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Dulci Ferreira

Quando digo que era uma adolescente muito irreverente e, por vezes, até rebelde, deve-se à força interior e à capacidade de encarar tudo e todos sem receio ou cobardia. Enfrentava, desafiava, respondia… Contudo, não entrava em brigas, a não ser para me defender ou defender aqueles que o não conseguiam fazer por si mesmos. Havia muita criança a sofrer bulling nas escolas e até fora delas. Eu também sofri na pele a crueldade de alguns colegas e mesmo de miúdos mais velhos. Lembro de, certo dia e já no liceu, um dos alunos se meter deliberadamente comigo durante o intervalo, provocando-me até me deixar muito irritada. Aguentei o que pude, avisando-o de que estava a habilitar-se a passar vergonha em frente dos colegas, mas ele não parou de me importunar. Nesse dia, dei-lhe uma tareia tão grande que lhe deixei o nariz a sangrar. Depois, senti tristeza por vê-lo assim. E vergonha também por tê-lo espancado. E pedi desculpa, prometendo a mim mesma, não mais me deixar provocar. Contudo, havia coisas que me irritavam profundamente. Se eu não me metia com eles, se não os tratava mal, se não beliscava aqui e ali a sua integridade física e estabilidade emocional, por que motivo me desacatavam? Talvez pelo simples facto de que gostavam de me ver furiosa e a reagir às provocações. Naturalmente que com um pouco mais de maturidade, me estaria marimbando para as instigações de uns e de outros. Todavia, esta postura de defesa também me valeu de forma positiva pela vida fora, em que muitas vezes precisei de defender-me das quezílias familiares e das investidas de alguns homens que de

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tudo faziam para se aproximar de mim. Sim, cheguei a sofrer de assédio por parte de alguns sujeitos com quem trabalhava, durante o tempo em que fui empresária no ramo dos materiais de construção. Era um mundo praticamente masculino, no qual tive de me impor e exigir respeito e consideração. Ainda escutei algumas vezes as frases: “Você é muito nervosa para o negócio. Prefiro negociar com o seu marido. Vá mas é pra casa cuidar das criancinhas.” Ao que eu respondia: “A empresa é minha, não do meu marido. Se deseja alguma coisa, terá que se entender comigo.” Eram tempos diferentes, onde o lugar das mulheres era a cuidar dos maridos e dos filhos, da casa, dos animais e dos campos. Havia muita desigualdade e discriminação. Poucas trabalhavam nas empresas ou ocupavam lugares de topo. O escudo protetor, de autodefesa, que fui criando ao longo da vida ajudou-me a sair ilesa das mais variadas situações e a chegar aqui sem rancores, ressentimentos ou traumas, resolvendo com espírito aberto e muita sabedoria qualquer pendência ou discórdia que chegasse a existir. E não foi fácil esta imposição num mundo de homens, onde as únicas mulheres com que lidava eram as clientes que vinham à exposição da empresa para escolher os materiais para as suas casas, ainda em fase de construção. E eu consegui esse “empoderamento” e ser respeitada e admirada por todos, sem exceção. Já lá vão mais de 30 anos. …

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Enquanto adolescente, confesso que tinha um terrível espírito de contradição e é dessa personalidade complexa que pretendo falar. Há crianças que sempre que lhes mandam fazer algo, de imediato dizem: “Não Vou! Não faço! Não Levo!...” No meu caso, se alguém me mandasse fazer alguma coisa, eu dizia logo que não ia, mas indo imediatamente. Para exemplificar, vou contar-vos uma história: Antigamente não havia água canalizada nas casas e para ter acesso ao precioso líquido era necessário ir busca-lo às fontes, em baldes, jarros e em regadores. Também se usava uma espécie de canastras de madeira e as famosas cantarinhas ou cântaros de barro. Certo dia, minha irmã Ester precisou de água para cozinhar e lavar a louça. Como só estávamos as duas em casa e ela muito ocupada no momento, mandou-me a mim buscar um jarro cheio de água à fonte da aldeia. A minha primeira reação foi dizer que não ia. Ela repetiu que fosse e voltasse depressa, mas eu voltei a dizer que não ia. Que fosse lá ela. A fonte ficava relativamente perto (pouco mais de 100 metros) e eu era destemida e ágil. Rapidamente corri a encher a vasilha, voltando para casa com a mesma celeridade com que saíra. Ester nem se apercebeu da minha curta ausência. Entrei em casa com pés de lagarta e coloquei o jarro cheio de água exatamente no mesmo lugar de onde o tinha tirado. E continuei entretida a brincar, como se nada se tivesse passado. A dada altura, Ester levantou a voz e perguntou: “Já fizeste o que te mandei?”

