação humana talvez para fazer crer que aquela era uma relíquia importante para depois ganhar dinheiro e enganar as pessoas, por que motivo esses trabalhos de simples fundações, ademais de desafiantes e custosos, não foram feitos desde o começo? 2) Outro dado relevante. As mesmas paredes estão colocadas sobre aquela que na época dos fatos era uma estrada pública da cidade de Recanati, ou seja, um lugar de tráfego sobre o qual era proibido construir por motivos óbvios, como o demonstram bem as pesquisas do engenheiro Nanni Monelli5. As normas municipais previam a demolição de eventuais estruturas ali edificadas sem licença. Contudo, com a Santa Casa isso não aconteceu evidentemente em razão da sua sacralidade e do modo milagroso pelo qual ela chegou ao lugar, como a comunidade local reconheceu imediatamente. Mais. Considerando que no século XIII não faltavam espaços públicos onde construir – na propriedade municipal ou na eclesiástica –, não se compreende por que a autoridade civil tivesse que empregar tantos recursos para abrir um novo trecho de estrada em substituição e compensação pelo trecho ocupado pela Santa Casa. Se a operação total de sua trasladação e edificação fosse uma obra humana, e se até mesmo tivesse sido combinado construir uma capela para fazer crer que era a Casa de Nazaré, os recanetenses não teriam podido ter feito tudo utilizando um espaço mais próprio? Bastaria colocar o edifício a so5 Ver N. Monelli, La Santa Casa a Loreto – La Santa Casa a Nazareth, Edizioni Santa Casa, Loreto, 1997. Ver também G.M. Pace, Miracolosa Traslazione a Loreto dela demora dela Santissima Annunziata, Priorato Madonna di Loreto, Rimini, pp. 22 e 23.


26 O Milagre da Santa Casa de Loreto mente 200 metros de distância a oeste, sobre uma das duas colinas que margeiam a mesma estrada. 3) Mas não termina aqui. Como sempre foi verificado diretamente pelos escavadores arqueológicos ao longo dos séculos (os mais recentes datam dos anos 1962-1965), o perímetro da Santa Casa de Loreto coincide perfeitamente com o da antiga Casa de Nazaré, onde atualmente restam as fundações, embora muito simples, das quais as paredes parecem ter sido rasgadas. Um fato ainda mais extraordinário e comprobatório é que até mesmo em Tersatto (Croácia), como se verá adiante, o lugar exato onde por cerca de três anos e meio permaneceu a Santa Casa antes de ir para Loreto, tem exatamente o mesmo perímetro. Mera coincidência ou certificado da autenticidade da casa da Sagrada Família de Nazaré? 4) Não se pode omitir que a disposição da porta original e da janela é inconcebível num templozinho edificado especialmente naquele preciso lugar de Loreto. A porta, de fato, se encontra sobre o lado maior (e não sobre o menor, como acontece em todas as igrejas), e a janela, posicionada a oeste – o que não a torna o ambiente funcional para receber uma iluminação adequada do sol do meio-dia –, contrasta com tudo o que ocorre naquele território marquegiano. Essas anomalias só se explicariam se a casa fosse idealmente recolocada na sua posição original, diante da gruta de Nazaré. 5) Além disso, é sem dúvida de grande ajuda a verificação do material com o qual foi construída a Santa Casa. Suas paredes são formadas por um tipo de pedra e argamassa inexistente na região das Marcas. Trata-se de um estilo de construção e de material típico da Terra Santa. Os estudos sempre o confirmaram sem deixar lugar a dúvidas. A presença de alguns tijolos não originais se explica por sua


Como foi feita a Santa Casa? 27 utilização. Foram introduzidos na época bizantina tardia, para restaurações ou necessárias adaptações, sobretudo em razão do enorme afluxo de peregrinos: tratar-se-ia, portanto, de intervenções precedentes à milagrosa trasladação. Também a presença da madeira de cedro confirma sua proveniência da zona de Nazaré, ao lado das colinas meridionais do Líbano, conhecido por aquele tipo de árvore. 6) Em muitas pedras foram inscritos grafitos de evidente procedência judeu-cristã e absolutamente estranhos ao ambiente e à história marquesianos6: evidentemente os peregrinos desde a origem visitaram com devoção aquele lugar tão sagrado e carregado de significado, deixando uma prova de sua fé com esses pequenos sinais. Deve-se observar, por outro lado, que alguns grafitos parecem colocados em posição inversa àquela em que deveriam estar, e isso pode ser explicado pelos trabalhos de fechamento da porta original, ocorridos entre 1531 e 1535. As pedras retiradas para fazer as duas novas aberturas foram utilizadas para fechar a abertura antiga e os operários colocaram equivocadamente as pedras ao contrário. 7) Por fim, deixemos a palavra aos arquitetos que estudaram a Santa Casa de Loreto. Giuseppe Sacconi, diretor das restaurações da basilica lauretana entre 1884 e 1905, constatou que “a Santa Casa está em parte apoiada sobre a extremidade de uma antiga estrada e suspensa na outra sobre um fosso contíguo”7, razão pela qual não pode ter sido construída ou reconstruída como está, no lugar onde se encontra. 6 Para maiores informações, ver G. Santarelli, I graffiti della Santa Casa di Loreto, Edizioni Santa Casa, Loreto, 2010. Ver também. G. Santarelli, La Santa Casa di Loreto, cit. pp. 139 e ss. 7 Citação em G. Nicolini, Alcune “prove” storiche, archeologiche e scientifiche comprovante “la verità” dele miracolose traslazioni della Santa Casa di Nazareth a Loreto, em Il segno del soprannaturale Nº. 210, dezembro de 2005, p. 18.


28 O Milagre da Santa Casa de Loreto Federico Mannucci, após estudos e reconhecimentos comissionados pela autoridade eclesiástica, constatou em relatório de 1922 que “a parede da Santa Casa termina a poucos centímetros debaixo do chão e que o terreno sobre o qual se apoia está dissolvido”; ademais, “em alguns pontos se encontra quase completamente isolado do terreno abaixo dele”. Portanto, na carta enviada neste mesmo ano ao então bispo de Loreto e Recanati, Dom Alfonso Maria Andreoli, chegou à seguinte conclusão: “As paredes da Santa Casa, embora de aparência áspera, são de uma perfeita construção de pedra em camadas horizontais. A sua construção exige necessariamente uma fundação que assegure um apoio sólido, ou pelo menos uma preparação de terreno para tornar possível a estrutura especial com camadas horizontais. Ao contrário, as paredes da Santa Casa não têm nenhuma fundação, nem preparação alguma do terreno embaixo, o qual se apresenta, por sua vez, completamente dissolvido e poeirento. Pode-se, portanto, certamente concluir que a construção da Santa Casa não pode ter sido feita no lugar onde se encontra. (...) É absurdo imaginar que a estrutura possa ter sido transportada por meios mecânicos; portanto, a prodigiosa trasladação, como dão fé os documentos históricos, a tradição secular e o consenso ininterrupto da Igreja, permanece plenamente confirmada. Concluo ressaltando quão surpreendente e extraordinário é o fato de o edifício da Santa Casa, mesmo não tendo nenhuma fundação, situado sobre um terreno sem qualquer consistência, dissolvido e sobrecarregado, embora parcialmente, pelo peso do cofre construído no lugar do telhado, se conserve inalterado, sem o mínimo afundamento ou a mínima lesão nas paredes”8. Trata-se de dados que ninguém até agora nunca conseguiu desmentir e que, pelo contrário, foram plemamente confirmados pelas escavações de 1962-1965. 8

Cit. in G. Gorel, La Santa Casa di Loreto, Edizioni Paoline, 1962, pp. 116 e ss.


Revestimento de mármore da Santa Casa. Desenhado por Donato Bramante por encomenda do Papa Júlio II, sua execução foi confiada pelo Papa Leão X a Andrea Sansovino, ao qual sucederam Raniero Nerucci e Antonio da Sangallo, o Jovem.

• Alguns eventos milagrosos entre inúmeros outros 1) Como as paredes da Santa Casa se apoiavam diretamente sobre o chão, sem fundações, temerosos de que elas desmoronassem, os recanatenses colocaram subfundações, as quais decidiram cercar com um muro de contenção, o chamado “muro dos recanatenses”. No entanto, ocorreu um fato excepcional: no término da obra, o referido muro recém-construído se destacou das sagradas paredes, de tal maneira que, como narra o Pe. Raffaele Riera9, um menino poderia 9

Padre Raffaele Riera, jesuíta e penitenciário em Loreto entre 1554 e 15821, autor da Historia Domus Lauretanae Liber singularis (em torno de 1565). Ver G. Santarelli, La Santa Casa di Loreto, cit., p. 16.


30 O Milagre da Santa Casa de Loreto passar facilmente por ele e, com a ajuda de uma vela acesa, mostrar às pessoas a veracidade do milagre. Tratou-se de um fenômeno constatado depois pelo arquiteto Raniero Nerucci durante a edificação do imponente revestimento de mármore no tempo do Papa Clemente VII. Até hoje a distância entre o muro e as sagradas paredes é de 112 milímetros, de tal modo a Santíssima Virgem parece querer demonstrar que não necessita do auxílio humano para manter sua casa em pé10. 2) Há ainda a questão do acesso à Santa Casa. Originalmente, o único ponto por onde se podia entrar ou sair era pela porta situada na parede setentrional, diante da qual se encontrava o altar (transferido depois para a parte leste). Contudo, tendo em vista facilitar o fluxo dos numerosos peregrinos que visitavam devotamente a sagrada relíquia, os Papas Júlio II e Leão X estabeleceram no século XVI que aquele acesso deveria ser fechado para serem abertos dois outros. Clemente VII decidiu realizar as obras à noite. Assim descreve os fatos o já mencionado Riera: “O arquiteto [Raniero Nerucci], acompanhado de alguns trabalhadores selecionados, entrou na Santa Casa para executar as ordens recebidas. Com um ponteiro ele traça, no lugar desejado, o tamanho da altura e largura das portas a serem abertas e, em seguida, tomando um martelo, bate fortemente no muro, dizendo a seus homens: quebrem aqui e abram a porta. Mas eis que no mesmo instante o braço do arquiteto é tomado por forte tremor, ele se empalidece, todo seu corpo fica mole e, sentindo-se quase morrendo, retrata-se da ordem dada; quase sem vida, ele é levado para casa e deitado em uma cama onde permanece inconsciente por oito horas. De volta a si, ele reza à Virgem de Loreto, que não tarda em socorrê10 Cit. in G. Gorel, La Santa Casa di Loreto, pp. 101-103.


Como foi feita a Santa Casa? 31 lo. Clemente VII, às lágrimas, consultou o céu novamente antes de prosseguir. Iluminado de cima, ele repetiu sua ordem: ‘Muros sacri saccelli – escreve ao arquiteto – non timeas aperire portasque conficere, sic jubet Clemens Septimus’11. Ao mesmo tempo o Papa o aconselhava a armar-se não somente do cinzel e do martelo, mas também da oração e do jejum. Sempre sob os impactos da emoção, Nerucci recusou-se a obedecer as ordens do pontífice e os trabalhos ficaram suspensos até que um jovem sacerdote da basílica se ofereceu para substituí-lo após fazer três dias de jejum e oração. Entrando na Casa Santa e cercado pelo clero e pelos fiéis, ele fez uma declaração pública de sua pureza de intenções: ‘Ó Virgem Santa, disse, não sou eu quem quebrará com este martelo as paredes de vossa casa: é Clemente, o Vigário de teu Filho, e é para a vossa maior glória que esta ordem foi dada’. Feita a oração, ele avança, dá um primeiro golpe, depois um segundo e as pedras são removidas quase por si mesmas. As portas foram então abertas e, com uma parte do material, fechada aquela do centro setentrional: ainda hoje se veem os batentes e a arquitrave de cedro”12. Nossa Senhora, portanto, parece ter ciúmes de sua casa e, como resultado desses episódios, a Igreja proibiu prudentemente os peregrinos de raspar ou remover das paredes até mesmo o menor pedaço de pedra ou de argamassa. 3) A tal propósito, outro fato extraordinário ocorreu durante o Concílio de Trento, em 1562, e foi protagonizado por João Soares, bispo de Coimbra, Portugal. Este, com autorização do Papa Pio IV, havia feito extrair pelo sacerdote Francesco Stella, uma pedra (ainda hoje envolta em ferro, ao lado direito do altar), a fim de colocá-la no fundamento de um 11 “Não tenhais medo de abrir as paredes desta casa sagrada e de fazer as portas, assim ordena Clemente Sétimo” 12 Cit. in G. Gorel, La santa Casa di Loreto, pp. 102-103.


32 O Milagre da Santa Casa de Loreto santuário a ser construído em sua diocese segundo o modelo do existente em Loreto. Além do fato de em seu trajeto rumo a Trento o sacerdote sofrer toda uma série de incidentes e contratempos, o bispo, que gozava de ótima saúde, foi imediatamente atingido por um estranho mal que quase o levou à morte. Em seguida, ele recebeu a revelação sobrenatural transmitida por um monge, de que para melhorar deveria repor a pedra em seu lugar. O interessado obedeceu e enviou o mesmo Pe. Francesco Stella a Loreto com a relíquia. Assim que a pedra foi reposta, o bispo sarou. O prelado, arrependido, escreveu do próprio punho uma carta ao governador de Loreto relatando o sucedido13. Episódios similares aconteceram com outras pessoas, eclesiásticos ou simples fiéis, seja por terem subtraído alguma pedra, seja por terem retirado fragmentos da argamassa14. Em 1567, um bispo alemão caiu doente por ter aceitado em doação uma pequena pedra subtraída por um soldado, só se curando depois de restituir o furto, ainda hoje reconhecível. Em 1559, um senhor restituiu uma pedra que havia sido roubada anos atrás, após perder filhos, bens e saúde. O mesmo sucedeu em 1585 a um fiel siciliano. Mas não se trata apenas de fatos ocorridos em séculos passados. Ainda no século XX, depois de serem atingidos por vários inconvenientes e castigos, simples fiéis se viram obrigados a restituir aquilo que, embora por devoção, tinham subtraído. A própria Santa Teresa do Menino Jesus, em sua peregrinação de 1887, confessou que teve a tentação de “raspar furtivamente os muros santificados pela presença divina”15. 13 Cfr. O. Torsellini, Lauretanae Historiae libre quinque, Roma, 1597, livro IV, cap. 4. Torsellini “é considerado o príncipe dos historiadores lauretanos antigos” (cfr. G. Santarelli, La Santa Casa di Loreto, cit., p. 16). 14 Cfr. G. Santarelli, Tradizioni e leggende lauretane, Edizioni Santa Casa, Loreto 2014, pp. 107-108. 15 Cit. in G. Santarelli, Tradizioni e leggende lauretane, cit. p. 109.


Foto: Longarini Bruno, Loreto.

Tradicionalmente, os peregrinos que chegavam a Loreto, antes de entrarem na cela sagrada de Maria, recitavam de joelhos o Rosário, caminhando sobre o mármore do perímetro externo da igreja, que ainda hoje mostra muito bem dois sulcos esculpidos pelos joelhos de milhões de peregrinos ao longo dos séculos.


34 O Milagre da Santa Casa de Loreto 1.2 Os ósculos nas paredes e o giro de joelhos pela casa Tudo isso indica que em Loreto o principal objeto de veneração e devoção foi sempre a Santa Casa. Não é por acaso que o gesto tradicionalmente mais difundido seja o de oscular e tocar suas sagradas paredes. Charles-Auguste de Sales narra que seu tio, São Francisco de Sales, peregrino em Loreto em 1599, tão logo entrou na Santa Casa prostrou-se de joelhos e osculou o chão e as sagradas paredes. Jacques le Saige, peregrino em 1518, escreve: “Eu creio que o abençoado Jesus, quando começou a caminhar, se apoiava nas paredes desta Casa. Enquanto isso, tocamos nossas coroas de rosário”16. Além disso, imaginando o cotidiano da Sagrada Família dentro da Casa, não se pode deixar de entrar espontaneamente em contato com essas pedras. De fato, elas parecem desgastadas. Como desgastada está também a base do revestimento de mármore desejada pelos Sumos Pontífices para proteção e exaltação da Santa Casa. Apesar de desde algumas décadas não ser mais comum – infelizmente, hoje muitas práticas bonitas que forjaram durante séculos a fé dos católicos são consideradas ultrapassadas –, tradicionalmente os peregrinos que iam a Loreto, antes de entrar na cela sagrada de Maria, percorriam de joelhos o perímetro externo recitando o Rosário enquanto passavam sobre o mármore, que ainda mostra muito bem dois sulcos esculpidos pelos joelhos de milhões de peregrinos ao longo dos séculos. O gesto servia para agradecer e pedir favores à Virgem, bem como um significado penitencial. No dia 1º de outubro de 1766, o Papa Clemente XIII concedeu uma indulgência de sete anos e sete quarentenas àqueles que percorressem de joelhos o entorno da Santa Casa. 16 Cit. in ibidem, p. 104. Do mesmo texto foram extraídas as outras informações sobre este tema.


Como foi feita a Santa Casa? 35 Essa forma de devoção era comum a todos, independentemente de classe social, idade ou origem geográfica. As crônicas contam que, entre outras, a rainha da Polônia, Maria Casimira, esposa de João III Sobieski, herói de Viena contra os turcos, chegou a Loreto em 1698 e, peregrina entre os peregrinos, percorreu humildemente de joelhos o lado externo da Santa Casa17.

1.3

Por que Nossa Senhora é negra?

Ao contrário do que se pode pensar, a imagem de Nossa Senhora de Loreto, com sua característica cor negra, sempre teve um papel de “segundo plano”, se assim se pode dizer, em comparação com a própria Santa Casa. Se é verdade que há reproduções da imagem mariana presentes em todo o mundo, também é verdade que existem muitas outras variantes da Virgo Lauretana associadas frequentemente a uma casa transportada por anjos. Portanto, ao lidar com a questão lauretana, a efígie da Madonna negra não constitui o tema principal. Contudo, devido à popularidade de que ainda goza (especialmente na província das Marcas), convém que nos debrucemos também um pouco sobre este ponto. Conquanto no passado se acreditasse que desde as origens da Santa Casa a imagem de madeira estivesse presente com as características que ainda hoje conhecemos, segundo um estudo diferente das fontes parece que na época da trasladação foi conservado entre as paredes sagradas um ícone de Nossa Senhora com a Criança. A imagem em abeto remonta à segunda metade do século XIV. A cor negra da Madonna é atribuída ao estilo e ao gênero das imagens negras. Muitos a explicam referindo-se ao Cântico dos Cânticos, onde estas palavras são interpretadas de modo mariano: “Eu sou morena, porém formosa, 17 Cfr. G. Santarelli, Tradizioni e leggende lauretane, cit. pp. 97 e ss.


Foto: Longarini Bruno, Loreto.

“Sou morena, mas bela, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Quedar, como as cortinas de Salomão. Não olheis para o eu ser morena, porque o sol resplandeceu sobre mim” (Ct 1,5-6).


Como foi feita a Santa Casa? 37

ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Quedar, como as cortinas de Salomão. Não olheis para o eu ser morena, porque o sol resplandeceu sobre mim” (Cânticos 1,5-6). Ou à invocação de Turris eburnea da ladainha lauretana, que se refere ao livro de Siracide, onde a Nossa Senhora é atribuída esta frase: “Eu cresci como um cedro no Líbano” (Sir 24,17). Outra característica da Virgem lauretana é sem dúvida a dalmática, uma peça de roupa que vai do pescoço a até os pés, cobrindo também os braços e as mãos, mas que não toca diretamente a imagem. O vestido ao longo do tempo e nas diferentes reproduções sofreu várias mudanças. No entanto, sempre foi mantida a devoção de se colocar um véu preto na imagem na Quinta e na Sexta-Feira Santa (hoje apenas neste último dia), o qual é depois recortado e entregue aos peregrinos como uma relíquia. Até 1797, quando o simulacro com a roupa de lã antiga que o cobria foi examinado pelos franceses, o relatório entregue aos fiéis atestando a autenticidade daquela relíquia por contato, afirmava: “Certifico, eu, abaixo assinado, Custódio da Santa Casa de Loreto, que o véu preto selado e anexado a este foi usado na Sagrada Imagem na Quinta e Sexta-Feira Santa, e depois tocado na Sagrada Veste e na Sagrada Tigela da Beatíssima Virgem, que são conservadas nesta Santa Casa. Em fé do que, etc. Dado em Loreto pela custódia de...”18. Falando em invasão francesa, quando Napoleão ocupou a Itália em 1797 à frente do exército revolucionário, ele se deteve em Loreto e foi responsável (como sucedeu em muitas outras partes da península) por uma grande pilhagem do Tesouro do Santuário, fazendo com que muitas riquezas e obras de arte se perdessem irremediavelmente. A imagem de Nossa Senhora foi roubada e levada para o Museu do Louvre, em Paris, ali permanecendo até 1802, quando o Papa Pio VII 18 Cit. in G. Santarelli, Tradizioni e leggende lauretane, cit., p. 125.


38 O Milagre da Santa Casa de Loreto obteve a sua restituição e, após conservá-la por algum tempo na capela de seu Palácio do Quirinal, fê-la transportar solenemente no dia 8 de dezembro daquele mesmo ano à Santa Casa, num trajeto que percorreu o Alto Lácio, a Úmbria e as Marcas. Em 23 de fevereiro de 1921, no entanto, na cela da Santíssima Anunciada, um incêndio destruiu completamente a imagem de madeira do século XIV. Ela foi temporariamente substituída por outra – a mesma usada durante os anos do “cativeiro” francês, cópia da original e que se encontra hoje no convento das freiras da Visitação de Treia (Macerata). No dia 8 de setembro de 1922 foi colocada na Santa Casa uma nova imagem, a mesma que ainda hoje podemos ver, benta por Pio XI e esculpida por sua vontade em cedro extraído de uma árvore dos jardins do Vaticano19. Contudo, a cor negra dessa imagem é acentuada em relação à original20.

1.4 Como a Santa Casa foi mobiliada? Entre os objetos presentes na Santa Casa é digno de nota o pequeno compartimento situado na parede sul, ao lado do altar onde são colocadas hoje as galhetas. Segundo a tradição21 tratava-se da “credência” onde Nossa Senhora colocava os pratos e os alimentos. Na parte oposta, sempre na mesma parede, há outro compartimento do qual provinha uma fonte (hoje em desuso), que seria o lugar onde Maria lavava as mãos. Em frente da “credência”, no lado direito do altar, há um armário no qual se conservam duas taças que, no imaginário dos peregrinos, foram usadas diretamente pela Sagrada Família. Mas o que suscita maior devoção é a cha19 Cfr. G. Santarelli, Tradizioni e leggende lauretane, cit., pp. 176 e ss. 20 Cfr. ibidem, p. 168. 21 Cfr. ibidem, pp. 112 e ss.


