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A criminalização e a luta dos povos da terra, das águas e das florestas

O fenômeno da criminalização, com seus diversos matizes, pretende alijar a cidadania através de controles sociais institucionalizados, e é o meio mais contundente de coação e punição das lutas sociais para inibir o exercício da própria cidadania. Quanto mais autoritário, maior o uso dessa ferramenta nos anos mais recentes.

Euzamara de Carvalho e Kenarik Boujikian1

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Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. Bertolt Brecht

A violação dos direitos humanos dos povos da terra, das águas e das florestas em cada período histórico tem sido exercida pelos possuidores do poder econômico que detêm o controle dos territórios – grileiros e gran-

1 Euzamara de Carvalho é mestra em Direitos Humanos pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos

Humanos, Universidade Federal de Goiás (PPGIDH/UFG). Pesquisadora associada do Instituto de Pesquisa, Direito e Movimentos Sociais (IPDMS). Membro do Coletivo de Direitos Humanos da Via Campesina Brasil. Integrante da Executiva Nacional da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Kenarik Boujikian é desembargadora do Tribunal de Justiça de São

Paulo (TJSP) (1989/2019), especialista em Direitos Humanos, cofundadora da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), membro do Conselho Consultivo da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.

des proprietários de terras –, como também, e especialmente, pelo Estado, através de seus agentes e instituições, com uso de práticas de violência e de processos de criminalização contra a luta desses povos.

A criminalização é uma estratégia para bloquear as lutas sociais por direitos e possui diversas formas. É um mecanismo indevido do controle do Estado, que foge dos parâmetros constitucionais, ainda que use instrumentos previstos em lei.

O contexto atual de relativização de importantes garantias fundamentais e individuais – especialmente em matéria criminal consonante ao protagonismo político do Poder Judiciário, do Ministério Público e das polícias, aliados com a grande mídia – revela um quadro de preocupante escalada de criminalização no Brasil. Esta ação é praticada contra movimentos sociais do campo, militantes sociais e importantes segmentos organizados do campo progressista, que, em síntese, são ativistas sociais e defensores dos direitos humanos.

A estratégia de criminalização dos movimentos sociais e dos defensores e defensoras objetiva o cerceamento de participação dos grupos sociais na construção democrática. Essa conduta estatal pretende impedir que os cidadãos tenham qualquer controle sobre os assuntos públicos, sendo que todas as formas de criminalização têm um sentido real e simbólico e objetivam paralisar a atuação cidadã e bloquear as lutas sociais por direitos.

É próprio da democracia o comprometimento dos cidadãos. Seu exercício é uma forma de participação dos desígnios do Estado e de suas políticas. A criminalização é justamente a ferramenta utilizada para impedir essa essência da democracia, o que é uma marca dos Estados autoritários.

Há um aumento da quantidade e o fortalecimento dos movimentos sociais por todo o mundo, mas, ao mesmo tempo, na mesma proporção, um recrudescimento dos direitos que garantem a participação popular, atingindo as categorias chamadas de minorias.

Esse quadro foi bem apontado por Clément Nyaletsossi Voule, relator especial das Nações Unidas sobre liberdade de reunião e associação pacífica. Ele pontuou que muitos governos estão utilizando mecanismos rechaçados pelos padrões internacionais para coibir as ações dos movimentos sociais.

Voule indicou que alguns governos adotam leis restritivas, que visam sufocar o espaço democrático; que há o uso excessivo da força policial para reprimir os movimentos sociais; que governos usam leis antiterroristas, que não se aplicam aos movimentos, mas assim o fazem porque os categorizam como ameaçadores da segurança nacional; que criminalizam a participação popular; que a Justiça está se tornando uma ferramenta para repressão daqueles que não têm voz.2

Esse quadro bem reflete o que está a ocorrer no Brasil.

No tocante à adoção de leis restritivas e uso de leis antiterroristas, diversos projetos de lei que têm como foco a criminalização da luta social encontram-se em tramitação no Congresso Nacional.

