RAMONN VIEITEZ KARA WALKER AUGUSTO DE CAMPOS MICHAEL ARMITAGE HITO STEYERL
Artemisia Gentileschi, Susannah and the Elders, 1610. © Kunstsammlungen Graf von Schönborn
EM JUNHO A ESCOLA DASARTES APRESENTA NOVO CURSO DA SÉRIE 20 ARTISTAS:
GRANDES MESTRES
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escola@dasartes.com.br
DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin REDAÇÃO André Fabro andre@dasartes.com MÍDIAS SOCIAIS . IMPRENSA Leandro Fazolla dasartes@dasartes.com
Capa: Redenção, 2020. Foto: © Ramonn Vieitez e Galeria Portas Vilaseca.
DESIGNER Moiré Art moire@moire.com.br REVISÃO Angela Moraes
The Promisse Land, 2019. Courtesy of the Artist and White Cube © Michael Armitage
PUBLICIDADE publicidade@dasartes.com SUGESTÕES E CONTATO info@dasartes.com Doe ou patrocine pelas leis de incentivo Rouanet, ISS ou ICMS/RJ
Contracapa: Michael Armitage, Kampala Suburb, 2014. Foto: © Michael Armitage
MICHAEL ARMITAGE 10 KARA WALKER
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Agenda
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De Arte a Z
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RAMONN VIEITEZ
80
Notas do Mercado
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Livros
HITO STEYERL
AUGUSTO DE CAMPOS
NOTAS DO MERCADO
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Obra de Dalton Paula.
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AGEnda
na Pinacoteca de São Paulo, pela primeira vez, torna pública as 103 obras realizadas por artistas contemporâneos para um livro homônimo de autoria dos pesquisadores Flávio Gomes e Lilia M. Schwarcz e do artista Jaime Lauriano, publicado em março de 2021 pela Companhia das Letras. A mostra é um desdobramento da publicação e também se conecta com a nova apresentação da coleção do museu que se apoia em questionamentos contemporâneos e reverbera narrativas mais inclusivas e diversas. No livro, estão reunidas as biografias de mais de 550 personalidades negras, em 6
416 verbetes individuais e coletivos. Muitos desses personagens tiveram as suas imagens e histórias de vida apagadas ou nunca registradas. Para interromper essa invisibilidade, 36 artistas contemporâneos foram convidados a produzir retratos dos biografados. Entre eles: Antonio Obá, Andressa Monique, Arjan Martins, Ayrson Heráclito, Dalton Paula, Elian Almeida, Heloisa Hariadne, Jaime Lauriano, Panmela Castro, Sonia Gomes e Tiago Sant’Ana ENCICLOPÉDIA NEGRA • PINACOTECA DE SÃO PAULO • 1/5 A 8/11/2021
de arte
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AZ
PELO MUNDO • Enquanto a França comemora o bicentenário da morte de Napoleão neste mês de maio, membros do francês criticam o artista Pascal Convert por suspender uma réplica do esqueleto do cavalo de Napoleão acima da tumba do ex-imperador no Palácio Nacional Les Invalides, em Paris. Os críticos dizem que a obra de arte, criada para uma exposição sobre o líder militar, é “desrespeitosa”.
CURIOSIDADES • Artista cria fotografias "falsas" de Vincent van Gogh adulto para mostrar como ele realmente parecia. O trabalho é do artista digital Ruud van Empel que produziu estas “fotografias” realistas, algumas das quais são profundamente convincentes. Vincent van Gogh foi um mestre do autorretrato, mas essas representações altamente estilizadas são as únicas pistas que temos da aparência do famoso pintor pós-impressionista, já que não há registros fotográficos do artista adulto. .
GIRO NA CENA SP • MAM SP inaugura, no Projeto Parede, a instalação Campo Fraturado SOS, da artista Ana Maria Tavares, obra inédita composta por imagens manipuladas digitalmente. A obra tem como inspiração a série Airshaft (para Piranesi), composto por imagens digitais, vídeo e videoinstalação, no qual a artista estabelece diálogo com a obra Carceri d'Invenzione (séc. 18), do arquiteto e gravurista italiano Giovanni Battista Piranesi. 8
GIRO NA CENA RJ • IMS Rio inaugura retrospectiva do fotógrafo Peter Scheier. A exposição evidencia as múltiplas facetas da obra de Scheier, fotógrafo que documentou as transformações sociais do Brasil nas décadas de 1940 e 1950. De origem judaica, proveniente da pequena cidade alemã de Glogau, Scheier aportou no Brasil em 1937, como refugiado do regime nazista. Em São Paulo, no começo dos anos 1940, iniciou sua carreira no ramo da fotografia, abrindo o Foto Studio Peter Scheier, que funcionou até 1975. De 22/5 a 31/10/2021.
VISTO POR AÍ
NOVO ESPAÇO • Localizado na Praça Benedito Calixto, ponto de referência intelectual, e cultural, a casa se identifica como um bastião da inclusividade, onde pessoas de todas as cores, idades, gêneros e inclinações sexuais são benvindas para aproveitar o que a vida tem de melhor, na comida, na música e na arte. Durante o dia, o primeiro andar é dedicado a exposições de arte com curadoria da Dasartes. Praça Benedito Calixto, 103, Pinheiros, São Paulo.
• DISSE O ARTISTA RICHARD NONAS,
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em 1985. O escultor pós-minimalista americano morreu no último dia 13 de maio, aos 85 anos. Utilizando madeira, pedra e materiais industriais, Nonas envolvia o ambiente preenchendo-o com a sua obra, que apresentava repetidas formas geométricas. 9
The promise of change, 2018. Courtesy of the Artist and White Cube © Michael Armitage.