Como foi feita a Santa Casa? 39 mada tigela do Menino Jesus, considerada pelos estudiosos como sendo da época da vida terrena de Nosso Senhor (I século d.C.)22. Santa Teresinha de Lisieux disse que a tocou com a coroa de seu Rosário, um dos gestos de homenagem que prestavam os fiéis. Atualmente a tigela está conservada no ângulo direito do comumente denominado “caminho santo”, situado sob a imagem de Nossa Senhora. Finalmente, acima da janela da parede oeste, há um crucifixo de madeira do final do século XIII. Historiadores lauretanos, como Torsellini e Martorelli, no entanto, argumentam que ele chegou milagrosamente com as três paredes e escreveram que, dada a miraculosidade do mesmo, os recanatenses pensaram que era melhor afixá-lo em uma capela separada no santuário. E assim fizeram. O crucifixo, porém, voltou prodigiosamente para a Santa Casa. Os fiéis fizeram uma segunda tentativa, mas novamente falhou: o crucifixo queria ficar na casa de Maria. E ali ficou23.

1.5 Onde foi celebrada a primeira Missa? Outra relíquia importante que chegou a Loreto juntamente com a Santa Casa é o chamado altar dos Apóstolos, hoje localizado no lado leste, sob o altar de mármore onde se celebra diariamente a Santa Missa. Segundo a tradição, trata-se do altar que os Apóstolos fizeram erigir na sagrada morada de Nazaré e no qual, segundo Jacques Le Saig e Torsellini, São Pedro celebrou a primeira Santa Missa24. É de fato evocativo oferecer o Santo Sacrifício e receber a Sagrada Eucaristia no mesmo lugar em que o Verbo se fez carne. E é igualmente edificante imaginara Bem-aventurada sempre Virgem Maria enquanto recebia seu Filho 22 Cfr. G. Santarelli, La Santa Casa di Loreto, cit., p. 192. 23 Cfr. G. Santarelli, Tradizioni e leggende lauretane, cit., p. 166. 24 Cfr. N. Monelli–G. Santarelli, L’altare degli Apostoli nella Santa Casa di Loreto, Edizioni Santa Casa, Loreto 2012, pp. 23 e ss.


40 O Milagre da Santa Casa de Loreto realmente presente com seu Corpo, Sangue, Alma e Divindade pela mão dos apóstolos e naquele mesmo lugar onde algumas décadas atrás Ela fora saudada pelo Anjo e se tornou o tabernáculo vivo de Cristo, seu ostensório pela humanidade. O fato de haver na Casa de Maria altares para celebrar a Missa (construídos certamente ao longo do tempo) é atestado por inúmeras testemunhas que estiveram lá. E que o que está atualmente em Loreto é um altar da mesma época da Igreja, confirmam-no os materiais utilizados. As pedras da base e da mesa são trabalhadas em espinha de peixe com técnica nabateia, ou seja, no mesmo estilo presente em numerosas pedras da Santa Casa. No século XVI o altar foi revestido de mármore, mas depois do terrível incêndio irrompido entre 23 e 24 de fevereiro de 1921, o arquiteto oficial do santuário, Guido Cirilli, fez um novo revestimento e um novo altar (o atual), enquanto o dos Apóstolos é atualmente pouco visível e somente através de uma grade metálica.

1.6 A Casa dos milagres Se para alguns o relatado até aqui não foi suficiente, para atestar a autenticidade da Santa Casa existem também os milagres ali ocorridos ao longo dos séculos até hoje. A maior parte deles constituída por fenômenos discretos, silenciosos, de índole espiritual. Mas não faltam, nem nunca faltaram, aqueles mais evidentes e impressionantes. A quantidade de documentação sobre essa irrupção do sobrenatural na vida das pessoas é de tal modo vasta, que encheria volumes inteiros. Portanto, não é possível elencar aqui todos os milagres, e para uma abordagem geral – mas referindo-se em particular os eventos mais recentes – consulte as obras específicas25. 25 Cfr., por exemplo, P. Cavatorti, Le guarigioni a Loreto. Gli sguardi e le carezze della Madonna, Congregazione Universale della Santa Casa, Loreto, 2001.


A chamada tigela do Menino Jesus, que segundo os estudiosos remonta à época da vida terrena de Nosso Senhor (I século d.C.).

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O chamado altar dos Apóstolos, que se encontra hoje no lado leste, sob o altar de mármore onde se celebra diariamente a Santa Missa.


Acima da janela da parede oeste está pendurado um crucifixo de madeira do final do século XIII.


Como foi feita a Santa Casa? 43 Do ponto de vista cronológico, cada século registrou seus acontecimentos extraordinários. O santuário tornou-se de repente internacionalmente conhecido pelas numerosas curas nele operadas. Já em 1375 o Papa Gregório XI reconhecia que, “por causa dos muitos milagres através dos quais o Altíssimo se digna manifestar ali, uma grande multidão de fiéis converge, movidos pela devoção” 26. Por fim, os ex voto oferecidos ao santuário ao longo dos séculos são inumeráveis, sinal da presença e constante atenção de Nossa Senhora pelos filhos que se voltam para Ela em sua casa. Além de pessoas comuns, alguns desses milagres aconteceram com personagens ilustres, soberanos, Papas e santos. Veremos mais adiante, por exemplo, os casos dos Papas Pio II e Paulo II, e de soberanos como Luís XIII. Digno de nota é o exorcismo que permitiu saber exatamente onde a Santíssima Virgem e o Anjo Gabriel estavam no momento da Anunciação. Em 1489, o nobre Pierre Orgentorix, de Grenoble, fez todas as tentativas possíveis para libertar sua mulher Ana, possuída por sete demônios. Na França, apesar dos exorcismos, nada obteve. A família percorreu em seguida a Itália e em particular a Cidade Eterna, mas sem resultado. Dirigiu-se então ao santuário de Loreto. Pois bem, os exorcismos realizados na Santa Casa foram eficazes – um fato admitido pelos próprios demônios – graças a Nossa Senhora, particularmente poderosa naquele lugar que foi sua casa. Não foi só isso. O sacerdote exorcista obrigou o último demônio que deixou o corpo da pobre senhora a confessar a posição exata de Maria e do Anjo no momento da Encarnação. O demônio declarou que a Santíssima Virgem se encontrava pouco além do altar, no lado esquerdo, enquanto Gabriel se postou na parte direita da 26 Cit. in ibidem, p. 5.


44 O Milagre da Santa Casa de Loreto janela, mantendo certa distância por respeito à pureza imaculada de Nossa Senhora27. Entre outros milagres, podemos recordar a graça concedida pela Virgem lauretana a São Jaime da Marca, que se curou de um fluxo de sangue e pôde continuar sua missão de pregador. Ou então o milagre operado na filha do rei da Dinamarca, Cristina, Duquesa de Lorena, que levada de maca à Santa Casa, ali recuperou prontamente a saúde. Milagres aconteceram também com judeus e muçulmanos, que se converteram ao Catolicismo. Outro milagre foi com o francês Jean-Jacques Olier, sacerdote fundador da Sociedade de São Sulpício: acometido de grave doença nos olhos, curou-se após uma peregrinação a pé ao santuário. Há também a cura, ocorrida em 1727, de Maria d’Angiò, que contribuiu para a conversão de sua mãe da fé luterana ao catolicismo, e da calvinista Isacca Lamott, em 1732, que estranhamente perdia a visão toda vez que olhava para a imagem de Nossa Senhora na Santa Casa: tão logo prometeu se converter para a religião católica, seu olhar passou a ver normalmente a imagem da Mãe de Deus. No século XX, com o início das peregrinações a Loreto dos trens brancos da Unitalsi (a partir de 1936), houve muitas curas de doentes, italianos e estrangeiros. Basta pensar na senhora Olga Spiridigliozzi28, curada em 2000 após uma procissão do Santíssimo na praça diante do santuário; inúmeros são também os fatos extraordinários acontecidos não somente depois de permanecer entre as santas paredes, como ocorreu com Elena Budellacci29 em 27 Cfr. P.V. Martorelli, Teatro istorico della Santa Casa, Roma, 1732-1735, vol. I, pp. 346-347. 28 Cfr. P. Cavatorti, Le guarigioni a Loreto. Gli sguardi e le carezze della Madonna, cit., pp. 138 e ss. 29 Cfr. P. Cavatorti, Le guarigioni a Loreto. Gli sguardi e le carezze della Madonna, cit., pp. 133 e ss.


São inúmeros os ex voto doados ao santuário ao longo dos séculos. Além das pessoas comuns, alguns desses milagres envolveram personalidades distintas, soberanos, Papas e santos. Em 1375 o Papa Gregório XI reconhecia que, “por causa dos muitos milagres através dos quais o Altíssimo se digna manifestar ali, uma grande multidão de fiéis aflui, movidos pela devoção”. O Papa Sisto escreveu no frontispício da basílica: “Deiparae domus in qua Verbum caro factum est” (“Casa da Mãe de Deus, na qual o Verbo se fez carne”), e “considerando que milagres contínuos são aqui realizados em favor dos numerosos fiéis que se reúnem de todo o mundo”, conferiu a Loreto o título de cidade e bispado.


46 O Milagre da Santa Casa de Loreto 1974, que se recuperou após vinte anos de enfermidade, mas mesmo à distância, com a oração, a visão de uma pequena imagem de Nossa Senhora de Loreto, ou o uso do óleo abençoado do santuário, como no caso do Sr. Paul Holzgreve30, que entre o Natal de 1999 e janeiro de 2000 se recuperou de uma tetraparalisia, após aplicar nos membros o óleo das lâmpadas da Santa Casa que um conhecido lhe forneceu.

30 Cfr. ibidem, pp. 125 e ss.


Capítulo II

A casa transportada pelos anjos Como chegou a Loreto a Santa Casa? Nas últimas décadas começou-se a dizer que as pedras (veja bem, as pedras, e não as paredes como sempre se entendeu) da Casa de Nazaré foram trazidas para a Itália pelos homens. Na prática, a trasladação angélica da Santa Casa para a colina lauretana é hoje desqualificada por muitos como uma lenda piedosa. Uma operação como esta, inserida no processo de minimização contínua de eventos milagrosos, parece querer colocar a Igreja em sintonia com os tempos, para ter mais credibilidade aos olhos do mundo. Na realidade, porém, essa atitude mina a fé dos humildes. Como se verá mais adiante, de fato há mais do que algumas dúvidas sobre a versão “moderna” da questão lauretana. Entendendo-se que não se trata de um dogma de fé, e que o próprio Papa João Paulo II na Carta para o VII centenário de Loreto escreveu que queria deixar “plena liberdade à pesquisa histórica para investigar a origem do santuário e da tradição lauretana”, precisamente em virtude


48 O Milagre da Santa Casa de Loreto dessa liberdade, sentimo-nos no direito de continuar a pensar que a versão da “trasladação milagrosa” é muito mais razoável e até cientificamente fundamentada. O mesmo padre Giuseppe Santarelli – historiador da questão lauretana, cujos trabalhos também citamos amplamente aqui, dada a quantidade de informações valiosas que oferecem – em apoio ao transporte humano e, portanto, a essa nova versão dos fatos, apresenta apenas sua hipótese, sem nenhuma certeza. No entanto, essa hipótese foi negada com evidências claras por outros estudiosos, conforme se precisará melhor mais adiante. Até mesmo Dom Giovanni Tonucci, bispo delegado pontifício de Loreto de 2007 a 2017, no prefácio da obra de Santarelli, respondendo ao convite da pesquisa histórica livre, escreve que “erra quem se permite considerar suficientemente os que amam a bela tradição do transporte angélico como se fosse uma credulidade superficial”1. Bem, vamos agora tentar entender por que a trasladação milagrosa não é uma invenção nem uma credulidade superficial.

2.1 A trasladação contada historicamente Historicamente houve pelo menos cinco trasladações milagrosas da Santa Casa de Nazaré, ocorridas entre 1291 e 1296: em Tersatto (hoje um bairro da cidade de Fiume); em Ancona (na localidade de Posatora); na floresta da senhora Loreta (atual localidade de Banderuola); no campo de dois irmãos, situado no Monte Prodo (em frente do atual santuário lauretano), e na via pública que deu lugar não somente à atual basílica, mas acima de tudo a uma cidade construída ao redor da insigne relíquia2. 1 2

G. Santarelli, La Santa Casa di Loreto, cit., pp. 6-7. Cfr. G. Nicolini, Le cinque traslazioni “miracolose” della Santa Casa di Nazareth, in Il segno del soprannaturale, nº 216, junho de 2006, p. 28.


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Obviamente, isso não significa que as paredes sagradas de Nazaré não possam ter estado noutros lugares: mas não existe documentação histórico-arqueológica a esse respeito. No entanto, as tradições populares locais de Toscana, Úmbria e Marcas deixam entender que no período em que a Santa Casa partiu de Tersatto (9-10 de dezembro de 1294) e antes de chegar a Ancona (1295), ela viajou e talvez tenha parado em várias localidades da Itália central3. Não foi por acaso que enquanto nas Marcas se fala de “Chegada”, na Úmbria se fala de “Passagem” e em algumas regiões da Toscana, de “Grande Trajeto”: modos diversos para narrar o mesmo fato milagroso, transmitidos de geração em geração. Além disso, a antiga Via Lauretana e os chamados caminhos lauretanos estão localizados precisamente nessas áreas: portanto, é possível que a Santa Casa realmente tenha feito algumas paradas curtas por lá. Dos cinco deslocamentos mencionados acima, no entanto, existem razões muito válidas para acreditar que sejam autênticas. Mas por que razão a Santa Casa teria deixado a Palestina? As três paredes desapareceram da Basílica da Anunciação em Nazaré no mesmo ano (1291), em que os cruzados, com a derrota de São João de Acre tiveram que abandonar definitivamente a Terra Santa. De fato, sempre se disse que a trasladação milagrosa ocorreu para preservar a Santa Casa do domínio islâmico. Seria, portanto, um claro sinal de defesa contra as conquistas do mundo muçulmano, um tema muito próximo de Loreto, como veremos mais adiante. Também é significativo que, a partir da Terra Santa, essa grande relíquia da Cristandade tenha escolhido o território dos Estados Papais, governados pelo Vigário de Cristo, como última etapa de sua viagem. 3 Cfr. G. Santarelli, Tradizioni e Leggende lauretane, cit., p. 161.


Representação das sucessivas trasladações da Santa Casa. Autor anônimo do século XVI. Museu da Pinacoteca, Loreto.

Guglielmo Garratt, professor de arte da Universidade de Cambridge convertido do anglicanismo ao catolicismo e grande historiador de Loreto4, imaginando o interrogatório de um cavaleiro da Terra Santa, se perguntou se Deus permitiria que os muçulmanos transformassem a Santa Casa em mesquita. E respondeu: “Não, Deus não permitirá. A Santa 4

Autor de Loreto, la nuova Nazareth (1893).


Casa desaparecerá se necessário, porque Deus certamente saberá protegê-la da profanação e da destruição. [...] Nazaré embranquecerá os ossos dos guerreiros cristãos; nem sequer um soldado da Cruz permanecerá para defender as paredes sagradas onde o Filho de Deus se tornou homem. O fanatismo dos sequazes do falso profeta profanará todas as outras igrejas cristãs, mas o Onipotente saberá colocar no devido momento um limite ao furor cego dos malvados e, quando mais nenhum braço de homem proteger a Casa bendita, Deus ordenará a seus anjos que intervenham para evitar que ela seja profanada, carreguem-na em seus braços e possamos reencontrá-la em uma terra cristã. Sim, o Criador do Universo […] transportará a testemunha imortal da Encarnação para uma região segura onde milhares de almas acorrerão para venerá-la”5. 5

Cit. in G. Gorel, La Santa Casa di Loreto, cit., pp. 49-50.


52 O Milagre da Santa Casa de Loreto 2.2 O tríplice milagre na primeira trasladação Não se pode deixar de notar o tríplice milagre ocorrido na noite da primeira trasladação (9 a 10 de maio de 1291), quando a Santa Casa desapareceu da Basílica da Anunciação. A preciosa relíquia estava localizada embaixo do prédio, na cripta, e já havia sido preservada da destruição islâmica de 1263, comandada por Alan ed-Din Taybar, lugar-tenente do sultão do Cairo, Bajbars Banokan. Mas, em 1291, como puderam as três paredes desvencilhar-se das fundações e sair do subsolo da igreja? E depois há os dados da velocidade do tempo. As paredes sagradas, repentinamente, no espaço de uma noite, se desvencilharam e desapareceram do porão da basílica, daquele lugar seguro e protegido, que até então sempre as protegera, e chegaram à Ístria. Se até 9 de maio de 1291 a Santa Casa estava em seu lugar original, no dia seguinte, 10 de maio, não estava mais lá. E sem que ninguém fosse capaz de dar uma explicação. Como foi possível – caso se tratasse de uma operação humana – realizar o trabalho em tão pouco tempo, isto é, remover as paredes das fundações, fazê-las sair da cripta protetora sem desmontá-las e levá-las em uma única noite a milhares de quilômetros de distância até Tersatto? E por ordem e com a permissão de quem seria essa “trasladação humana”, dada a ausência de documentos e testemunhos a esse respeito?

2.3 As duas tabuletas antigas Também devemos ter em mente o relatado pelo Bem-aventurado Giovanni Battista Spagnoli, chamado o Mantovano, célebre e autorizado carmelita. Visitando o santuário de Loreto, ele leu numa tabuleta antiquíssima, pendurada em uma das paredes da igreja, a história das trasladações. Em carta enviada ao Cardeal Girolamo Della Rovere em 22 de setembro de 1489 (ou, segundo alguns, em 1479), o


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Mantovano – como já haviam feito Pier Giorgio Tolomei, chamado o Teramano, governador da Santa Casa (em 1472) e Giacomo Ricci (em 1469) – escreveu: “Tendo chegado recentemente à Santa Casa da Santíssima Virgem Maria de Loreto e tendo visto as coisas maravilhosas que Deus opera naquele lugar [...] comecei a observar tudo diligentemente, a admirar a ingenuidade e ler os ‘ex voto’ afixados nas paredes. E aqui vejo uma tábua corroída, por sua longa exposição e antiguidade, na qual estava escrita a razão pela qual aquele lugar alcançara uma autoridade tão grande. Então eu, com zelo piedoso, devido à negligência dos homens que geralmente obscurece até as coisas mais importantes, e para evitar que a memória de um fato tão maravilhoso fosse apagada, queria recolher da tábua consumida pelo altar e pelo pó, a série de fatos”6, ou as trasladações milagrosas da mesma Santa Casa de Nazaré para vários lugares e finalmente para Loreto. O Beato Giovanni Battista Spagnoli prosseguia, sublinhando: “Todas as coisas que dissemos acima, com exceção de pouquíssimas, que esclarecem e não alteram a história, foram tomadas, sempre salvando a verdade da escrita, a partir de uma cópia autêntica da mencionada tabuleta, à qual se deve dar fé”7. Portanto, na época em que ele escreve (segunda metade do século XV), havia duas tabuletas: uma corroída pelo tempo, e a outra – uma cópia – mais legível. Isso significa que a história das trasladações milagrosas não é uma legenda fabricada naquele período. As duas tabuletas, que para estarem na igreja deveriam ter recebido necessariamente a aprovação eclesiástica, eram certamente muito antigas. Segundo alguns estudiosos8, a tabuleta mais antiga foi obra do Beato Pietro Moluzzi, Bispo de Macerata, a cuja 6 Cit. in G. Nicolini, La veridicità storica della miracolosa traslazione della Santa Casa di Nazareth a Loreto, La Voce Cattolica, Ancona, 2004, pp. 25-26. 7 Cit. in ibidem, p. 26. 8 Cfr. ibidem, p. 27.


54 O Milagre da Santa Casa de Loreto diocese o Papa João XXII agregou em 1320 o território de Recanati e, portanto, de Loreto, encarregando-o da custódia da Santa Casa. Baseado em alguns textos e autores antigos, o mesmo Beato Pietro Moluzzi – que viveu na época das trasladações milagrosas e foi testemunha das mesmas – também escreveu sua primeira história, a qual foi usada nas lições escolares para instruir os fiéis e as novas gerações sobre quanto de extraordinário acontecera naquele lugar abençoado. Embora não mais exista o texto original manuscrito, dele subsistem em vários livros antigos extratos ou cópias que autores subsequentes puderam consultar e reescrever. Para confirmar a antiguidade dos registros – escritos e remontando às origens dos eventos milagrosos –, existe nos Arquivos dos Cônegos de Loreto uma Pequena Crônica da Santa Casa, impressa em 1844, que menciona um documento de 1324, pertencente ao Arquivo do Estado de Pádua. Nele se leem as seguintes palavras: “Triginta abhinc annis Domus Beatae Virginis Mariae de Nazareth per manus Angelorum translata fuit per mare Adriaticum prope Urbem Recineti”, ou seja, “Trinta anos atrás, a Casa da Bem-Aventurada Virgem Maria de Nazaré foi transportada pela mão de Anjos ao outro lado do mar Adriático, próximo à cidade de Recanati”. O autor da Pequena Crônica da Santa Casa que faz menção a esse documento é o Cônego Raffaele Sinibaldi, capelão da Casa Real Bourbon. Ele afirmou que o texto autêntico do documento mais importante foi apresentado a S. Exa. Dom Stefano Bellini, Bispo de Loreto, enquanto este escrevia uma história sobre a Santa Casa.