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“Não! Já disse que não vou buscar água nenhuma!” Furiosa, ameaçou: “Vai lá depressa ou estoiro-te o lombo!” “Já disse que não vou. Não vou e ponto. Por que não vais lá tu?” E a cena repetiu-se até Ester se passar da cabeça e me dar a maior sova da minha vida. Até a pés me calcou. Ainda debaixo de pancada e banhada em lágrimas, gritei: “Paraaaa! Não vês aí a água? Já a fui buscar há mais de meia hora!” Ester ficou desolada e com remorsos por me ter maltratado tanto. Depois de constatar que o jarro estava mesmo cheio, virou-se para mim e disse: “Maldito espírito de contradição! Parece que gostas de apanhar. Por que não disseste logo, sua doida? És mesmo ruim! Ainda devias apanhar mais por seres tão casmurra!” E virou-me as costas bruscamente para que eu não visse uma lágrima a escorrer-lhe pela face, como cascata a despenhar-se do cimo de uma montanha. Sentia-se culpada por me ter batido tanto e injustamente. Afinal, eu tinha cumprido a tarefa. Ao ver minha mana tão triste e chorosa, doeu no mais profundo do meu ser. Uma certa agonia mexeu com as minhas emoções e fez-me pensar que tinha de ser diferente. Nesse dia cresci em maturidade e também em responsabilidade.

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SER CRIANÇA NUM TEMPO DÍSPAR

Dos meus tempos de criança, não recordo se alguma vez tive um brinquedo especial ou se realmente tive algum brinquedo. O que recordo é de uma boneca de trapos que minha mãe me fez com pedaços de tecido velho; uma boneca sem olhos nem boca mas tão expressiva que para nos entendermos bastava que eu a olha-se sem qualquer sentimento menor, de inveja ou despeito por não ter as mesmas possibilidades de certos meninos da minha aldeia. Alguns tinham os pais emigrados e, quando em tempo de férias regressavam a casa, traziam na mala, não apenas a dor da saudade e a alegria do reencontro, mas também brinquedos e guloseimas para, de certa forma, compensarem a prole pela prolongada ausência. Talvez algo que nem os mesmos degustavam durante o ano inteiro, levando uma vida dura, de grandes sacrifícios e privações em terras distantes, sujeitando-se a todo o tipo de tarefas e a laborar muitas horas seguidas, quase sempre, com mais do que um emprego para que o soldo fosse maior no final do mês. Tudo angariavam para, no regresso, encherem os cofres dos bancos que, naquela altura, não se queixavam de crise por falta de caché. Quantas lágrimas vertidas, dores da alma ou sorrisos apagados pelo hífen da distância?! Se é difícil emigrar na atualidade com todas as facilidades de viajar e de comunicar, imagine-se há 50

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anos atrás!... Isto para nos situarmos na minha época de criança. Mas estávamos a falar dos brinquedos que nunca tive e penso que meus irmãos também não, à exceção de Mercedes, minha mana mais nova, a quem o padrinho certa vez, em viagem numa excursão, comprara uma boneca de plástico sem roupa, já com o intuito de mostrar à afilhada que estava na hora de aprender a fazer alguma coisa. E porque não, a costurar, começando por confecionar as roupinhas da sua boneca? Lembro que para mim trouxe um anel de pechisbeque com uma pedrinha vermelha. Eu achei lindo o gesto do meu tio. Afinal, sempre era uma lembrança gira. Coloquei-o no dedo e só o tirei quando o amarelo dourado começou a oxidar e a pedra perdeu completamente o brilho. No meu tempo, as crianças inventavam as próprias brincadeiras. Naquela altura, a televisão ainda não tinha chegado às aldeias e a interação entre a criançada acontecia naturalmente nas ruas ou nas eiras, nos recreios e pelos montes, enquanto pastoreávamos o gado. E fazíamos imensos jogos. Lembram-se de “O Lencinho Vai Na Mão e Ele Quer Cair ao Chão”? E daquele em que dizíamos “Um Dois Três Diga Lá Outra Vez”? E o “À Conquista do Mundo”… Este era particularmente ambicioso. Primeiro, desenhávamos uma grande circunferência no chão a representar o mundo inteiro. Depois, cada um partindo de um ponto, lá íamos espetando uma cavilha de ferro na terra e conquistando pedaços de chão. Perdia-se a vez quando a cavilha (prego de grande dimensão ou pedaço de verguinha afiada) tombasse por terra. Quem mais

