Revista DASartes 100

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MARCELA CANTUÁRIA LEE KRASNER ANISH KAPOOR LUIZ ZERBINI ARTE E CINEMA AGNES PELTON ELIZABETH LEE MILLER JACOB LAWRENCE


Tulio Pinto, Cumplicidade #8, 2016. Foto Nicolรกs Vidal.


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DIRETORA Liege Gonzalez Jung CONSELHO EDITORIAL Agnaldo Farias Artur Lescher Guilherme Bueno Marcelo Campos Vanda Klabin REDAÇÃO . NEGÓCIOS André Fabro andre@dasartes.com MÍDIAS SOCIAIS . IMPRENSA dasartes@dasartes.com

Capa: Marcela Cantuária, Banho de Sangua, 2018. Cortesia da artista. Foto: Vicente de Mello.

DESIGNER Moiré Art moire@moire.com.br REVISÃO Angela Moraes PUBLICIDADE publicidade@dasartes.com SUGESTÕES E CONTATO info@dasartes.com VERSÃO IMPRESSA assinatura@dasartes.com Doe ou patrocine pelas leis de incentivo Rouanet, ISS ou ICMS/RJ

Marcela Cantuária, Minha era minha fera. Foto: Vicente de Mello.

Contracapa: Luiz Zerbini, Mar do Japão, 2011


MARCELA CANTUÁRIA 8

ANISH KAPOOR

6 94

106

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LUIZ ZERBINI

Agenda

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Jacob Lawrence Elizabeth Lee Miller

120

Notas de Mercado

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Alto Falante

ARTE E CINEMA

LEE KRASNER

AGNES PELTON

78

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Jean-Luc Godard

,

Cursos

ARTE E CINEMA Desde sua invenção, o cinema se inspira nas artes visuais para criar imagens de impacto. Este curso vai mostrar alguns dos maiores exemplos deste cruzamento. Você será guiado por filmes de grandes cineastas e obras de grandes artistas, atravessando os principais movimentos do cinema para entender os conceitos e referências por trás de suas imagens. Irmãos Lumière, Germaine Dulac, Luis Buñuel, Jean-Luc Godard, Agnès Varda e Glauber Rocha estão entre os realizadores que você vai assistir de forma renovada após as aulas. Com este curso você vai construir um repertório histórico de aproximações entre arte e cinema e adquirir o instrumental necessário para iniciar suas próprias análises de imagem. 6

Ao longo das aulas, passaremos pelas pinturas rupestres, pelos primeiros filmes da história, pelas vanguardas, pelo pós-guerra e pela chegada do vídeo e da videoarte. Esses vastos caminhos, contudo, serão costurados por obras e artistas específicos, evitando descrições generalizantes e abstratas. E os cruzamentos propostos não pretendem dar conta de todas as discussões, mas engatilhá-las, provocálas, repensá-las.

ARTE E CINEMA: INFLUÊNCIAS, ENCONTROS E INTERSEÇÕES • ESCOLA DASARTES • 14/10 A 4/11 • DASARTES.COM.BR



CApa

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MARCELA


cantuรกria Filhas do vulcรฃo, Mamรก Dolores y Mamรก Trรกnsito, 2019. Foto: Vicente de Mello.


POR LEANDRO FAZOLLA

Vestindo uma camisa com a imagem de uma favela estampada, Marielle Franco está sentada com um semblante sereno, mas forte, no rosto. A seus pés, uma pantera negra repousa. Na sua mão direita, uma espécie de lança apresenta na ponta a cabeça do governador (afastado) do estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, o mesmo responsável por quebrar, durante sua campanha eleitoral de 2018, uma placa em homenagem à vereadora eleita pelo PSOL, assassinada no mesmo ano. Acima de Marielle, se lê a frase “un pueblo sin memoria es un pueblo sin futuro”. Esta obra, intitulada “Voltarei e Serei Milhões”, por si só já parece sintetizar um pouco da produção de Marcela Cantuária, artista do Rio de Janeiro que cada vez mais chama atenção e ganha espaço no circuito. Estão ali, nesta única tela, o combate, a História, as cores vibrantes e variadas referências a lutas político-sociais, elementos recorrentes na produção da artista. 10

Voltarei e serei milhões, 2018. Foto: Vicente de Mello.

AS PINTURAS PROVOCANTES DA CARIOCA MARCELA CANTUÁRIA VEM CHAMANDO ATENÇÃO POR SEUS TEMAS ESPINHOSOS E CORES VIBRANTES. COLOCANDO SUAS CONVICÇÕES POLÍTICAS EM PRIMEIRO PLANO, A INQUIETA ARTISTA MOSTRA PORQUE É CONSIDERADA UMA DAS GRANDES PROMESSAS DO MUNDO DA ARTE




Jovita Feitosa, 2018. Foto: Vicente de Mello

“ ”

Formada em pintura na Escola de Belas Artes da UFRJ, Cantuária é uma artista que se relaciona intimamente com seu tempo, aliando sua produção com seu próprio engajamento político e transpondo para sua obra temas cada vez mais necessários de serem debatidos, como misoginia, machismo, disputa de narrativas e luta de classes. Suas pinturas figurativas e muitas vezes alegóricas, em cores fortes e potentes, criam impacto ao se aliarem predominantemente à História do Brasil e da América Latina como um todo. Na série "Mátria Livre”, a artista busca na História mulheres precursoras, combatentes, guerrilheiras, mas que muitas vezes são relegadas em detrimento de uma narrativa hegemônica patriarcal. Dentre as personalidades representadas, além da já citada Marielle, estão nomes como Jovita Feitosa, militar brasileira que atendeu à campanha de recrutamento para a Guerra do Paraguai; e Maria Bonita, primeira mulher a participar de um grupo de cangaceiros. Ao mesmo tempo em que faz certa reparação histórica ao colocar estas mulheres no centro da narrativa, a pintora também busca novos caminhos para a representação feminina na arte, após séculos de imagens relacionadas primordialmente ao corpo e à nudez da mulher. Atenta à sociedade como um todo, 13


À esquerda: Leila Khaled. À direita: Deize Tigrona, 2020. Foto: Pedro Agilson.

e a lutas que se travam em diversas esferas, em sua produção há espaço para personalidades que vão de Leila Khaled, uma das maiores combatentes contra a ocupação israelense no território da Palestina; até a cantora Deize Tigrona, importante representante do funk carioca. A memória também é o assunto principal na série , na qual a artista reproduz imagens de protestos e fotos de pessoas desaparecidas na ditadura militar brasileira e similares. Ao tratar de eventos históricos, Marcela muitas vezes acumula fotos, corrompe o discurso corrente e sobrepõe fatos, parecendo evocar a máxima do “lembrar para não esquecer”, questão cada vez mais importante num país que flerta sistematicamente com o obscurantismo. Relacionando-se ao extremo com seu próprio tempo, a artista também busca na linguagem da internet referências para suas obras. Não apenas para sua pesquisa em si, que inclui uma série de colagens e imagens de fotografias históricas, junto a outras pinçadas de matérias jornalísticas, mas também em seu conceito, que inclui, por vezes, o acúmulo de 14


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A tropa, 2017. Foto: Vicente de Mello.


informação, a sobreposição de diferentes temporalidades e fatos e, ainda, a falha! Em sua produção, a artista se apropria, como recurso – “defeitos” que surgem em imagens digitais, simbólico, dos quando há alguma alteração irregular nos códigos – que altera, corrompe a imagem, cria a impressão de erro, remetendo à ideia de que a própria história foi distorcida na maneira como é tratada pelos meios oficiais. Ao lançar mão desta proposta, a artista também acaba por fazer refletir sobre quem o sistema vigente considera a falha na sociedade, o indesejado que precisa ser corrigido.

Pág. 18 e 19: Dama de copas, 2018 e Nise da Silveira, 2020. Abaixo: Encher a ausência de presença, 2018 (série Futuro do Pretérito) À direita: “Sônia” Maria Lucia de Souza, 2019. Fotos: Vicente de Mello.

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L’Orchestre, 1953. À direita: Le Lavandou, 1952. © Adagp, Paris Foto © Centre Pompidou, MNAM-CCI / Georges Meguerditchian / Dist. RMN-GP

Que se possa sonhar, 2020. Foto: Pedro Agilson.

Há um ditado africano que diz que enquanto a história da caça ao leão for contada pelos caçadores, os leões serão sempre perdedores. Parece que ainda há um caminho bem longo, mas já iniciado em diversas áreas, para que a História seja contada a partir de outra ótica, invertendo os polos e colocando no centro o oprimido, as chamadas (erroneamente, há de se ressaltar) “minorias”, e não mais o opressor camuflado de herói. Cantuária é uma dessas artistas ferozes que vão se tornando fundamentais ao se inserirem nesse processo, refletindo o próprio tempo, 20


tornando sua obra parte indissociável de sua luta, contando a história que a história não conta e dando fala (e rugidos) a leões, tigres, panteras...

Leandro Fazolla é ator, historiador e produtor cultural. Mestre em Arte e Cultura Contemporânea. Bacharel em História da Arte. Ator e produtor da Cia. Cerne, com a qual foi contemplado no edital Rumos Itaú Cultural.

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ANISH DEStaque


Sky Mirror, 2018. © Anish Kapoor. All rights reserved DACS, 2020. Foto: Pete Huggins.

kapoor

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ANISH KAPOOR É UM DOS ESCULTORES MAIS INFLUENTES DA ATUALIDADE, CONHECIDO POR CRIAR ESCULTURAS PUBLICAS AMBICIOSAS, AVENTUREIRAS NA FORMA E NA ENGENHARIA EM ESCALAS E MATERIAIS MUITO DIFERENTES. EXPOSIÇÃO NO HOUGHTON HALL APRESENTA OBRAS COMO BEM ESCULTURAS, 24 REPRESENTATIVAS DA CARREIRA PIONEIRA DE ANISH, CRIADA NOS ULTIMOS 40 ANOS

POR LEONARDO IVO

UM ESPELHO ABERTO PARA O MUNDO O quanto a arte nos ajudou durante esta pandemia! O confinamento nos retirou o direito de aproveitar os espaços culturais, porém, para citar o grande Alberti, a pintura é uma janela aberta para o mundo. Com isso em mente, museus do mundo inteiro abriram suas portas virtuais para todos os usuários da internet, permitindo-nos sonhar com um amanhã que continua incerto. Enquanto os espaços culturais abrem suas portas progressivamente, uma exposição unindo arte e ar livre nos dá a oportunidade de restaurar nossa relação com o mundo exterior. Anish Kapoor at Houghton Hall, em Norfolk, curada por Mario Codognato, abre sua casa e seus jardins para o público, onde uma mostra das esculturas do artista é prolongada até o primeiro de novembro. O universo de Kapoor é exposto nos jardins e, dentro da casa de Houghton Hall, 24 esculturas, desenhos e outros trabalhos confrontam o espaço e a 24


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À esquerda: Untitled, 1997. Acima: Eight Eight, 2004. © Anish Kapoor. All rights reserved DACS, 2020. Foto: Pete Huggins

arquitetura clássica da casa. Similar à exposição nos jardins do palácio de Versalhes em 2014, Houghton Hall repete o mesmo esquema onde a confrontação desse tipo de arquitetura secular com as esculturas de Anish Kapoor fortalece a noção do espaço criando ademais um diálogo entre ambas. (2018) transforma e reflete o céu de cabeça para abaixo em um espelho de cinco metros de diâmetro. Sua monumentalidade poderia nos parecer excessiva, entretanto, o sentimento de infinito borra sua forma no mesmo instante. O que sempre impressiona com a disposição das obras de Anish Kapoor em um espaço aberto desse tipo é a capacidade de criar uma visão digna de ficção científica. Quando olhamos para (1997), instalada em frente a Sky Mirror em uma grande planície, imagens de (1984), de David Lynch; (2011), de Lars Von Trier, ou ainda (1968), de Stanley Kubrik, vem à mente. O mesmo pode ser dito de (2004) e (2018), inclinadas entre formas geométricas, brutas e orgânicas, todas se fundem às árvores e aos arbustos minuciosamente podados dos jardins. A fachada monumental, típica da arquitetura palladiana no uso da ordem colossal combinada à ordem iônica, continua se destacando das obras monolíticas. 26


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Untitled, 2012. Courtesy Stieglitz19 and Ren Hang Estate.