Dentre eles, temos o PL 1595/19 que cria a “polícia política”, aprovado em 16/9/2021 na Comissão Especial da Câmara dos Deputados e que agora segue para o plenário da Casa e, se aprovado, vai para o Senado Federal. O projeto tem como foco central ações contraterroristas e propõe a criação de uma estrutura de vigilância e repressão com atuação secreta, sob comando do governo federal. O texto cria o Sistema Nacional e a Política Nacional Contraterrorista, sob supervisão do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. Inclui ainda a possibilidade de treinamento e qualificação de profissionais de segurança pública e da inteligência para ações preventivas e repressivas, “sigilosas ou ostensivas”, para desarticular ou enfrentar grupos terroristas.3 Amplia as tipificações penais que criminalizam a atuação dos movimentos sociais.

Dentre as diversas minorias atingidas, há forte foco nos povos indígenas, seus movimentos e lideranças. Neste sentido, confira-se o relatório lançado em abril de 2021, “Uma anatomia das práticas de silenciamento indígena”, da Indigenous Peoples Rights International (IPRI) e a Articula-

2 A entrevista completa pode ser consultada em: Conectas Direitos Humanos. ‘Judiciário virou ferramenta para reprimir quem não tem voz’, diz relator da ONU sobre protestos. Conectas Direitos

Humanos, 10/08/2018. Disponível em: https://www.conectas.org/noticias/judiciario-virou-ferramenta-para-reprimir-quem-nao-tem-voz-diz-relator-da-onu-sobre-protestos. Acesso em: 27 set. 2021. 3 Câmara dos Deputados. Comissão aprova proposta sobre ações contraterroristas. Câmara dos deputados. 16/09/2021. Disponível em https://www.camara.leg.br/noticias/807190-comissao-aprova-proposta-sobre-acoes-contraterroristas/ Acesso em: 20 set. 2021.

ção dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Ele mostra as tecnologias de perseguição e criminalização utilizadas pelo poder estatal para tentar silenciar a luta dos povos indígenas, que incluem práticas como: prisão, condução coercitiva, invasão domiciliar, perseguição física e política, ameaças por meio de redes sociais, exposição de familiares, assédio policial e judicial, perseguição por líderes políticos locais, entre tantas outras.4

Evidentemente que a criminalização dos povos indígenas guarda densidade com a luta pela demarcação das suas terras.

Verificamos igualmente um crescimento exponencial da criminalização dos movimentos sociais do campo, que está em consonância com a histórica concentração fundiária no Brasil, que agudiza a desigualdade social no meio rural, alinhado ao sistema de produção capitalista, e que se fortalece através dos processos de estrangeirização e grilagem das terras, o que contribui para o aumento de conflitos no campo.5

De acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ao longo de 35 anos, de 1985 a 2020, percebemos um aumento considerável da violência no campo, sobretudo nos últimos dois anos. De acordo com o relatório de conflitos no campo da CPT de 2020, os dados de 2019 apresentam um aumento de 26% se comparados com 2018 (de 1.000 para 1.260 ocorrências). Em 2020, o aumento foi de 25%, alcançando 1.576 ocorrências. Ao longo desses 35 anos, houve um total de 21.801 ocorrências.6

O Judiciário, como alertou o relator da ONU, está sendo usado para repressão de movimentos, e a sua omissão, lentidão e disfuncionalidade obriga a refletir sobre as diferenças existentes no tratamento das pretensões de ver um litígio resolvido e seus impactos nas dinâmicas dos movimentos sociais, considerando que não se trata de um espaço neutro, mas

4 Indigenous Peoples Rights International (IPRI) e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Uma anatomia das práticas de silenciamento indígena. Filipinas: IPRI, 2021. Disponível em: https:// apiboficial.org/files/2021/05/UMA-ANATOMIA-DAS-PRA%CC%81TICAS-DE-SILENCIA-

MENTO-INDI%CC%81GENA-1.pdf. Acesso: 27 set. 2021. 5 Camargos, Daniel e Junqueira, Diego. Governo Bolsonaro volta atrás e cancela suspensão da reforma agrária. Repórter Brasil, 09/01/2019. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2019/01/ governo-bolsonaro-volta-atras-e-cancela-suspensao-da-reforma-agraria/. Acesso em: 20 set. 2021. 6 CPT. Conflitos no Campo Brasil 2020. CPT, 2020. Disponível em: https //www.cptnacional.org. br/publicacoes-2/destaque/5664-conflitos-no-campo-brasil-2020. Acesso em: 22 ago. 2021.

de expressão da correlação de forças presente no conjunto da sociedade capitalista e que tem atuado historicamente conforme interesse da classe burguesa dominante.