2.4 Primeira etapa: Tersatto O primeiro local onde a Santa Casa se estabeleceu depois de deixar Nazaré foi Tersatto, que agora se tornou um distrito da cidade de Rijeka (Fiume, em italiano), na Croácia, e onde


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ainda existe um santuário dedicado a Nossa Senhora, construído em memória da permanência da santa residência. O evento milagroso remonta à noite de 9 para 10 de maio de 1291. A ligação entre Tersatto e Loreto sempre foi muito forte ao longo dos séculos. Não é por acaso que na praça do santuário da região das Marcas foi construído no século XVI o Palácio Ilírio (Illyria é o nome antigo da Croácia), destinado ao treinamento de clérigos dálmatas e albaneses. Além disso, os peregrinos do outro lado do Adriático sempre foram numerosíssimos em Loreto. Em Tersatto, os testemunhos da vinda da Santa Casa são inúmeros. Ao longo da escadaria monumental que conduz ao santuário, no meio do caminho, em frente a uma das capelas que se alinham aos degraus, estas palavras, provavelmente datando do século XIV, estão inscritas sobre o mármore: “A Casa da Bem-Aventurada Virgem Maria de Nazaré chegou a Tersatto no ano de 1291, em 10 de maio, e partiu em 10 de dezembro de 1294”9. Conforme relatado em sua Historia Tersattana10 pelo frade Francesco Glavinich, franciscano da Ístria, na manhã de 10 de maio de 1291, na clareira da floresta então presente naquele território, alguns lenhadores viram um edifício que nunca haviam visto antes, constituído por uma pequena casa com um altar dentro. O fato não passou despercebido e as notícias da descoberta logo chegaram ao conhecimento do pároco da região, Pe. Alessandro Giorgiewich, que estava na cama doente, gravemente acometido de hidropisia. Ansioso para ver com seus próprios olhos o pequeno edifício misteriosamente chegado ao território de sua paróquia, o sacerdote rezou a Nossa Senhora, que lhe apareceu para curá-lo e informá-lo de que as paredes em questão eram as de sua habitação em Nazaré, afastada das profanações dos infiéis. 9 Cit. in G. Gorel, La santa Casa di Loreto, cit., p. 51. 10 Para uma síntese, cfr. G.M. Pace, Miracolosa traslazione a Loreto della demora della Santissima Annunziata, cit., pp. 8 e ss.


56 O Milagre da Santa Casa de Loreto “Sabes – disse Maria Santíssima – que eu nasci nesta casa; nela cresci na minha infância. Aqui, no anúncio do arcanjo Gabriel, eu concebi o divino Filho por obra do Espírito Santo. Aqui o Verbo se fez carne. Os apóstolos consagraram esta habitação e celebraram o augusto sacrifício... Deus, para Quem nada é impossível, é o autor desse prodígio e, para que tu mesmo sejas disso a testemunha e o apóstolo, sê curado. Tua pronta recuperação da saúde após tão longa doença será a prova deste milagre”11. Tendo em vista a natureza excepcional do sucedido, o vice-rei da região, Nicola Frangipani, enviou a Nazaré uma delegação de quatro homens, incluindo o próprio Pe. Alessandro, a fim de certificar-se de que se tratava realmente da Santa Casa de Nossa Senhora. Os enviados puderam constatar que na Basílica da Anunciação, as paredes da habitação onde a Encarnação ocorreu não estavam mais lá: restavam apenas as fundações, cujo perímetro concordava exatamente com o das paredes que chegaram a Tersatto. Tudo foi escrito, com escritura pública, e conservado. No entanto, entre 9 e 10 de dezembro de 1294, as três paredes deixaram a Croácia tão misteriosamente quanto haviam chegado três anos e meio antes, e foi então que começou a ser construída uma pequena capela para recordar que naquele local havia parado a Casa de Nossa Senhora. Em 1420, o Papa Martinho V concedeu indulgências a todos aqueles que tinham contribuído para a manutenção do santuário croata. Nicolau V, ao aceitar os franciscanos como guardiões da igreja, falou da mesma como de um lugar de culto a Deus que ficou famoso nos séculos passados. O Papa Urbano V, que chegou a Loreto em 1367, pôde ver a dor de muitos peregrinos croatas que ainda lamentavam a saída da Santa Casa de suas terras (“Volta, volta para nós, bela Senhora, com a tua Casa”, era a quei11 Cit. in G. Gorel, La Santa Casa di Loreto, cit. p. 53.


Representação das sucessivas trasladações da Santa Casa. Autor anônimo do séc. XVI. Museu da Pinacoteca, Loreto. O autor deste trabalho pinta as cidades idealizadas da maneira medieval e os exércitos do duque de Urbino com o uniforme militar do século XVI. A casa de Nossa Senhora aparece em uma Nazaré cercada por muros (1), atacada pelos infiéis. Em uma segunda representação (2), é transportada por anjos e em uma terceira imagem (3) a casa agora repousa com segurança em outra cidade cercada por muros, do outro lado do mar. (Museu do Vice-reinado do México). O primeiro local onde a Santa Casa pousou depois de deixar Nazaré foi Tersatto, hoje um distrito da cidade de Rijeka (Fiume) e onde ainda existe um santuário dedicado a Nossa Senhora, construído em memória da permanência da Santa Casa.

Tersatto


58 O Milagre da Santa Casa de Loreto xa mais comum)12. Foi para consolá-los pela grave perda que o Papa lhes deu uma imagem de Nossa Senhora13 para ser colocada em seu santuário. O pesar dos croatas, no entanto, persistiu ao longo dos séculos, como um supremo atestado da autenticidade do lar da Santíssima Anunciada. Martorelli, citando o padre Riera, se refere a uma enorme peregrinação ocorrida em 1559, quando quinhentos fiéis provenientes de Tersatto – entre homens e mulheres, no habitual caminho de joelhos, tanto na igreja quanto em volta da Santa Casa, com as velas acesas na mão –, repetiam em voz alta: “Voltai, voltai para nós, Maria, voltai; por que nos abandonaste, Maria?”14. Além disso, a devoção a Nossa Senhora de Loreto, além de Tersatto, continua muito viva em toda a Croácia15.

2.5 Segunda etapa: Ancona Segundo a tradição, após a partida de Tersatto, a Santa Casa chegou a Ancona, que sempre foi um importante porto do Estado Pontifício. Sua presença na principal cidade da região das Marcas durou cerca de nove meses durante o ano de 1295. Testemunha-o um documento (do qual existe apenas uma cópia, encontrada em 1732 na caixa das “relíquias autênticas” ainda existentes naquele ano na Catedral de Ancona) de um sacerdote contemporâneo dos fatos, um certo Pe. Matteo, que logo após, nos anos das trasladações milagrosas, deixou um escrito, por devoção pessoal, para que não se perdesse a memória daquele prodigioso evento, 12 Cfr. P.V. Martorelli, Teatro storico della Santa Casa, cit., vol. 2, cap. 4, p. 353. 13 Cfr. G.M. Pace, Miracolosa traslazione a Loreto della dimora della Santissima Anunziata, cit. p. 29. 14 P. V. Martorelli, Teatro storico della Santa Casa, cit., vol. 2, cap. 4, p. 353. 15 Só para citar um exemplo, em 217 de maio se inaugurou na colina Gaj de Primôsten uma estátua de Nossa Senhora de Loreto de 17 metros, incluindo as escadas de acesso e o pedestal (cfr. Il Messaggio della Santa Casa, nº 7, julho-agosto de 2017, p. 269).


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reverenciado pelos habitantes de Ancona com a construção de uma capela na colina com vista para o porto, onde ficava a Santa Casa. Assim recita o escrito: “Eu, Padre Matteo, reitor e pároco de Santo Onofre fora da Porta de Campo Marte da cidade de Ancona, por minha devoção, deixo esta lembrança desse milagre, que é do ano de 1295. Na floresta da Contrada de Posatora, a Santa Casa da Mãe de Deus pousou por nove meses e, como estou tão consternado e com um reduzido número de pessoas devido à grande guerra e às pragas sofridas, para recordá-lo queria colocar este texto sob a pedra sagrada da Igreja de Santa Catarina, a fim de agradar a Santíssima Virgem em seu tempo. Humílimo Servo de Deus”16. Muito mais probatório do que o fato milagroso é principalmente a evidência manifestada nas três igrejas edificadas pelos bispos locais em memória da permanência da Santa Casa na colina de Posatora de Ancona e as sucessivas trasladações na área de Recanati. Uma dessas igrejas – na localidade de Barcaglione, nas colinas entre Ancona e Falconara Maritima – permanece no mesmo lugar onde havia uma capela que recordava a visão, pelos habitantes do local, da chegada da Santa Casa proveniente do mar. Depois, devemos mencionar a atual igreja de Posatora, na mesma área montanhosa onde a Santa Casa esteve por nove meses. O próprio nome da localidade é indicativo e deriva do latim “posat et ora” – isto é, a Casa de Nossa Senhora pousou ali, Ela rezou pela cidade e a população rezou a Ela. Finalmente, mais importante ainda é a construção, ao lado da Catedral de São Ciríaco, da igreja de Santa Maria de 16 Cit. in G. Nicolini, La veridicità storica della miracolosa traslazione della Santa Casa di Nazareth a Loreto, cit., p.53. Deve-se notar, como o próprio Nicolini observa à página 54, que a igreja de Santo Onofre era muito próxima à de Santa Catarina, e que a área de Posadona fazia parte da mesma jurisdição paroquial.


60 O Milagre da Santa Casa de Loreto Nazaré, no início dos anos 1300, agora desaparecida devido à destruição da guerra. Ela foi consagrada pelo bispo de Ancona, contemporâneo e testemunha das trasladações, precisamente para comemorar e celebrar liturgicamente todas as trasladações milagrosas da Santa Casa. Além disso, na igreja de Posatora, duas lápides testemunharam o milagre. Uma é do século XIII-XIV e existiu até 1957 quando, infelizmente, foi perdida como resultado de obras de restauração, mas ainda há testemunhas oculares que se recordam e testemunham. A outra placa, que remonta a 1545, ainda está presente na igreja: evidentemente traduziu e copiou a primeira. Nela ainda se pode ler: “Nesta floresta, a Casa da Mãe de Deus pousou durante nove meses – MCCXCV”. A primeira placa, na parte legível que as testemunhas lembram, estampava em latim vulgar: “Quita futa freposata a Madonna de Loreta” (ou seja, “daqui fugiu, depois de ter pousado, a Madonna de Loreto”)17. Interessante porque já se usa o termo “Loreto”, que indica o local da floresta da senhora Loreta, da trasladação milagrosa subsequente.

2.6 Terceira etapa: a floresta da senhora Loreto Também em 1295, as três paredes da Santa Casa chegaram a um bosque na área de Recanati, localizada atrás da atual estação ferroviária de Loreto18. O local, selvagem e pantanoso, era propriedade de uma senhora recanatense chamada Loreta, da qual deriva o nome da cidade que abriga o santuário. Hoje, na área onde a preciosa relíquia foi colocada, há uma pequena igreja em memória. A localidade é

17 Cfr. G. Nicolini, La veridicità storica della miracolosa traslazione della Santa Casa di Nazareth a Loreto, cit., pp. 57-58. Cfr. também G. Nicolini, Le cinque traslazioni “miracolose” della Santa Casa di Nazareth, cit., pp. 28 e ss. 18 Cfr. G. Nicolini, La veridicità storica della miracolosa traslazione della Santa Casa di Nazareth a Loreto, cit., p. 68.


A igreja de Santa Maria Libertadora foi construída no século XVI sobre um edifício sagrado anterior, do século XIII. Segundo os documentos históricos e arqueológicos existentes, de fato, na viagem que conduziu a Santa Casa de Nazaré até as Marcas, os anjos “pousaram” suas três paredes durante nove meses no exato local onde está hoje a igreja.

chamada “Banderuola”, porque alguns devotos, no momento dos eventos milagrosos, ergueram uma bandeira no topo de um pinheiro muito alto para mostrar aos peregrinos vindos de longe, o ponto exato onde se encontrava a Santa Casa. A Casa de Nossa Senhora permaneceu por alguns meses nesse local. Evidencia-o a já citada antiquíssima tabuleta exposta na mesma Santa Casa e referida nos estudos do mencionado Teramano (em 1472) e do Beato Giovanni Battista Spagnoli (em 1479). Não é só isso. Teramano recebeu o depoimento, sob juramento, de dois velhos moradores locais: Paolo di Rinalduzio e Francesco il Priore19. O primeiro relatou ter sabido que um seu ancestral havia visto com os próprios olhos a Santa Casa vindo pelo mar do mar e se colocando depois na floresta. O segundo declarou que um de seus antepassados havia visitado a Santa Casa quando esta ainda estava na propriedade da senhora Loreta 19 Cfr. G. Nicolini, La veridicità storica della miracolosa traslazione della Santa Casa di Nazareth, in Il segno del soprannaturale, nº 220, outubro de 2006, pp. 28-29.


62 O Milagre da Santa Casa de Loreto e testemunhado sua milagrosa mudança para o Monte Prodo. Pode-se sorrir para esses testemunhos e considerá-los superficiais e não conclusivos. Mas não há reações válidas para não os levar em consideração, considerando também a seriedade do escritor que os reproduz. Além dos dois testemunhos de Teramano, houve a confirmação do evento milagroso por São Nicolau de Tolentino, que atestou a chegada da Santa Casa, e de Frei Paolo della Selva, um eremita que morava na vizinha colina de Montorso e também teve a revelação sobrenatural sobre a verdadeira origem das três paredes20. Os peregrinos começaram imediatamente a se reunir neste lugar sagrado, apesar de ser uma área desprovida de qualquer equipamento de hospitalidade. Mas havia tanta fé e tanto entusiasmo que eles não se importavam, preferindo ficar no acampamento dia e noite, em oração sob as árvores, a ir embora. Mantovano escreveu que os peregrinos também afluíram de regiões remotas. Todo esse fluxo, no entanto, trouxe problemas. Como Ricci explica em sua Historia Virginis Mariae Loretae (século XV), bandidos e criminosos começaram a se enfurecer, roubando os devotos, de modo a impossibilitar a visita à Santa Casa. Esta foi evidentemente a principal razão da nova mudança, desta vez para um pouco mais ao alto, no Monte Prodo. No entanto, os milagres naquele lugar prosseguiram. Testemunhas e historiadores como Riera e Angelita dizem que a área onde a Santa Casa passou oito meses continuou a ter flores e grama, ao contrário das áreas circundantes, invadidas por arbustos e espinhos. Infelizmente, tudo desapareceu quando os agricultores locais, por ignorância, começaram a limpar a área e a trabalhar a terra, cancelando aqueles sinais milagrosos. Na operação de recuperação da área, ordenada pelo Papa Gregório XIII em 1575, caíram as 20 Cfr. G. Gorel, La santa Casa di Loreto, cit., pp. 62 e ss.


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árvores que durante trezentos anos se curvaram em direção ao mar, de onde a Casa da Virgem Maria havia chegado21. No local, contudo, como mencionado, foi construída uma capela, ainda hoje existente. Quanto ao “milagre das árvores”, julgamos útil ao leitor reproduzir o relato feito em 1790 pelo Pe. Antonio Gaudenti, patrício de Osimo e arquidiácono da basílica lauretana, citando literalmente o que foi escrito na época mais próxima dos fatos pelo célebre Torsellini (no primeiro livro, sexto capítulo de sua monumental e já mencionada obra Lauretanae Historiae libri quinque): “É notório, e não crença vã, que, na chegada da Casa de Maria, as árvores em longas filas se curvaram à sua passagem, e ficariam inclinadas de tal maneira a ponto de cair no chão, seja por sua idade avançada ou pela força dos ventos, ou porque foram cortadas embaixo; e elas se alinharam em longa ordem, inclinaram-se para se mostrarem aos peregrinos como testemunhas de um milagre. A memória ainda está fresca e eu – prossegue o mesmo autor – posso vos assegurar que um homem muito digno de fé me garantiu que não tinha mais de vinte anos e viu frequentemente muitas dessas árvores ficarem tão curvadas, e inclinadas com todo o tronco voltado para o mar, e que as mesmas árvores foram deixadas especialmente lá para fins religiosos cortando-as do resto da floresta, e essas, como foi dito, não mais de vinte anos atrás, pela insensatez e inexperiência dos camponeses, foram deixadas e jogadas ao chão, para não servirem de impedimento ao arado”22.

21 Cfr. G. Santarelli, Tradizioni e Leggende Lauretane, cit., pp. 160-161. Sobre o milagre da casa também escreveram, entre outros, Torsellini e Martorelli. 22 Cit. in A. Gaudenti, Storia della Santa Casa di Loreto esposta in dieci brevi ragionamenti fra un sacerdote custode di S. Casa ed un devoto pellegrino, segunda edição, Loreto 1790, p. 41.


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2.7 Quarta etapa: o campo dos dois irmãos As três paredes chegaram ao Monte Prodo, onde na época não havia nada além de poucas árvores e cabanas. O local escolhido desta vez foi o campo de dois irmãos, Simone e Stefano Rinaldi degli Antici23. Agora é difícil identificar o ponto exato em que a Santa Casa chegou. No entanto, sabe-se que ficava em frente daquele que é hoje o santuário. De fato, ainda há uma pequena pedra esculpida na parede, no final do atual Palácio Apostólico e representando uma imagem de Nossa Senhora sentada acima da Santa Casa. Abaixo estava a inscrição “visitatio custodivit” (ou “este local guarda a visita” da Santa Casa). Os dois irmãos, felizes por terem sido privilegiados pela Divina Providência, logo começaram a brigar. Os numerosos peregrinos que afluíam à residência sagrada, de fato, deixavam ricos dons votivos em homenagem à Mãe de Deus, e foi assim que os dois, tomados pela ganância e pelo desejo de obter lucro, entraram em conflito. A situação tornou-se tão problemática que o município de Recanati recorreu ao Papa Bonifácio VIII (informado e ciente das trasladações milagrosas, como atestou no século XVIII o bispo de Montefeltro, Valerio Martorelli, já mencionado), para resolver a disputa e talvez expropriar a terra aos dois irmãos e torná-la terra pública. Na realidade, não havia necessidade de nenhuma intervenção humana, porque a Santa Casa, em dezembro de 1296, deixou o campo e permaneceu onde ainda é possível venerá-la hoje. Foi a quinta e última trasladação.

23 Cfr. G. Nicolini, Le cinque traslazione “miracolose” della Santa Casa de Nazareth, in Il Segno del soprannaturale, nº 22, dezembro de 2006, pp. 28-29.


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Bandidos e criminosos começaram a se enfurecer, roubando os devotos, de modo a tornar impossível a visita à Santa Casa. Esta foi evidentemente a principal razão da nova mudança, desta vez um pouco mais ao alto, no Monte Prodo. Revestimento de mármore. Antonio de Sangallo, 1531-1534

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66 O Milagre da Santa Casa de Loreto 2.8 Quinta etapa: a via pública No final de 1296, portanto, a Santa Casa “pelo ministério angélico” pousou no meio da via pública que ligava Recanati a Ancona e Porto Recanati. As três paredes são colocadas na rua, sem fundações próprias. Somente quando suas estáticas foram consideradas inseguras é que se inseriram as infraestruturas e uma grande parede ao redor. Para se entender que a localização da Santa Casa na via pública não era obra humana, bastaria o senso comum mais básico. Como explicar que a autoridade possa ter permitido erguer Em 1295, as três paredes da Santa Casa chegaram a um bosque na área de Recanati, localizado atrás da atual estação ferroviária de Loreto. Hoje existe ali uma capela como lembrança. O local é chamado “Bandeirola”, porque alguns devotos, no momento dos eventos fll .W. f U - IG. UI ,Cfll.0 milagrosos, ergueram uma bandeira no lllmltffl ~\IJl'I N n u . topo de um pinheiro muito alto, para (ffl~'il trllfflU 'l.\l't mostrar aos peregrinos o ponto exato ,,......(llll,l(;l)llll,\--...\1.. Nllllfl'tfll'tlllMUa'Gl,I onde estava a Santa Casa.

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um edifício em importante via pública ao custo de refazer um trecho considerável da mesma, e que, além disso, esse prédio foi construído sem fundações próprias, uma suposta omissão sanada com subsequentes trabalhos de infraestrutura muito mais exigentes e caros do que as fundações comuns com as quais todo edifício é dotado?

2.9 Algumas precisões Quanto às datas, deve-se notar que de modo geral se convencionou considerar 1294 como sendo o ano em que Santa Casa chegou a Loreto. Na realidade, porém, a única certeza é a de que naquele ano a preciosa relíquia deixou Tersatto e pousou em solo italiano. De acordo com o mencionado Prof. Giorgio Nicolini24, o erro de cálculo se deve ao arquivista recanatense Girolano Angelita, que no século XVI definiu a data de 10 de dezembro de 1294 como sendo a da chegada a Loreto, confundindo a data do desaparecimento de Tersatto (precisamente em 10 de dezembro de 1294) com a da chegada à área de recanatense, onde depois surgiu Loreto. No que diz respeito à atestação da autenticidade das trasladações milagrosas ocorridas naqueles anos, é digna de nota a construção da igreja de Forio, na ilha de Ischia. Em 1295, após as notícias sobre a Santa Casa trazidas pelos pescadores locais que retornaram de Ancona, os habitantes de Forio começaram a construir uma igreja dedicada precisamente aos milagres ocorridos na região das Marcas, antes mesmo que esses eventos milagrosos tivessem uma conclusão (em 1296), sinal de que já na época havia um amplo conhecimento do grande acontecimento25. 24 Cfr. G. Nicolini, La veridicità storica della miracolosa traslazione della Santa Casa di Nazareth a Loreto, cit., pp. 78-79. 25 Cfr. ibidem, pp. 80-81.


68 O Milagre da Santa Casa de Loreto 2.10 Os anjos ou... a família Angeli? Neste ponto, cumpre fazer alguns esclarecimentos sobre a versão moderna, a qual parece ter substituído quase totalmente a versão tradicional, oficialmente reconhecida durante séculos pela autoridade da Igreja e dos fiéis. O milagroso voo angelical seria simplesmente uma sublimação e um retrabalho popular de um evento meramente humano – mesmo se assistido pela Divina Providência –, atribuível a certa família Angeli ou De Angelis? A suposta fonte histórica à qual se referem os que apoiam essa hipótese26 (porque é uma mera hipótese) é o chamado Chartularium Culisanense, uma coleção de documentos de vários tipos, dos quais não se possui o original, mas apenas uma cópia (verdadeira ou presumida) de 1859, atualmente preservada na biblioteca dos monges de Montevergine (Avellino). Esse documento, de acordo com a publicação do Prof. Andrea Nicolotti, a qual será discutida a seguir, é uma farsa histórica criada no século XIX por uma família de Culisano (Palermo), cujo sobrenome é De Angelis, para fazer as pessoas acreditarem que sua família deriva da linhagem principesca “Angeli” de Épiro. Na folha nº 181 dessa falsificação se faz menção ao elenco dos bens totais que Itamar, filha do déspota de Épiro, Nicéforo I Angeli-Commeno, trouxe a Felipe d’Anjou, príncipe de Taranto e filho do rei de Nápoles, Carlos II d’Anjou, por ocasião de seu casamento, ocorrido em 1294. Entre esses bens, destacam-se as “pedras sagradas” retiradas da casa de Nossa Senhora (“sanctas petras ex domo 26 Quem sustenta com mais força tal hipótese é o padre Giuseppe Santarelli em La Santa Casa di Loreto, cit., pp. 219 e ss. Para sua refutação, o estudo recente mais importante é sem dúvida de G. Nicolini, La veridicità storica della milagrosa traslazione della Santa Casa di Nazareth a Loreto, cit., pp. 40 e ss. Neste trabalho, as informações são extraídas de ambas as pesquisas.