Untitled, 2018, granite. Š Anish Kapoor. All rights reserved DACS, 2020. Foto: Pete Huggins


Dentro, espelhos circulares de cores variadas refletem o interior da casa também invertido. Posicionados em cima de volutas, eles se fundem dificilmente ao lado dos bustos e da arquitetura de estilo clássica. Esses (ou ), reminiscentes da obra de Jeff Koons, são apenas um pretexto: cores que lembram a cultura e a origem indiana do artista, objetos que refletem a história colonial da Grã-Bretanha, os espelhos coloridos de Kapoor convidam e induzem o espaço interior de Houghton Hall. Passando em frente a eles, as cores mudam progressivamente, dando-nos um sentimento de vertigem. Houghton Hall foi construída por Sir Robert Walopole, primeiro ministro da Grã-Bretanha, em 1722. 30


Cobalt Blue to Apple and Magenta mix 2, 2018. Spanish and Pagan Gold to Magenta, 2018. Garnet to Apple Red mix 2 to Pagan Gold to Spanish Gold, 2018. Spanish Gold and Pagan Gold mix, 2019. © Anish Kapoor. All rights reserved DACS, 2020

Ele conta com a ajuda dos grandes arquitetos Colen Cambell e James Gibbs, e ambos vão criar um dos melhores exemplos de arquitetura palladiana do país. Passados para a família Cholmondeley no final do século 18, a casa e os jardins, nacionalmente premiados, estão abertos ao público desde 1976. Se a história de Houghton Hall e a obra de Anish Kapoor parecem opostas, a Houghton Art Foundation tem uma missão precisa. O propósito da HAF é criar uma coleção de arte contemporânea e mostrá-las em um histórico; esta exposição de Kapoor vem depois de outras como James Turrell (2015), Richard Long (2017), Damien Hirst (2018) e Henry Moore (2019). 31


Um aspecto interessante dessa exposição reside no diálogo entre a obra de Anish Kapoor e as ideologias arquitetônicas de Andrea Palladio. De fato, na tradição renascentista, a casa e seus diferentes componentes devem se organizar como o corpo humano e ser um reflexo de nosso modo de viver. Outro aspecto da filosofia palladiana é a continuidade entre o interior e o exterior da casa; a decoração e as ordens (dórica, iônica, toscana, coríntia, colossal...) devem corresponder não só aos arredores da casa e da natureza, mas também ao social do proprietário. Nesse sentido, os espelhos de Kapoor refletem o exterior e o interior para formar um espaço só onde os dois se apoiam e dialogam. De fato, como diz Palladio em seus (1570), o arquiteto tem que aplicar toda sua diligência, de maneira que todos os edifícios tenham fundações da natureza e outras que demandam o uso da a arte, onde entra Anish Kapoor.

ANISH KAPOOR EM HOUGHTON HALL • LONDRES • REINO UNIDO • 12/7 A 01/11/20 32

Leonardo Ivo é estudande em história da arte em Sorbonne, Paris e colaborador de mídias sociais do artista Gonçalo Ivo.


“ ”

À esquerda: Grace, 2004. Abaixo: Sophia, 2003. © Anish Kapoor. All rights reserved DACS, 2020


Cabeça de água, 2016. © Luiz Zerbini. Courtesy the artist and Stephen Friedman Gallery, London.

Alto relevo


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LUIZ zerbini


AO LONGO DE SUA CARREIRA, DE MAIS DE TRÊS DÉCADAS, LUIZ ZERBINI DESENVOLVEU UM VOCABULÁRIO VISUAL COMPLEXO NA INTERSEÇÃO DE FIGURAÇÃO E ABSTRAÇÃO. JUSTAPONDO FORMAS ORGÂNICAS E GEOMÉTRICAS, AS PINTURAS DE ZERBINI EXPLORAM A RELAÇÃO ENTRE COR, LUZ E MOVIMENTO. INSPIRADA NAS FLORESTAS TROPICAIS DA AMAZÔNIA E DA MATA ATLÂNTICA, SUA NOVA EXPOSIÇÃO REFLETE O CONSTANTE INTERESSE DO ARTISTA PELA RELAÇÃO ENTRE NATUREZA E HUMANIDADE

POR LILIAN FRANÇA

Luiz Pierre Zerbini é um artista que não teme a altura do voo. Transitou pela pintura, desenho, escultura, fotografia e gravura para depois aportar nos universos da cenografia, instalação e . Não deixou de utilizar também o som como matériaprima, especial componente dos trabalhos do Chelpa Ferro, coletivo que criou com Barrão (escultor) e Sérgio Mekler (editor de cinema) para investir na geração de novas linguagens sonoras, seja por meio de uma bateria/ (2003), um “totó treme terra” (2006) ou uma sinfonia de marretas em um Maverick amarelo ( , 2002). O elo entre todos os voos alçados talvez seja a desconstrução: da forma, da cor, do som, da expectativa, do significado, para propor o salto no vazio, espaço de descoberta. Entre novembro de 2020 e janeiro de 2021, Luiz Zerbini apresenta sua exposição intitulada , na conceituada , em Londres, espaço que já o recebeu em 2018 ( ), ocasião em que foi aclamado tanto pela crítica quanto pelo público. 36

Illustrations for Oscar Wilde's Salome 1893. Stephen Calloway. Foto: © Tate

A GEOMETRIA TROPICAL DE LUIZ ZERBINI


Pica-pau, 2016

Citrine by the Ounce, 2014 © Courtesy of Lynette Yiadom-Boakye.


A Ilha, 1995.

Em um momento em que os temas ligados ao meio ambiente acirram interesses, discussões e angústias, Zerbini mostra trabalhos imbricados ao tema das florestas tropicais, a Mata Atlântica e a Floresta Amazônica, em uma costura que reúne elementos orgânicos e abstratos para produzir um discurso que se sobrepõe à narrativa cotidiana. Tece, assim, um texto poético contundente, marcado pelas cores que se mesclam em um complexo cromático criado pelo olho do paulista/carioca/ , reinventando pontos de vista para temas sempre profundamente necessários. 38


Ilha da Maré, 2014. Foto: Eduardo Ortega.

Em 1995, quando pintou , lançou mão do jogo campo/contracampo para potencializar a especularidade imersiva do espectador, que se vê circulando entre os extremos, dos contornos da ilha ao cruzamento do figurativismo com o abstracionismo formal. , pintada quase uma década mais tarde, A estratégia se adensa em quando as texturas da natureza foram sintetizadas em uma geometria pautada em formas básicas, linhas, retângulos, círculos e circunferências, distribuídos em camadas de cor e planos encadeados. 39


Nas telas expostas na , a profusão da diversidade contida em matas e florestas é organizada em representativos, como disparos de energia inseridos em micro quadros que compõem a superfície da obra (como em e , ambas de 2020). A composição reticulada, entremeada por nervuras, traduz o objeto à sua síntese, por vezes transformando-o em um conjunto de vibrações que descontroem a figura e e recuperam suas linhas de força, como acontece com (os dois de 2019).

A árvore do viajante, 2020.

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O argumento que rege a lógica das obras expostas não é óbvio, manifesto, antes latente, montado sobre um fluxo babélico de elementos que povoam os espaços tematizados: plantas, flores, árvores, raízes, troncos partidos, gramíneas, frutos, terra, água e toda sorte de animais/seres mais ou menos complexos. Os traços derivam (ou não) da capacidade técnica de Zerbini, que domina o pincel como a um bisturi, atravessando estradas neuronais para desobstruir os sentidos condicionados por discursos desgastados que geram o apagamento dos aspectos centrais, do que realmente merece ser dito. E visto.

AIlha,195.

IlhadMré,2014.Fot:EduaroOtega.

Quadrícula Grande, 2020. © Luiz Zerbini. Courtesy the artist and Stephen Friedman Gallery, London.

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Monster, 2016. © Luiz Zerbini. Courtesy the artist and Stephen Friedman Gallery, London. AIlha,195. IlhadMré,2014.Fot:EduaroOtega.




“ ”

As telas projetam movimentos de luzes e sombras do dossel da mata, perenemente verde, mas matizada de amarelos e vermelhos em múltiplas nuances, salpicada de azuis e tons que não correspondem à cor local, senão enquanto subterfúgio para incitar a reflexão. O crivo do fogo, que dá nome à exposição, consome, peneira e borda o cerne da motivação que consequentemente moldou cada unidade de

Abaixo: Rio Comprido III. À esquerda: Rio Comprido V. © Luiz Zerbini. Courtesy the artist and Stephen Friedman Gallery, London.

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Flare, 2016. © Luiz Zerbini. Courtesy the artist and Stephen Friedman Gallery, London.

sentido, depurando em altas temperaturas e refinando na sutileza do resultado estético. é um palimpsesto, cada camada de sentidos inaugura uma nova indagação, resultado da mente dispersa e incrivelmente focada do artista, do pintor.

LUIZ ZERBINI: FIRE • STEPHEN FRIEDMAN GALLERY • LONDRES • REINO UNIDO • 20/11/2020 A 9/1/2021

Lilian França é Pós-Doutorado em História da Arte pelo IFCH/UNICAMP e membro da ABCA e da AICA.

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ARTE

PARalelo


Cena de Shirley: Visions of reality, 2014 de Gustav Deutsch

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CINEMA


FUNDAÇÃO HERMITAGE, SUIÇA, EXPLORA A MODERNIDADE ARTÍSTICA, FOCALIZANDO OS VÍNCULOS ENTRE AS ARTES PLÁSTICAS E UMA DAS GRANDES REVOLUÇÕES VISUAIS DO SÉCULO 20: O CINEMA. A EXPOSIÇÃO ILUSTRA AS TROCAS E INFLUÊNCIAS RECÍPROCAS ENTRE CINEASTAS E ARTISTAS VISUAIS, DA PRIMEIROS FILMES DO FINAL DO SÉCULO 19 ATÉ A NEW WAVE

POR NICHOLAS ANDUEZA

A Fondation de l’Hermitage, junto à Cinémathèque Française e ao grupo Réunion des Musées Métropolitains Rouen Normandie, inauguraram, em , aberta até setembro, a exposição janeiro de 2021. Com curadoria de Aurélie Couvreur (Hermitage) e Dominique Païni (Cinémathèque), a exibição explora pontos de encontro entre o cinema e as artes plásticas. O grande desafio aqui é contribuir para a expansão das sensibilidades do visitante não em uma, mas em duas direções: tanto nas artes como no cinema. O que os cruzamentos entre um e outro podem nos contar sobre ambos? É necessário começar com uma precisão: a mostra não trata da arte e do cinema “em geral”, mas muito especificamente da arte moderna e do cinema feitos na Europa, especialmente na França – poucos nomes norte-americanos são as exceções. Além disso, a exposição traz um recorte cronológico que dá a impressão de se encerrar cedo, com a Nouvelle Vague francesa e o contexto do Maio de 68, sem seguir pelo final do século 20 rumo às duas décadas do século 21. Mas se suspeita que essas questões só apareçam como “faltas” devido ao título da exposição, que não 50

Cena de Stalker, 1979, de Tarkovsky.