DEStaque
MICHAEL
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armitage
CONHEÇA O ARTISTA QUENIANO MICHAEL ARMITAGE. SUAS PINTURAS COLORIDAS E ONÍRICAS ESTÃO CARREGADAS DE PERSPECTIVAS PROVOCATIVAS E NARRATIVAS QUE DESAFIAM SUPOSIÇÕES CULTURAIS, EXPLORANDO POLÍTICA, HISTÓRIA, AGITAÇÃO CIVIL E SEXUALIDADE
O da pintura moderna está atualizado com sucesso, você já pode apreciar as mais recentes novidades artísticas e boa parte disso se deve a Michael Armitage. Aliás, seria injusto enquadrá-lo apenas em um conceito de pintor de um “modernismo contemporâneo”, pois Armitage não apenas traz uma sobrevida à pintura figurativa, mas revela a admirável característica de fazê-la com personalidade e atitude, pontos que já marcaram muitos nomes na história da arte. Nascido em 1984, no Quênia, filho de mãe queniana e pai britânico, e atualmente vivendo (e trabalhando) entre Nairóbi e Londres, Michael Armitage é um artista que empresta sua força criativa à pintura com grande dedicação e parece carregar consigo raízes que se fixam abaixo e também ficam visíveis acima da superfície por onde ele ou sua arte passam. Sua origem africana e sua formação e vivência europeias ajudaram a criar uma singular geografia estética facilmente perceptível em quem observa suas obras pela primeira vez. Contextualizado com seu tempo (no qual temos o privilégio de viver), seus focos são as questões sociais e políticas de nossa sociedade global contemporânea, acompanhadas de questões históricas, sexualidade e lembranças da infância no país de origem. O artista não está buscando justiça para a democracia artística desprezando a tal cultura artística eurocêntrica, que já foi exaltada e hoje é acusada de ter ofuscado (e colonizado) tantas outras, mas extrai o melhor dela, atualiza-a e faz uma amálgama dela com “sua África” nativa. O resultado é um ganho imensurável para a arte da pintura figurativa. 12
Courtesy of the Artist and White Cube © Michael Armitage.
POR EDVALDO CARVALHO
Andy Warhol, 1970. © The Estate of Alice Neel.
À esquerda: The Chicken Thief, 2019. Acima: Antígona, 2018. Pág. Anterior: Mydas, 2019. Courtesy of the Artist and White Cube © Michael Armitage.
O artista queniano vem criando com pinceladas de óleo sobre lubugo, um tipo de tecido grosseiro de casca de árvore tradicional de Uganda, obras como (2019) e (2018), que mostram os tons de melanina de figuras que revelam ao mundo uma África oriental que faz parte do mapa das artes. “De início, esforcei-me para encontrar uma maneira de trabalhar com lubugo. Meu momento ‘eureca’ foi colocá-lo sobre uma maca, exatamente como eu fazia antes com as telas comuns, e prepará-lo. Quando percebi, a pintura e a superfície estavam trabalhando juntas”, afirma Armitage sobre essa simbiose que se tornou sua arte e a superfície sobre a qual é feita. Tal simbiose é explícita em trabalhos como (2019), que exibe uma interação quase mitológica entre seres humanos, natureza, animais e a própria arte em si. Ao utilizar o tecido culturalmente significativo da casca de lubugo como superfície, Armitage não só marca um de localização em suas pinturas, como contextualiza a África Oriental com o mundo contemporâneo e convoca o espectador a filosofar sobre o lugar e o tema da arte, sobre a política, a sociedade e, acima de tudo, sobre o grande abismo que separa as classes mais ricas e mais pobres. Paralelamente a essa temática das camadas sociais, o pintor também aplica diversas camadas de tinta, as quais chega a raspar, revisar e alterar antes de considerar sua obra interessante o bastante para conversar com o público. 15
Richard Gibbs, 1968 À direita: Ginny, 1984. © The Estate of Alice Neel.
Pág. Anteriores: Muliro gardens baboons, 2016 eMangroves Dip, 2015.
Para Michael Armitage, “a pintura é um modo de pensar sobre algo, buscando entender, um pouco melhor, uma experiência ou um evento (...)”. Isso fica claro quando se contemplam obras como (2019), que contém diversos acontecimentos paralelos e vários personagens, exigindo-nos profunda observação e reflexão para uma boa absorção dos eventos ali pintados, além, é claro, de uma análise do contexto e da inspiração do artista. Em entrevista, Michael Armitage revela que “queria fazer um quadro sobre as relações de poder entre um líder e seus seguidores” quando desenvolveu essa obra de caráter político, fazendo referência à promessa de um candidato de levar seus partidários a Canaã, a terra prometida, na campanha eleitoral queniana de 2017. 18
À esquerda: Futility of Effort, 1930. Abaixo: Nancy and Olivia, 1967. © The Estate of Alice Neel.
The Promisse Land, 2019. Courtesy of the Artist and White Cube © Michael Armitage.
Armitage se formou Bacharel pela Slade School of Art em 2007, e é pós-graduado pela Royal Academy de Londres (2010). É exatamente nas galerias desta última, em parceria com o Museu (Munique), que se pode ter a oportunidade de ver a exposição que vai de 22 de maio a 19 de setembro de 2021, apresentando 15 obras de larga escala com a perspectiva ousada e agitada do artista. A Royal Academy o apresenta como um artista que faz referências de Ticiano e Goya a Manet e Gauguin, revelando o folclore, a cultura e a visão da África Oriental. Os visitantes poderão, assim, estar frente a frente com obras que apresentam um figurativismo quase onírico, como o das cores e tons de (2019) ou se transportar para o ambiente aventureiro e de crítica política 19
The Paradise Edict , 2019.
The Fourth Estate, 2017.
Asphalt Air and Hair, 2017, ARoS Triennial THE GARDEN, Dänemark © Katharina Grosse und VG Bild-Kunst, Bonn, 2019. Foto: Nic Tenwiggenhorn.