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Dominae Nostrae Deiparae ablatas”) e uma tábua de madeira pintada com sua imagem, segurando o Menino Jesus nos braços. Mesmo que se queira admitir, sem conceder, uma autenticidade ao documento acima mencionado, dizer que foram retiradas algumas pedras “da Santa Casa” não significa que estejamos nos referindo à Casa de Nazaré, porquanto a Virgem morou em várias casas durante sua vida (como em Jerusalém, Egito, Éfeso). De qualquer forma, o próprio documento desafia a interpretação de que toda a Santa Casa foi transportada, pois fala apenas de “pedras sagradas retiradas”: portanto, não toda a “Santa Casa”, mas no máximo algumas pedras! Em vez disso, existe em Loreto toda a “Santa Casa”, e não “algumas pedras” da mesma. Além disso, sempre se disse ou se entendeu que, ao deixarem milagrosamente Nazaré, permaneceram intactas as paredes do quarto de Maria, e não algumas pedras. Também porque se fossem simples pedras, tornar-se-ia absurdo falar de “Santa Casa”, pois do contrário não haveria hoje em Loreto parte da residência de Nossa Senhora, mas simplesmente algumas de suas pedras. Ademais, muitos problemas não são compreendidos. Como pôde Nicéforo Angeli-Commeno dispor a seu bel-prazer da insigne relíquia, que se encontrava então debaixo da Basílica da Anunciação? Nenhuma autoridade eclesiástica local nada tinha a reclamar sobre isso? E depois, admitindo-se que as operações de transporte também foram projetadas para preservar a casa da violência islâmica (a conquista de São João d’Acre ocorreu em 1291), como é que esses bens totais acabaram no território de Loreto, naquela que na época era Estado da igreja? Como é que nada se sabe sobre essa viagem que certamente exigiria dinheiro, tempo e organização?27 A hipótese mais difundida fala de um presente ao Pon27 Cfr. G.M. Pace, Miracolosa traslazione a Loreto della dimora della Santissima Annunziata, cit., pp. 18 e ss.


70 O Milagre da Santa Casa de Loreto tífice, mas não tem fundamento sólido. No entanto, embora exista a possibilidade de se transportar fisicamente por mar grandes quantidades e pesos de pedras (mas não uma casa intacta!), o motivo das cinco trasladações não é realmente explicado e, acima de tudo, não está claro como foi possível reconstruir a relíquia com todas as características verdadeiramente excepcionais (sem fundações, com argamassa do Oriente Médio datando de séculos e séculos antes, na via pública, parcialmente transportadas no vazio etc.), de que já falamos. Ao longo dos séculos, a trasladação ou, melhor, as “trasladações milagrosas” foram questionadas por personalidades individuais dotadas de um espírito materialista, racionalista e desconfiado em relação a toda intervenção sobrenatural: era o espírito já presente desde o Humanismo. Mas em nossos dias o Prof. Nicolini denuncia as manipulações que alguns estudiosos contemporâneos fazem das pinturas, representações e xilogravuras dos séculos XV e XVI, acreditando que nessas reproduções as duas “hipóteses” de transporte humano e trasladação milagrosa já são mostradas, como, por exemplo, em uma pintura do século XVI preservada no Museu-Pinacoteca do Santuário. Sendo uma espécie de mapa geográfico, nesta pintura o autor descreve os navios e a Santa Casa levada pelos anjos acima do mar. A intenção é bem ilustrada na legenda abaixo, onde está expressamente escrito que a pintura mostra tão-somente as “trasladações milagrosas”, enquanto os navios são apenas um embelezamento da obra; além disso, o que algumas pessoas chamam de “Casa Santa” é a cabine que os navios medievais tinham na proa e onde ficavam as ferramentas úteis à navegação. Mas a interpretação “manipulada” nos livros de alguns estudiosos recentes, que publicam apenas painéis parciais sem descrição inequívoca do autor, faz crer aos leitores que realmente queriam representar as duas “hipóteses”: a da trasladação milagrosa


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e o transporte humano, naturalmente dando mais crédito à segunda hipótese que à primeira. O mesmo vale para uma impressão de 1582-1585, preservada na Galleria degli Uffizi de Florença: os pequenos detalhes de um navio com uma casa e sem vela não mostram nada, uma vez que o autor, também neste caso, nas notas escritas embaixo, fala apenas da trasladação milagrosa. A existência de céticos sobre a questão lauretana, como sobre muitos outros acontecimentos, não pode, portanto, invalidar sua veracidade histórica. Além disso, se no passado os negadores se concentraram mais na autenticidade da Santa Casa, foi apenas em torno do início do século XX, com o cônego Ulysses Chevalier, que se começou a falar de transporte marítimo e, portanto, de transporte humano da mesma. Mas a autoridade eclesiástica sempre se distanciou dessa hipótese e vários autores católicos a negaram em muitos textos, como veremos em breve. Voltando ao Chartularium Culisanense, em um estudo de 2012, o professor Andrea Nicolotti28 (do Departamento de Estudos Históricos da Universidade de Turim), acima mencionado, minimizou bastante a suposta importância decisiva do documento, de cuja autenticidade duvida. Em suas conclusões, embora se julgue incapaz de tomar uma posição clara sobre o tema devido à falta de evidências, ele diz claramente que, em sua opinião, “o caráter substancialmente falso da história bizantina e dos documentos produzidos pela família De Angelis [de Palermo, em cujo palácio o Chartularium foi encontrado e que não tem conexão com os governantes de Épiro] deve nos levar a suspeitar fortemente da credibilidade de todas as fontes que eles creditam”29. Se 28 Cfr. A. Nicolotti, Su alcune testimonianze del Chartularium Culisanense, sulle false origini dell’Ordine Costantiniano Angelico di Santa Sophia e su taluni suoi documenti conservati presso l’Archivo di Stato di Napoli, in www.lavocecattolica. it/falseorigini.cartularium.pdf2012. 29 A. Nicolotti, cit., p. 17.


72 O Milagre da Santa Casa de Loreto isso for verdade, toda a hipótese do transporte humano e da sublimação popular da família Angeli nos anjos do Céu é dramaticamente menor. E, para apoiá-lo, nem mesmo a descoberta no subsolo da Santa Casa de duas moedas cunhadas pela família Angeli e datadas entre 1287 e 130830 é suficiente (nos tempos antigos, havia uma necrópole naquele local), pois era normal fazer doações por ocasião da visita-peregrinação. E porque se algo na presença delas atesta um gesto de devoção de alguns peregrinos, certamente não atesta o transporte humano nem a reconstrução do edifício naquele lugar. Assim, a presença dessas moedas e de cinco cruzes de pano vermelho que pertenciam aos cruzados apenas confirma a autenticidade da Santa Casa, que chegou ao final do século XIII na região das Marcas. Igualmente inconsistentes são as referências – aludidas entre o final do século XIX e o início do século XX – a supostos documentos do Arquivo Secreto do Vaticano31, ocultos ou destruídos (não se sabe bem) porque teriam negado a tese do transporte milagroso da Casa de Maria, apoiada por todos os Papas e da igreja até então. É uma insinuação generalizada na época de Leão XIII pelo bispo de Dijon, Dom Landrieux, que saberia de sua existência com o médico Giuseppe Lapponi32, cético em relação a tudo o que estivesse relacionado com Loreto. No entanto, não há evidências em apoio a essa hipótese, apenas rumores de corredor provavelmente interessados em semear confusão. É possível que em muitos anos nem mesmo os inimigos da questão lauretana, como o próprio Lapponi, tenham conseguido provar alguma coisa? 30 Cfr. G. Nicolini, La veridicità storica della miracolosa traslazione della Santa Casa di Nazareth a Loreto, cit., pp. 47-48. 31 Cfr. G. Nicolini, La veridicità storica della miracolosa traslazione della Santa Casa di Nazareth a Loreto, cit., pp. 44-45. 32 Cfr. G. Santarelli, La Santa Casa di Loreto, cit, pp. 211 e ss.


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Em suma, embora tudo permaneça envolto em certo mistério (o mesmo podemos dizer de inúmeros outros eventos da história sagrada e de milagres recentes), falar sobre a trasladação “milagrosa” da Santa Casa ainda parece ser o mais racional e razoável, e não se vê a razão de tanta fúria em relação a ela precisamente da parte de certo mundo católico.

2.11 A misteriosa noite entre 9 e 10 de dezembro... Um atestado adicional da trasladação milagrosa é encontrado em festivais populares. Nossa Senhora de Loreto é a padroeira da região das Marcas, e 10 de dezembro, dia em que a trasladação da Santa Casa é lembrada liturgicamente, também foi proclamada pelas instituições civis “Jornada das Marcas”. Bem, a este festival estão ligadas tradições seculares que, infelizmente, após as profundas mudanças sociais e culturais ocorridas a partir do final da década de 1960, foram se perdendo. No entanto, deve-se dizer que nos últimos tempos houve uma recuperação, especialmente ditada pelo desejo de conservar o precioso e rico patrimônio folclórico local. Tradicionalmente é na tarde e na noite da véspera da Trasladação que ocorrem os eventos mais importantes e característicos. De fato, 9 de dezembro é para os marquesianos a noite da “Vinda”, ou seja, aquela em que se recorda a trasladação milagrosa por mãos angélicas de todas as muralhas da Santa Casa de Nazaré para a colina lauretana. Em nível popular e de modo espontâneo, as comemorações da chegada da Santa Casa começaram quase imediatamente já no século XIV33. No entanto, sua formalização e celebração de forma organizada se deram no século XVII, sobretudo graças à pregação e ao trabalho dos capuchinhos, 33 As informações foram extraídas de G. Santarelli, Tradizione e Leggende Lauretane, cit., pp. 26 e ss.


Em muitas igrejas da região das Marcas conservam-se grupos esculturais típicos, geralmente em madeira, representando a Santa Casa em forma de igreja dotada de um pequeno campanário e encimada pela Virgem com o Menino Jesus.

Foto: Longarini Bruno, Loreto.

“Fogos da Chegada” e procissão em Loreto

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Igreja do Colégio dos Cônegos de San Secondo, Asti


A Casa transportada pelos anjos

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padre Bonifacio de Ascoli e Frei Tommaso de Ancona. Em 1624, o município de Recanati (ao qual pertencia Loreto) ordenou que, na noite de 9 de dezembro, “com o disparo dos morteiros e o som de todos os sinos, se fizessem fogueiras no território do município e se alumiassem lamparinas em todas as janelas da cidade, e os agricultores pelos campos acendessem fogos”34. A partir daí começou a tradição das “fogueiras” (chamadas “focaracci” na área de Macerata e Fermano, “fugarà” na área de Ancona e “fochère” na área de Ascoli), que são acesas no campo, nas praças das igrejas e nos bairros das aldeias de toda a região para iluminar o caminho de Nossa Senhora e do Menino Jesus que chegam fugitivos em sua casa. Não é por acaso que em inúmeras igrejas da região das Marcas existem grupos esculturais típicos, geralmente em madeira, representando a Santa Casa em forma de uma igreja dotada de pequena torre com sino, sobre a qual estão a Virgem e o Menino. É por isso que, nessa região, Nossa Senhora de Loreto é também conhecida como Madonna del “tettarello” (Nossa Senhora do teto), ou “de li cuppiti”(do telhado), no dialeto das Marcas, porque está representada sobre o telhado da casa. Embora variem de região para região, de bairro para bairro e também de família para família, os “fogos da Vinda” eram geralmente acesos antes ou depois do jantar, mas, é claro, sempre à noite. As pessoas se reuniam ao redor da fogueira, recitavam o Santo Rosário e cantavam a Ladainha lauretana, acrescentando canções e hinos marianos de devoção popular. Em cada casa também se colocava pelo menos uma vela na janela ou no peitoril. Tudo isso foi recentemente e louvavelmente recuperado por várias paróquias e comunidades locais. Em certa época era tradição os avós ou os pais contarem aos pequenos a história da trasladação mi34 Cit. in G. Santarelli, Tradizioni e Leggende Lauretane, cit., p. 30.


76 O Milagre da Santa Casa de Loreto lagrosa, não sendo difícil imaginar o quanto a imaginação fazia cócegas nas crianças. O momento culminante, no entanto, geralmente acontecia às 3 horas da manhã, quando as três paredes pousaram na região das Marcas. Naquele momento, os sinos tocavam e muitos chefes de família disparavam vários tiros de espingarda das janelas para dar as boas-vindas. Depois se dirigiam à igreja para rezar ou assistir à Missa.


Nascimento da Virgem. Detalhe do políptico da Coroação de Maria Virgem, Vittore Crivelli, 1485-1489. Pinacota Civica “Vittore Crivelli”,Sant’Elpidio a Mare (FM).

Capítulo III

Onde nasceu Nossa Senhora? Concentremo-nos agora em outro fato marcante ocorrido na Santa Casa, além daquele, fundamental, da Anunciação. A casa de Nazaré, agora em Loreto, é também o lugar onde Nossa Senhora nasceu? De fato, o dia 8 de setembro, festa da Natividade de Maria Santíssima, é solenemente celebrado no santuário. Várias vezes os Sumos Pontífices (e a Sagrada Congregação dos Ritos em 1916) concederam indulgências e privilégios especiais para aquele dia e escreveram que sim, que entre aquelas três paredes sagradas, com o nascimento da Mãe de Deus, a aurora da Redenção chegou (citando alguns: Júlio II em


78 O Milagre da Santa Casa de Loreto 1507, Pio IV em 1560, Sisto V em 1586 e Clemente VIII em 1595). Até alguns, inclusive Pio IX, chegaram ao ponto de escrever que até a imaculada concepção da sempre Virgem Maria aconteceu ali (Bula Inter omnia, 1852). Obviamente, é uma pergunta sobre a qual é legítimo discutir e pensar de maneira diferente: ninguém tem certeza absoluta e, por outro lado, não apenas tudo isso não é necessário aos fins da salvação, como podemos acreditar que Deus envolveu certos acontecimentos no mistério para nos fazer entender melhor nossa pequenez e nos estimular a indagar e nos ocupar das “coisas celestes”, elevando nosso olhar da Terra. No entanto, não podemos ignorar alguns fatos inequívocos que confirmariam a tradição. Muitos padres da Antiguidade, incluindo Epifânio, o Synaxarium armênio, Hipólito de Tebas e especialmente os ocidentais, sempre concordaram com a chamada “tese de Nazaré” – tese que encontrou um consenso crescente ao longo dos tempos a partir da Idade Média, bastando pensar no padre John de Würtzburg, que cita o Pseudo-Jerônimo: “Ela nasceu em Nazaré e também na mesma sala onde, mais tarde, após a saudação angélica, concebeu por obra do Espírito Santo”1. De fato, “Lucas, na narração da Anunciação e da Visitação, sugere que Maria era de Nazaré, onde morava. O evangelista, após o relato da visita de Maria a Santa Isabel, escreve: ‘Permaneceu com ela cerca de três meses e depois retornou à sua casa’ (1,56)”2. E, uma vez que a Anunciação e a Encarnação ocorreram naquela casa, é normal acreditar que a mesma foi então escolhida para residência da Sagrada Família. Além disso, várias revelações particulares, como as da venerável Maria de Ágreda e da Beata Catarina Em1 2

Cit. in G. Gorel, La santa Casa di Loreto, cit., pp. 31-32. G. Santarelli, La Santa Casa di Loreto, cit., p. 198.


Onde nasceu Nossa Senhora? 79 merich, confirmaram que a Santíssima Virgem nasceu em Nazaré. Quando, após a trasladação milagrosa das paredes sagradas para Tersatto, Nossa Senhora apareceu ao pároco do local, Pe. Alessandro Giorgiewich, que sofria de hidropisia, curou-o e explicou-lhe que era a casa onde ela havia nascido, crescido e o Verbo se fez carne. O mesmo aconteceu na Itália, onde Nossa Senhora deu a mesma explicação ao aparecer a um eremita de Montorso (Loreto). Além disso, tanto o Teramano quanto o Mantovano, no século XV, garantem que o nascimento de Maria se deu na Casa de Nazaré. Em um opúsculo mandado traduzir em oito idiomas pelo Papa Gregório XIII em 1578, o Teramano escreveu: “E nesta sala vivia a Santíssima Virgem. Nascida aqui, educada e depois saudada pelo Anjo Gabriel e ofuscada pelo Espírito Santo”. Mantovano associou-se a ele: “O Templo da Bem-aventurada Madre Lauretana, o qual foi o berço da mesma Virgem, onde Ela nasceu, cresceu, foi saudada pelo Anjo Gabriel e ofuscada pelo Espírito Santo”3. Depois, há um fato milagroso digno de nota e que seria a confirmação divina da tradição ocidental: o milagre das chamas4, sobre o qual Teramano e Riera escreveram. O primeiro lembra que, em 1º de setembro de 1460, antes do cair da noite, um eremita do local, certo frade Paolo della Selva, viu uma luz que desceu do céu em direção à Santa Casa e depois se difundiu em torno do santuário. Torsellini narra que o mesmo fenômeno também ocorreu em 1550 enquanto um padre jesuíta pregava na basílica: alguns focos de luz clara desceram sobre a Santa Casa, pararam ali por algum tempo e depois se espalharam sobre a multidão presente, voltando em seguida para o alto e desaparecendo. O padre Riera foi testemunha direta 3 4

Para ambas as citações, cfr. G. Gorel, La Santa Casa di Loreto, cit., pp. 222-223. G. Gorel, La Santa Casa di Loreto, cit., pp. 155-156.


80 O Milagre da Santa Casa de Loreto disso. Dois anos depois, o milagre das chamas se repetiu: uma espécie de cometa apareceu no topo interno da cúpula, pousou sobre a Santa Casa, espalhou-se mais uma vez sobre os fiéis e, após uma parada sobre o crucifixo presente na Santa Casa, desapareceu. Em 1554, o fenômeno se repetiu externamente, chegando até às cidades próximas de Loreto, das duas da manhã até o amanhecer. Muitos outros casos também foram registrados. Após esses milagres, em 1389 o Papa Urbano VI concedeu ao santuário uma indulgência plenária no dia 8 de setembro. Como lembrança de tudo isso, uma estrela de seis pontas havia sido pendurada na cúpula, e até 1972 era acesa todo dia 9 de dezembro (pelo aniversário da Trasladação e não pela festa da Natividade de Maria), para grande alegria dos fiéis, especialmente dos mais jovens5. Finalmente, vale a pena mencionar um milagre verdadeiramente significativo. Em 1654, um irmão converso da Ordem de São Francisco entrou na Santa Casa de Loreto com um espírito um tanto cético em relação a tudo o que se dizia. Assim que cruzou o limiar, ele imediatamente caiu no chão, como se tivesse sido atingido por uma doença, parecia quase morto, foi levado para fora e socorrido. Nesse momento, retornando a si mesmo, ele gritou em lágrimas: “Sim, este é o local de nascimento da Bem-Aventurada Virgem Maria; este é o santuário onde o Verbo foi concebido”. O que aconteceu enquanto isso? O que o fez mudar radicalmente de ideia? O que dissipou todas as suas dúvidas? Ele mesmo explicou que viu a Mãe de Deus com o Menino Jesus olhando-o com ar irritado e ameaçando-o com o fogo do inferno. Atingido por um medo salutar, trabalhou durante toda a sua vida para proclamar a verdade sobre a Santa Casa venerada em Loreto6. 5 Cfr. G. Santarelli, Tradizioni e Leggende Lauretane, cit., pp. 55 e ss. 6 A.R. Caillaux, Histoire critique et religieuse de Notre-Dame de Lorette, Paris, 1843, p. 243.


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Capítulo IV

A Igreja não tem dúvidas Como já foi recordado, em 1993 o Papa João Paulo II definiu a Santa Casa de Loreto como “o primeiro Santuário de alcance internacional dedicado à Virgem e, por vários séculos, o verdadeiro coração mariano da cristandade”, lembrando também como o mesmo “desfrutava sempre da especial atenção dos Romanos Pontífices, que o tornaram fizeram um frequente destino de peregrinação e objeto de seu cuidado apostólico”. Com efeito, ao longo dos séculos o Papado atestou a importância e o caráter extraordinário da basílica lauretana e do milagre ali ocorrido com vários pronunciamentos e, sobretudo, com a lirturgia, através da qual tiveram reconhecimento oficial tanto a autenticidade da Santa Casa quanto suas trasladações milagrosas.

4.1 A festa da trasladação da Santa Casa Antes de tudo, cumpre sublinhar que em 10 de dezembro ocorre liturgicamente a festa da “Trasladação Milagrosa” da Santa Casa de Nazaré para Loreto, e não a festa de Nossa Senhora de Loreto, que há vários anos vem sendo estampada erroneamente em calendários ou afirmada por simplicidade e ignorância1. Embora seja certamente também uma festa mariana, é importante lembrar que no calendário 1 Cfr. G. Nicolini, La veridicità della miracolosa traslazione della Santa Casa di Nazareth a Loreto, cit., p. 36.