ARTE E CINEMA: CRUZAMENTOS E ENTREVISÕES



Yves Klein, Anthropométrie sans titre, (ANT 174), 1960 Foto: Cyril de Plater. © Succession Yves Klein/2020, ProLitteris, Zurich

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Jean-Luc Godard, Pierrot le Fou, 1965 © 1962 Studiocanal / Société nouvelle de cinématographie / Dino de Laurentis Cinematographica, S.P.A. (Rome). All rights reserved

especifica o recorte. É evidente que não há nada de errado em se fazer um recorte, aliás, é impossível não o fazer; o ponto é que ele deve ficar claro, pois sabemos que o cinema e as artes transcendem a primeira metade do século 20 europeu. Desse modo, propôs-se nos inventar a nós mesmos, de modo lúdico, um subtítulo para explicitar a proposta da curadoria: “Arte e cinema – cruzamentos visuais no Hemisfério Norte, do pré-cinema ao Maio de 68”. Criou-se o subtítulo, não só para localizar a mostra, mas principalmente para identificar seu ponto forte: o foco nos cruzamentos. Ou seja, não se trata precisamente nem das artes nem do cinema, mas dos entrelugares, dos pontos de encontro que os convocam ambos, arte e cinema, a coabitarem um mesmo instante. São esses cruzamentos que nos animam a atravessar com interesse as seções temáticas da exposição: 1) Antes do Cinema; 2) Os irmãos Lumière e o Impressionismo; 3) Chaplin e o Cubismo; 4) Ritmos formais; 5) Expressionismo alemão; 6) Expressionismo russo; 7) Surrealismo; 8) Filmando a arte; 9) Vagas modernas; 10) Cinema político. Nesse sentido dos cruzamentos, a abordagem cronológica deixa de ser uma opção meramente convencional e tem sua função valorizada: ela demonstra quasi-empiricamente influências mútuas e contextuais entre as artes e o cinema. Mas essas interseções não vêm só no sentido de quais quadros influenciaram quais filmes e vice-versa, algo em si importante e bastante explorado ao longo da mostra. Elas vêm também em um sentido muito concreto e localizado: por um lado, com artistas que efetivamente trabalharam presencialmente em filmes, fizeram cartazes publicitários, como o grande Alexandre Rodchenko, ao promover obras de Sergei Eisenstein e Dziga Vertov; por outro lado, com filmes que citam explicitamente obras ou estilos específicos, como é o caso de Jean-Luc Godard, que citava Yves pintar o rosto de azul. Klein diretamente ao fazer o protagonista de 53



Cena de Barry Lyndon, 1975 de Santley Kubrick À esquerda: John Constable, Malvern Hall, 1871.


É aqui, nesses cruzamentos concretos e presenciais, que está o tesouro da exposição. E os curadores o sabem. Isso se nota particularmente na seção que me parece a mais precisa de todas, a qual poderíamos tomar como o coração da mostra: “Filmando a Arte”. Nela, assistimos a filmes feitos no pós-guerra por François Campaux, Henri-Georges Clouzot e Hans Namuth, que registram e documentam os processos artísticos de nomes como Matisse, Picasso e Pollock, acompanhando-os em seus ateliês enquanto produziam. Convenhamos: não é qualquer dia que podemos assistir às pinceladas de um Matisse sendo executadas em câmera lenta, diante de nossos olhos! Ali está o artista! Ali está o “aqui e agora” da obra, como diria Walter Benjamin. É o instante da arte, presente no mesmo espaço-tempo que a câmera que o registra. E sentimos essa presença não só pelo conteúdo, mas também pela forma: a desaceleração da imagem é um procedimento , impossível a qualquer outro cinematográfico meio artístico, e ele é usado por Campaux para iluminar o gesto pictórico , a pincelada (no caso, de Matisse). Aí está: na forma e no conteúdo, um cruzamento – um ponto único, preciso e singular que, no entanto, concentra e ilumina duas direções diversas, a das artes e a do cinema. Logo, é preciso alterar o subtítulo que havíamos criado. Fiquemos com este: “Arte e cinema – cruzamento de visões e presenças no Hemisfério Norte, do pré-cinema ao Maio de 68”. Porque, quando notamos a de um elemento fílmico de no território das artes e vice-versa, assistimos à dois mundos em um único ponto. E, distribuídas ao longo da exposição, as figuras que concentram em si esse elemento mágico, co-presencial, do cruzamento são os cartazistas e os diretores de arte dos filmes – são eles que caminham sobre a finura do ponto de contato entre as artes plásticas e o cinema. 56


65


Vladmir Tatlin, Relevo de Canto, 1915 e Dziga Vertov, O homem com a câmera, 1929.

De fato, apesar de menos célebres que os artistas e os realizadores fílmicos, os cartazistas e os diretores de arte são as figuras mediúnicas desta mostra. “Mediúnicas” tanto por estarem “no meio”, “entre”, materializando os pontos de encontro entre arte e cinema, quanto por precisarem ser “videntes”, “visionárias”, para catalisarem um encontro que, ao juntar esses dois mundos, crie não um pastiche de ambos, mas uma terceira forma, inédita, específica, imprevista, que por sua vez influencie tanto as artes como o cinema. Eis a força de um cartaz, ou de um cenário de filme. É o caso da cenografia que Robert Herlth concebeu para os filmes de F. W. Murnau, um dos grandes diretores do expressionismo alemão. Também é o caso de Guido Augusts, artista que converteu sua experiência de Pop-Art em cartazes para filmes de Jean-Luc Godard. Desse modo, a curadoria tem o mérito de insistir nesses nomes e obras “menos célebres”, mas que formam a espinha dorsal do assunto “arte-cinema” – assim, nem “arte”, nem “cinema”: estamos diante do próprio “-”. Para encerrar, contudo, duas críticas importantes, uma mais específica, outra mais abrangente. Faço-as tranquilo, em diálogo franco, sem querer parecer mais esperto que ninguém. A primeira. Como pesquisador de cinema, soa-me estranho o posicionamento de nomes russos como Eisenstein, Vertov e Rodchenko no campo do “expressionismo”. O expressionismo é esteticamente calcado na crise de uma subjetividade angustiada diante dos excessos (especialmente dos excessos maquínicos) da modernidade; os referidos russos, por sua vez, produzem uma arte não subjetivista (plenamente socialista, aliás), aplicando, à sua maneira, o elogio à máquina dos futuristas, o interesse pelo fragmento dos cubistas, a psicologia behaviorista de Pavlov, a biomecânica de Meyerhold. Esses russos são muito mais próximos do construtivismo de Tatlin (ausente na mostra). Suas técnicas de montagem fílmica são justamente descritas como “construtivistas”, por serem baseadas não na continuidade subserviente à narrativa, mas no conflito formal que produziria a obra em si. No limite, , de Vertov, é como uma versão cinematográfica de um , de Tatlin. 58


Acima, poster de A Chinesa, 1967 de Jean-Luc Godard. Abaixo: Cena de Nosferatu, 1922 de Friedrich Wilhelm Murnay (Expressionismo alemĂŁo).


Abaixo: Cena de Tramas do entardecer, 1949 de Maya Deren. À direita: La Coquille et le clergyman, 1928 de Germaine Dulac

A segunda crítica é mais abrangente: a quase ausência de nomes femininos ao longo da mostra. Sim, é importante insistir neste ponto, é uma questão de responsabilidade histórica e representativa. No campo do cinema (e respeitando o recorte espaço-temporal da exposição), poderíamos falar, por exemplo, de Germaine Dulac, que figurou entre impressionistas e surrealistas do cinema, de Maya Deren, que mistura surrealismo, filme e performance na década de 1940, e de Agnès Varda, que em 1955 antecipou muitos elementos dos filmes da , cinco anos antes da chegada de um Godard ou de um Truffaut às telas. No campo das artes, Natalia Goncharova, influenciada pelo futurismo e cofundadora do raionismo russo, e Sonia Delaunay, co-fundadora do orfismo (junto a Robert Delaunay, que figura entre os artistas expostos), poderiam constar na seção intitulada “Ritmos Formais”, por exemplo. Citam-se estes e os outros nomes para tornar a crítica construtiva e propositiva. Uma pesquisa aprofundada certamente revelaria outros tantos nomes, alguns ainda mais apropriados. 60


Mesmo com as limitações expostas neste texto (é meu dever fazê-lo), a exposição organiza um corpo de obras valioso, trazendo às claras cruzamentos que em outras situações poderiam passar despercebidos. E esse foco nos cruzamentos, como vimos, é aqui a grande potência.

Nicholas Andueza é doutorando em Comunicação e Cultura/UFRJ, com especialização em cinema, corpo e imagem de arquivo. Mestre em Comunicação Social/PUC-Rio(2016).