Pathos and the twilight of the idle, 2019. Courtesy of the Artist and White Cube © Michael Armitage.
de (2017), trabalhos onde Armitage reúne a essência da pintura moderna ocidental com suas raízes africanas e cria seu subjetivo (ou nem tanto) universo pictórico, proporcionando o belo e interessante contraste do anacronismo vanguardista com a provocativa contemporaneidade artística. É algo único e merece os holofotes que vem tendo. Preocupado com a arte para além de suas produções, o pintor está envolvido , um espaço institucional que com o reconhece e exibe o trabalho de artistas esquecidos do século 20, além de fornecer um espaço para que artistas contemporâneos tenham mais visão do que em galerias comerciais e não fiquem à mercê delas. Além de um ato de nobreza, Armitage revela ainda mais amor pela arte quando se preocupa com a preservação da memória artística e as produções de seus contemporâneos e conterrâneos, enxergando muito além das cores de sua própria paleta. As tensões entre culturas e, da mesma forma, entre figurativismo/abstração, ou ainda, realidade e mitologia, tornam a arte de Armitage inovadora e autêntica, assinando sobre lubugo o seu nome na lista de pintores de relevância na história da arte. “Acho muito difícil diferenciar entre trabalho histórico e contemporâneo. Só tenho coisas de que gosto e vejo serem interessantes (...)”, informa o artista, que parece focar mais na arte como fenômeno humano do que em conceitos e classificações. Ele se situa onde se acha mais confortável, seja no clássico, no moderno ou no contemporâneo, bebendo de fontes que o inspiram e reconhecendo o valor delas: “é bom poder ver o que outras pessoas fizeram para poder dar alguns passos em frente”. Os entusiastas de sua arte esperam que Armitage dê ainda muitos e muitos passos à frente em sua trilha estético-pictórica.
Edvaldo Carvalho é professor de arte na rede estadual de ensino do Estado do Amapá e MBA em História da Arte.
MICHAEL ARMITAGE: PARADISE EDICT • ROYAL ACADEMY OF ARTS • LONDRES • 22/5 A 19/9/2021 25
PELO mundo
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KARA walker
POR MARC POTTIER Desde a silhueta negra ancestral recortada até aos desenhos mais íntimos, Kara Walker denuncia representações do racismo e da xenofobia. Ao revelar 28 anos de arquivos que permaneceram secretos, a exposição retrospectiva , no Kunstmuseum de Basel, expõe uma abordagem artística e ao mesmo tempo rebelde, radical e sem filtros. CULTURA AFRO-AMERICANA O sorriso de Kara Walker em um ligeiro tom de timidez, os gestos precisos, pensados e controlados respondem a uma obra que se propõe a denunciar "catástrofes". Palavra que ela ostensivamente exibe em uma camiseta durante uma entrevista concedida sobre (2018, título em crioulo haitiano); um calíope a vapor (instrumento musical vindo de locomotiva com som estridente) montado em uma carroça, que serve de cavalete para o compositor Jason Moran (1975). O músico de retoma canções associadas aos protestos e celebrações da cultura afro-americana que sublinham o trauma histórico da escravidão. 28
À direita e pág. anteriores: Resurrection Story with Patrons, 2017 (Detalhes). © Kara Walker.
NO ATUAL MOMENTO DE VALORIZAÇÃO DE ARTISTAS NEGROS, A OBRA DA NORTE-AMERICANA KARA WALKER SE DESTACA POR CRITICAR A ACEITAÇÃO DE QUALQUER MEIO-TERMO SOBRE O RACISMO
“ ”
Abaixo: Katastwóf Karavan, 2018. © Kara Walker.
REVIVER A HISTÓRIA Recortes sutis, desenhos e aquarelas frequentemente combinados em grandes instalações de parede, filmes de 16 mm e projeções de sombras, cenários de ópera, esculturas monumentais... Kara Walker depende de qualquer meio para denunciar, implacável, a violência da história: “Assim que começamos a contar a história do racismo, a revivê-la, criamos um monstro que nos devora”, denuncia a artista, que recusa qualquer submissão ao engrandecido pelo cinema e pela literatura. “Enquanto as pessoas disserem 'Ei, você não pertence a este lugar', parecerá relevante continuar a explorar o terreno do racismo”. A REJEIÇÃO DE TODA ESCRAVIDÃO PATRIARCAL A partir desse alimentado por melodramas históricos e romances populares, ela redefine a violência latente para sublinhar a assimetria das representações entre negros e brancos, entre mulheres e homens, entre escravos e senhores de toda espécie. Ela não poupa mais o mundo da arte, que assume "uma rejeição da subjugação cega às demandas patriarcais de que a arte e os artistas respondam ao mercado, ao homem, à história da arte, à escala ou a qualquer coisa que não seja de sua própria fabricação". 31
Gone, 1994. © Kara Walker.
ENFRENTANDO O RACISMO Impulsionada desde muito jovem no cenário artístico internacional, Kara Walker, nascida em Stockton (Califórnia) em 1969, vive e trabalha hoje em Nova York. de artista negra, seu trabalho empurra, em todos os Inseparável de seu sentidos da palavra, sem tabus ou falsa modéstia, as formas mais indizíveis de racismo e sexismo da história americana. Estupro, excisão, assassinato, tortura, expropriações... Kara Walker denuncia a história passada, mas também, mesmo antes do atual movimento reúne o imaginário de e as imagens veiculadas na Internet sobre a tortura de prisioneiros iraquianos em Abu Ghraib. Compreendemos melhor quando sabemos que a expressão racista dos EUA para designar os árabes é "negrinho da areia”. 32
SILHUETAS NEGRAS Suas silhuetas recortadas em papel preto, exibidas em sua primeira mostra no Drawing Center, em 1994, distinguem-se por seus tamanhos, mas também pela ambientação em cena diretamente nas paredes ou na forma de esculturas. Abordando paródias de cenas populares ou livros infantis, Kara Walker traz à tona um sul mítico, antes da Guerra Civil, para um mundo desenfreado onde fantasias e cenas de gênero se misturam. A artista investe a história como um observador severo e agudo, explora o imaginário de questões desestabilizadoras.
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Detalhe de instalação no Renaissance Society, Chicago, 1997. © Kara Walker.
Peter, 1987. © Estate of Martin Kippenberger.