82 O Milagre da Santa Casa de Loreto litúrgico tradicional, isto é, antes das reformas promovidas pelo Vaticano II, as fórmulas da Missa para aquele dia eram as mesmas da dedicação de uma igreja, precisamente porque no centro da celebração estava (e ainda deveria estar) a Santa Casa. Ao estabelecer essa festa, a Igreja assumiu um forte compromisso: o princípio lex orandi, lex credendi é sempre válido. E embora o acontecimento de Loreto não seja um dogma infalível, é verdade que os pronunciamentos da Igreja têm sido da mais alta autoridade e merecem respeito e obediência. A instituição dessa festividade – sempre realizada em nível local – ocorreu sob o pontificado de Urbano VIII, através de um decreto da Congregação de Ritos de 29 de novembro de 1632, que a aprovava de forma limitada à região das Marcas. Em 30 de agosto de 1669 ela foi inserida por Clemente IX no Martirológio Romano, onde estava escrito: “Em Loreto, no Piceno, trasladação da Santa Casa de Maria, Mãe de Deus, na qual o Verbo se fez carne”2. O mesmo Pontífice autorizou para os povos da Croácia um Ofício e uma Missa próprios, para a trasladação da Santa Casa a Tersatto. Em 16 de setembro de 1699, Inocêncio XII aprovou o Ofício e a Missa3 próprios e fez juntar à VI Lição do Breviário Romano a história do prodígio, que dizia o seguinte: “A casa natal da Bem-aventurada Virgem Maria, consagrada por mistérios divinos, foi transportada pelo ministério dos anjos do terra dos pagãos, sob o pontificado de São Celestino V, primeiro para a Dalmácia, depois para o território de 2 3

Cit. In G. Niconili, La veridicità della miracolosa traslazione della Santa Casa di Nazareth a Loreto, cit., p. 38. Eis a tradução da oração da Missa de então: “Ó Senhor, que na vossa misericórdia, com o mistério da vossa Encarnação santificastes a casa da Bem-aventurada Virgem Maria e a transportastes milagrosamente ao seio de vossa Igreja, fazei com que, afastados da casa dos pecadores, nós nos tornemos habitantes de vossos santos tabernáculos”. Cit. in G. Gorel, La Santa Casa di Loreto, cit., p. 182.


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Loreto, da província picena. Que se trata da verdadeira casa na qual oVerbo se fez carne e habitou entre nós, é provado seja pelas cartas e bulas papais e pela veneração conhecida em todo o mundo, seja pelos milagres contínuos que são obtidos aqui”4. O Papa Bento XIV afirmou a esse respeito que “querer demonstrar a verdade dos fatos mencionados nesta Lição, seria querer refazer o que os historiadores da Santa Casa fizeram com tanto zelo e doutrina”5. Bento XIII e seus sucessores estenderam a festa à Toscana, a Roma, à República de Veneza, e depois a toda a península italiana e a todas as nações, dioceses e ordens religiosas que a solicitaram. A Sagrada Congregação de Ritos, em um decreto de 16 de abril de 1916, confirmou de uma vez por todas: “Trata-se realmente do local de nascimento da Bem-aventurada Virgem Maria, onde se realizaram muitos divinos mistérios. Esta casa tão venerada, outrora transportada por anjos da Palestina para a Dalmácia e depois para Loreto, no Piceno, manifesta-se a todos com o brilho contínuo de seus milagres e o constante favor dos dons celestiais: verdadeiramente aqui o Verbo se fez carne”6. A festa passou por várias vicissitudes, tendo sido algumas vezes obrigatória para toda a Igreja e outras vezes apenas em nível local. Até 1956 celebrava-se o dia 10 de dezembro em toda a Itália com um rito duplo de primeira classe com oitava (assim organizado pelo Papa Leão XIII num breve de 23 de julho de 1894). Depois de 1956, no contexto de uma simplificação do Missal, a oitava desapareceu. Em 14 de fevereiro de 1961, a Sagrada Congregação de Ritos emitiu uma instrução na qual a trasladação da Casa da Bem-aventurada Virgem Maria voltaria a ser comemorada apenas nas Marcas, como acontece ainda hoje. 4 5 6

Cit. in ibidem Cit. in G. Gorel, La Santa Casa di Loreto, cit., p. 182. Cit. in ibidem, p. 186.


84 O Milagre da Santa Casa de Loreto 4.2 As ladainhas lauretanas Ao lado da liturgia, não podem ser neglicenciadas as ladainhas lauretanas, cuja difusão destaca muito bem a importância que sempre teve o santuário de Loreto. Elas se constituíam das invocações que os peregrinos recitavam na Santa Casa e se baseavam em textos pré-existentes. No entanto, a forma mais antiga que as recolhe remonta ao século XVI e, assim, as ladainhas logo foram solenemente reconhecidas pela Santa Sé. O primeiro Papa a aprová-las e concedê-las foi Sisto V, natural da região das Marcas e franciscano, com a bula Reddituri de 11 de julho de 1587. Durante o pontificado de Clemente VIII, com o decreto Quoniam multi de 6 de setembro de 1601, o Santo Ofício estabeleceu sua forma atual: “Dado que desde esses tempos muitas pessoas privadas também divulgam novas ladainhas todos os dias sob o pretexto de fomentar a devoção; posto que já circula uma grande variedade quase inumerável de ladainhas, e em algumas delas se encontraram expressões inconvenientes e em outras – muito mais grave – até mesmo perigosas, eivadas de erro; desejando suprir a preocupação pastoral pelo incremento da devoção das almas e da invocação de Deus e dos santos sem o perigo desse prejuízo espiritual, [Clemente VIII] estabelece e ordena que sejam mantidas as ladainhas mais antigas e comuns que se encontram nos Breviários, Missais, Pontificais e Rituais, bem como as ladainhas que são geralmente cantadas no santo templo de Loreto. Quem quiser publicar outras ladainhas ou usá-las na Igreja já publicadas – seja nos oratórios, seja nas procissões –, deverá apresentá-las à Congregação dos Ritos Sagrados para que sejam aprovadas e corrigidas, se necessário. Não presumam divulgá-las em público ou recitá-las publicamente sem a permissão e a aprovação da referida Congregação, sob a pena (além daquela do pecado cometido) que será severamente infligida a critério do Ordi-


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nário e do Inquisidor”7. Por isso, a partir de agora, qualquer modificação e acréscimo às ladainhas lauretanas deverá ser aprovado pela Santa Sé. É interessante lembrar que durante sua viagem a Loreto no verão de 1770, o jovem Wolfgang Amadeus Mozart ficou tão impressionado e encantado com a Santa Casa que, no ano seguinte, compôs sua Litaniae lauretanae Beatae Mariae Virginis.

4.3 A voz dos Sumos Pontífices São de fato muitos os pronunciamentos dos Papas sobre Loreto. Embora brevemente, é oportuno fornecer um quadro o mais completo possível. Antes de tudo, parece – segundo relatado por São Pedro Canísio8 – que Nicolau IV, natural da região das Marcas, soube da trasladação milagrosa para Tersatto. Bonifácio VIII, por sua vez, foi informado da chegada da preciosa relíquia à Itália. E a esse respeito alguns argumentam que o anúncio do primeiro Jubileu, feito por ele em 1300, apenas quatro anos após a última trasladação da Santa Casa, também foi motivado pelo desejo de permitir que os peregrinos que se dirigissem a Roma fossem a Loreto9. A referência indireta, mas primeira, explícita ao “milagre da Santa Casa” está contida na bula de Clemente V, de 18 de julho de 1310, na qual ele ratificou o voto de alguns peregrinos alemães a Loreto e escreveu sobre a “milagrosa divina Virgem lauretana”. Outras referências à Santa Casa foram feitas por João XXII em 1320. Bento XII concedeu privilégios e indulgências àqueles que fossem rezar em Loreto, decisão que posteriormente foi reiterada e confirmada 7 Cit. in A.M. Appolonio, Le Litanie Lauretane, Casa Mariana Editrice, Frigento (AV), 2013, p. 7. 8 Cfr. G. Santarelli, La Santa Casa di Loreto, cit., p. 17. 9 Cfr. P.V. Martorelli, Teatro storico della Santa Casa, cit., cap. III, p. 50.


86 O Milagre da Santa Casa de Loreto por Urbano VI, Bonifacio IX, Martinho V e Eugênio IV. O Papa Nicolau V foi duas vezes em peregrinação à Santa Casa e ordenou que os presentes oferecidos a ela fossem conservados para constituir o tesouro. Para confirmar a tradição das traladações milagrosas, é importante relatar o gesto do Papa Urbano V, que em 1367 enviou uma imagem da Virgem lauretana aos fiéis de Tersatto, para consolá-los pela dor de terem perdido a Santa Casa. De fato, os tersatenses sempre acreditaram que a aparição da casa havia sido um verdadeiro milagre e, uma vez que souberam de sua mudança para Loreto, começaram a fazer peregrinações àquela localidade da região das Marcas, rezando para que a Virgem voltasse a habitar entre eles. Ainda hoje, essa imagem da Virgem lauretana de Urbano V é altamente venerada em Tersatto e entre os eslovenos. Pio II e Paulo II tinham um relacionamento particular com Loreto. Pio II pôde visitar o santuário apesar de estar no final de sua vida, devido a uma graça especial da Virgo lauretana: ele morreu de fato pouco depois, em 1464, em Ancona, de cujo porto estava saindo a cruzada que ele promoveu contra os turcos. Paulo II convocou em 1470 um jubileu extraordinário limitado à visita à basílica, e nas bulas a ela dedicadas falou de um santuário “milagrosamente fundado” e da imagem de Nossa Senhora que chegou por admirável clemência divina no meio de uma escolta celeste. Não apenas isso: quando ele ainda era cardeal (seu nome era Pietro Barbo) e ajudou Pio II em sua doença, ele foi atingido pela praga. Orando entre os muros da Santa Casa, a Madona apareceu para ele, que o curou e anunciou sua iminente eleição para o trono papal: assim aconteceu e no primeiro escrutínio do conclave, em 30 de agosto de 1464. Paulo II, como sinal de gratidão e testemunho explícito do milagre, dedicou sua primeira encíclica à Virgem de Loreto. O resumo do documento foi mandado esculpir pelo governador da Santa Casa, Vincenzo Casali, em uma grande


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laje de mármore conservada ainda hoje na pilastra da nave esquerda do Santuário10. Sisto IV declarou Loreto propriedade da Santa Sé e conferiu à Santa Casa o título de Alma Domus. Júlio II – que em 21 de outubro de 1507 publicou uma bula na qual confirmou as indulgências concedidas por seus antecessores e as trasladações milagrosas sucessivamente para a Dalmácia e para a Itália11 – foi miraculado pela Virgem lauretana, que salvou sua vida durante a batalha de Mirandola. O Papa visitou o santuário, onde celebrou a missa no dia da Natividade de Maria de 1510. Também doou como ex voto a bala de canhão da qual se salvou. Referindo-se à famosa relíquia, o Papa Della Rovera escreveu, entre outras coisas, “que não apenas a imagem da Virgem Maria se encontra nesta igreja, mas ut pie creditur et fame est, de acordo com a tradição, aqui também se encontra o quarto onde a Bem-aventurada Virgem Maria foi concebida, criada, anunciada pelo Anjo, onde concebeu o Salvador do mundo pelo poder do Espírito Santo, onde nutriu e criou o divino Filho, onde se arrebatava nas coisas celestes, esteve ali orando, e esse quarto foi transformado pelos apóstolos em uma capela dedicada à Virgem Maria, onde foi celebrada a primeira missa ...”12 Leão X, no breve de 1º de junho de 1515, ao falar da Santa Casa, escreveu literalmente que: “está provado por testemunhas dignas de fé que a Santa Virgem, após transportar pela onipotência divina sua imagem e sua casa de Nazaré para a Dalmácia, em seguida para a floresta de Recanati e ao campo de dois irmãos, mandou depositá-la pelo ministério dos anjos na via pública, onde ainda se 10 Cfr. G. Nicolini, L’approvazione dei Sommi Pontifici delle miracolose traslazioni della Santa Casa di Nazareth a Loreto, in Il Segno del soprennaturale, nº 209, novembro de 2005, p. 19. 11 Cit. in G. Gorel, La Santa Casa di Loreto, cit., pp. 172-173. 12 Cit. in ivi


88 O Milagre da Santa Casa de Loreto encontra e onde o Altíssimo, pelos méritos da Santíssima Virgem, continua a operar milagres”13. Clemente VII enviou uma delegação de homens a Nazaré para confirmar a autenticidade da preciosa relíquia e a resposta foi positiva: Júlio III fundou em Loreto o Colégio dos Penitenciários, confiando-o aos jesuítas. Em 1560, Pio IV reiterou que aquele quarto sagrado onde a Virgem Maria nasceu, foi criada e anunciada pelo anjo Gabriel, como atestado por testemunhos dignos de fé, “foi transportado com sua imagem, pelo ministério dos anjos, da cidade de Nazaré para o território de Recanati, onde permanece objeto de profunda veneração de todas as nações cristãs”14. São Pio V, que como veremos recorreu à Virgem lauretana contra o perigo islâmico, reproduziu no Agnus Dei a efígie da Santa Casa, sobre cuja autenticidade ele nunca colocou a menor dúvida. Gregório XIII fundou o Colégio Ilírio e mandou cunhar várias moedas com a efígie das três paredes sagradas. O Papa Sisto V – originário da região das Marcas e cuja estátua domina o santuário – fez escrever no frontispício da basílica “Deiparae domus in qua Verbum caro factum est” (“Casa da Mãe de Deus em que o Verbo se fez carne”), e – como ele disse – “considerando que Loreto goza de uma extraordinária fama mundial, porque no centro de sua igreja existe o quarto sagrado em que a Virgem Maria nasceu, foi saudada pelo anjo e concebeu do Espírito Santo o Salvador do mundo, que esse quarto foi transportado pelos anjos para este lugar, onde se operam milagres continuamente a favor dos numerosos fiéis de todo o mundo que o visitam”15, deu-lhe o título de cidade e bispado. Foi Sisto V quem deu ímpeto, em 1586, à Ordem de Nossa Senhora de Loreto (Cavaleiros 13 Cit. In G. Nicolini, La veridicità storica della miracolosa traslazione della Santa Casa di Nazareth a Loreto, cit., p. 32. 14 Cit. in G. Gorel, La Santa Casa di Loreto, cit., p. 174. 15 Cit. in G. Gorel, La Santa Casa di Loreto, cit., p. 174-175.


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Lauretanos), com a tarefa de defender a cidade e proteger a Marca de Ancona dos ataques dos corsários e dos turcos. Também natural das Marcas, o Papa Clemente VIII fez gravar em 1595 no mármore do revestimento da Santa Casa uma inscrição que recorda sua origem e aparição milagrosa. Transcrevemo-la aqui, traduzida do latim: “Hóspede cristão, que vieste aqui por devoção ou por voto, admira a Santa Casa Lauretana, venerável em todo o mundo pelos mistérios e milagres divinos. Aqui nasceu Maria SS. Mãe de Deus, que foi saudada pelo anjo, aqui se encarnou o eterno Verbo de Deus. É esta que os anjos trasladaram da Palestina, a primeira vez para Dalmacia, para Tersatto no ano de 1291, sob o pontificado de Nicolau IV. Três anos depois, no início do Pontificado de Bonifácio VIII, foi transportada para o Piceno, próxima à cidade de Recanati, em uma floresta, pelo mesmo ministério angélico, onde, no espaço do ano, mudou de lugar três vezes, aqui, por fim, ela se fixou há 300 anos. Desde então, os povos de países vizinhos ficaram comovidos pelas maravilhosas notícias e, mais tarde, pela fama dos milagres amplamente divulgados, esta Santa Casa teve grande veneração entre todas as pessoas, cujas paredes sem fundações, após tantos séculos permanecem estáveis e inteiras, cercadas por mármore adornado por Clemente VI no ano de 1534. Clemente VIII P.M. ordenou que neste mármore fosse descrita uma curta história da admirável trasladação no ano de 1595. Antonio M. Gallo Cardeal, Bispo de Osimo e protetor de Santa Casa, mandou lavrá-la. Piedoso peregrino, venera com dedicado afeto a Rainha dos Anjos e a Mãe das Graças, de modo que, por seus méritos e por suas orações, o Filho dulcíssimo, autor da vida, te obtenha perdão de tuas culpas, a saúde corporal e as alegrias da eternidade”16. 16 Cit. in G. Nicolini, Miracolose Traslazioni della Santa Casa di Nazareth a Loreto, in http:www.vaticano.com/la-traslazione-miracolosa-nella-selva-della-signora-loreta/.


90 O Milagre da Santa Casa de Loreto Em sua obra Das festas de Jesus Cristo, Senhor nosso e da Bem-aventurada Virgem Maria, escrita quando ainda era Cardeal-arcebispo de Bolonha, falando da Santa Casa Saudável e se referindo, entre outros, também a São Pedro Canísio e ao conhecido historiador Cardeal Baronio, Bento XIV a chamou de “Aula onde o Verbo Divino tomou a carne humana, transportada pelo ministério dos Anjos; assim o atestam os documentos antigos, a tradição perpétua e os testemunhos dos Sumos Pontífices, bem como o sentimento comum dos fiéis e os milagres que ocorrem continuamente.” Não é só isso. O Papa Lambertini, em seu monumenal De Servorum Dei Beatificatione et Beatorum Canonizatione (livro III, cap. X, n. 5), escreveu: “[...] existem aqueles que ousaram inserir entre os contos de fadas a trasladação, da Galiléia para as Marcas, da Santa Casa em que o Verbo se fez carne, devido à falta de autores contemporâneos que narrem a mencionada trasladação. [...] Seja lícito mencionar que, ou não faltaram autores contemporâneos, conforme depoimento do mencionado Guido Grandi – cit. Dissert. 3 capítulo 8, número 12 –, como existem, após alguns anos desde a vinda da Santa Casa para a Itália, documentos indiscutíveis da região em que ela permaneceu por cerca de um século e meio, muito antes do próprio Antonino (de cujo silêncio se utilizam sobretudo os fautores do argumento negativo dessa controvérsia), ao qual nenhum homem prudente terá dito que deveria ter incluído em suas histórias um testemunho expresso de um acontecimento muito conhecido; portanto, é manifesto que alguns autores contrários abusaram intencionalmente de seu silêncio para impugnar a verdade da casa de Loreto; ou bastam os anais Fluminesi, nos quais toda a história é descrita, vista e estudada por Girolamo Angelita, historiador da casa de Loreto, o testemunho de Antonio Salt no livro intitulado Sanctuarium Lauretanum, para que não se diga que faltam documentos contemporâ-


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neos. Também devemos dar fé aos escritores famosos, ou seja, ao já mencionado Angelita e a Orazio Torsellino, que tinham esses escritos em suas mãos quando expuseram a história de Loreto e dela extraíram suas narrativas [...]”. Mais recentemente, o Papa Pio IX, originário das Marcas e muito dedicado à Virgem Lauretana, que o curou milagrosamente de epilepsia em sua juventude, permitindo-lhe assim abraçar a vida eclesiástica, na bula Inter omnia, de 1852, escreveu que “entre todos os santuários consagrados à Mãe de Deus, a Virgem Imaculada, encontram-se em primeiro lugar e brilham com um esplendor incomparável a venerável e muito augusta Casa de Loreto. Consagrada por mistérios divinos, ilustrada por milagres sem número, honrada pelo concurso e a influência dos povos, estende amplamente a glória de seu nome à Igreja Universal e se torna justamente objeto de culto por todas as nações e todas as estirpes humanas. Em Loreto, de fato, veneramos a Casa de Nazaré, tão cara ao Coração de Deus e que, construída na Galiléia, foi posteriormente arrancada de suas fundações e, pelo poder divino, transportada pelos mares, primeiro para a Dalmácia e depois para a Itália. Precisamente naquela Casa, a Santíssima Virgem, por eterna disposição divina, permaneceu perfeitamente livre da culpa original, foi concebida, nasceu, cresceu, e o mensageiro celeste a saudou cheia de graça e bendita entre as mulheres. Foi naquela Casa que ela, cheia de Deus e sob a frutífera obra do Espírito Santo, sem nada perder de sua inviolável virgindade, tornou-se a Mãe do Filho Unigênito de Deus”17. Leão XIII foi um grande devoto do santuário lauretano e por ocasião do VI Centenário da Trasladação Milagrosa publicou o Breve Felix Nazaretana (23 de janeiro de 1894), onde teve palavras de entusiasmo: “Esta casa, como narram 17 Cit. in G. Gorel, La santa Casa di Loreto, cit., p. 188. Ver também G. Nicolini, La veridicità storica della miracolosa traslazione della Santa Casa di Nazareth a Loreto, cit., p. 33.


92 O Milagre da Santa Casa de Loreto as glórias da Igreja, tão prodigiosamente transportada para a Itália, ao Piceno, por um ato de suprema benevolência divina, e aberta ao culto nas colinas de Loreto, imediatamente atraiu a si as piedosas aspirações e a fervorosa devoção de todos, e os manteve vivos durante os séculos. [...] Todos compreenderam, e em primeiro lugar os italianos, o dom particular concedido por Deus que, com tanta providência, arrebatou a Casa de um poder indigno18 e, com um significativo ato de amor, ofereceu-a a eles. Na verdade, aquela abençoadíssima morada sancionou o início da salvação humana, com o grande e prodigioso mistério de Deus feito homem, que reconcilia a humanidade perdida com o Pai e renova todas as coisas”19. Portanto, foi no pontificado do Papa Pecci que se fundou a Congregação Universal da Santa Casa (1883), com o objetivo de promover o culto mariano-lauretano e cuidar da basílica. Com Pio X a devoção lauretana teve que enfrentar as críticas racionalistas do cônego francês Ulysses Chevalier, reolhidas no livro Notre-Dame de Lorette - Étude historique sur l’authenticité de la Santa Casa (1906). Nele foram questionadas, em nome da luta contra a “superstição” e a purificação da fé, tanto a autenticidade da Santa Casa quanto as trasladações milagrosas. O livro recebeu o louvor (mas não o imprimatur) do Mestre dos Sacros Palácios, porque em sua opinião isso não afetou a piedade dos fiéis. Mas o então Secretário de Estado, Cardeal Rafael Merry del Val, a uma pergunta feita à Santa Sé sobre o livro, em nome do Sumo Pontífice respondeu que, “no que diz respeito à publicação recente do Côn. Chevalier, a intervenção do Mestre dos Sacros Palácios não agradou em nada a Sua Santidade. A este propósito, Sua Santidade não escondeu a ninguém o descontentamento que teve e confia-me manifestá-lo 18 Dos muçulmanos, que tinham invadido a Terra Santa. 19 Cfr. G. Gorel, La Santa Casa di Loreto, cit., pp. 188-189.