ART AND CINEMA • FONDATION L’HERMITAGE • SUIÇA • 4/9/2020 A 3/01/2021


LEE DO mundo


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krasner


POR LUCÍA AGUIRRE Nascida no Brooklyn em uma família de imigrantes judeus ortodoxos, Lee Krasner decidiu ser artista aos 14 anos de idade. Após anos de esforço em sua formação artística, Lee se tornou referência e trunfo no incipiente Expressionismo Abstrato, movimento multifacetado que fez de Nova York o centro da arte do pós-guerra. Em 1942, a obra da artista foi incluída na exposição de pinturas americanas e francesas realizada na galeria McMillen Inc., juntamente com a dos amigos Willem de Kooning e Stuart Davis. O único dos artistas participantes dessa exposição que Lee não conhecia era Jackson Pollock, a quem visitou seu estúdio e com quem se casou em 1945. Ao contrário de muitos de seus contemporâneos, Lee Krasner rejeitou a ideia de elaborar uma “assinatura icônica”, algo que lhe parecia muito rígido. A artista trabalhava em ciclos e buscava continuamente novos meios de expressão autêntica, mesmo em seus momentos mais difíceis, como aquele que se seguiu à morte repentina de Pollock, em um acidente de carro, em 1956. Depois da morte de vários entes queridos nos anos 1950, e após um período de luto com uma produção em tons ocres, nos anos 1960, Lee permitiu que a luz e a cor explodissem novamente em sua pintura. 64

Bald Eagle, 1955. Na pág. anterior. Shattered Color, 1954, © The Pollock-Krasner Foundation. © 2017 Christie’s Images

MUSEU GUGGENHEIM BILBAO APRESENTA RETROSPECTIVA DEDICADA À ARTISTA NOVAIORQUINA LEE KRASNER, UMA PIONEIRA DO EXPRESSIONISMO ABSTRATO. O PÚBLICO VERÁ A CONSTANTE REINVENÇÃO E EXPLORAÇÃO QUE CARACTERIZA A OBRA DA ARTISTA AO LONGO DE SUA CARREIRA DE PRIMEIROS DOS ANOS: CINQUENTA AUTORRETRATOS E DESENHOS DO NATURAL ÀS OBRAS EXUBERANTES E MONUMENTAIS DOS ANOS 1960



O nome original da artista é Lena Krassner, mas, em 1922, ela adotou o nome mais americano “Lenore”, que, por sua vez, se tornou “Lee” quando ela estudou na Cooper Union Women’s Art School. Desse período inicial, há três autorretratos. Um deles pintou no verão de 1928, na casa de seus pais em Greenlawn, Long Island, para o qual pregou um espelho em uma árvore no jardim e capturou a própria imagem em um fundo arborizado. Aos 19 anos, graduada, e depois de um breve período na Art Students League, preparou-se para ingressar na prestigiosa National Academy of , c. Design, na esperança de que seu 1928 permitisse o acesso à aula de desenho natural. Embora, em princípio, a academia se recusasse a acreditar que o retrato foi feito no jardim, considerando que era um retrato de interior com a floresta adicionada posteriormente, Lee protestou e conseguiu a admissão. Na Academia, a artista lutaria contra sua abordagem tradicional e criticaria seu “ambiente estéril e fechado de [...] mediocridade”. DESENHOS DO NATURAL A Grande Depressão da década de 1930 forçou Lee Krasner a deixar a National Academy e se matricular em um curso de ensino no City College de Nova York, onde o treinamento era gratuito. Paralelamente, passou a frequentar aulas de desenho vivo, inspirados em “mestres” renascentistas como Michelangelo. Os quatro (1933) mostram a desinibição da artista em relação à nudez, que usava carvão para sublinhar a musculatura do corpo do modelo. Em 1937, obteve uma bolsa para estudar na Escola Hans Hofmann. Hofmann foi um modernista alemão que viveu e trabalhou em Paris e conheceu Picasso e Matisse, que para Lee eram “deuses”. Os desenhos dessa época mostram as primeiras incursões da pintora na abstração. 66

Self-Portrait, c. 1928. © The Pollock-Krasner Foundation. Courtesy the Jewish Museum, New York.

DE LENA A LEE



Abstract nº 2, 1947. © The Pollock-Krasner Foundation.

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VITRINES PARA O SERVIÇO DE GUERRA Após a crise econômica de 1929, o presidente Franklin D. Roosevelt lançou uma série de programas para reconstruir a economia americana. Em 1935, ele criou a Works Progress Administration (WPA) e o Federal Art Project (FAP), que ofereceram apoio a artistas e financiaram projetos. Ao longo da década de 1930, Lee colaborou em alguns deles e, em 1942, foi contratada para supervisionar o projeto e a montagem de vinte vitrines de lojas de departamentos em Manhattan e Brooklyn, anunciando cursos de treinamento para a guerra. A artista conheceu Jackson Pollock e o designou para sua equipe de projeto. Lee decidiu fotografar os cursos e integrar as , juntamente com uma tipografia dinâmica imagens em seus e referências abstratas que sugerem seus interesses artísticos. PEQUENAS IMAGENS No outono de 1945, Krasner se mudou para Palm Springs, em uma fazenda adquirida graças ao apoio financeiro de Peggy Guggenheim a Pollock, em um momento em que estava superando um impasse artístico: a morte do pai dela no ano anterior a impedia de pintar outra coisa senão o que ela chama de suas “placas cinzentas”. Logo, essa imersão na natureza deu origem a um novo tipo de iconografia e a artista começou a trabalhar em suas “Pequenas imagens”, que são abstrações vibrantes, como joias. Em algumas delas, aplicava camadas densas de tinta com uma espátula, que depois trabalhava com pincel duro, enquanto em outros criou uma trama de arabescos com tinta rebaixada com aguarrás. Exemplos dessas obras são (1947), (1947) e (1947). STABLE GALLERY Depois de suas “Pequenas imagens”, em 1950, Lee Krasner começou a trabalhar em sua primeira exposição individual, inaugurada na Galeria Betty Parsons em outubro de 1951. Para a ocasião, criou 14 trabalhos abstratos geométricos, em cores suaves e luminosas. Receberam boas críticas, mas não foram vendidos. Decepcionada, a artista começou a trabalhar uma série de desenhos em preto e branco, que pregava nas paredes do estúdio do chão ao teto, na esperança de surgirem uma nova orientação. Um dia, ela entrou no estúdio, decidiu que “não os aguentava” e os quebrou. Incapaz de voltar ao estúdio por várias semanas, quando o fez, ela descobriu, para surpresa dela, que havia “um monte de coisas que estavam começando a me interessar”. 69


Os restos de papéis rasgados foram o ponto de partida para uma série de colagens, que ela montou em 12 das telas da exposição de Betty Parsons Gallery. Ela incorporou folhas secas, pedaços rasgados de jornal e papel fotográfico, bem como alguns dos desenhos de Pollock que ele descartou, adicionando algumas pinceladas de tinta. Todas essas grandes (1954), obras, como (1955), e (1955) foram expostas em setembro de 1955, na Stable Gallery, de Eleanor Ward. PROFECIA No verão de 1956, em um momento complicado em seu relacionamento com , uma obra Pollock, Krasner pintou que não se assemelhava a nenhuma das anteriores, e na qual as formas onduladas e carnudas dominam, emoldurada em preto e com toques de rosa que marcam a iconografia corporal. A própria artista comentou que a pintura “a perturbava muito” e permaneceu no cavalete quando ela partiu sozinha em viagem à França. Em 12 de agosto, ela recebeu um telefonema informando que Pollock morrera em um acidente de trânsito. Algumas semanas depois, Lee pegou os pincéis e criou três trabalhos que deram continuidade à série: , e . Essas telas parecem ser paisagens agitadas por forças psicológicas sombrias. Questionada sobre sua decisão de começar a pintar em meio à dor, as palavras da artista foram: “Pintar não é algo estranho à vida. É a mesma coisa. É como se me perguntassem se quero viver. Minha resposta é sim, e é por isso que pinto”. 70


Em sentido horário: Desert Moon, 1955, Blue Level, 1955, Profechy, 1956 e Assault on the Solar Plexus, 1961. © The Pollock-Krasner Foundation.

VIAGENS NOTURNAS Em 1957, Lee decidiu se mudar para o estúdio de Pollock no celeiro de Springs, o que lhe permitiu trabalhar em obras de dimensões até então implantáveis, pregando as telas sem moldura diretamente na parede. Por sofrer de insônia crônica na época, ela trabalhou à noite e decidiu restringir sua paleta ao branco e à terra torrada, já que não gostava de aplicar cor com luz artificial. A conferiu às escolha do tom terroso obras dela um carácter orgânico, enquanto as finas camadas de tinta fazem com que se mantenha fiel ao seu “impulso original”. Seu amigo, o poeta Richard Howard, batizou essas obras de , e a própria Lee explicou que alguns títulos, como (1961), eram “embaraçosamente realistas [...]. Tive um desentendimento com o Greenberg, minha mãe tinha morrido [...]. Foi um momento muito difícil”. O choque a que se refere se deveu à decisão do influente crítico de arte, Clement Greenberg, de cancelar uma exposição de Lee ele que estava organizando por não gostar da direção que a pintura dela tomou. Em vez de abandonar a série, a pintora se lançou ao público e expôs as obras resultantes na Howard Wise Gallery, em 1960 e 1962, tendo uma recepção notável. 71




Picasso and Lee Miller in his studio, Paris, 1944, Š Lee Miller Archives England 2020. 74


SÉRIE PRIMÁRIA No início dos anos 1960, Lee permitiu que as cores brilhassem novamente em suas pinturas. Como em suas , (1963) tem deu lugar a uma paleta reduzida, mas a cor um carmim alizarina mais brilhante. Quando a pintora quebrou o braço direito, aprendeu a manusear a mão esquerda, aplicando tinta diretamente do tubo e usando os dedos da mão direita para direcionar os movimentos. Desse modo, (1963) criou obras mais táteis, como e , (1964). Nos anos seguintes, o gesto de Lee se tornou mais solto, mais caligráfico, com formas ousadas em tons dissonantes. As cores que Lee usou nessa série são exuberantes, referindo-se a Matisse, seu herói artístico, que havia declarado que, “com a cor, você obtém uma energia que se diria que vem da bruxaria”. A confiança que a artista demonstrou nessa época talvez se deva à exposição individual organizada pelo curador Bryan Robertson, na Whitechapel Gallery, de Londres, em 1965. Foi a primeira exposição dela em instituição pública e recebeu críticas muito positivas. PALINGÊNESIS No início dos anos 1970, Lee evoluiu das formas biomórficas suaves de seus trabalhos posteriores para composições abstratas com mais elementos recortados. Ganhou reputação como colorista com a exposição de 1955 na Stable Gallery, e sua mais , mas, nesse momento, seu recente trabalho tinha uma energia mais descontraída. Como a historiadora da arte Cindy Nemser observou, essas novas pinturas parecem ser “expansivas, embora contidas [...] nobres e lentas”.

Acima: Another Storm, 1963. À esquerda: Palingenesis, 1971 © The Pollock-Krasner Foundation 75


Apresentadas pela primeira vez na Marlborough-Gerson Gallery, as pinturas ocuparam lugar de destaque na exposição com curadoria de Marcia Tucker, e realizada no Whitney Museum of American Art, em 1973; foi a primeira grande individual de seu trabalho em uma instituição pública em Nova York, sua cidade natal. As pinturas atestam a força criativa de Lee, mesmo no último estágio de sua (1971) leva o título da palavra grega que carreira. significa “renascer”, conceito fundamental na prática da artista. Como ela explicou em entrevista à curadora Barbara Rose, “evolução, crescimento e mudança continuam. Mudança é vida”.

Em 1974, Lee Krasner encontrou uma velha pasta com desenhos feitos por ela quando estudava na escola de Hans Hofmann, e decidiu usá-los como matéria-prima para uma nova série de colagens. Elas foram exibidas na Pace Gallery, em 1977, sob o , com título coletivo cada obra intitulada com uma forma verbal diferente, como , e . Numerosas críticas enfocaram o uso engenhoso de uma obra anterior com tamanha carga emocional, e a Art in America comentou que “a energia [dos desenhos] é recarregada pela energia desse retrabalho, que, por um lado, os idolatra, como tantos outros troféus, e, por outro lado, os rejeita como parte de um passado medíocre.” Lee Krasner faleceu em 19 de junho de 1984, recebendo no final de sua vida o reconhecimento que tanto merecia. No entanto, ela própria admitiu que, em certos aspectos, o fato de ter sido ignorada foi uma “bênção”. Livre de grande pressão crítica e do controle de uma camarilha de negociantes e colecionadores, Lee criou as obras que se viu impulsionada a fazer, fluindo como ela desejava a cada nova fase, nunca sendo forçada a se repetir.