O AÇÚCAR COMO SÍMBOLO DE CRITÉRIOS Em 2014, , uma enorme esfinge de poliestireno coberta com 30 toneladas de açúcar branco de 11 metros de altura e 23 metros de comprimento foi instalada na fábrica de açúcar Domino, uma das maiores e mais tradicionais marcas de açúcar dos EUA, detentora de um gigantesco complexo industrial localizado no Brooklyn, Nova York, onde funcionou a maior refinaria de açúcar do mundo no século 19. A obra de arte lembra que o açúcar refinado, um luxo antes usado na decoração de mesas, era colhido por escravos 36
A Subtlety or The Marvelous Sugar Baby, 2014. © Kara Walker.
nas plantações de cana-de-açúcar do Caribe. É por isso que o subtítulo da obra especifica que se trata de “uma homenagem aos artesãos mal pagos e sobrecarregados que cultivaram o nosso gosto pela doçura, dos canaviais às cozinhas do Novo Mundo”. A esfinge simbolizava a transformação de uma escrava negra em uma mulher dominada, parecendo saber as respostas para os enigmas do mundo. Mas foi exposta como uma fera de circo, como foi o caso de Saartjie Baartman (1789-1815), a sul-africana apelidada de Vênus Hotentote, cujas formas "incomuns" causaram sensação ao ser exibida como aberração no início do século 19 na Europa. 37
Fons Americanus, 2019. © Kara Walker.
DENUNCIE QUALQUER RETRATO “ROMANTIZADO” DE RACISMO Outra obra monumental, , uma escultura de quase 13 metros de altura, recentemente exibida em 2019, no Turbine Hall da Tate Modern, em Londres, é descrita pela artista como "uma alegoria do Atlântico negro e de todas as águas do mundo, que desastrosamente liga a África à América, Europa e a prosperidade econômica”. O Atlântico Negro é um termo usado pela primeira vez pelo historiador Paul Gilroy (1956) para reconhecer como o legado do comércio transatlântico de escravos moldou o desenvolvimento da identidade e da cultura negra na América e na Europa. A obra é inspirada na fonte do Victoria Memorial, na entrada do Palácio de Buckingham, mas sua narrativa é bem diferente. Ele questiona contos de poder e conta a violenta história do Império Britânico e o papel que os bens roubados da África desempenharam no financiamento do monumento oficial inaugurado em 1911, em homenagem às conquistas da rainha Victoria. Kara Walker está, portanto, juntando-se aos recentes protestos estudantis que visam destruir monumentos que celebram a história colonial nos Estados Unidos e no Reino Unido. 28 ANOS DE ARQUIVOS DE LUTAS ÍNTIMAS E ARTÍSTICAS Se Kara Walker ganhou as manchetes com suas esculturas monumentais, o desenho no papel continua sendo a base de sua prática artística. A abertura de seus arquivos privados, nunca exibidos até agora, permitirá aos visitantes da exposição no Kunstmuseum descobrir um conjunto de cerca de 600 obras criadas pela artista do início dos anos 1990 aos anos 2010. Pequenos esboços, estudos, colagens, obras de grande formato meticulosamente acabadas vão conviver com notas, reflexões datilografadas... O conjunto será apresentado como uma grande instalação que a artista quer ‘desordenada’, mas mostrará sem filtro o pensamento e a processo de seu trabalho. “Os desenhos claramente dominam, são feitos de forma espontânea e rápida, mas ilustram o virtuosismo de sua mão, a velocidade de seu pensamento e sua invenção” adiciona a curadora Anita Haldemann. No catálogo, Kara Walker acrescenta: “Para mim, cada pedaço de papel é a fronteira entre o mundo ordenado e o caos."
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Barack Obama as Othello "The Moor" With the Severed Head of Iago in a New and Revised Ending by Kara E. Walker, 2019. © Kara Walker
YES, KARA CAN Os quatro retratos do presidente Obama chamarão a atenção de muitos visitantes. Na verdade, ela não idealiza o primeiro presidente negro dos Estados Unidos, mas reflete sobre outros ângulos. O que ela mostra não é o heroísmo ou a comemoração espantada do primeiro presidente negro, mas a desilusão que veio com a próxima presidência. Kara Walker aproveita para mostrar uma fantasia: Obama segurando nas mãos a cabeça loira decepada de seu sucessor. UMA ARTE CONFRONTADA COM A HISTÓRIA Embora inicialmente permanecendo profundamente enraizada em uma busca estética e íntima, Kara Walker se junta às preocupações políticas que perguntam se a arte pode reparar a violência da história. Ao rastrear todas as encarnações do racismo, abre nossos olhos e expõe nossos conformismos sobre as representações de negros e estrangeiros. Não sem dor coletiva, nem violência íntima. Essa exposição retrospectiva oferece um mergulho excepcional para enfrentamentos.
Marc Pottier é francês e curador de arte baseado no Rio de Janeiro.
KARA WALKER: A BLACK HOLE IS EVERYTHING A STAR LONGS TO BE • KUNSTMUSEUM BASEL • • SUIÇA • 5/6 A 26/9/2021 40
GARimpo
RAMONN
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vieitez
Don´t look at me, 2015.
EM CARTAZ NA MOSTRA SER VIVO, LIVRE, EU, NO GALERIA CAFÉ SÃO PAULO, O JOVEM ARTISTA DE RECIFE, RAMONN VIEITEZ, CONSTRÓI, EM SUAS EXUBERANTES PINTURAS, NARRATIVAS SOLITÁRIAS CHEIAS DE TEATRALIDADE E SIMBOLISMO, CONCILIANDO A VIDA URBANA MELANCÓLICA E VIOLENTA COM UM IDÍLIO MISTERIOSO, SURREAL E MITOLÓGICO
On Fire at 80. © Judy Chicago
Muito antes dos filmes de super-heróis dominarem a indústria cinematográfica, a geração que cresceu nos anos 1990 já havia se acostumado a ver nos canais de televisão heróis mascarados. Das orientais que invadiram as TVs naquela década à presença dos heróis americanos em desenhos animados, figuras que cobrem o rosto para salvar o mundo já faziam parte do imaginário popular. A justificativa para isso, na maioria das vezes, tem a ver com preservar a própria identidade e proteger seus entes queridos. Parte das crianças dessa mesma geração, que mais tarde se entenderiam como pertencentes ao universo LGBTQIA+, também aprenderam a preservar uma espécie de identidade secreta ao esconderem suas sexualidades do mundo e tentarem se enquadrar em um padrão heteronormativo. A justificativa é similar: preservar e proteger, a si e aos que amam, da opressão de uma sociedade ainda baseada em valores oriundos principalmente do Cristianismo. Não são de super-heróis as máscaras usadas pelos personagens do artista recifense Ramonn Vieiteiz. 44
A verdade está sobre a mesa e o sangue aos meus pés, 2019.