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publicamente; a partir dessa premissa vós deduzireis facilmente que, neste caso, as palavras do de R. P. Mestre não podem colocar nenhum obstáculo a ulteriores pesquisas e trabalhos de refutação”20. Também para desmascarar as mentiras sobre a autenticidade da Santa Casa e sua trasladação milagrosa, a Congregação Universal em 1907 criou um “Colégio perpétuo de defesa da Santa Casa”. O Papa Sarto também concordou em financiar o padre jesuíta Ilario Rinieri (1853-1941) para estudar a questão lauretana e defender a tradição contra os ataques de Chevalier. O que ele fez em sua famosa obra em três volumes, La Santa Casa di Loreto (Turim, 1910-1911). O pontificado de Pio X correspondeu aos anos do modernismo, “síntese de todas as heresias”, conforme definido por esse grande santo na sua encíclica Pascendi (1907) e, portanto, as críticas racionalistas e céticas à tradição lauretana não são surpreendentes. Nesse sentido, é útil relatar as palavras proferidas no Congresso Mariano de Le Puy em 1910 pelo Pe. Tomás, OMC, que (com total aprovação de Pio X) observou que, por trás da questão lauretana, “devemos reconhecer o choque de uma mentalidade hipercrítica muito próxima do Modernismo, uma mentalidade da qual até os melhores dificilmente se defendem [...]. A crítica saudável pode julgar: de um lado está uma escola nascida ontem que quer reformar as conclusões tiradas com todo o conhecimento de causa e que por si só não tem nenhum documento, que formula apenas julgamentos a priori; de outro, tudo o que o mundo católico conheceu de mais erudito, os Pontífices romanos, os santos, o povo cristão em sua catolicidade, os documentos reconhecidos como autênticos, as conclusões das Comissões oficiais. A verdade certamente não está em algumas unidades isoladas que distorceram a história. [...] 20 Cfr. G. Gorel, La Santa Casa di Loreto, cit., p. 195.


94 O Milagre da Santa Casa de Loreto Como o protestantismo no século XVII, como o filosofismo no século XVIII, como o racionalismo no século XIX, o hipercriticismo no século XX não conseguirá velar a veracidade do fato histórico. A relíquia é certamente autêntica: a verdadeira ciência se curva e a fé do povo cristão não mudou. Os Pontífices romanos não cessaram de proclamar a verdade, a tradição permanece constante. Santa Casa é precisamente a casa na qual o Verbo se fez carne”21. O transporte milagroso das paredes sagradas foi confirmado de maneira ainda mais solene e definitiva por Bento XV, quando declarou a Santíssima Virgem de Loreto “Padroeira dos aviadores e de todos os viajantes de avião” em 24 de março de 1920, e precisamente em razão do reconhecimento da autenticidade histórica do “voo milagroso” da Santa Casa22. Pio XI abençoou uma imagem de Nossa Senhora de Loreto que acompanhou a missão de Umberto Nobile23 ao Polo Norte e escolheu a cidade de Loreto para o Congresso Eucarístico Nacional Italiano de 1930. A Santa Sé, em virtude do Tratado de Latrão, também recuperou o controle da basílica e os ativos dela dependentes. Digna de nota é 21 Cit. in G. Gorel, op. cit., pp. 202-204. 22 Como prova da popularidade deste provimento e da difusão da devoção, basta lembrar, a título de exemplo, que o próprio poeta Gabriele D’Annunzio, apesar de suas ideias e de sua conduta não exatamente pró-católicas, tratou várias vezes de Loreto em suas obras literárias. Em 10 de dezembro de 1937, ele escreveu ao general Valle o seguinte: “Hoje, 10 de dezembro, ocorre Trasladação da Santa Casa de Loreto, que no primeiro calor da guerra me foi proposta (!) ao reconhecimento dos Aviadores e declarada Guardiã dos Aviadores, em guerra e em paz. Tenho certeza de que todos os meus fiéis companheiros honram a Virgem Alada, que ‘em Dalmatiam prius, deinde in Agrum Lauretanum translata fuit’ [...] Ouso hoje lembrar-te a data milagrosa, porque tu recomendas aos nossos aviadores de mirar perpetuamente, irradiadas com tanta glória votiva, as águas do nosso Adriático”. Uma medalha benta contendo a efígie de Nossa Senhora de Loreto foi portada pelo astronauta americano James McDivitt e seus dois companheiros no voo da Appolo de 9, realizado de 3 e 13 de março de 1969. Para esta e outras informações, consulte o 80º Anniversario della proclamazione della Madonna di Loreto a Patrona dell’ Avviazione, extraído de Il Messagio della Santa Casa, nº 7, julho-agosto de 2006. 23 Umberto Nobile (1885-1978), um dos expoentes máximos da aeronáutica italiana, se tornou famoso em todo o mundo por seus dois voos (em 1926 e 1928) no dirigível Polo Norte.


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a alocução que o Cardeal Granito Pignatelli, de Belmonte,dirigiu ao Papa Pio XI por ocasião do ano novo (1935) em nome do Sacro Colégio. O cardeal, entre os tópicos abordados, dirigiu um pensamento também a Loreto: “Não queremos deixar passar em silêncio o grande gesto com o qual aprouve a V. Santidade dar uma nova constituição a um dos mais preciosos tesouros possuídos pelo cristianismo em nossa Itália, eu quero dizer a Santa Casa de Loreto. Pode haver um santuário mariano mais venerável do que a Casa consagrada pela presença pessoal de Maria Santíssima que viveu em sua vida mortal nesse ‘pequeno tesouro’, testemunha da cena inefável da Anunciação, onde Maria com seu ‘Fiat’ aceitou tornar-se a Corredentora do gênero humano, acolhendo em seu seio puríssimo o Verbo divino? Eis por que, Santo Padre, assim como não há um cristão sincero que não ame ternamente a Santíssima Virgem, assim também não há um só cristão que não se rejubile e não exulte ao ver a Santa Casa ser objeto de vosso cuidado e de vossas solicitudes pontifícias”24. Pio XII concedeu o privilégio de poder celebrar o Santo Sacrifício da Missa no altar da Santa Casa por 24 horas consecutivas no dia 25 de março, festa da Anunciação. Em 23 de março de 1958, dirigindo-se aos residentes das Marcas em Roma, o Papa Pacelli não deixou de mencionar o santuário lauretano, já definido em outro discurso de 1956 como “insigne e caro”25: “Quanto aos seus valores espirituais característicos, basta pensar na Santa Casa de Loreto, para ver ali uma bênção muito especial de Maria, que a fez e faz ser visitada por inúmeras almas, que vêm com uma atitude de piedade sincera, de fé ardente, de profunda 24 Cit. in G. Gorel, La Santa Casa di Loreto, cit., p. 210. 25 Cfr. Radiomensagem de Sua Santidade Pio XII aos peregrinos participantes da peregrinação nacional ao santuário da Santíssima Virgem de Loreto, in htpps://w2.vatican.va/content/pius-xii/it/speeches/1956/document/hf_p-xii sp_ spe_19561014_pellegrinaggio-loreto.html.


João XXIII foi em peregrinação ao santuário no dia 4 de outubro de 1962, para pedir proteção para a Igreja em vista da iminente abertura do Concílio Vaticano II.

João Paulo II foi cinco vezes ao santuário e Bento XVI em duas ocasiões.


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humildade, além de um espírito de mortificação característico de toda peregrinação verdadeiramente devota”26. João XXIII fez uma peregrinação ao Santuário em 4 de outubro de 1962, a fim de pedir proteção para a Igreja, tendo em vista a iminente abertura do Concílio Vaticano II. Naquela ocasião, além de lembrar as visitas realizadas antes de se tornar Sumo Pontífice, o Papa Roncalli refez a devoção secular de muitas almas e de muitos de seus predecessores: “Motivos de piedade religiosa levaram Papas e personagens ilustres de todos os séculos a fazer uma pausa de oração na Basílica de Loreto, que se destaca na encosta das colinas de Piceno em direção ao Mar Adriático. Animados por fervorosa fé em Deus e veneração à Mãe de Jesus e nossa, eles aqui vieram em peregrinação, às vezes em tempos difíceis e de grave ansiedade para a Igreja (basta recordar, entre outros, os Papas Pio II, Paulo III, iniciador do Concílio de Trento, Pio VI e Pio VII, Gregório XVI e Pio IX, e também São Carlos Borromeo, São Francisco de Sales e outros Santos e Bem-aventurados), a fim de receber um edificante encorajamento”27. As viagens a Loreto pelos últimos Papas são uma história recente. Já falamos de João Paulo II, que foi ao santuário cinco vezes. No momento, o último a visitá-lo foi, em duas ocasiões, Bento XVI. Em 2 de setembro de 2007, falando aos habitantes de Loreto, ele os aconselhou a nunca esquecer o “grande privilégio de viver à sombra da Santa Casa”28. Em 4 de outubro de 2012, no entanto, referindo-se à Santa Casa durante a homilia, ele quis enfatizar que “este humilde lar é um testemunho concreto e tangível do 26 Discurso aos marquesianos residentes em Roma, 23 de março 1958, in htpps:// w2.va/content/pius-xii/it/speeches/1958/documents/hf_p-xii_spe_19580323_ marchigiani.html. 27 Cit. in G. Gorel, La santa Casa di Loreto, cit., p. 216b. 28 Bento XVI, Encontro com os fiéis de Loreto, 2 de setembro de 2007, in htpps:// w2.vatican.va/content/benedict-xvi/it/speeches/2007/september/documents/hf_ ben-xvii_spe_20070902_fedeli-loreto.html.


98 O Milagre da Santa Casa de Loreto maior evento de nossa história: a Encarnação; o Verbo se fez carne e Maria, a serva do Senhor, é o canal privilegiado pelo qual Deus veio viver entre nós”. E depois destacou que “ela está colocada sobre uma estrada. Isso pode parecer um tanto estranho: em nossa opinião, de fato, a casa e a estrada parecem excluir-se. Na realidade, nesse aspecto particular, existe uma mensagem desta Casa. Não é uma casa privada, não pertence a uma pessoa ou a uma família, mas é uma casa aberta a todos, que está, por assim dizer, na estrada de todos nós. Então, aqui em Loreto, encontramos uma casa que nos faz ficar, viver e, ao mesmo tempo, nos faz caminhar, nos recorda que somos todos peregrinos, que devemos estar sempre a caminho de outro lar, para o lar final, para a Cidade Eterna, a habitação de Deus com a humanidade redimida”29. Quanto à estrutura jurídica do Santuário da Santa Casa, desde 1507 ela está diretamente sujeita à Sé Apostólica. Até 1698, era governada por um cardeal protetor e depois pela Congregação Lauretana, presidida pelo cardeal Secretário de Estado, mas representado em Loreto por um prelado-governador. Mesmo durante as várias revoltas políticas que ocorreram desde a invasão francesa em 1797 até a ocupação da Savóia em 1860, o santuário de Loreto sempre gozou de um status jurídico especial. Após a Concordata entre a Santa Sé e a Itália em 1929, seu governo foi confiado à Administração da Pontifícia Basílica da Santa Casa, chefiada por um Administrador Pontifício nomeado diretamente pela Santa Sé e representado em Loreto por um vigário com dignidade episcopal (ver bula Lauretanae Basilicae de 15 de setembro de 1934). Em 24 de junho de 1965, com a Constituição Lauretanae Almae Domus, Paulo VI suprimiu a Pontifícia Administração da Basílica e estabeleceu a Delegação Pontifícia 29 Bento XVI, Homilia por ocasião da Visita Pastoral a Loreto, 4 de outubro de 2012, in https://w2.va/content/benedict-xvi/it/homilies/2012/documents/hf_benxvi_hom_20121004_loreto.html.


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para o Santuário da Santa Casa de Loreto. Instituiu também a Prelazia da Santa Casa, com jurisdição canônica sobre o território municipal de Loreto, e ergueu a Basílica da Santa Casa como uma catedral, designando o mesmo Delegado Pontifício para mantê-la na qualidade de Prelado.

4.4 A presença dos santos Fornecer um elenco de todos os santos que visitaram a Santa Casa e se pronunciaram sobre ela exigiria um trabalho à parte30. Cingimo-nos a apresentar aqui somente alguns exemplos especialmente significativos, úteis para se compreender que os santos sempre acreditaram sem hesitação, tanto na autenticidade da Santa Casa quanto na sua trasladação milagrosa. São Francisco de Assis31 teria profetizado em 1215 a chegada a Santa Casa à região das Marcas, quando ganhou do município de Sirolo um convento para seus irmãos. Visitando o edifício, o grande santo teria olhado de longe o vale e a floresta, predizendo a vinda milagrosa da preciosa relíquia (o artista Cesare Maccari representou o episódio em um de seus quatro segmentos murados dos pequenos arcos da cúpula do santuário). Como já foi aludido, em seguida outro santo – São Nicolau de Tolentino32 –, enquanto rezava tomou conhecimento por meio sobrenatural do voo da Santa Casa às 3 da madrugada entre os dias 9 e 10 de dezembro de 1294. Segundo os relatos, na chegada da Santa Casa em solo italia30 Para uma visão de conjunto, consultar M. Montanai–A Schiarolli, Santi e beati a Loreto, Congregazione Universale Santa Casa, Loreto, 2005. 31 Cfr. G. Santarelli, Tradizioni e Leggende Lauretane, cit., pp. 144 e ss. 32 Cfr. ibidem, pp. 147 e ss.


Enquanto rezava, São Nicolau de Tolentino tomou sobrenaturalmente conhecimento do voo da Santa Casa às três da manhã entre 9 e 10 de dezembro de 1294. Segundo os relatos, quando a Santa Casa chegou ao solo italiano, os sinos começaram a tocar sozinhos e muitas árvores se curvaram em direção a ela, em sinal de homenagem.

no, os sinos começaram a tocar sozinhos33 e muitas árvores se curvaram para ela em sinal de homenagem, mesmo na direção oposta ao vento. Também esse episódio é pintado por Maccari em um dos segmentos já mencionados. Santa Catarina de Bolonha, cujo corpo se conserva incorrupto e milagrosamente sentado (quando de sua exumação, para responder a uma ordem da superiora, moveu-se sozinha e se colocou nessa posição, completamente inexplicável do ponto de vista científico), contou uma revelação recebida de Jesus sobre a trasladação da Santa Casa. Em 25 de março de 1440, Jesus lhe falou as seguintes palavras: “Por causa da idolatria daquela gente [dos turcos, que tinham ocupado a Palestina], ela foi transportada para a Croácia por uma multidão de anjos. Em seguida, pelos mesmos e por outras 33 Um fenômeno similar, com músicas celestes ouvidas pelos habitantes, ocorreu em Genazzano, próximo de Roma, em 1467, por ocasião da milagrosa chegada do afresco de Nossa Senhora do Bom Conselho, transportado de Scutari (Albânia) para a Itália, a fim de fugir da invasão islâmica.


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razões, essa digníssima igreja foi levada para vários lugares. Por fim, conduzida pelos santos anjos, foi colocada permanentemente em Loreto, na província da Itália e nas terras da Santa Igreja”34. Santa Catarina de Bolonha era uma religiosa de clausura que nunca esteve em Loreto e, portanto, não teria podido ler o relato contido na tabuleta colocada no santuário. Finalmente, o detalhe da trasladação milagrosa “para vários lugares”, conforme transmitido por várias tradições locais, na época não era encontrado em nenhum documento conhecido. É claro que os fenômenos místicos devem sempre ser tomados com cautela, porém não se pode considerá-los meras invenções ou fantasias. O caso da Beata Anna Catherine Emmerich é igualmente significativo. Seja porque graças às suas experiências místicas foi possível identificar em Éfeso a casa onde Maria Santíssima provavelmente viveu os últimos anos de sua existência terrena, seja porque sua vida foi um milagre contínuo: imobilizada na cama por uma doença e, além disso, estigmatizada, nos últimos 11 anos se alimentou exclusivamente da Eucaristia. Sem jamais ter visto a Santa Casa, ela foi capaz de descrevê-la exatamente, declarando que a Anunciação havia ocorrido ali e que suas paredes eram absolutamente as mesmas de Nazaré. Ela também teve a visão da trasladação milagrosa: “Tenho visto com frequência, em visão, a trasladação da Santa Casa de Loreto. [...] Eu vi a Santa Casa sendo transportada sobre o mar por sete anjos. Não tinha qualquer fundação [...] Três anjos a seguravam de um lado e três do outro; o sétimo pairava diante dela: um longo facho de luz acima dele [...]”35. Não podemos negligenciar a famosa visão de São José de Cupertino ao chegar a Osimo, uma cidade a poucos quilô34 Cit. in G. Nicolini, La veridicità storica della miracolosa traslazione della Santa Casa di Nazareth a Loreto, cit., p 18. 35 Cit. in G. Nicolini, La veridicità storica della miracolosa traslazione della Santa Casa di Nazareth a Loreto, cit., p 21.


102 O Milagre da Santa Casa de Loreto metros de Loreto onde transcorreu a última parte de sua vida. Ele viu incontáveis fileiras de anjos subirem e descerem da Santa Casa, testemunhando a sacralidade daquele lugar e da relíquia ali guardada, e a tal vista também ele se elevou em um voo extático, como lhe aconteceu inúmeras vezes diante de milhares de testemunhas, pelo qual ele foi chamado “o santo dos voos”. Esse voo místico no qual viu a Basílica da Santa Casa, testemunhado por muitos presentes ao evento, tornou-se uma “confirmação” direta também da autenticidade do “voo milagroso” da Santa Casa, pela onipotência divina. A estigmatizada Santa Veronica Giuliani também recebeu uma graça extraordinária ao fazer duas peregrinações místicas à Santa Casa de Loreto em 10 de dezembro de 1714 e 10 de dezembro de 1715, por ocasião da festa da trasladação milagrosa. Seu confessor, o padre jesuíta Mario Cursoni, deu-lhe esta ordem intrigante: “Depois do que comunicaste, tu e eu iremos a Loreto visitar Maria Santíssima”. E assim, recebida a comunhão eucarística, após um arrebatamento do espírito, ele iniciou sua peregrinação mística a Loreto. A santa observou no seu diário: “Como num voo, encontrei-me em Loreto, na Igreja de Maria Santíssima. Era uma Igreja grande e dentro dela havia, depois do altar-mor, uma Igreja menor. Assim me pareceu”. No processo de beatificação e canonização, o padre Cursoni afirmou que Verônica, a quem ele havia questionado sobre o assunto, descreveu tão bem e detalhadamente o Santuário, que não poderia tê-lo feito melhor se tivesse estado lá várias vezes. Por esse motivo, perguntou-lhe se já havia estado em Loreto antes de entrar no claustro; e ela garantiu que não. A santa escreveu em 10 de dezembro de 1714: “Permanecei totalmente doados em tudo a Maria”. E a Virgem que apareceu na Santa Casa lhe assegurou que era “a medianeira entre Deus e as criaturas” e que todas as graças passam por suas mãos. Entre outros santos, estiveram em Loreto São Carlos Borromeu, São Francisco de Sales (em sua juventude) e São


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Francisco Xavier, que recebeu ali a inspiração de partir para a Índia e o Japão, onde curou vários orientais simplesmente tocando-lhes as ladainhas lauretanas escritas do próprio punho. São Francisco Borgia foi curado em Loreto; São Luís Maria Grignion de Montfort permaneceu duas semanas inteiras em Loreto, onde recebeu a inspiração de escrever o famoso Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem. Montfort foi um grande devoto da Santa Casa de Loreto. E precisamente pelo extraordinário acontecimento ocorrido ali – a Encarnação de Deus no seio puríssimo da Bem-Aventurada Virgem Maria – pode-se dizer que o santuário lauretano é o lugar ideal para todos aqueles que praticam a escravidão mariana. Sim, Loreto também é a casa dos escravos de Maria, de acordo com o método ensinado pelo grande santo francês em seu referido Tratado. Não é por acaso que ele recomendou celebrar com particular solenidade o dia 25 de março, festa da Anunciação, por ser o dia em que o próprio Senhor Jesus Cristo se fez escravo de Nossa Senhora. São Benedito José Labre esteve todos os anos em Loreto, de 1775 a 1783. Santo Afonso Maria de Liguori falou de Loreto em seu livro Glórias de Maria, defendendo a veracidade das trasladações milagrosas e a autenticidade da Santa Casa36. 36 Em sua Novena de Natal, o santo escreveu: “Ó afortunada casinha em Nazaré, eu te saúdo e adoro. Chegará um tempo em que serás visitada pelos primeiros grandes nomes da terra; encontrando-se os peregrinos dentro de ti, não se satisfarão em chorar de ternura, pensando que dentro de suas pobres paredes o Rei do paraíso passou quase toda a sua vida. Nesta casa, portanto, o Verbo encarnado viveu de resto sua infância e juventude. E como viveu? Viveu pobre e desprezado pelos homens, fazendo o ofício de um simples jovem e obedecendo a Maria e José. Ó Deus, quanta ternura pensar que nesta pobre casa o Filho de Deus vive como um servo! Ora vai buscar água, ora abre ou fecha a carpintaria, ora varre a sala, ora recolhe a madeira cortada para o fogo, ora está lutando para ajudar José em suas obras. - Ó Espanto! Ver um Deus que varre, um Deus que serve como menino! Oh, pensava que isso deveria fazer com que todos nós ardêssemos de santo amor por um Redentor que se reduziu a tal baixeza para se fazer amado por nós! Acima de tudo, adoramos a vida oculta e negligenciada de Jesus Cristo na casa de Nazaré. Ó homens soberbos, como podeis aspirar a aparecer e ser honrado vendo o vosso Deus passar trinta anos de vida vivendo pobre, oculto e desconhecido, para nos ensinar o recolhimento e a vida humilde e oculta?”. Cit. in T. Rey-Mermet, Il santo del secolo dei lumi, Città Nuova Florença, 1983, pp. 634-635.


104 O Milagre da Santa Casa de Loreto Por sua vez, Santo Estanislau Kostka, São Luís Gonzaga e São João Berchmans também se fizeram peregrinos no santuário mariano. E como podemos nos esquecer da emoção sentida por Santa Teresa do Menino Jesus quando, ainda jovem, visitou o santuário com sua família? E assim, novamente, muitos outros santos e bem-aventurados peregrinaram em Loreto e receberam graças extraordinárias na Santa Casa, também para a inspiração da fundação de Ordens e Congregações religiosas. Concluímos com algumas palavras de São Pedro Canísio, que lutou tenazmente contra as mentiras dos luteranos – os primeiros a questionar sistematicamente a autenticidade da Santa Casa. Em sua obra De Maria Virgine Libri quinque (1577), na seção dedicada a Nossa Senhora de Loreto, ele escreve: “Em Loreto o milagre se manifestou com tanto poder, tanta notoriedade, tanta constância, tanta evidência, tanta prodigalidade que toda a Europa ficou impressionada e ninguém pode escapar – a menos que seja um temerário – da mão todo-poderosa do Altíssimo, da qual todos esses sinais manifestos constituem outros tantos testemunhos públicos demonstrando ao mundo inteiro, além de todas as demais provas, a verdade do fato maravilhoso da trasladação da Santa Casa de Nazaré”37.