Lucía Aguirre é historiadora de arte, curadora do Guggenheim Museum Bilbao e técnica gestora de Museus e Pinacotecas na Italia.

LEE KRASNER: LIVING COLOUR • GUGGENHEIM MUSEUM BILBAO • ESPANHA • 18/9/2020 A 10/01/2021

Through Blue, 1963. © The Pollock-Krasner Foundation.

ONZE MANEIRAS



The Primal Wing, 1933.

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AGNES pelton FLASHback



AGNES PELTON FOI UMA SIMBOLISTA VISIONÁRIA, QUE DESCREVIA A REALIDADE ESPIRITUAL QUE ELA VIVIA EM MOMENTOS DE QUIETUDE MEDITATIVA. A MOSTRA DESERT TRANSCENDENTALIST, NO WHITNEY MUSEUM DE NOVA YORK, OFERECE UMA IMPORTANTE OPORTUNIDADE PARA EXPERIMENTAR O TRABALHO DESTA ARTISTA, POUCO ANTES CONHECIDA, E CONTEMPLAR SEUS ESFORÇOS PARA ABRIR “JANELAS DE ILUMINAÇÃO” AO MUNDO ESPIRITUAL

Agnes Pelton (1881-1961) se esforçou para retratar um reino espiritual além das aparências materiais. Sua descoberta artística veio em meados da década de 1920, em uma série de pinturas abstratas que retratam temas incorpóreos, como ar, luz, água e som. Nas décadas que se seguiram, quando começou a mergulhar no estudo das filosofias esotéricas e ocultas, seu imaginário evoluiu. Ela combinou o poder emotivo de formas abstratas etéreas, como véus delicados e cintilantes, com cores e símbolos místicos para representar a união com a “Realidade Divina” que ela experimentava em sonhos e meditação. Certa vez, ela descreveu seu processo de aplicar meticulosamente camadas finas de pigmento para criar tons luminosos como “pintar com a asa de uma mariposa e com música em vez de tinta”. Agnes recebeu pouco incentivo da crítica para suas pinturas abstratas durante a vida, talvez por estar longe dos centros da arte durante a maior parte de sua carreira, primeiro no relativamente isolado East End de Long Island e depois no deserto do sul da Califórnia. Para ganhar uma renda modesta, pintava retratos e paisagens realistas que vendia para amigos e turistas. Seu maior apoio veio de artistas do breve Grupo de Pintura Transcendental do Novo México (ativo entre 1938 e 1941), que compartilhava sua crença de que a arte abstrata poderia ser um veículo para transportar os espectadores para reinos iluminados. 80

Departure, 1952.

POR GILBERT VICARIO



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Room Decoration in Purple and Gray, 1917. The Wolfsonian—Florida International University, Miami Beach.

ANOS 1920 Agnes descreveu o mural , de 1917, como expressão de “crepúsculo em e a beleza poética da noite.” Foi o culminar de suas “pinturas imaginativas”, um grupo de obras que retratou figuras femininas em comunhão com a natureza em paisagens oníricas. Agnes alcançou algum sucesso em Nova York na década de 1910 com elas, mostrando duas na feira Armory Show, em 1913, e em uma coletiva seminal na prestigiosa Galeria Knoedler, em 1917. A artista se mudou para Water Mill, Nova York, em 1921, logo após a morte da mãe, com quem viveu a maior parte da vida. Em 1926, as linhas de forma livre no fundo da composição se tornariam os elementos centrais de suas pinturas abstratas. Temas aquáticos aparecem com frequência na obra (1926), que de Agnes. Ela descreveu apresenta cascatas de água e uma névoa opalescente, como “uma emanação de pensamento puro”. O título original da pintura, , sugere as energias benevolentes que animam e protegem a vida. Não tendo forma própria, mas assumindo a forma de seu recipiente, a água era o símbolo arquetípico de abnegação e aquiescência. Para a artista, a capacidade de a água mudar de forma significava transformação, crescimento psíquico e união espiritual. 83


The Fountains, 1926.

O tema de (1926), a primeira pintura totalmente abstrata da pintora, é o ar, cujas correntes se aglutinam em faixas circulares de cor. Como muitos artistas de sua geração, Agnes viu uma conexão entre a cor e a experiência da música. A música desempenhou um papel significativo no início da vida da artista. Sua mãe dirigia a Pelton School of Music, no Brooklyn, e Agnes estudou piano durante a adolescência. Ela escreveu em seu diário que o dinamismo de resultou da “interação de diferentes vibrações de cores – cores que chamam a atenção sucessivamente como sequência de sons na música”. 84


Being, 1926.

Estrelas se tornaram um motivo-chave em sua na obra no final dos anos 1920, concomitantemente com sua intensa investigação da prática espiritual conhecida como Agni Yoga, fundada em 1920 pelo teosofista russo Nicholas Roerich e Helena Roerich. No Agni Yoga, as estrelas são guias para o reino distante da iluminação espiritual, símbolos do conhecimento divino. Agnes escreveu sobre as estrelas como “mensageiros” da “luz transcendental, respondendo através da escuridão aos picos crescentes de aspiração”.

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Acima: Sea Change, 1931. À direita: Ahmi in Egypt, 1931. Whitney Museum of American Art, New York.

ANOS 1930 (1931) é retratado o movimento da água, que a artista Em considerou uma metáfora para a transformação espiritual e a renúncia ao ego. Como muitos artistas de sua geração, ela foi profundamente influenciada por Wassily Kandinsky e seu livro de 1911, . Suas teorias afirmavam que a própria crença na espiritualidade era inerente à arte, bem como a necessidade de dispensar o realismo em favor da pintura daquilo que o artista russo chamou de “vibrações da alma”. Como Kandinsky, Agnes acreditava que a arte comunica as energias universais do mundo visível e invisível por meio da cor, que funciona como “voz” ou uma “vibração” que preenche a consciência do espectador. Em seu diário, ela descreveu o azul nesta pintura como uma “cor emotiva de corpo astral e onda astral” e o azul claro como um “azul místico. . . astral e espiritual.” Os sonhos e visões que Agnes retratou em suas pinturas geralmente assumiam a forma narrativa. Em Ahmi no Egito (1931), um cisne branco – um símbolo tradicional para o corpo feminino – navega em um rio da vida vermelho-sangue, do caos escuro das preocupações terrenas à transcendência e iluminação final, representada pela estrela à distância. 86


Sem titulo . À esquerda: E Deus fez a mulher.


Montanhas, para Agnes, simbolizavam o crescimento pessoal. Em (1932), ela ressalta seu poder transformador, retratando-as como hospedeiros de chamas ascendentes, que eram centrais para Agni Yoga, uma disciplina espiritual baseada no fogo como uma metáfora para a poderosa força interior desmaterializada que pode guiar cada indivíduo para uma consciência superior. Inspirada por seu estudo da disciplina, Agnes incluiu imagens de fogo em várias de suas obras para significar o “fogo criativo do Universo” dentro de si mesma e nos outros. Como ela notou em seu diário, “No mundo do fogo, percebi a beleza no abstrato como uma força viva”. (1932) vários dias depois de se mudar de Long Agnes criou Island para Cathedral City, Califórnia, uma pequena comunidade perto de Palm Springs, onde ela testemunhou uma tempestade de areia cuja falta de forma a fascinou. Ela descreveu a imagem central da pintura como um “pálido, céu azul claro” rodeado por nuvens “vistas através da areia”. O arco-íris abaixo dessa imagem simboliza a benevolência essencial que ela viu no universo. Para o resto da vida, Agnes derivou inspiração da vasta extensão do deserto. (1933), retrata a força feminina divina do universo, ou Mãe do Mundo, como é conhecida na Teosofia. Agnes retrata a figura como um “Anjo Poderoso” em um trono de jade, circundado por um brilho etéreo. Para ela, a imagem era uma presença viva à qual ela poderia recorrer em busca de orientação.

Mother of Silence, 1933. À direita: Sand Storm, 1932. 88



Em (1934), um brilho interno ilumina uma urna de cerâmica, usada em muitas religiões para conter as cinzas dos mortos. A artista originalmente chamou a obra de , sugerindo que essa luz simboliza a unidade com o fogo divino na vida após a morte. Como muitas das pinturas de Agnes, funciona como um ícone cristão ortodoxo, oferecendo aos espectadores um vislumbre do reino divino que aguarda aqueles que buscam a iluminação enquanto estão na é o nome comum para o serviço religioso cristão anglicano terra. realizado no final da tarde ou início da noite que envolve canto e música. A referência de Agnes em seu título reforça a conexão da pintura com a oração e a vida após a morte. (1938), inicialmente intitulada , a forma triangular Na pintura, projetando-se da paisagem congelada e apontando para uma estrela brilhante sinaliza um movimento espiritual de problemas mundanos em direção a um plano superior de consciência. A imagem reflete o entendimento de Agnes de que as lutas na terra devem ser transcendidas para atingir a iluminação divina. ANOS 1940 (1941) como “uma espécie de Progresso do Peregrino’”, um Agnes pintou guia para os espectadores desde o caos do mundo terreno até o reino da iluminação. Para alcançar a “montanha da aspiração” a distância, era preciso viajar “através da escuridão e da opressão, através de um deserto pedregoso. . . Através de um arco simbólico é vista uma montanha de visão, acima da qual se abrem gradualmente, janelas de iluminação.”

Even Song, 1934

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Future, 1941


Resurgence, 1938


Flutuando no espaço liminar entre a terra e o céu, os quatro retângulos brilhantes na imagem representam quartos iluminados oferecendo consolo e conforto. Para entrar neles, primeiro era necessário passar por “pilares não pesados, mas sólidos, de formas parecidas com pedras”. – 1943 – é uma homenagem ao pai, que morreu de overdose de morfina quando a artista tinha dez anos. A pintura simboliza seu renascimento iluminado, a forma retangular escura de seu corpo na parte inferior da tela convocada para despertar para uma nova vida por uma “flor de trombeta dourada... emitindo luz e som.” No meio da imagem, entre as estrelas luminosas e a distante “montanha da liberação”, uma forma horizontal se eleva, simbolizando as “tragédias passadas” de seu pai. Como Agnes escreveu em seu diário, “As estrelas aparecem, e a figura enterrada abaixo da montanha roxa responde à luz de um novo dia”. No centro de várias das últimas obras de Agnes – (1950), (1952) e (1960-1961) – está a forma do círculo, uma forma sem começo e sem fim. Tem sido frequentemente usado por artistas para sugerir infinito e harmonia autocontida. Não é de surpreender, dada a crença de Agnes de que a arte deve transmitir “a interpretação das possibilidades superiores de visão”, que ela incorporasse , onde um círculos em suas composições, como em deles aparece como uma luz calma no centro de uma tempestade. Agnes morreu em 1961, aos 79 anos. Em 2013, foi fundada a Agnes Pelton Society para promover a vida e o legado da artista.

AGNES PELTON: DESERT TRANSCENDENTALIST • WHITNEY MUSEUM • NOVA YORK • 13/3 A 01/11/2020

Gilbert Vicario é vice-Diretor de Assuntos Curatoriais e Curador-chefe da Família Selig no Museu de Arte de Phoenix.