POR LEANDRO FAZOLLA
Assassino nº 22, (Série Negra), 2015. Todas as imagens: Cortesia do artista e Galeria Portas Vilaseca.
Inspiradas principalmente nos capirotes, capuzes pontiagudos utilizados pelos condenados como forma de humilhação pública, as máscaras utilizadas pelos personagens do artista também os revestem de uma espécie de culpa. Mas à luz da contemporaneidade, essa culpa gera movimento, (re)ação contra o sistema opressor. É nesse contexto de embate e rebeldia juvenil que parecem se lançar algumas dessas figuras, que portam facas ensanguentadas, habitam uma urbe carregada de informações, notícias e simbolismos. Os jovens de Ramonn, muitos deles párias da sociedade, encaram o espectador, ameaçam-no e bradam sua existência em frente a paredes grafitadas com mensagens, gritos de ordem, bandeiras e referências ao mundo pop. 47 29
Inside the night (You put your arms around me), 2018.
“ ”
Mas também há o silêncio. A poética pictórica de Vieiteiz – talvez oriunda da mesma fonte que legou ao mundo a poesia de Rimbaud – também expõe o vazio, a melancolia perante o deslocamento no mundo. O artista apresenta uma obra complexa, cheia de contrastes e duplicidades. Se em alguns momentos o espectador se vê diante de personagens que parecem lhe enfrentar em meio à selva de pedras da cidade, por vezes, a selva é outra, interna, ainda mais amedrontadora. Ramonn oscila entre um mundo material e palpável e outro abstrato, de perigos que parecem advindos de outros tempos. Transitando entre esses dois polos, suas figuras passeiam sem rumo por ambientes claustrofóbicos, sombrios e, ainda assim, estranhamente acolhedores. 48
32
Hanging, 2014.
O Jardim de Midas, 2016.
O artista dota essas narrativas de traços firmes e cores fortes, muitas vezes abusando de uma única cor que, por vezes, faz seus personagens se destacarem em meio aquele universo, como em (2014). Em outras ocasiões, a monocromia os camufla em meio ao ambiente, como em (2016). Essa pintura, aliás, traz outro contraste importante na produção do artista: se alguns de seus personagens habitam o mundo contemporâneo, outros transitam por universos e referências mitológicas, muitas vezes se metamorfoseando, agregando nos próprios corpos elementos animais, como chifres e patas. A identidade novamente posta como ponto central de sua produção. Identidade e diferença. O corpo que não se encaixa à norma. E mesmo que, por vezes, habitando universos com um traço de estranheza, as personas que Ramonn traz à tona em suas telas poderiam ser reais, e talvez até sejam, uma vez que em seu processo, o artista colhe referências de imagens, elementos e pessoas que o atravessam no dia a dia. 51
Vermelho, 2015.
Assassino nº 15 (Série Negras), 2015.
Redenção, 2020.
The prayer, 2015.
Ramonn Vieiteiz é um desses artistas que concentram muito claramente em sua produção o espírito (e a política) de seu tempo. Apesar dos avanços consideráveis nas últimas décadas e dos diversos termos e conceitos concentrados na sigla LGBTQIA+ que buscam entender e nomear a diversidade, a alteridade ainda é fator de segregação e eliminação, conforme se pode perceber quase diariamente nos noticiários. Por meio de sua produção, o artista evoca tempos confusos, de bombardeio de imagens e informações, mas também isolamento e melancolia. Ao mesmo tempo em que se grita pelo direito à própria identidade, cada vez mais se usam máscaras, disfarces, filtros (!) por trás dos quais se escondem verdades. Ou não. Para o artista, máscaras não servem apenas para esconder, mas para revelar. Se em Ramonn tudo é contraste, talvez algumas dessas máscaras possam revelar identidades que não cabem nos rostos iguais que se misturam na multidão. Identidade é diferença.
Leandro Fazolla é ator, historiador e produtor cultural. Mestre em Arte e Cultura Contemporânea, na linha de pesquisa História, Teoria e Crítica de Arte. Bacharel em História da Arte. Ator e produtor da Cia. Cerne, com a qual foi contemplado no edital Rumos Itaú Cultural.
SER VIVO, LIVRE, EU • GALERIA CAFÉ SÃO PAULO • ATÉ 10/6/2021 56
Contra toda autoridad… excepto mi mamá, 2021. Todas as imagens: Cortesia do artista e Galeria Portas Vilaseca.
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HITO
ALTO relevo
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steyerl
O Centro Pompidou, em Paris, apresenta a primeira exposição em grande escala dedicada à artista alemã Hito Steyerl na França. Essa retrospectiva imediatamente ecoa . Reúne um a atualidade com o título: conjunto de grandes obras, articuladas em torno de uma nova produção que imagina o futuro do mundo na era das tecnologias de simulação social. Traça uma viagem iniciada nos anos 1990 no campo do cinema documental e, nos últimos dez anos, desenvolve instalações multimídia particularmente inventivas, que se dedicam a transformar com alegria o caráter imersivo da nossa cultura visual em um espaço de reflexão. Apontando as falhas e paradoxos da imagem, Hito Steyerl experimenta novas formas de falar sobre a realidade e aborda criticamente o nacionalismo, o capitalismo e a inteligência artificial. A VIRADA DO DOCUMENTÁRIO NA ALEMANHA REUNIFICADA Desde o início dos anos 1990, os filmes, vídeos e instalações imersivas de Hito Steyerl abordaram os tempos com humor corrosivo, fazendo uma crítica lúcida do controle lucrativo acelerado do espaço público e dos dados privados. Seu trabalho começa no contexto da reunificação alemã e do fim das utopias, que ela examina por meio de um olhar muito pessoal. O nacionalismo e o ressurgimento do racismo e do antissemitismo são o tema de suas primeiras obras, destinadas ao cinema e à 60
Still from How Not to Be Seen: A Fucking Didactic Educational.MOV File, 2013. Courtesy the artist © Hito Steyerl.