37 Cit. in G. Gorel, La santa Casa di Loreto, cit., p. 161.


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Capítulo V

Loreto, baluarte da Europa cristã contra o islã Entre os inúmeros fatos históricos relacionados com o santuário de Loreto figura o seu papel essencial na luta do Cristianismo contra a agressão islâmica. Diante dos ataques do mundo muçulmano, a Virgem Lauretana foi invocada para proteger o Papado, a Igreja Católica e, em geral, a identidade cristã europeia. Para que se possa ter uma ideia da importância de Loreto, basta mencionar dois acontecimentos épicos, decisivos para a história das relações entre o continente europeu e o islã, a saber, as batalhas de Lepanto e de Viena.

5.1 A batalha de Lepanto (1571) A batalha de Lepanto freou o expansionismo turco no Ocidente. E se a armada cristã saiu vitoriosa, ela o deveu – além do heroísmo dos que combateram e verteram seu sangue – à intervenção de Nossa Senhora, invocada precisamente como Virgo Lauretana. Não foi, pois, por acaso que, terminado o conflito naval, vieram doar ao santuário alguns troféus de guerra, como bandeiras, estandartes e armas arrebatadas ao inimigo turco. Em caso de derrota, o islã teria se propagado pela Europa, tomado posse de nossas terras e nos subjugado, impondo-nos seu domínio político e sua religião.


106 O Milagre da Santa Casa de Loreto Mas deixemos falar o padre Arsenio d’Ascoli, que em seu trabalho Os Papas e a Santa Casa1 concentrou-se pormenorizadamente sobre esses acontecimentos: São Pio V – escreveu ele – havia colocado sob a proteção da Virgem de Loreto o êxito da grande batalha que as Nações Cristãs travavam contra os turcos, que estavam envidando seus últimos esforços por via marítima para abrir uma passagem no Mediterrâneo Ocidental e atingir o coração da Igreja Católica. O Santo Pontífice havia ordenado orações contínuas na Santa Casa de Loreto durante todo o período da última grande cruzada. Se a glória militar da batalha de Lepanto reverbera na lendária figura de Dom João d’Áustria, a vitória foi apenas o resultado da oração confiante de São Pio V. Ele odiava a guerra, mas seu amor à Igreja em perigo o impelia a falar aos cardeais, reunidos em Consistório no dia 2 de abril de 1566: “Eu me armo contra os turcos, mas nisso somente a oração pode me ajudar”. O Papa caminhava descalço em procissão pelas ruas de Roma, para implorar a bondade de Deus sobre a sua Igreja; ao mesmo tempo, porém, preparava as armas e erguia torres de vigia ao longo de toda a costa do mar de Roma. Em 25 de maio de 1571 constituía-se em Roma a “Liga Cristã”. Marcantonio Colonna, comandante da frota pontifical, foi com sua esposa a Loreto para colocar o destino da guerra nas mãos de Maria. A frota cristã partiu dos portos da Europa e, após 20 dias de navegação, avistou a frota inimiga, forte de 300 navios. Dom João d’Áustria, com um crucifixo na mão, percorreu navio por navio, belo e luminoso no rosto como o arcanjo da vitória; infundiu ardor e coragem e içou a bandeira do Papa e a bandeira da expedição sobre a qual dominava a imagem da Virgem. Foi um sinal de oração para todos os navios. 1

A. D’Ascoli, I Papi e la Santa Casa, Loreto, 1969, pp. 54 e ss.


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Aquele foi um momento especialmente solene. Atrás deles, a Europa e o Papa estavam ansiosos. A Virgem de Loreto, invocada com ardor por seus filhos, participou da gigantesca batalha. Por volta do meio-dia de 7 de outubro de 1571 começou a furibunda refrega. Às cinco da tarde a batalha estava terminada. São Pio V trabalhava no movimento do tesouro pontifício com vários prelados. De repente, quase movido por um impulso irresistível, levantou-se, aproximou-se de uma janela, olhando em êxtase para o Oriente; voltando-se depois para os prelados, com os olhos brilhantes de uma alegria divina: “Não vamos mais tratar de negócios – exclamou –, mas agradecer a Deus. A frota cristã conquistou a vitória”. Ele dispensou os prelados e foi imediatamente para a capela, onde um cardeal acorrendo para saber da feliz novidade o encontrou imerso no pranto de alegria. A notícia oficial, entretanto, chegou com certo atraso, devido a uma tempestade no mar que obrigou o mensageiro de Dom João d’Áustria a parar. Ao chegar – na noite de 21 de outubro de 1571 –, eles o receberam exclamando: “O Senhor atendeu a oração dos humildes, e não desdenhou suas preces. Que essas coisas sejam transmitidas à posteridade, e as pessoas que nascerão louvarão o Senhor”. Ele mandou cunhar uma medalha com as palavras do Salmista: “A destra do Senhor fez grandes coisas; isso provém de Deus”. Passando depois para o corajoso Generalíssimo, aplicou o lema do Anjo: “Fuit homo missus a Deo cui nomen erat Joannes”2. O mesmo se fez mais tarde em relação a João Sobieski em Viena, no ano 1683. O Pontífice, tomado de incontida alegria, ordenou a todos que estavam na cama que se levantassem e fossem com ele à capela para glorificar a bondade divina. 2

“Houve um homem enviado por Deus, cujo nome era João”.


Em 25 de maio de 1571 foi constituída em Roma a “Liga Cristã”. Marco Antonio Colonna, comandante da frota pontifícia, foi com sua esposa a Loreto para colocar o destino da guerra nas mãos de Maria. Em 1576, Dom João d’Áustria teve o mesmo gesto: visitou Loreto para cumprir o voto feito cinco anos antes a Nossa Senhora, quando partiu para a Batalha de Lepanto.


A decoração do Grande Salão do Palácio Colonna em Roma celebra o papel de Marco Antonio Colonna na Batalha de Lepanto. Afresco de Giovanni Coli e Filippo Gherardi, 1675-1678.


110 O Milagre da Santa Casa de Loreto A vitória de Lepanto está, portanto, intimamente ligada ao Santuário de Loreto. O culto especial a Nossa Senhora do Rosário originou-se e se desenvolveu após essa histórica batalha. A vitória se deveu ao visível patrocínio da Virgem Lauretana. A invocação “Auxílio dos cristãos” foi acrescentada às ladainhas lauretanas após essa vitória. Até São Pio V atribuiu a vitória à Virgem de Loreto. “Portanto, o Papa – afirma Zucchi – verdadeiramente piedoso, entregou-se a orações públicas e privadas para se conciliar com o grande Deus e ordenou principalmente que, na santíssima cela de Loreto, se oferecessem continuamente fervorosas orações a Nossa Senhora, para que Ela se dignasse prestar seu auxílio aos cristãos no maior perigo e necessidade. A esperança do piedoso Pontíficde e de outras pessoas piedosas não foi em vão” (Martorelli, vol. I, p. 531). Como lembrança e reconhecimento, ele fez colocar nos medalhões do “Agnus Dei” a imagem de Loreto tendo acima as magníficas palavras: “Vera Domus florida quae fuit in Nazaré”3. Abaixo, quis que se escrevesse: “Sub tuum praesidium”, para fazer todos entenderem a quem se deveria atribuir o mérito da vitória. Outro fato que nos mostra a intervenção da Virgem Lauretana no destino da batalha. Enquanto Marco Antônio Colonna, comandante da armada papal, partia para o Oriente, sua esposa Dona Felice Orsini foi com outras damas a Loreto para rezar pelo esposo e pela vitória. Ela passou dias e noites em orações devotadas. Vendo seu fervor e sua fé, um jovem judeu se converteu e recebeu o batismo na Santa Casa. A grande dama romana foi sua madrinha e o tomou como pajem. Roma preparou uma entrada triunfal para o comandante do exército papal, mas o líder cristão, reconhecendo que o mérito da vitória não fora dele, mas da Virgem de Loreto, 3

“A verdadeira, esplêndida Casa que estava em Narazé”.


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adiou o retorno à capital e se dirigiu a Loreto para agradecer a Nossa Senhora. “Todo o exército papal desembarcou em Porto Recanati. O comandante, os oficiais e os cristãos libertados pelos turcos, a pé, com as cabeças descobertas, cantando hinos de alegria e agradecimento, subiram o monte Loreto” (Ibidem, vol. I, pp. 430-431). Em 1576 Dom João d’Áustria chegou a Loreto. Ele veio cumprir o voto feito cinco anos antes a Nossa Senhora, quando partiu para a batalha de Lepanto. Até então, prementes questões políticas e militares sempre o haviam impedido. No coração do inverno, a cavalo, chegou a Loreto vindo de Nápoles. Assim que ele viu o Santuário de longe, parou, curvou-se e descobriu a cabeça em reverência. “Chegando à abençoada Cela, feita uma confissão geral, rendeu infinitas graças a Nossa Senhora; não satisfeito com isso, acrescentou ao voto já cumprido um rico donativo em dinheiro. Como tinha satisfeito o voto e a piedade, retornou a Nápoles levando consigo uma grande recordação daquela amabilíssima Senhora de Loreto” (Ibidem, vol. I, pp. 433-434) Os remadores do exército turco em Lepanto eram cerca de 40.000, inúmeros deles cristãos. Quinze mil foram libertados na grande batalha e reconduzidos à Europa em navios cristãos. “É sabido que, no mesmo dia, antes do início do fato, os escravos cristãos dos turcos colocados nas cadeias para remar, fizeram um voto em Santa Maria de Loreto por sua liberdade” (Ibidem, vol. I, p. 431). Então todos, em grupo ou individualmente, queriam vir a Loreto para fazer seu voto. “E queriam que lá ficasse uma memória de tantos benefícios celestes: deixaram para a Libertadora as correntes que os mantinham presos aos remos” (Ibidem, vol. I, p. 431). Essas correntes foram usadas para fabricar as portas dos doze altares da nave central da Basílica, onde perma-


Dos 40 mil remadores do exército turco em Lepanto, muitos eram cristãos. Aproximadamente 15 mil foram libertados na grande batalha e levados de volta à Europa em navios cristãos. No mesmo dia, antes disso acontecer, os escravos cristãos agrilhoados pelos turcos para remar, fizeram um voto a Santa Maria de Loreto pela sua libertação. Com as correntes dos escravos chegados a Loreto foram confeccionadas, além das quatro portas da Santa Casa, as portas das capelas.

neceram em memória perene por quase dois séculos. Finalmente, “tendo as balaustradas de mármore sido colocadas nas mencionadas capelas, essas portas foram erguidas e o ferro, misturado indistintamente com outro, foi usado nas dependências de várias fábricas pertencentes ao mesmo santuário” (Ibidem, vol. II, p. 134). Com as correntes de escravos que chegaram a Loreto, além das portas das capelas foram feitos as quatro portas da Santa Casa, que ainda são conservadas em seu lugar como lembrança. Com as grandes lanças foi feita uma cerca na Fontana do Maderno, e com as flechas uma bela grade em uma capela da Basílica. Finalmente, todos foram removidos, porque estavam corroídos pela ferrugem e, sobretudo, porque outra linha foi imposta nas capelas para se harmonizar com os novos altares. Contudo, essas balaustradas de mármore semelhantes aos camarotes das galerias dos teatros não agradavam a Sacconi (ver Vogel, Index Hist., 10-5-75). Para onde foram levadas? Algumas para os porões, outras usadas para outros fins, outras para o estande municipal de tiro ao alvo.


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Foi muito belo o gesto desses escravos que quiseram doar suas correntes à Libertadora como sinal de gratidão e amor. As quatro portas da Santa Casa, apesar de simples e ásperos, estão lá para cantar as glórias e as vitórias da Virgem e recordar a todos aqueles que são escravos das paixões o dever de quebrar suas correntes aos pés de Maria e de se reerguer livres e puros. [...] Moroni4 em seu dicionário de erudição histórico-eclesiástica, sob o título “Ancona” afirma categoricamente que o Papa São Pio V foi para a cidade dórica em 1566 a fim de organizar as fortificações contra os turcos. Talvez naquela ocasião ele tenha visitado a Santa Casa, pela qual demonstrou devoção desde que era cardeal. Também o arquivista da Santa Casa, Pietro Giannuizzi, [...] diz que o Papa visitou Loreto em 1566 para implorar à Virgem ajuda e assistência à Igreja ameaçada pelos turcos. E o padre Diego Calcagni, nas memórias da cidade de Recanati, afirma que o Papa visitou Loreto após a vitória naval e foi em procissão à Santa Casa. Através do Cardeal Michele Monelli, que foi a Loreto para agradecer a Nossa Senhora sua cura, ele enviou à Basílica um pálio e um magnífico paramento (Martorelli, vol. I, p. 425).

5.2 A batalha de Viena (1683) Um século depois de Lepanto, em 1683, a Cristandade se viu novamente em perigo. O expansionismo turco estava se espalhando pela Europa e, portanto, mais uma vez, foi o Romano Pontífice, na época de Inocêncio XI, que instou os Estados católicos a pegar em armas para defender a Igreja e a própria civilização europeia. A batalha decisiva ocorreu em Viena e, neste caso, a vitória foi também obtida através da intercessão da Mãe de Deus, 4 Gaetano Moroni (1802-1883), erudito e dignitário pontifício, foi o autor, entre outros, do Dizionario de erudizione storico-celsiastica.


114 O Milagre da Santa Casa de Loreto venerada com o título de Virgem Lauretana, cuja imagem foi trazida pelo vitorioso exército cristão que entrou na capital austríaca liberada do perigo. Os protagonistas indiscutíveis da grande Cruzada contra o Islã foram o rei da Polônia João Sobieski e o frade capuchinho Marco d’Aviano. Em sua já citada obra Os Papas e a Santa Casa5, o padre Arsenio Ascoli, ex-diretor da Congregação Universal, recordou de forma convincente o evento: Um século após a derrota de Lepanto (1571) os turcos tentaram subjugar a Europa e a Cristandade. No início de 1683, Maomé IV entregou a bandeira do Islão a Kara Mustafà, fazendo-o jurar defendê-la até a morte. O Grão Vizir, orgulhoso de seu exército de 300.000 soldados, promete abater Belgrado, Buda, Viena, penetrar na Itália, ir até Roma e colocar o casco de seu cavalo sobre o altar de São Pedro. Em agosto de 1683, o capuchinho Frei Marco d’Aviano foi nomeado Capelão-chefe de todos os exércitos cristãos. Ele reanima o povo aterrorizado, convence João Sobieski a acorrer com seu exército de 40 mil homens. A imagem de Nossa Senhora está em cada estandarte: Viena confiava apenas na ajuda da Virgem. A cidade estava sitiada desde 14 de julho e sua rendição era uma questão de horas. Em Kahlemberg, uma montanha que protege a cidade pela parte norte, Frei Marco celebrava a Missa em uma capela, acolitado por Sobieski, diante de todo o exército cristão disposto em semicírculo. Frei Marco prometeu a mais estrepitosa vitória. No final da Missa, em êxtase, em vez dedizer “Ite Missa est”, ele bradou: “Joannes vinces”, ou seja: “João vencerá”. A batalha começou no amanhecer de 11 de setembro e um esplêndido sol iluminou os dois exércitos que estavam prestes a decidir o destino da Europa. Os sinos da cidade tocavam desde o amanhecer, mulheres e crianças estavam na igreja para implorar a ajuda de Maria. 5

A. D’Ascoli, I Papi e la Santa Casa, Loreto, 1969, pp. 54 e ss.


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Antes da noite o exército turco estava quebrado, a bandeira de Maomé nas mãos de Sobieski, a tenda do Grão Vizir ocupada. As pessoas estavam impacientes para contemplar o rosto do herói. Sobieski, precedido pelo grande estandarte de Maomé, vestido de azul e dourado, montado no cavalo do Grão Visir, fez no dia seguinte sua entrada solene na cidade entre uma multidão de pessoas. Por ordem de Sobieski, o cortejo se dirigiu em direção à igreja de Nossa Senhora de Loreto, onde era venerada uma famosa imagem da Santíssima Virgem. A vitória se deveu a Ela e todas as pessoas se prostraram com gratidão a seus pés. Uma Santa Missa foi celebrada e Sobieski permaneceu sempre de joelhos, como que absorto. O pregador subiu ao púlpito e fez um grande sermão, aplicando o texto do Evangelho a João Sobieski: “Fuit homo missus a Deo cujo nomenma era Joannes” (“Houve um homem enviado por Deus, cujo nome era João”). A cerimônia prosseguiu grandiosa e solene em sua simplicidade, com detalhes saborosos que destacam a fé e a cordialidade de Sobieski. O cerco havia desorganizado muitas coisas e a igreja de Loreto não tinha mais cantores. “Não importa”, disse Sobieski, com sua voz poderosa ao pé do altar, e entoou o “Te Deum”, que o povo continuou com uma só voz. O órgão e a música não eram necessários: o coro da multidão compensava com piedade, emoção, entusiasmo. Desconcertado, o clérigo não sabia como concluir, e folheava missais e rituais para procurar um versículo. Sobieski o deixou constrangido: sem prestar muita atenção nas rubricas, improvisou uma e sua voz sonora voltou a se elevar poderosa sobre a multidão: “Non nobis, Domine, non nobis!” (“Não a nós, Senhor, não a nós”). Os padres responderam cantando: “Sed nomini tuo da gloriam” (“Mas a teu nome se dê a glória”). Sobieski enviou imediatamente uma mensagem ao Beato Inocente XI para anunciar-lhe a vitória. Os termos da missiva mostram a humildade e a fé do herói: “Venimus, vidimus, et Deus vincit” (“Viemos, vimos e Deus venceu”). Uma embaixada solene levava ao Papa o grande estandarte


116 O Milagre da Santa Casa de Loreto de Maomé IV, a tenda do Grão-vizir e uma bandeira cristã recapturada aos turcos. O Beato Inocêncio XI, agradecido a Nossa Senhora de Loreto pela grande vitória, enviou para o Santuário a bandeira arrebatada aos turcos e a tenda. A bandeira ainda está preservada na Sala do Tesouro. A tenda foi levada pessoalmente por Clementina, filha de Sobieski, casada com James II, rei da Inglaterra. Com ela se confeccionou um precioso dossel, utilizado somente nas grandes solenidades; uma parte serviu como paramentos pontificais”. Até o Papa, como Sobieski, atribuía a vitória à Virgem Lauretana. Seu ex-voto consistiu na instituição de uma festa em homenagem ao Santíssimo Nome de Maria. Em 25 de novembro de 1683 um ato da Congregação de Ritos a estendia a toda a Igreja e a fixava no domingo entre a oitava da Natividade de Maria, e São Pio X a fixou para 12 de setembro, aniversário da vitória. Após a grande batalha de Viena foi encontrada sob os escombros uma bela imagem de Nossa Senhora de Loreto, em cujos lados estava escrito: “In hac imagine Mariae victor eris Joannes; in hac imagine Mariae vinces Joannes” (“Nesta imagem de Maria serás vencedor, ó João; nesta imagem de Maria vencerás, ó João”). Certamente foi uma imagem levada ali por São João de Capistrano mais de dois séculos antes, nas lutas contra os turcos na Hungria e em Belgrado. Sobieski queria que Frei Marco a portasse na entrada triunfal em Viena no dia seguinte à vitória. Ele a tinha levado consigo na perseguição ao inimigo e obtivera com ela esplêndidas vitórias contra os turcos. Em seguida fê-la colocar em sua Capela e mandava celebrar diariamente a Santa Missa e cantar a Ladainha lauretana diante dela. Na Capela Polonesa em Loreto, o Prof. Gatti quis recordar esse episódio colocando no quadro da parede à direita Frei Marco d’Aviano com o quadro de Nossa Senhora de Loreto na mão. O Beato Inocêncio XI colocou nos “Agnus Dei” do primeiro e do sétimo ano de seu Pontificado a impronta da Santa Casa com a inscrição: “Santa Maria de Loreto, rogai por nós”.


Um século depois de Lepanto, em 1683, a Cristandade se viu novamente em perigo. A expansão turca estava desenfreada na Europa. Os protagonistas indiscutíveis da grande Cruzada contra o Islã foram João Sobieski, Rei da Polônia, e o frade capuchinho Marco d’Aviano. A imagem de Nossa Senhora está em cada bandeira. (Arturo Gatti, 1912-1939. Capela polonesa, Santuário de Loreto).

De fato, nesses como em muitos outros lances da História, Nossa Senhora apareceu “terrível como um exército em ordem de batalha” (Ct 6,10). Fora da capela polonesa do santuário ainda existe uma placa cuja inscrição explica como, depois da batalha, Sobieski doou ao santuário lauretano o butim subtraído aos turcos.

5.3 A defesa heroica do Estado Pontifício Dois séculos depois, uma outra Cruzada teve lugar às portas de Loreto. Desta feita não mais contra os turcos mas contra a revolução liberal e maçônica conduzida pela casa de Savóia contra os antigos reinos italianos, entre eles os Estados Pontifícios.


118 O Milagre da Santa Casa de Loreto O general do exército papal, Christophe Léon-Louis Lamoricière, lutou valorosamente em defesa da Igreja em Castelfidardo, em 18 de setembro de 1860, sob os olhos, poderíamos dizer, de Nossa Senhora. Nesse contexto, à frente dos Zuavos pontifícios, encontrou heroicamente a morte o coronel George de Pimodan, após ter olhado para o santuário lauretano. “Durante o combate – escreveria mais tarde um dos voluntários sobreviventes – eu não perdia de vista a Casa de Loreto”. “É doce pensar, ó boa Mãe – dizia outro, dirigindo-se à Santíssima Virgem –, que talvez uma bala me leve até Vós em cinco minutos”. As testemunhas dizem que todos os soldados do Papa, como verdadeiros mártires, “abraçaram o sofrimento e a morte com a alegria dos predestinados: eles jaziam no sangue como no leito nupcial da vida imortal, cantando os cânticos do amor eterno. Foi aos pés da Santíssima Virgem que encontraram o santo heroísmo que os animou durante a luta; foi à sombra da Santa Casa que eles vieram oferecer a Deus, por meio de Maria, as primícias de seus sofrimentos, alguns seu último suspiro”6. Monsenhor Dupanloup, na oração fúnebre dedicada aos caídos pela Igreja e pelo Papado, exclamou, entre outras coisas: “Santuário de Loreto, eles te viam combatendo! Tu te lhes afiguraste como o refúgio aberto de suas almas, e os olhos desfalecidos deles te olhavam. Esses jovens deixavam Loreto cheios de vida e voltavam à noite em macas, com os membros mutilados e entre gritos de angústia. Os pacientes pediam para ser enviados à mansão divina o mais rapidamente possível, e aqueles que ainda tinham força, arrastavam-se sobre as mãos e sobre os joelhos para se aproximarem e beijar as sagradas paredes”7. 6 7

A. Grillot, La Sainte Maison de Lorette, Alfred Mame et Fils Éditeurs, Tours, 1876, Cap. XII – Les martyrs de Castelfidardo, p. 169. Cit. in G. Gorel, La Santa Casa di Loreto, cit., p. 168.


