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A criminalização de lideranças indígenas como repressão da ação política

Enquanto estratégia de repressão da ação política dos povos indígenas, a criminalização integra um repertório extenso de formas estatais e paraestatais de dominação e controle desses povos.

Luiz Eloy Terena1

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A criminalização do movimento indígena constitui uma forte barreira legal à organização e autodeterminação dos povos indígenas hoje no Brasil, na medida em que a lei penal é utilizada para deslegitimar, perseguir e inviabilizar o exercício dos direitos e liberdades políticas de pessoas e organizações que integram ou se aliam ao movimento.

A criminalização é um processo socialpor meio do qual o status de criminoso é atribuído a comportamentos de determinados indivíduos em detrimento de outros. Esse processo é composto por uma série de etapas que serão descritas em tipos penais (criminalização primária), até a investigação, persecução penal e punição de determinados indivíduos e atos (criminalização secundária), chegando aos efeitos sociológicos produzidos pela investigação, acusação penal e aplicação da pena (criminalização terciária).

1 Luiz Eloy Terena é da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Trata-se de um processo complexo que envolve constelações de atores e instituições, ao longo do qual o crime é sociologicamente constituído. Enquanto estratégia de repressão da ação política dos povos indígenas, a criminalização integra um repertório extenso de formas estatais e paraestatais de dominação e controle desses povos. É parte da criminalização da identidade e do sentido do movimento social, mesmo que o processo criminal recaia diretamente sobre os indivíduos que os compõem.

É possível traçar diferentes processos de criminalização que incidem sobre integrantes do campo de mobilização indígena, situados nos níveis local, regional e nacional. Tais processos remetem ao âmbito de diferentes arenas institucionais, como as forças policiais (por meio de inquéritos policiais), o poder judiciário (processos penais), o poder legislativo (declarações de autoridades e de Comissões Parlamentares de Inquérito) e o Poder Executivo (declarações de autoridades do alto escalão dos governos). Também inclui a mídia e os espaços de organização do agronegócio.

Um exemplo foi o caso de uma das coordenadoras executivas da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, Sônia Guajajara, liderança indígena conhecida internacionalmente por sua luta em defesa dos direitos indígenas, que foi intimada a depor à Polícia Federal em 26 de abril de 2021. A justificativa para a intimação de Sônia Guajajara foi a instauração de inquérito policial que infundadamente acusou a Apib de difamar o governo federal e de incidir no crime de estelionato, em razão de suas campanhas de arrecadação de fundos para combater as mazelas da covid-19. O inquérito foi instaurado a partir de requerimento do presidente da Funai, Marcelo Xavier, que alegou que a Apib estava difamando o governo Bolsonaro, ao publicar a websérie Maracá. Este é um caso clássico de instrumentalização da lei penal para perseguir opositores políticos. Imediatamente, os advogados indígenas ingressaram com habeas corpus na Justiça Federal de Brasília, que determinou o trancamento do inquérito policial.

Ainda no mesmo mês, o líder Almir Suruí, outro renomado defensor dos direitos dos povos indígenas, também foi intimado a prestar depoimento em um inquérito sobre divulgações na internet nas quais, segundo a Funai, propagou “mentiras” contra o governo. Em ambos os casos, a provocação da Polícia Federal foi feita pela Funai, órgão que se manteve

inerte, ineficaz e negligente com as políticas de proteção à saúde dos povos indígenas durante a pandemia, mas optou por criminalizar as ações que a Apib realizou para combater a crise sanitária.

No âmbito do sistema de justiça criminal, existem casos de indígenas do Mato Grosso do Sul que foram indiciados ou réus pelo simples fato de sua identificação como lideranças do movimento social. Nesses casos, a polícia não buscou investigar a autoria dos fatos e apenas identificou lideranças para imputar crimes que não ocorreram, como forma de repressão e controle da ação coletiva dos povos indígenas.

Outros casos ocorrem na forma de inquéritos policiais que buscam reprimir povos indígenas por suas justas reivindicações de demarcação de seus territórios. Nestes casos, os inquéritos mencionam explicitamente uma posição contrária à demarcação das terras indígenas, além de tratarem uma justa reivindicação como ato criminoso. Os preconceitos desses processos permeiam as oligarquias rurais que agem através do Estado.

Não é possível dissociar a criminalização do movimento indígena das disputas territoriais, pois se trata de uma forma de repressão de reivindicações indígenas pela demarcação de seus territórios tradicionais. O histórico de despossessão dos povos indígenas e as demandas pela demarcação de territórios tradicionais estão ausentes nestes processos, que buscam apagar seus contextos e construir uma imagem negativa sobre os povos indígenas e suas organizações.

Para se proteger contra a criminalização de lideranças do movimento indígena, a Apib fundou o Observatório Sistema de Justiça Criminal e Povos Indígenas, que é um espaço colaborativo entre lideranças, pesquisadores e especialistas que atuam no sistema de justiça criminal, em diversas áreas do conhecimento, para monitorar medidas jurídicas. Existe um alto índice de indígenas encarcerados, que são processados e julgados sem acesso a seus direitos e garantias fundamentais.

É preciso transformar essa estrutura colonial de repressão aos povos indígenas e construir solidariedade e resistência contra a criminalização de seus direitos.

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