COM SUA LINGUAGEM ÚNICA, COMBINAÇÃO DE SÁTIRA E CRÍTICA, A ALEMÃ HITO STEYERL É INTERNACIONALMENTE CONHECIDA POR SEUS DE VÍDEOS ENVOLVENTES E INSTALAÇÕES MULTIMÍDIA QUE ALIAM SUA VISÃO MUITO PESSOAL A UM ESPÍRITO DE INVESTIGAÇÃO E EXPERIMENTAÇÃO
Abaixo: Babenhausen, 1997. À direita: In Free Fall, 2009-2010. Courtesy the artist © Hito Steyerl.
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televisão. O curta (1997), o longa (1998) e a série (1999-2001) operam o levantamento intransigente de uma sociedade alemã dividida entre o domínio crescente da especulação neoliberal e o retorno dos piores fantasmas da história. A lacuna aberta deixada pela queda do Muro de Berlim, a banalidade dos crimes antissemitas que tomam o lugar da "normalidade" são examinadas em narrativas sofisticadas em primeira pessoa, onde a voz da artista se alterna com a de convidados, desenvolvendo pontos de vista alternativos aos da mídia. AS POBRES IMAGENS DA INTERNET Aos poucos, sua linguagem narrativa singular mistura ensaio e sátira, em um tom direto e despojado que lhe rendeu notável reconhecimento internacional, tanto por suas produções, que passam do quadro cinematográfico ao de museu, quanto . O vídeo por seus escritos, publicados regularmente no (2009-2010) responde à crise bancária de 2008 com uma montagem vertiginosa em torno do tema do acidente aéreo. Filmes de Hollywood e demonstrações de segurança aérea colidem em uma mistura energética, evocando uma perda de toda referência à gravidade. No seu texto Em (2009), Hito Steyerl anuncia essa linguagem de reciclagem de imagens encontradas, pressupondo a pirataria, a circulação e o reaproveitamento selvagem do filme e do vídeo no anárquico e inesgotável magma da Internet. (2013) aborda a vigilância aérea na forma de um tutorial para se tornar invisível, no qual a artista entrelaça imagens promocionais de complexos imobiliários de luxo e uma coreografia caprichosa meditando sobre a vida dos pixels. 63
PARA ALÉM DAS TELAS: O PODER DOS ALGORITMOS A virada da década de 2010 também foi marcada por uma transformação radical de sua obra para o formato de videoinstalação. Dispositivos de grande escala são projetados para estender a tela para o espaço real e refletir, de maneira . responsiva, os ambientes. (2014), que ironiza a desregulamentação globalizada dos fluxos financeiros usando o formato de previsão do tempo, acolhe o espectador em uma onda que se eleva acima do horizonte da imagem, coberta por um tapete de judô. (2016) vê robôs androides entrando no espaço expositivo, heróis ambivalentes da ficção científica que se tornaram agentes da inteligência artificial na era digital, enquanto as telas multiplicadas do vídeo aparecem presas em um meandro de tubos de construção. Essas construções metálicas que servem de suporte para as imagens se tornarão uma figura recorrente nas instalações recentes de Hito Steyerl, uma forma de apontar o dedo para as estruturas invisíveis que se escondem atrás da superfície lisa e hipnótica das telas. Se Hito Steyerl usa as tecnologias mais recentes, é para questionar melhor seu poder de controle sobre o público e sua capacidade de refazer de forma tomando o lugar do "real". Dotados de uma forte carga de ironia, seus trabalhos acusam de forma humorada os excessos da vigilância global e da redução do mundo a um centro de dados nas mãos do maior lance. 64
Hell Yeah We Fuck Die, 2016. Courtesy the artist © Hito Steyerl.
“ ”
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This is the Future, film still, 2019. Courtesy the artist © Hito Steyerl.
OS MUSEUS E A EPIDEMIA DA DANÇA NA ERA DA SIMULAÇÃO SOCIAL A instalação leva essa reflexão a uma nova dimensão. Aqui, Hito Steyerl está mais interessada em programas de simulação social, que se concentram em estudar e prever o comportamento de indivíduos dentro de uma comunidade, e na modelagem de interações em massa. O vídeo gira em torno de uma "obra-prima perdida" - a atribuída a Leonardo da Vinci, que atingiu as manchetes ao quebrar o recorde de pintura mais cara do mundo, em 2017. Sua pesquisa leva a um museu imaginário, “o museu de obras de arte evolutivas”. Nesse museu do futuro - talvez já parcialmente presente - a onda especulativa do mercado de arte, os assaltos do nacionalismo identitário e a queda dos subsídios públicos atribuídos aos espaços culturais têm levado as obras a tomarem nas próprias mãos o seu próprio destino no caos desregulamentado do neoliberalismo selvagem, enquanto a humanidade parece entregue aos algoritmos que administram uma crise sem fim. Acontece que o novo é o “deus ”, a própria inteligência artificial que se apoderou das ferramentas de simulação social para governar o mundo. Os aplicativos e são inspirados no que a pandemia revela sobre uma perda generalizada de todo o controle dos indivíduos sobre seu ambiente. Com o humor contundente próprio de Hito Steyerl, modelam uma infecção de outro tipo: o retorno das coreografias da Idade Média, essas danças coletivas irreprimíveis sustentadas em locais públicos, até a exaustão, onde alguns historiadores viram manifestações de angústia de populações vulneráveis. Essa 68
Dancing Mania. Courtesy the artist © Hito Steyerl.