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Capítulo VI

Onde os grandes se fizeram peregrinos Juntamente com os santos, inúmeras personalidades importantes da História também visitaram como peregrinos o santuário de Loreto. Mas um elenco exaustivo exigiria neste caso um tratamento à parte1. Limitar-nos-emos apenas a alguns exemplos. 1) Antes de tudo, é preciso começar pela França, que sempre teve um vínculo especial com a Santa Casa. O santuário, como é conhecido, abriga várias capelas nacionais (a espanhola, a polonesa, a suíça, a alemã, a eslava etc.), mas a francesa, dedicada ao rei São Luís IX (1214-1270), se reveste de um significado particular. Na verdade, o grande soberano esteve como peregrino na sagrada casa quando esta ainda se encontrava em Nazaré, na vigília da Anunciação de 1251, após ser libertado do cativeiro do sultão do Egito. A capela recorda com suas pinturas esse episódio e a cruzada empreendida contra os muçulmanos. Em 25 de março, São Luís recebeu a Sagrada Comunhão na própria Santa Casa. Assim narra Guglielmo de Nangis aquele dia: “Assim que ele viu a cidade, desmontou e adorou Nosso Senhor e Nossa Senhora. [...] Naquele dia, apesar de sua fadiga, jejuou pão e água. Com que devoção se comportou, com que solenidade e com que esplendor ele fez celebrar as vésperas, pela manhã, a missa e outros ofícios desta festa, todos os numerosos presentes o podem contar, 1 Recomendamos consultar nesse sentido G. Santarelli, Personaggi d’Autoria a Loreto, Edizioni Santa Casa, Loreto, 2010.


Janela da Anunciação

Duas das cinco cruzes em tecido vermelho, insígnias dos peregrinos cruzados, encontradas entre as pedras da Santa Casa, foram descobertas sob a janela durante as escavações arqueológicas dos anos sessenta e preservadas no Arquivo Histórico do Santuário.

Nazaré, litografia do diário de David Roberts, 1842


Ovo de avestruz encontrado sob as pedras da Santa Casa.

Moedas de Guido II de la Roche, duque de Atenas (1287-1308), encontradas no subsolo da Santa Casa.


São Luís IX recebe a Comunhão na Santa Casa de Nazaré. Carlos Lameire, 1896. Capela francesa.

São Luís IX (1214-1270), Rei da França, foi em peregrinação à Santa Casa na véspera da Anunciação de 1251, após ser libertado do cativeiro do sultão do Egito e enquanto a mesma ainda se encontrava em Nazaré. Em memória desse fato e como sinal de agradecimento e devoção, o rei foi retratado na parede da Santa Casa rezando diante da imagem de Nossa Senhora, revestido do manto real, segurando com a mão direita os grilhões de seu cativeiro e com a esquerda o cetro.

e mais de um proclamará e certificará que verdadeiramente, desde o dia em que o Filho de Deus tomou um corpo da Virgem Maria neste mesmo lugar, nunca foi celebrado um ofício com tanta solenidade e devoção. Então o rei piedoso fez cantar a missa ‘no lugar onde o anjo Gabriel saudou Nossa Senhora’. No final da missa, ele recebeu o verdadeiro pão dos anjos, que é o verdadeiro Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo, com grande devoção e com grande humildade. E depois voltou para Jaffa”2. Para recordar esse fato e em sinal de gratidao e devoção, o rei foi retratado na parede da Santa Casa rezando diante da imagem de Nossa Senhora revestido do manto real e tendo na mão direita os grilhões de sua prisão e na esquerda o cetro. Segundo alguns3, quando as três paredes sagradas chegaram 2 Cit. in G. Gorel, La Santa Casa, cit., p. 34. 3 Cfr. G.M. Pace, Miracolosa traslazione a Loreto della dimora della Santissima Annunziata, cit., pp. 25-26.


a Tersatto, elas já estavam pintados nestes afrescos. A auréola foi evidentemente adicionada mais tarde, porque Luís IX foi canonizado por Bonifácio VIII em 1297. Outros sustentam que se trata de um afresco posterior4. O rei Henrique III da França (1551-1589), que não conseguia ter filhos, recorreu à Virgem Lauretana enviando à basílica uma taça de safira com pé de esmeralda encastoado em ouro. A tampa, em cristal de rocha, ostentava um anjo de de ouro maciço com um lírio de diamante na mão5. Mesmo Luís XIII (1601-1643), após 23 anos de esterilidade de sua esposa Ana d’Áustria, graças à Santíssima Virgem Lauretana conseguiu finalmente gerar o futuro Luís XIV (1638-1715) e, como sinal de agradecimento, doou um anjo 4 Cfr. G. Santarelli, La Santa Casa di Loreto, cit., p. 266; G. Gorel, La Santa Casa di Loreto, cit., p. 35. 5 Cfr. G. Gorel, La Santa Casa di Loreto, cit., p. 157.


124 O Milagre da Santa Casa de Loreto de prata maciço de 150 quilos no ato de apresentar a Maria uma figura em ouro da criança em tamanho real, pesando 24 libras. Posteriormente, o Rei do Sol pediu e obteve que a festa de São Luís IX fosse celebrada perpétua e solenemente na basílica a cada 25 de agosto. E em carta de 23 de dezembro de 1655, pediu ao Papa que estendesse à Igreja universal a festa da trasladação milagrosa da Santa Casa, em 10 de dezembro6. Por esse motivo, um capelão francês está presente há séculos no santuário. Príncipes, princesas, reis e imperadores se fizeram peregrinos em Loreto. O Imperador Carlos IV, João Paleólogo de Constantinopla, Frederico III, Afonso de Aragão, rei de Nápoles, muitos soberanos poloneses, o Imperador Carlos V, Cristiano, rei da Suécia, os arquiduques Leopoldo, Ferdinando e Maximiliano da Áustria, Carlos IV, rei da Espanha, a rainha Beatriz da Hungria, os duques da Savóia, da Toscana, de Parma, de Modena, de Mântua, só para citar alguns nomes. Em particular o arquiduque Ferdinando – que se tornaria mais tarde o imperador Ferdinando II – empreendeu, quando jovem, em 1598, uma peregrinação a Loreto, fazendo diante da Santíssima Virgem o voto de aniquilar, ainda que à custa de sua própria vida, a sinuosa heresia na Áustria: e assim aconteceu, pois ele se tornou um campeão da Contra-Reforma. Extraordinária foi também a assistência concedida por Nossa Senhora ao húngaro Estêvão V Báthory, uma das glórias militares de seu país, na batalha de Campo do Pão, contra os turcos, em 13 de outubro de 1479: ele conseguiu vencer em condições desesperadoras, depois de invocar a Santíssima Virgem de Loreto, e em sinal de reconhecimento doou ao santuário uma enorme estátua de ouro de Nossa Senhora com o Menino Jesus. 6 Cfr. G. Gorel, La santa Casa di Loreto, cit., p. 211.


Cappela tedesca


Pedro de Villa cumpre o voto na Santa Casa em nome da tripulação de Cristóvão Colombo. Cesare Maccari, cúpula da Basílica de Loreto.

2) O grande poeta Dante Alighieri referiu-se em sua comédia à passagem por Loreto: “Naquele lugar estava eu, Pedro Damião, / e Pedro Pescador estava na Casa / de Nossa Senhora, em seu lugar adriano” [no Adriático] (cf. Paraíso, XXI), aludindo a São Pedro Damião, que esteve na região das Marcas bem antes da trasladação, e a São Pedro, que celebrou missa na Santa Casa de Nazaré. 3) Cristóvão Colombo, como pode ser lido em seu diário de bordo, conhecia muito bem o santuário lauretano e não se exclui que possa ter estado lá como jovem marinheiro, atravessando o Adriático entre 1465 e 1475. Em 13 de fevereiro de 1493, enquanto retornava à Espanha da jornada histórica que o fez descobrir o novo continente americano, sua frota foi atingida por uma violenta tempestade. O mar se tornou tão ameaçador, que as ondas, acavalando-se, fustigavam as duas naus sobreviventes, a “Niña” e a “Pinta”. Na noite de 14 de fevereiro o vento se intensificou ainda mais, e as ondas se tornaram assustadoras. A “Pinta” ficou à mercê do vento, desapareceu de vista e foi considerada fora de rota. Diante do perigo, Colombo e


Nave Central da Basílica de Loreto. No lado sul do revestimento da Santa Casa está o altar-mor, com a Janela da Anunciação ao centro.

seus marinheiros recorreram à intercessão de Nossa Senhora, a quem fizeram grandes votos coletivos. E assim, colocaram tantos grãos de bico dentro de um boné quantos eram os marinheiros presentes no “Niña”. Um dos grãos-de-bico estava marcado com uma cruz e quem o retirasse teria que fazer uma peregrinação a três santuários marianos. O primeiro e o terceiro sorteio recaíram sobre o próprio Colombo, que se comprometeu a ir ao santuário espanhol de Santa Maria de Guadalupe, na Extremadura, oferecendo uma vela de 1,5 kg, e ao de Santa


Padroeira da aviação. Bênção dos aviões e procissão.

Afresco da Capela americana, com Nossa Senhora padroeira da aviação e a conquista do espaço.


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Clara de Moguer. O segundo foi extraído por um marinheiro, Pedro de Villa, a quem Colombo prometeu o dinheiro para as despesas da viagem “a Santa Maria de Loreto, localizada na Marca de Ancona, no estado papal, que é a casa onde a Santíssima Virgem fez e ainda faz muitos grandes milagres”. Após os três votos, a tempestade diminuiu gradualmente e a tripulação por fim conseguiu desembarcar na costa espanhola. O pintor Cesare Maccari retratou o cumprimento do voto de Cristóvão Colombo na cúpula da basílica de Loreto7. 7 Cfr. Il voto di Cristoforo Colombo alla Madonna di Loreto, in http://www. vivereosimo.it/2007/12/10/il-voto-di-cristoforo-colombo-alla-madonnadiloreto/150119/. Na encosta que desce para a planície em direção ao mar encontra-se o cemitério militar polonês do 2º Corpo do Exército, com os restos mortais dos soldados que deram heroicamente suas vidas na tomada de Loreto, durante a Segunda Guerra Mundial.


130 O Milagre da Santa Casa de Loreto 4) Torquato Tasso dedicou alguns versículos à Santa Casa, os quais foram depois usados na atual Liturgia das Horas para o dia da festa. Em peregrinação ao santuário em 31 de outubro de 1587, ele queria confiar suas tristezas e tormentos a Nossa Senhora. Naqueles anos, trabalhou na música À Beatissima Virgem de Loreto. Eis alguns versículos: Aqui os anjos ergueram a Casa sagrada, Que já acolheu Maria com o santo Filho, Transportada sobre as nuvens e sobre as águas: Grande milagre, para o qual elevo e assomo A mente, voltada por outro objeto para a terra, Enquanto de seus pensamentos jazia opressa. Este é o Monte que Vos aprouve homenagear Com vossas santas paredes, Virgem, casta e pura, Antes de vosso parto, e depois, e quando Ele nasceu; De tal modo que Atlas [referência ao monte] inveja-o, humilhado, Nas suas fabulosas qualidades Pela vossa humilde estadia e do Rei dos reis. 5) Em Loreto repousa um dos principais protagonistas da insurreição anti-jacobina da região das Marcas durante a invasão napoleônica, o general Giuseppe La Hoz, milanês de origem espanhola, La Hoz inicialmente apoiou Bonaparte e era um firme defensor do jacobinismo; depois mudou de idéia e passou para o lado dos insurgentes italianos, liderando a revolta na região das Marcas a partir de 17 de junho de 1799 e morrendo sob os muros de Ancona no final de setembro de 1799. Em 4 de agosto do mesmo ano, ele entrou em Loreto e os franceses abandonaram definitivamente a cidade mariana, que foi colocada sob a Regência imperial-real pontifícia, já estabelecida em 11 de julho precedente para as Marcas de Ancona e de Fermo.


Onde os grandes se fizeram peregrinos

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Embora Monaldo Leopardi escreva em sua Autobiografia que acredita “com certeza que La Hoz tinha a genialidade e os pensamentos de Bonaparte e que apenas as circunstâncias os tornavam diferentes”, o fato é que no dia seguinte à sua morte o corpo do general foi transportado para o Basílica de Loreto e enterrado com grandes honras na cripta do cemitério, hoje Cripta do Crucifixo. As duas pesquisas realizadas em 1941 e 1995 encontraram seu corpo ainda bem conservado8. 6) O grande jornalista ultramontano Louis Veuillot, em sua obra Rome et Loreto (1841), confirmou sua devoção à Santa Casa, escrevendo: “Jamais nos ocorra que Deus queira enganar nossa piedade e nosso amor. Se Ele não tivesse ordenado a seus anjos que levassem para o coração do mundo católico esta casa que foi o cenário do primeiro mistério de nossa salvação, certamente teria sabido como fazer desaparecer sua aparência falaciosa; e assim como Lhe seria fácil aniquilar um simulacro vão, do mesmo modo foi-Lhe fácil oferecer à nossa veneração estas pedras sagradas que, de acordo com seus augustos desígnios, Ele queria arrebatar das mãos dos infiéis [...] onde Deus intervém com gestos extraordinários e com sabor de milagre em apoio ao que Ele quer tornar conhecido com certeza, ali não há lugar para o erro. Todos o sabem, é uma verdade incontestável que repugna à Providência supremamente sábia servir-se de testemunhos sobrenaturais de sua onipotência para induzir os homens ao erro. Agora, são inúmeros esses testemunhos sobrenaturais, também chamados milagres”9.

8 Cfr. Il Messaggio della Santa Casa, nº 8, setembro-outubro de 2015. 9 Cit. in G. Gorel, La Santa Casa di Loreto, cit., p. 136.



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Apêndice

Loreto, o santuário dos “princípios não negociáveis” O santuário de Loreto age à maneira de um pulmão espiritual, especialmente para aqueles que lutam em defesa princípios não negociáveis (direito à vida, defesa da família natural, direito dos pais de educar seus filhos)1. Não há dúvida de que os fatos ocorridos na Santa Casa são da maior importância para a história da humanidade, sobretudo para quem se professa cristão.

A defesa do direito à vida desde a concepção… Naquelas sagradas paredes teve início a nossa Redenção. Com efeito, ali Nosso Senhor Jesus Cristo foi concebido. Não é só. Foi também o local da imaculada concepção de Maria Santíssima e de seu nascimento. Dentro daquelas paredes, o Verbo se fez carne e passou a viver entre os homens. Como não podemos pensar, então, na dignidade intrínseca do ser humano desde o momento da concepção? O próprio Jesus, o Salvador, assumiu a condição humana desde o início. Nosso Senhor foi um embrião e um feto, e viveu durante nove meses no ventre virginal de Maria Santíssima. Loreto deve, portanto, tornar-se o ponto de referência espiritual de todos aqueles que lutam para defender o direi1 Bento XVI, Discurso aos participantes do congresso promovido pelo Partido Popular Europeu, 30 de março de 2006, in https://w2.vatican.va/content/benedictxvi/it/speeches/2006/documents/hf_ben-xvi_spe_20060330_eu-parliamentarians. html.


134 O Milagre da Santa Casa de Loreto to à vida dos bebês por nascer. Porque não há diferença de dignidade e sacralidade entre um nascituro e um nascido, assim como não existe entre um jovem e um idoso, entre um homem ou uma mulher. Em todas as fases da existência, o ser humano é sempre tal. Por esse motivo, a oposição à manipulação genética, à produção artificial de crianças e ao crime de aborto deve ser clara e radical. Qualquer lei que admita o assassinato de crianças ou sua redução a objetos é intrinsecamente injusta, deve ser rejeitada e revogada. A mesma discussão obviamente se aplica à mercantilização que se desenvolve com a prática bárbara do útero de aluguel, que alguns associam de maneira blasfema à Anunciação ocorrida na Santa Casa. Mas o paradoxo não faz evidentemente nenhum sentido, porque Nossa Senhora não pediu para se tornar a Mãe de Deus, mas simplesmente aceitou, com o seu “Sim”, a vontade divina. Um sim aberto à vida, que muitos hoje rejeitam com a contracepção e um hedonismo desenfreado.

… até a morte natural Não podemos esquecer que, segundo a tradição, São José morreu na Santa Casa de Nazaré, assistido pela Bem-Aventurada Virgem Maria e por Nosso Senhor. Por esse motivo, o glorioso patriarca se tornou o santo padroeiro dos agonizantes: ninguém no mundo realmente recebeu tão grande graça, que é a de passar desta vida para a outra nos braços de Nossa Senhora e de Jesus. A de São José foi uma morte abençoada, a coroação de uma vida posta inteiramente ao serviço de Deus, de Quem ele se fez voluntariamente um instrumento dócil. Assim sendo, Loreto poderia se tornar o ponto de referência espiritual do católico em sua luta contra qualquer legislação que vise introduzir a eutanásia, muitas vezes mascarada – em nome de uma falsa piedade – com os termos


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“suicídio assistido” ou “testamento biológico”. Os ataques à vida em sua fase terminal são muito perigosos, porque se quer limitar a dignidade humana apenas às vidas eficientes e saudáveis. Mas em qualquer condição e situação, por mais dolorosa e trágica que ela seja, o ser humano sempre conserva a sua nobreza. O que precisa o doente não é ser morto, mas da assistência dos entes queridos e do cuidado que alivia o sofrimento. Precisamente como aconteceu com São José. Eliminar os doentes não é um gesto de amor, mas de egoísmo, por trás do qual se ocultam com frequência muitos interesses econômicos.

A defesa da família natural fundada no matrimônio A Santa Casa de Nazaré é o lugar onde viveu a Sagrada Família, o modelo de todas as famílias. Portanto, Loreto é o local privilegiado para se rezar pela instituição familiar, hoje ameaçada dentro e fora da Igreja. Lutar na esfera pública e na espiritual em defesa da indissolubilidade do casamento e da única identidade verdadeira da família – composta de homem e mulher – é hoje uma batalha e um desafio decisivo. Em face da rendição às modas dominantes, a Santa Casa de Loreto deve se tornar o centro no qual devemos haurir forças para dizer um claro “não” ao divórcio, às coabitações more uxorio, ao feminismo e às uniões homossexuais, pecados que destroem a sociedade da qual a família estável e unida é a célula fundamental. E considerando que a Santa Casa era propriedade da Sagrada Família, também é necessário lutar por uma verdadeira justiça social e uma economia familiar, o que também passa pelo reconhecimento e a proteção do direito de propriedade e pelo apoio à natalidade.

O direito prioritário dos pais à educação Na Santa Casa, Nosso Senhor é visto sendo educado por


136 O Milagre da Santa Casa de Loreto sua Mãe e por São José. Jesus viveu com sua família até os trinta anos, numa existência feita de oração e trabalho, obediência e sacrifício, sobriedade e pureza. Entre essas paredes, a própria Nossa Senhora foi criada e educada por seus pais, Joaquim e Ana. Loreto é, portanto, o ponto de referência também sobre esta questão, tão incalculada hoje. Em face de escolas públicas e igualitárias controladas pelo Estado, que agora instigam o indiferentismo religioso e valores realmente anticristãos, e da desenfreada ideologia de gênero imposta a todos visando dissolver a própria natureza humana, é mais do que nunca necessário reiterar o direito prioritário dos pais de educar seus filhos de acordo com os princípios em que acreditam. Daí também a necessidade de criar escolas parentais, livres de vínculos estatais e autenticamente católicss. Nenhum poder pode arrebatar os filhos de suas famílias e doutriná-los contra a vontade de seus pais. A luta pela pureza e a castidade A Santa Casa acolheu uma família particular e toda santa, caracterizada pela virgindade perpétua. Jesus, Maria e José preservaram a pureza e a castidade ao longo de suas vidas, integralmente, no corpo e no espírito. Viver na continência antes do casamento, durante o casamento ou por toda a vida parece hoje para muitos – inclusive católicos – uma coisa impossível, enquanto a pornografia e a contracepção grassam desenfreadas e sem restrições. Perdeu-se o senso do sacrifício e da pureza, de tal modo que todo capricho e todo prazer se arvoram em direito legalmente reconhecido, protegido e até imposto. A Sagrada Família, pelo contrário, foi capaz de viver como uma única grande oferta a Deus, tornando-se verdadeiramente um exemplo para todos, das crianças aos jovens, dos adultos aos idosos, cada vez mais esmagados pelo centrismo sexual prevalente hoje em todos os lugares.


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cidade italiana ?e Loreto tem o imenso privilégio de abrigar uma das mais importantes relíquias da Cristandade: a Santa Casa da Bem-Aventurada Virgem Maria. Ali se conservam as três paredes entre as quais Deus se fez homem, iniciando a nossa Redenção. Naquela casa Nossa Senhora foi concebida, nasceu e recebeu o anúncio do arcanjo Gabriel. Naquela habitação viveu junto a Jesus e a seu esposo São José. O Santuário de Loreto, como escreveu o Papa João Paulo li, é o "primeiro Santuário de alcance internacional dedicado à Virgem e, por diversos séculos, verdadeiro coração mariano da Cristandade". Temos ali um milagre vivo que ainda suscita perguntas e curiosidades. Como se pode demonstrar que as três paredes são exatamente as da Casa da Sagrada Família? Como vieram elas de Nazaré para a Itália? Esse transporte foi obra dos anjos ou dos cruzados? A Casa veio diretamente para Loreto ou parou em algum outro lugar? O que dizer da importância do Santuário Lauretano na luta entre a Cristandade e o Islã? Que milagres aconteceram ali e que santos e personagens famosos a visitaram? Este livro pretende responder a essas interrogações e valorizar esse escrínio de história, fé e tradição que a Itália tem a graça de guardar.


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