Boaventura de Sousa Santos, ao constatar o campo hegemônico de atuação do Poder Judiciário, declara que: “É o campo dos negócios, dos interesses econômicos, que reclama por um sistema judiciário eficiente, rápido, que permita a previsibilidade dos negócios, dê segurança jurídica e garanta a salvaguarda dos direitos de propriedade”.7

Lembremos que o Massacre de Eldorado do Carajás completou 25 anos no último 17 de abril e redundou num processo ímpar, que contava com 155 réus mas somente foram condenados os dois comandantes da operação, cujas prisões ocorreram depois de 16 anos.

De 1985 até os dias atuais ocorreram 56casos de massacres que vitimaram 286 trabalhadores/as no campo em 11 estados brasileiros.8 A maioria destas mortes coletivas ocorreram na região Norte, confirmando o alto grau de violência e criminalização concentrado na região amazônica que se perpetua provocado pelo aumento da concentração, grilagem e estrangeirização de terras dessa região.

Segundo De Medeiros:

No decorrer dos conflitos agrários, também se explicitou como nunca a dificuldade estrutural da Justiça brasileira em dar encaminhamento a esse tipo de questão. A incapacidade em garantir efetiva proteção aos ameaçados de morte, o retardamento dos processos judiciais, a morosidade em prender os executantes e mandantes dos crimes e raras condenações revelaram claramente para um público mais amplo os estreitos laços que uniam o público e privado.9

Essa leitura permite aproximar o entendimento acerca do número de julgamento de assassinatos no campo denunciados pelos movimentos sociais camponeses. Coloca a necessidade de aprofundar a atuação do Poder Judiciá-

7 Santos, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Contexto, 2011, p. 20-21. 8 Sobre o assunto, visitar o site da CPT nacional: www.cptnacional.org.br/mnc/index.php. Acesso em: 20 set. 2021. 9 De Medeiros, Leonilde S. Dimensões políticas da violência no campo. In: Molina, Mônica Castagna; Sousa Júnior, José Geraldo de; Tourinho Neto, Fernando Costa (org.). Introdução crítica ao

Direito Agrário. Brasília: Universidade de Brasília, 2002, p. 181-196.

rio nos processos que contribuem para a ocultação da violência do campo e o marco histórico de impunidade que permeia os processos de criminalização.

Essencial acompanhar e denunciar as dinâmicas institucionais e a participação do Poder Judiciário nas ações que colaboram para o aumento da criminalização e violência no campo. Seja pela justificação para ação da força policial-militar, seja pela ocultação da violência e dos assassinatos, seja por meio de decisões judiciais proferidas que ordenam despejos forçados que violam os direitos dos/as lutadores/as defensores/as da terra e do território que seguem resistindo a todas as formas de violência e opressão no campo brasileiro. [...] Eles são impedidos de atingir/realizar suas capacidades. Em outras palavras, lhes são negadas as considerações das quais os seres humanos são intitulados – serem tratados com total respeito pela sua dignidade como pessoas.10

O fenômeno da criminalização, com seus diversos matizes, pretende alijar a cidadania através de controles sociais institucionalizados, e é o meio mais contundente de coação e punição das lutas sociais para inibir o exercício da própria cidadania. Quanto mais autoritário, maior o uso dessa ferramenta nos anos mais recentes.

Que a memória dos mártires das lutas se transforme em força para o enfrentamento da violência e das injustiças presentes nos territórios de vida das populações da terras, das águas e das florestas nessa conjuntura pandêmica que enfrenta o Brasil.

Se calarmos, as pedras gritarão Pedro Tierra

Referências

DAGGER, Richard. Rights. In: BALL, Terence; FARR, James; HANSON, Russell L. (org.). Political innovation and conceptual change. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 292-308. DE MEDEIROS, Leonilde S. Dimensões políticas da violência no campo. In: MOLINA, Mônica Castagna; SOUSA JÚNIOR, José Geraldo de; TOURINHO NETO, Fernando Costa (org.). Introdução crítica ao Direito Agrário. Brasília: Universidade de Brasília, 2002, p. 181-196. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Contexto, 2011.

10 Dagger, Richard. Rights. In: Ball, Terence; Farr, James; Hanson, Russell L. (org.). Political innovation and conceptual change. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 292-308.

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