reviravolta no carnaval em face dos impasses sociais não oferece julgamento nem resposta. Como sempre na obra de Hito Steyerl, a ficção é um desvio para abrir melhor os olhos ao presente, para despertar os sentidos e o pensamento. Nascida em Munique, em 1966, Hito Steyerl estudou no Instituto Japonês da Imagem em Movimento antes de defender uma tese de filosofia na Academia de Belas Artes de Viena. Ela mora em Berlim, onde ensina New Media Art na Berlin University of the Arts e fundou o Research Center for Proxy Politics (com Vera Tollmann e Boaz Levin). O seu trabalho foi objeto de várias exposições monográficas e integrou vários eventos internacionais como a Documenta de Cassel, em 2007, e as Bienais de Veneza em 2013 e 2015. Em 2017, ela foi nomeada em primeiro lugar na lista Power 100 das "personalidades mais poderosas do mundo da arte" pela revista ArtReview.
HITO STEYERL: I WILL SURVIVE • CENTRE POMPIDOU • PARIS • 19/5/2020 A 5/7/2021 69
AUGUSTO
de
DEStaque
,
campos
Sem saída, 200/2009.
A BIBLIOTECA MARIO DE ANDRADE, A PRINCIPAL E MAIS ANTIGA DA CIDADE DE SÃO PAULO, TORNOU-SE UM ESPAÇO DE CELEBRAÇÃO DA OBRA DE AUGUSTO DE CAMPOS EM 2021, EM COMEMORAÇÃO AO ANIVERSÁRIO DE 90 ANOS DO POETA, ENSAÍSTA, TRADUTOR E ARTISTA
Desde o começo do ano, a Biblioteca Mario de Andrade vem abrigando uma série de exposições em torno da produção de Augusto de Campos, como “Poema cidadecitycité pela cidade”, que gira em torno do poema que o artista escreveu para São Paulo. (1963) é uma obra-prima da poesia O poema verbivocovisual. O conceito foi apropriado de James Joyce, pelo grupo Noigandres – formado por Augusto, Décio Pignatari e Haroldo de Campos – e, em linhas gerais, ressalta uma preocupação simultânea do criador com as dimensões verbais, sonoras e visuais dos poemas ou obras. Uma definição que está atrelada à poesia concreta brasileira e às experimentações de suportes e ferramentas adotados pelos componentes do grupo. O resultado poético de é regido pela aleatoriedade artística de , de Stéphane Mallarmé, do de Marcel Duchamp e das composições sonoras de John Cage. Entre as décadas de 1960 e 1970, foi impresso como cartão dobrável em diferentes versões, mesmo período em que o poeta gravou distintas leituras sonoras. No entanto, foi a partir dos anos 1980 que o poema literalmente saiu dos suportes tradicionais e se tornou obra de arte. Primeiro como uma escultura de 70 metros, montada na fachada do edifício da Bienal de São Paulo, depois como gravação musical espacializada, realizada em parceria com o filho Cid Campos, que serviu de base para o vídeo editado nos anos 1990. Em 2016, na exposição REVER, o poema audiovisual foi apresentado em um painel de LED com mais de oito metros de comprimento, no corredor de entrada do SESC Pompeia. 72
Mito, 2018.
POR DANIEL RANGEL
Luxo, 1965/2019.
Esta é uma das muitas versões apresentadas na exposição “Poema cidadecitycité pela cidade”. A obra em LED – instalada na fachada da Biblioteca Mário de Andrade, no centro de São Paulo, cidade central da poesia concreta – ganha a dimensão de um verbivocovisual. Uma obra que, apesar de nunca ter sido instalada ali, sempre pertenceu ao espaço. Criações de distintos tempos celebram o presente e, no interior da Biblioteca, na Sala Tula Pilar Ferreira, outra exposição, denominada , exibe uma série de cartazes inéditos de Augusto. No fim dos anos 1960, a tipografia passou a ser um dos principais campos de interesse do artista-poeta. As fotocomposições, incluindo aqui as “fotoletras”, começaram a ser amplamente utilizadas pelo meio gráfico com o advento do . Também o , ou letras transferíveis, tornou-se ideal para impressão de pequenos textos e passou a ser largamente utilizado por e publicitários. No Brasil, as fontes transferíveis disponíveis eram principalmente as da empresa inglesa , nome pelo qual ficaram conhecidas. Augusto viu naquele arsenal tipográfico uma verdadeira babel de possibilidades para organizar visualmente seus poemas. As dezenas de fontes disponíveis, carregadas de signos embutidos nas formas, traços e curvas dos variados desenhos das letras, impulsionaram o fazer criativo do poeta. Em 1974, Augusto realizou as 74
Transletras, 1974, 1985.
primeiras experiências utilizando para compor seus poemas, e seguiu recorrendo à ferramenta de forma constate até 1985. A exposição reúne essa produção na íntegra, pois o não recorte foi o caminho curatorial escolhido. Encontra-se exposto todo o material garimpado desse período relativo ao , incluindo os pôsteres formalizados, estudos e manuscritos inéditos. Ao todo, foram produzidos cerca de 50 cartazes, diferentes versões de aproximadamente 40 poemas, entre autorais e traduções, amparados pela facilidade de experimentar possibilidades compositivas com rigor formal. A simplicidade de acesso e execução da técnica permitiram ao poeta resgatar o conceito de filmletras – citado na introdução de – e colocar as palavras, sílabas e letras em constante deslocamento no papel, um movimento que antecipou sua produção audiovisual que se iniciou apenas alguns anos depois. Apesar de as letras transferíveis serem um recurso analógico para a composição dos poemas, o pensamento construtivo e a disposição delas já anteviam as possibilidades tecnológicas que se aproximavam com o advento da computação e do vídeo. Após essa fase dos , boa parte das criações de Augusto, segundo a professora Lucia Santaella (2004), “avançaram das mídias gráficas para as holográficas, infográficas e painéis luminosos”. 75
Viva Vaia,1972.