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Awakening (Memory of Father), 1943

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REFlexo

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JACOB lawrence



POR ELISABETH HUTTON TURNER

– Jacob Lawrence (1954). Pela primeira vez, em mais de 60 anos, esta exposição reúne os painéis de (1954-1956), uma série importante, embora subestimada, do célebre artista moderno Jacob Lawrence. Originalmente concebida como 60 obras, abrangendo temas desde a colonização europeia até a Primeira Guerra Mundial, a série resultou em trinta pinturas em têmpera em pequena escala que representam momentos históricos familiares e desconhecidos da história dos Estados Unidos, de 1775 a 1817 – desde o famoso discurso de “liberdade”, de Patrick Henry, até a expansão para o Oeste. Em seu retrato ambicioso desses episódios, Jacob põe em primeiro plano as experiências de mulheres e negros. O estilo angular e dinâmico de suas imagens – compactadas espacialmente para efeito máximo – enfatiza o conflito violento e o sacrifício. Como um pintor negro socialmente engajado e abraçado por críticos de esquerda, Lawrence viveu e trabalhou sob a vigilância do FBI. Além disso, em maio de 1954, a decisão da Suprema Corte exigiu a dessegregação das escolas públicas, catalisando o movimento pelos direitos civis. Nesse contexto, o projeto de Lawrence liga as lutas americanas passadas e presentes que ainda ressoam poderosamente hoje. 96

We have no property! We have no wives! No children! We have no city! No country! — petition of many slaves, 1773 , Panel 5, 1955. © The Jacob and Gwendolyn Knight Lawrence Foundation, Seattle/Artists Rights Society (ARS), New York. Foto by Bob Packert/PEM.

MET MUSEUM APRESENTA UMA SÉRIE POUCO VISTA MODERNISTA ICÔNICO DO PINTURAS DE AMERICANO JACOB LAWRENCE. A SÉRIE ABRANGE TEMAS DA COLONIZAÇÃO EUROPEIA À PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL. A INTENÇÃO ERA RETRATAR, NAS PALAVRAS DO ARTISTA, "AS LUTAS DE UM POVO PARA CRIAR UMA NAÇÃO E SUA TENTATIVA DE CONSTRUIR UMA DEMOCRACIA”



Massacre in Boston , Panel 2, 1954-55. © The Jacob and Gwendolyn Knight Lawrence Foundation, Seattle/Artists Rights Society (ARS), New York. Photo by Bob Packert/PEM

Em uma noite de inverno, em 1770, um esquadrão de soldados britânicos abriu fogo contra um grupo agitado de colonos do lado de fora da Alfândega de Boston. Ressentidos com as restrições da Coroa aos seus direitos, eles zombaram e atiraram pedras nos casacas vermelhas. O tiroteio estourou e cinco americanos morreram na confusão. A eletrizante figuração de Lawrence colocou em primeiro plano Crispus Attucks, um marinheiro de ascendência africana e , que escapou da escravidão para se juntar à causa dos patriotas. Ele se tornou o primeiro mártir da Revolução Americana. Lawrence imaginou o herói agachado no centro da composição, segurando o peito e vomitando sangue. O artista não citou Attucks pelo nome, mas a figura histórica foi bem documentada em um arquivo da Biblioteca Schomburg, no Harlem, onde Lawrence conduziu suas pesquisas. Paul Revere (1954). Na noite de 18 de abril de 1775, Paul Revere, um ourives e revolucionário, escapou por pouco da captura enquanto cavalgava pelas linhas inimigas pelo leste de Massachusetts para avisar aos residentes que as tropas britânicas estavam 98


Acima: Defeat, Panel 9, 1954 e I alarmed almost every house till I got to Lexington.—Paul Revere , Panel 4, 1954. © The Jacob and Gwendolyn Knight Lawrence Foundation, Seattle/ARS, New York.

chegando. Revere relembrou os eventos em uma carta de 1798 da qual Lawrence extraiu seu título. Nesse painel, o artista representou o momento em que o patriota fez uma pausa para sussurrar informações militares ao capitão dos milicianos. Uma capa negra com o cavalo galopando no centro da cena frenética camufla Revere e seus movimentos clandestinos, enquanto várias figuras empunham armas dramaticamente. Quando o general George Washington não conseguiu reconquistar a Filadélfia dos britânicos, em setembro de 1777, ele liderou o exército continental em retirada para um acampamento em Valley Forge, a noroeste da cidade. Neste painel, Lawrence explora o preço que esses contratempos militares e o clima brutal de inverno cobraram das tropas americanas durante sua estada de seis meses. As figuras enfaixadas e ensanguentadas no fundo – emolduradas por baionetas descartadas – se afastam do símbolo de sua derrota violenta, um valioso cavalo de guerra, respeitosamente coberto enquanto seu sangue se esvai. Em sua finalidade enfática, o título de uma palavra de Lawrence reforça esse ponto baixo na guerra.

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Peace , Panel 26, 1956, © The Jacob and Gwendolyn Knight Lawrence Foundation, Seattle/Artists Rights Society (ARS), New York.



And a Woman Mans a Cannon , Panel 12, 1955. Abaixo: We crossed the River at McKonkey’s Ferry 9 miles above Trenton . . . Panel 10, 1954 © The Jacob and Gwendolyn Knight Lawrence Foundation, Seattle/ARS, New York.

Lawrence contou com as observações em primeira mão do assessor militar do general George Washington, Tench Tilghman, para descrever a experiência precária dos homens que cruzaram o rio Delaware na noite de 25 de dezembro de 1776. Seu ataque surpresa às forças de Hessian em Trenton, Nova Jersey, levou a um ponto de inflexão na luta revolucionária. Lawrence reinventou a cena canônica como três pequenos barcos densamente lotados, lançados por águas agitadas de inverno. Fundidos em planos interligados, as figuras fortemente camufladas parecem congeladas em um estado agitado. Ao privilegiar homens desconhecidos, Lawrence cria um forte contraste com a narrativa popular que celebra Washington à frente da façanha. , Cochran Corbin lutou com o marido canhoneiro na Batalha de Fort Washington, no que hoje é Upper Manhattan. Tomando o lugar do marido no canhão, ela atirou bravamente até ser ferida e capturada. Corbin depois se juntou ao “Regimento Inválido”, em West Point. Lutou como uma veterana deficiente, vivendo a maior parte de sua vida na pobreza. Em 1926, tornou-se a primeira mulher enterrada com todas as honras militares em West Point. Mais de 50 anos depois, o Conselho da Cidade de Nova York nomeou em sua homenagem uma praça e dirigiu de lá até o local da batalha – ainda chamado de Fort Tryon Park, em homenagem ao último governador colonial britânico. Destacando seu interesse pelo papel das mulheres na história americana, Lawrence apresenta Corbin como uma heroína comandante, ancorando o flanco esquerdo dos soldados em disparo, enquanto o marido morto está a seus pés. 102


Georges Seurat, Un dimanche après-midi sur l'île de la Grande Jatte, Etude, 1884 © The Metropolitan Museum of Art, Dist. RMN-Grand Palais / image of the MMA 103


Henri Matisse, Intérieur à la fillette (La Lecture), 1905-1906 New York, The Museum of Modern Art, don de Mr. and Mrs. David Rockefeller, 1991. Foto © Paige Knight © Succession H. Matisse

In all your intercourse with the natives, treat them in the most friendly and conciliatory manner which their own conduct will admit . . . Panel 18, 1956. © The Jacob and Gwendolyn Knight Lawrence Foundation, Seattle/ARS, New York.


Victory and Defeat , Panel 13, 1955. Foto: Bob Packert/PEM

. Neste painel impressionante, Lawrence retrata uma parede impenetrável de 22 balas de canhão pretas para simbolizar o cerco de 22 dias em Yorktown, Virgínia, no qual as tropas americanas forçaram os britânicos que ocupavam a cidade a se render. Essa batalha, celebrada pela liderança heroica de Alexander Hamilton e do Marquês de Lafayette, efetivamente encerrou a Revolução Americana. A parede de Lawrence também serve como pano de fundo para a troca de espadas entre dois delegados em nome de George Washington e do general britânico Charles Cornwallis. O artista se concentrou nessa transferência iminente de poder e resolução pacífica criando um espaço entre o casaca vermelha segurando a espada e a mão aberta de um patriota invisível, emoldurados contra um céu cheio de nuvens que simboliza um futuro promissor.

O título deste painel vem de uma carta que o presidente Thomas Jefferson escreveu ao capitão Meriwether Lewis e ao segundotenente William Clark, que lideravam uma expedição pelo Oeste americano. Apesar do desprezo geral de Jefferson pelos direitos indígenas, ele pediu que os exploradores abordassem os povos indígenas com respeito cauteloso – para fazer amizade com eles, tentar desenvolver relações comerciais e coletar artefatos. A pintura apresenta a tradutora e guia da expedição, uma mulher, Lemhi Shoshone, chamada Sacagawea, em um momento de reconhecimento que Clark registrou em um diário em 13 de agosto de 1805. Depois que o grupo encontrou os Shoshone (na atual Idaho), Sacagawea reconheceu seu irmão, o chefe Cameahwait, de quem ela estava separada desde a infância. Lawrence retratou os irmãos vestidos de vermelho e azul vibrantes, imaginando uma reunião terna ao unir suas formas colunares fortes.

Elisabeth Turner é historiadora de arte, curadora e autora do livro Jacob Lawrence: the migration series.

JACOB LAWRENCE: THE AMERICAN STRUGGLE • MET • NOVA YORK • 29/8 A 01/11/2020


Floating head, Mary Taylor, New York, 1933. © Lee Miller Archives England 2020.

ALTO relevo

ELIZABETH


miller

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LEE


ELIZABETH "LEE" MILLER FOI UMA FOTÓGRAFA NOTÁVEL E UMA MULHER FORTE E MODERNA. COMO MUSA, ELA INFLUENCIOU O SURREALISTA MAN RAY - E O DEIXOU EM FAVOR DE SUA PRÓPRIA CARREIRA. MILLER NÃO SE PREOCUPOU COM CONVENÇÕES, SEJA PRIVADA OU PROFISSIONALMENTE, E SEGUIU SEU PRÓPRIO CAMINHO COMO ARTISTA, FOTÓGRAFA E REPÓRTER DE GUERRA. SUAS FOTOS DE CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO, QUE DOCUMENTAM O HORROR E A LOUCURA DA GUERRA COM UMA VISÃO SURREALISTA, SÃO INESQUECÍVEIS

POR DRIKA DE OLIVEIRA

Reaberto em maio de 2020, o Museum fur Gestaltung-Zurich apresenta a exposição . Com curadoria de Karin Gimmi e Daniel Blochwitz, a mostra ficará aberta até janeiro de 2021, no prédio Toni-Areal. É a primeira vez que o trabalho de Lee Miller é apresentado na Suíça. O público poderá ver cerca de 200 fotografias da trajetória de Lee, desde as imagens mais famosas de seu tempo, como , àquelas descobertas no modelo da revista sótão da casa em que morava somente após seu falecimento. Estas últimas fazem parte de um acervo com aproximadamente 60 mil documentos fotográficos produzidos por Lee Miller e, mais tarde, escondidos por ela como algo que se quer esquecer. Talvez por ter visto muito de perto aquilo que fotografou, Lee Miller quis perder algo de vista. Ela contava que as fotografias tinham sido destruídas durante a Segunda Guerra. As fotos foram descobertas por Antony Penrose, filho único de Lee Miller, quando ele já era adulto. Ao descobri-las no meio de câmeras, cartas, manuscritos e alguns objetos pessoais, como o uniforme do exército americano, ele redescobriu também a própria mãe. Hoje, Antony Penrose é diretor do , um arquivo privado em Londres que 108


Fire masks, London, 1941. Š Lee Miller Archives England 2020.