Abaixo: Tudo está dito, 1974. À direita: Quasar, 1975-1991
78
, apresentamos alguns desses desdobramentos surgidos a partir dos Em poemas em , como os vídeos de , e ,o painel luminoso de e a serigrafia em placa de acrílico de . A fase do foi interrompida quando o artista-poeta adquiriu seu primeiro computador, e desde então este se tornou a principal ferramenta dele para compor poemas, traduções, artes gráficas e publicações. Há mais de 70 anos Augusto de Campos vem construindo uma trajetória cuja experimentação e cujo rigor caminham juntos e à frente de seu tempo, revelando questões que ainda não descobrimos, mas que algumas vezes encontramos!
Daniel Rangel é curador das exposições "Poema cidadecitycité pela cidade" e "Transletras", mestre e doutorando em artes visuais pela ECA USP.
AUGUSTO DE CAMPOS: TRANSLETRAS • BIBLIOTECA MÁRIO DE ANDRADE • SÃO PAULO • 12/2 A 13/8/2021 79
GARlimpo
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NOTAS do mercado
POR LIEGE JUNG @dasartesmercado
Tendo em vista que o assunto da criptoarte e NFTs decolou no circuito internacional no último mês e que para muitos é nebuloso, dedicamos nossa seção ao tema.
É uma espécie de livro contábil, compartilhado por várias entidades e empresas ao invés de apenas um banco ou instituição. Seu objetivo é facilitar o registro de transações e o rastreamento de ativos em uma rede de negócios. O blockchain é imutável, ou seja, uma vez registrada nele uma transação, ela não pode ser modificada ou apagada. Existem vários blockchains e os mais conhecidos são Ethereum e o blockchain utilizado para geração da criptomoeda bitcoin. Beeple, Illestrater, 2020.
Sigla para non-fungible token, ou token não-fungível. Um bem fungível é algo que pode ser substituído por outro, por exemplo, uma cédula de dinheiro. Um token é um código único que identifica um item digital. Portanto, um NFT é uma espécie de documento de identidade de um bem digital único, registrado em um blockchain. Tem sido usado para identificar colecionáveis de todos os tipos, como "figurinhas" de basquete digitais lançadas pela NBA.
É uma obra de arte digital (uma imagem em Jpg, um gif, um vídeo, etc..) à qual foi atrelado um NFT, o que garante sua autenticidade. Toda vez que esta obra trocar de mãos, uma nova transação será registrada no blockchain, o que também garante sua rastreabilidade. 80
Há diversas plataformas pelas quais um artista pode lançar uma obra de criptoarte, a maior parte delas ligadas ao blockchain Ethereum. Algumas, como Rarible, são abertas a qualquer criativo, enquanto outras aceitam artistas por convite ou indicação. Estas plataformas permitem que o artista "deposite" sua obra e gere para ela um NFT.
Obra de Grimes.
Porque, em menos de um mês, obras de criptoarte de artistas até então desconhecidos passaram a valer milhões de dólares. Apenas em fevereiro, a Nifty Gateway vendeu US$6 milhões em obras de arte da cantora Grimes. Atenta a este movimento, a Christie's anunciou de Beeple e, no dia o leilão da obra seguinte, obras de Beeple apareceram na Nifty Gateway e os valores dispararam. O lance era US$100. Em 11 de inicial de março, ela foi arrematada por US$69 milhões, colocando Beeple entre os artistas vivos mais caros do mundo.
Beeple, Everydays, 2021.
Primeiro, é necessário entender que já existia uma comunidade de usuários de blockchains negociando criptomoedas e outros tipos de tokens e que, nos últimos anos, muitos fizeram fortuna com estas transações. Por exemplo, alguém que recebeu US$10 em bitcoins em 2010 hoje teria US$50 milhões. Outros colecionáveis e criptomoedas tiveram valorizações repentinas, o que trouxe muitos investidores para este universo. Nos últimos meses, este mercado começou a negociar obras de arte, que são ativos únicos, com valor subjetivo e que, no mundo físico, já tem uma tradição em transações milionárias, somando mais força a este boom.
Seguindo a lógica do mercado de arte, temos artistas desconhecidos, que nunca expuseram em um museu ou galeria e que, no espaço de um mês, passam a valer mais que artistas de importância histórica. Quando olhamos para a estética de gosto duvidoso de algumas das obras, a desconfiança é ainda maior. No entanto, pela ótica dos NFTs, os parâmetros para avaliar os investimentos são outros, muito complexos e ainda em definição. 81
GARlimpo
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Livros
O Itaú Cultural lança , do sociólogo e professor alemão Georg Simmel (1858-1918), o mais . novo volume da coleção Em uma realização do Itaú Cultural e a Iluminuras, ela é composta por edições voltadas a reflexões sobre gestão, economia, políticas culturais e aos impactos da tecnologia na sociedade. GEORG SIMMEL: A TRAGÉDIA DA CULTURA • Editora Iluminuras • Gratuito nas livrarias digitais.
A publicação parte de obras emblemáticas da artista gravurista Maria Bonomi para discutir a gravura de forma expandida, mostrando o pioneirismo de Bonomi em diversos aspectos. A artista nascida na Itália e radicada no Brasil desde criança transgrediu diversas tradições estabelecidas nas artes, como o aumento das dimensões da gravura, criando obras em tamanhos monumentais. MARIA BONOMI COM A GRAVURA • Texto: Patricia Pedrosa • Editora Rio Books • 140 pg • R$ 75
O novo livro de Hal Foster traz uma análise ácida e urgente do contexto social, político e cultural desta segunda década do século 21, implicando toda a rede de atores do mundo da arte: artistas, curadores, museus e instituições e críticos. Os ensaios reunidos no livro discorrem sobre mudanças na arte e na crítica diante do atual regime de terror e vigilância, desigualdade extrema, desastre climático e disrupção midiática. HAL FOSTER: O QUE VEM DEPOIS DA FARSA? • Ubu Editora • 224 pg. • R$ 59,90 82
Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente para tablets e celulares no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.
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