David E. Scherman, dressed for war, London, 1942. © Lee Miller Archives England 2020.

se dedica a conservar, catalogar e publicar as obras de Lee Miller e outros artistas ligados a ela. A casa é aberta ao público: um esforço consciente de preservação da obra de Lee, por meio não só da conservação física do acervo, mas, principalmente, por torná-lo acessível. Lee Miller nasceu em 1907, em Poughkeepsie, Nova York. , Com apenas 19 anos, foi modelo da revista de moda a convite de Condé Montrose Nast, fundador da conhecida editora Conde Nast. Nos anos 1920, ela foi capa de uma das publicações mais importantes do período , ilustrada pelo artista George Lepape. À altura de grandes musas do cinema silencioso, como Greta Garbo e Clara Bow, Lee Miller rapidamente se tornou uma das modelos mais bemsucedidas da época. Ela também trabalhou com fotógrafos renomados como, Edward Steichen e Nickolas Muray, e teve incontáveis aparições em revistas de moda. Em 1928, em virtude de uma foto dela publicada em um anúncio de absorventes menstruais, Lee Miller foi muito criticada. Na época, a atribuição de uma mulher “decente” a um anúncio como esse – e o próprio assunto da menstruação em si – era (ainda é) um enorme tabu. Como em um impulso de libertação de sua própria imagem, associada à idealização do corpo de mulher (e não à fisiologia desse corpo), Lee Miller deixou a carreira de modelo para estudar arte. 110




Lee Miller e Man-Ray, Retrato solarizado de Lee Miller © Lee Miller Archives England 2020.

Já no fim dos anos 1930, ela se mudou para Paris e abriu o próprio estúdio, tornando-se uma fotógrafa de moda e realizando trabalhos relevantes dentro do movimento surrealista. Em Paris, Lee Miller conheceu o pintor e fotógrafo surrealista Man Ray, com quem trabalhou por alguns anos, além de se envolver afetivamente com ele. A relação com Man Ray foi um marco na carreira de Lee Miller. Ela foi modelo principal dele em diversas fotografias e, juntos, redescobriram a técnica da “solarização”, ou “efeito ”, inventado em 1862 pelo francês Armand Sabattier. A solarização consiste na inversão tonal de certas áreas da fotografia e é obtida por meio de uma rápida exposição à luz durante o processo de revelação. O resultado é uma foto que está entre o negativo e o positivo: há um efeito de descolamento da imagem dela mesma por meio de uma linha luminosa, uma espécie de contraluz químico. Muito embora a solarização tenha sido descoberta junto a Lee Miller, a técnica é mais atribuída ao nome de Man Ray – algo bastante comum quando se revisita a história de mulheres que trabalharam com homens célebres. Lee Miller se debruçou mais sobre o estilo surrealista. Em , por exemplo, a cabeça de Mary Taylor, uma jovem atriz da Broadway, parece não ter corpo. Ela está mergulhada em uma escuridão que delineia o rosto dela e a faz saltar da própria imagem. Há algo de fantasmagórico nessa mulher sem corpo, ela parece ter saído de um mar escuro, cujos detalhes não se consegue ver – como o nascimento de uma Vênus surrealista. O surrealismo revolve em torno de um inconsciente, do estranho que habita o familiar. Assim, por meio da fotografia, ligada a uma realidade material e visível, Lee Miller é capaz de revelar também o que não é visível. Por exemplo, em , vemos um corpo sem membros e sem cabeça: um recorte de corpo. Esse processo de fragmentação é um método dissociativo. Ele desliga as relações automáticas que fazemos sobre as coisas; e a colagem cria novas possibilidades de expandir o real. 113


Released prisoners in striped prison dress beside a heap of bones from bodies burned in the crematorium, KZ Buchenwald, 1945. © Lee Miller Archives England 2020.

Em 1944, Lee Miller se tornou correspondente do exército americano, sendo, assim, a primeira mulher a cobrir uma guerra para a revista . Como fotógrafa de guerra, ela registrou o “Dia D” e, muito provavelmente, foi a única mulher a cobrir a guerra da linha de frente na Europa. Lee Miller testemunhou o cerco de Saint-Malo, a libertação de Paris, os combates em Luxemburgo e na Alsácia, a ligação russo-americana em Torgau, a Blitz de Londres, a libertação dos campos de concentração de Buchenwald e Dachau. Em Buchenwald, Lee fotografou cinco ex-prisioneiros recém-libertados, em frente a um monte de cadáveres queimados pelos nazistas. No plano aberto da foto, Lee Miller testemunhou o silêncio daqueles corpos entulhados e a quase morte dos 114


Portrait of space, Ägypten, 1937. © Lee Miller Archives England 2020.

sobreviventes. Em maio de 2020, o fim da Segunda Guerra Mundial completou 75 anos, e sem os registros feitos por Lee Miller seria mais difícil refletir sobre a dimensão dessa catástrofe. No mesmo dia em que Hitler se suicidou no de Berlim, Lee Miller esteve na casa particular do ditador, em Munique. Lá, ela encenou um banho de libertação, naquela que viria a ser uma das imagens mais famosas de sua trajetória. Fotografada por David Scherman, ela, a mulher, ex-modelo, artista de vanguarda e fotógrafa de guerra, entrou nua na banheira de Hitler. As botas do uniforme de Lee, posicionadas à frente da banheira, sujas do chão de Dachau, mostram que aquele espaço foi ocupado pelas tropas americanas. Com a 115


Lee Miller in Hitler's Bath, 1945 by David E. Scherman. Š Lee Miller Archives England 2020.




Nude bent forward [thought to be Noma Rathner], Paris, 1930. © Lee Miller Archives England 2020.

cabeça e o olhar angulados, ela sugere um novo horizonte possível. O banho encenado por Lee Miller é uma espécie de batismo; pela imersão na água, ela lava a memória do ditador. A foto de Hitler, à esquerda do quadro, parece assistir à cena sem nada poder fazer. À direita, vemos uma escultura de traços grecoromanos, que também parece assistir ao banho. Entre Hitler, Lee Miller e a escultura, que formam o eixo da foto, há uma linha do tempo invertida. Um traço que vai do “belo” grego, atravessa o corpo de uma ex, branca de olhos claros, e culmina na modelo da imagem do nazismo, fundado na obsessão pela ideia da “beleza ariana”. A relação entre esses três elementos amplia o sentido da foto e evidencia mais que a derrota de Hitler: escancara mecanismos históricos de dominação do corpo – especialmente o corpo da mulher. Elizabeth Lee Miller não cabe neste texto. Sua trajetória é tão multifacetada que não seria justo reduzi-la a uma , fotógrafa de única categoria: de modelo da moda, fotógrafa surrealista, a primeira mulher correspondente de guerra da revista na Segunda Guerra Mundial e, mais tarde, de cozinha. Ao ler sobre ela, percebe-se o quanto a arte dela é relacionada aos nomes de homens com quem trabalhou, os quais, inevitavelmente, estão também citados neste texto. Edward Steichen, Nickolas Muray, George Lepape, Man Ray, Pablo Picasso, Jean Cocteau: eles certamente contribuíram muito como referência e inspiração para Lee Miller. Mas há que se fazer uma retificação histórica: a obra de Lee Miller é legítima por si só. Lee Miller é, sem dúvida, um dos grandes nomes do século 20.

Drika de Oliveira é diretora de conteúdos audiovisuais na Redes da Maré. Atua como fotógrafa e preservadora audiovisual na Cinemateca do MAMRio. É graduada em Comunicação Social-Cinema pela PUC-Rio. Membra da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA). 119


Pedro Américo

Glauco Rodrigues

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NOTAS do mercado

Os leilões da massa falida do Banco Santos foram o grande assunto no mercado de arte em setembro. No total de 10 pregões, 8 foram dedicados em maioria à obras de arte, com milhares de lotes. Os primeiros foram transmitidos ao vivo pelo canal de TV Arte1 com direito a efeitos musicais cheios de emoção e grandes disputas, que levaram os valores a patamares nunca vistos. De acordo com Acácio Lisboa, filho do leiloeiro James Lisboa, os lotes foram arrematados por todo tipo de comprador, incluindo muitos nomes desconhecidos. Seria esta a explicação para os valores - novatos sem conhecimento do mercado que, atraídos pela fama da coleção, decidem se aventurar? Seja como for, ainda houve oportunidades para os conhecedores.

Joan Miró

Enquanto isto, outros leilões mostram que o mercado segue seu curso normal, com disputas elevando alguns lotes, outros sem lance. A qualidade crescente das obras ofertadas e proporções cada vez maior de lotes vendidos em relação ao início do ano podem indicar uma retomada após a onda de insegurança causada pela pandemia.


Judith Lauand, 1955, Têmpera sobre papel, 16 x 28cm, R$29.500 - Lordello e Gobbi- 29/9

Yayoi Kusama

RESULTADOS DE LEILÕES (VALORES SEM COMISSÃO)

Mira Schendel, 1980, Ecoline e tinta sobre papel, 39x29cm, R$73.000 - Lordello e Gobbi- 29/9 Glauco Rodrigues, 1969, AST, 64x76cm, est. R$8.000, vend. R$35.000 - Dagmar Saboya 11/9 Pedro Américo, 1895, OST, 23x31cm, est. R$15.000, vend. R$15.000 - Dagmar Saboya - 8/9 Banksy

Banksy, 2003, serigrafia, 67x46, 41/500, est. USD19-25.000, vend.USD77.600 - Christie's - 10-23/9 Francis Bacon, 1990, 4 litogravuras, total 51x38x42cm, est. USD37-63.000, vend. USD42.000 - Christie`s - 10-22/9 Yayoi, Kusama, 1980, técnica 66x51cm, est. USD30-50.000, USD68.000 - Phillips - 30/9

mista, vend.

Joan Miró, 1969, ponta-seca e aquatinta sobre papel, 106x68 cm, P.A (ed.75), est. USD5-7.000, vend. USD15.350 - Phillips - 10/9

PRÓXIMOS LEILÕES

Judith Lauand

14/10: Phillips / Fotografias 20 e 21/10: Phillips/ Arte Contemporânea 20 e 21/10: Christie's/ Múltiplos e obras em papel 21, 22 e 23/10: Phillips / Múltiplos e obras em papel 22 e 23/10: Christie's / Pós-guerra e contemporâneos 121


GARlimpo

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ALTO falante

POR ALEXANDRE SÁ

A OBRA DE ARTE NA ERA DE SUA REPRODUTIBILIDADE TURÍSTICA. AINDA “

.” Michel Foucault

Se ainda considerarmos o espaço-tempo em relação às imagens produzidas contemporaneamente, é possível detectar uma série de questões que trazem mudanças importantes para o legado de Walter Benjamin, especificamente sobre aquilo que foi , como a conceituado no texto equiparação do valor de culto ao valor de exposição, a diluição da aura (tida como sinônimo de distância religiosa e existência única), o surgimento de uma aura outra (que, paradoxalmente, mantinha-se amparada na capacidade de exposição de uma determinada imagem), a potencialização do desejo utópico e paradoxalmente fadado ao fracasso de eternidade, a diminuição considerável do ritual (que, ainda assim, consegue sobreviver em alguns momentos muito específicos) e a presença incontestável de uma sensação de esvaziamento estético, fruto de uma onipresença entrópica. Tais diferenças também englobam um aumento na velocidade e na quantidade de produção das imagens, além de um desejo de captura de realidades que sejam exóticas e distantes o suficiente para que provoquem um efeito potente no observador, seja lá o que isso for. Embora o próprio termo exótico gere um conjunto complexo de referências e prováveis debates, é possível compreender que há, ainda, uma busca pela produção de imagens dispostas em um regimente intermitente entre visibilidade e invisibilidade, legibilidade e ilegibilidade, que têm por objetivo a produção de um tipo de prazer atmosférico ao serem observadas, ao se deixarem invadir pelo olhar atento e não menos curioso do público, ávido por mais e mais imagens; em um movimento cíclico e, obviamente, sem fim. Tal prazer não se relaciona especificamente com sua camada mais superficial, mas de certo tipo de gozo estruturado pela impossibilidade de compreensão total de uma imagem que é, com frequência, composta por sua lógica de fragmentação, fratura e fissura. Se estamos então em um momento de ultrapassagem dessa reprodutibilidade técnica, em que a própria imagem se descobre dentro de um novo processo que faz uso do aparelho para lhe provocar uma dobra, como denominá-la? Como definir um momento onde o que ocorre, de fato, é um giro, uma mudança de grau na própria estética veiculada por essa imagem técnica? Como seria possível nos aproximarmos conceitualmente de um momento de trânsito imagético incansável no qual o deslocamento é regra? Como fundamentar uma experiência estética que parece ser estabelecida em uma relação oblíqua de distância, aproximação e estranhamento? Escolhi, então, o termo turístico. E por chamar esse momento de reprodutibilidade turística. Ainda. Momento esse no qual, mesmo sendo a técnica o eixo primeiro e fundamental, o que se presentifica é a efemeridade do registro, a perecibilidade da experiência provocada e a ligeira certeza de que todas as coisas parecem satisfeitas quando banhadas em sua mais recôndita superficialidade. E se o turismo se baseia fundamentalmente na visita do desconhecido (ou daquilo que ainda lhe resta) e no mergulho em elementos “pictográficos” que abarquem um determinado local, optei então para iniciar esta “viagem fotográfica” por meio da hipótese de que hoje, a público, situa-se no mesmo eixo que o estrangeiro (pois, quando não especializado, desconhece grande parte dos códigos inerentes) 122


e a obra, compreendida como metáfora do universo da cidade desconhecida a ser visitada/desvendada. Mas por que falarmos aqui de turismo? Por sabemos que estamos vivendo em uma época onde o hedonismo se torna cada vez mais presente e, nesse sentido, por mais óbvio que seja, o turismo é um dos elementos que, pressupostamente, é capaz de satisfazer tal hedonismo. Sendo assim, a experiência turística pode vir a se aproximar de uma ideia, consideravelmente arriscada por sua generalização da própria experiência estética que, embora inquestionavelmente individualizada, se refere à sensibilidade, à recepção e à busca de uma experiência artística que seja capaz de provocar alguma fagulha diante do desconhecido que se apresenta como incógnita. É certo, pois, que o turista está à procura de sensações que estejam fora de todo o interesse utilitário e realiza suas experiências por deleite, para exercitar a impossibilidade de ter tais experiências, aproveitando-as da melhor maneira possível. O que é procurado no turismo é a distração, a evasão, a diversão, a sensação, o prazer: todas as coisas que se arrumam sob a rubrica prática do exotismo. O exotismo permite a fuga do cotidiano e de suas violências, de se desorientar. Ele deve permitir também a realização de encontros: encontro com outros homens, com outros hábitos, com outras maneiras de pensar e sentir. Com determinadas precauções e dentro das condições que proporcionam o encontro sem perigo, que amortecem o choque com o estranho. Através do exotismo, o turista procura o outro que não ele mesmo, de identidades diferentes da sua, onde o encontro lhe confere o sentimento de sair de si, deixando-o assim crer que ele sabe melhor aquilo que ele é. O turista vive sob a égide do movimento incessante, sobre o prazer, na maioria esmagadora dos casos, amparado por descompassos econômicos, pelo descompromisso diante daquele que visita, para que assim possa, ao fim de sua viagem, descobrir melhor o que vem a ser ele mesmo e o outro. Uma das diferenças fundamentais entre o turista e o flâneur, produto direto da modernidade e de Baudelaire, é que o primeiro joga muito menos com o acaso, com a observação dos movimentos de passagem, embora possa obviamente experimentar acontecimentos casuais que aconteçam ao longo de sua viagem. O flâneur vive e se dilui nos vestígios, tentando “decifrar o que a paisagem labiríntica e impenetrável tem para lhe oferecer”. O flâneur se perde na massa. Está no centro do mundo – na multidão – e está, ao mesmo tempo, protegido, dissimulando-se, ao abrigo dos olhares. Seu desejo é dialético. Seu objetivo é se aproximar daquilo que lhe escapa continuamente, fazendo com que assim persiga o alvo sem cessar, que são, por sua vez, as pequenas relíquias que a paisagem pode lhe oferecer para que, de alguma maneira, consiga anestesiar sua solidão inerente. “O flâneur procura um refúgio na multidão. A multidão é o véu, através do qual a vida familiar se move para o flâneur, em fantasmagoria”. O turista de massa tem objetivos mais claros e alvos mais diretos. Seu alvo não é o de se desvanecer na multidão, mas conseguir observá-la de fora, como através de uma vitrine. O turista sabe que jamais fará parte da sociedade a qual visita, embora em alguns casos seja movido por esse desejo utópico. Tal distância é desejada para que assim consiga discernir melhor o que define os dois polos (visitante e visitado). Seu repertório típico e praticamente clichê é ausência de um comprometimento diante do futuro. O turista de massa esbarra, tropeça em novas paisagens, em outras personagens exóticas e inimagináveis. Por outro lado, seu “outro” e seu “outro-lugar” estão sempre a serviço dele próprio. É importante que ele 123


“se sinta em casa” para que possa, mais tarde, caso deseje, retornar ao local visitado e assim auxiliar na movimentação de capital, mesmo que para isso a cidade tenha que usar os mais diversos recursos para então propiciar as mais estranhas ilusões. Há no turismo algo de construção involuntária bastante interessante, pois, dentro de uma época de consumo de neoliberal, tudo de uma cidade deve estar preparado para servir de base a esse encontro com o desejo-estrangeiro. E, obviamente, a ficção pode também fazer parte desse jogo. O movimento turístico se sustenta pela separação semântica intransponível e pela distância absoluta entre aquele que visita e aquele que é visitado. Que, pelo exotismo do ambiente e de seu conteúdo, projeta uma imagem “monumentalizada” do outro, da mesma forma que, em um jogo de espelhos bastante específico, auxilia na manutenção de sua própria monumentalidade fantasmática em eterno processo de reverberação. Se pensarmos que a cidade é a construção de uma realidade não natural, em virtude dos seus desejos de comunicação, fruto da produção humana, e composta por uma trama inesgotável de signos e variações estéticas, é possível, então, aproximar a imagem da cidade da própria imagem da obra de arte. A obra como cidade, em imagem de construção e desconstrução. Ou, como nos diz Argan: Não é difícil compreender como, para todas as correntes artísticas de vanguarda, a problemática do objeto de arte, aliás do objeto simplesmente, se tenha estendido à cidade: a cidade está para a sociedade assim como objeto está para o indivíduo. A sociedade se reconhece na cidade como o indivíduo no objeto; a cidade, portanto, é um objeto de uso coletivo. Não só isso, a cidade também é identificável com a arte porquanto resulta objetivamente da convergência de todas as técnicas artísticas na formação de um ambiente tanto mais vital quanto mais rico em valores estéticos. Quando se fala em crise da arte, fala-se na realidade, em crise da cidade; e a crise da cidade é um dos fenômenos mais graves e perigosos do mundo moderno. Atravessando então alguma fisicalidade, arrisca-se considerar que o que monumentaliza a obra é a visita e/ou a viagem esporádica daquele que é estrangeiro à sua poética, amparado em uma lógica de potencialização midiática que une de maneira contundente as relações de estranheza eventualmente provocadas. Seria, então, apenas, esse fluxo transitório de “forasteiros” que tornaria possível um refluxo diante do esvaziamento da condição da obra, do próprio artista e da história? Seriam a velocidade e a quantidade da exposição desse trânsito entre público e obra, os responsáveis pela instauração de uma nova sensação de obra e, inclusive, presença? Estamos aqui deslocados da mesma maneira que fotógrafos, turistas voyeurísticos em mundos representados sobre os nossos pés.” continua...

Alexandre Sá é artista-pesquisador. Atual diretor do Instituto de Artes da UERJ. Pós-doutor em Filosofia pelo PPGF/UFRJ. Pós-doutor em Estudos Contemporâneos das Artes pela UFF e Doutor em Artes Visuais pela EBAUFRJ. E-mail: alexandresabarretto@gmail.com 124


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LIVros

Este livro apresenta um panorama da obra da artista Solange Pessoa e sua contribuição à arte brasileira, do início da carreira no final dos anos 1980 até o presente. Partindo de seu trabalho escultórico, que muitas vezes mobiliza materiais como couro, cabelo humano, cera e sangue de animais, o livro revela o retrato de uma produção não convencional, monumental e ao mesmo tempo íntima, sublime e visceral. SOLANGE PESSOA • Org. Alex Bacon • Editora Cobogó • R$ 130,00 • 430 páginas.

A publicação celebra noventa anos de nascimento do escultor carioca, que faleceu em 1990. Ele tinha no cilindro a unidade mínima de suas criações. Estão reunidas ali fotos de três ateliês — no Rio, em Paris e na cidade de Massa, na Itália - além de estudos para obras.

SÉRGIO CAMARGO: MIS PIEDRAS: ATELIÊS 1950-1990 • Instituto Arte Contemporânea (IAC) • R$ 90,00 • 152 páginas

Este livro reúne estudos de mestrado e doutorado sobre a pintora Artemisia Gentileschi e outras artistas do Renascimento e Barroco. Apresenta os resultados de uma década de trabalho científico e importantes contribuições para a História das mulheres e das artes. As pesquisas foram realizadas pela Drª e Profª Cristine Tedesco em arquivos históricos, museus e outras instituições de memória da Itália, em especial de Roma, Florença, Veneza e Nápoles. ARTEMISIA GENTILESCHI: TRAJETÓRIA BIOGRÁFICA E REPRESENTAÇÕES DO FEMININO • Textos de Cristine Tedesco • Editora Oikos • R$ 35,00 • 318 páginas 125


Lançada em 2008, a Dasartes é a primeira revista de artes visuais do Brasil desde os anos 1990. Em 2015, passou a ser digital, disponível mensalmente para tablets e celulares no site dasartes.com.br, o portal de artes visuais mais visitado do Brasil. Para ficar por dentro do mundo da arte, siga a Dasartes.

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