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mundo conquistasse ganhava o jogo. E lembram-se de “O jogo do Mata”? A um certo momento, um dos jogadores ficava sozinho com a bola nas mãos e tinha que perseguir os outros e atirar-lhes com ela. Se conseguisse acertar em alguém, o jogador atingido tinha de fingir-se de morto e era automaticamente excluído do jogo. Era divertido ver a malta a ziguezaguear para esquivar-se a levar com a bola. E o Jogo do Alho, em que a malta se dividia em dois grupos. Um grupo amochava e os outros saltavam-lhes para cima, gritando: “Aqui vai alho!”. Havia ainda o Jogo das Escondidas, o Jogo do Pião, e aquele de O Senhor Guarda dá Licença? E O Jogo da Macaca? E o jogo do Um, Dois, Três Macaquinho Chinês? O Jogo dos Elásticos e Saltar à Corda… Na verdade, com tantos jogos e brincadeiras, não faltava diversão aos mais jovens. E quando aprendi a jogar às Cartas? Dava cada capilota aos meus adversários!... Até a mim doía. O problema era que nem tudo corria bem!... Vou contar-vos uma história: Quando pastoreava o rebanho pelos montes, geralmente rondavam por ali outros pastores e o cenário tornava-se belo e bucólico, com as ovelhas e as cabras a polvilharem de pontos brancos, cinzentos e castanhos a paisagem. O cinzento era mais dos penedos que, de maior ou menor dimensão, também tinham muitas histórias para contar. Não havia dia em que não nos juntássemos para uma brincadeira qualquer ou, então, um jogo de cartas à Bisca ou à Sueca. Na verdade, se as atividades destinadas às crianças já não satisfaziam, adotávamos as dos adultos e tudo

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aprendíamos fácil e rapidamente. Desconfio que se os livros de estudo nos estivessem proibidos, de certeza que maior interesse teríamos em os ler e estudar. Cabe aqui a velha máxima: “O fruto proibido é sempre o mais apetecido.” Contudo, o que eu mais gostava era de jogar à Sueca. Para um jogo de Sueca são precisos quatro jogadores, silêncio absoluto e perspicácia para conseguir deduzir, logo nas primeiras jogadas, onde para o jogo. Isto é, quais as possibilidades de jogo dos adversários. Segundo reza a história, este jogo foi inventado por mudos, daí a necessidade de se fazer silêncio para a total concentração. Quando era pequena, uma das coisas que me fascinava era ver os homens a jogar à Sueca. Se nos livros que lia me embrenhava nas histórias até fazer parte delas, ao vê-los a “bater” as cartas na mesa captava cada sinal, cada movimento e rapidamente aprendi a jogar também. Todavia, não era apenas eu que me interessava por este tipo de jogos, mas quase todos os miúdos da aldeia. E a cena que vos quero contar tem como mote principal um jogo de cartas. Certa tarde, levei comigo para os montes minha irmã caçula, para me ajudar a guardar o rebanho. Mercedes era o “benjamim” da família e sempre foi muito protegida por todos. Até por mim que virava fera se alguém ousasse fazer-lhe mal. Os miúdos podem ser muito cruéis e a rudeza da ruralidade levava-os a não terem grandes modos. Como tal, era preciso chamá-los à atenção e até dar-lhes uns “sopapos” se fosse preciso para que não aborrecessem a pequena.

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Naquele dia, juntámo-nos com outros pastores e decidimos fazer uma espécie de torneio de Sueca ao “bota fora”. Embrenhados no jogo e tomados por um nervoso miudinho, aliado à ânsia de ganhar aos adversários, claro está que a distração com os animais era total. Nos momentos de “jogatina” nem lembrávamos que existiam. O tempo foi passando e de repente, eis que minha irmãzinha gritou: - Mana, mana! - Agora não, princesa. Não me interrompas, por favor! - Mana, o gado desapareceu! Não vejo nem cabras nem ovelhas… - A sério? Ai, meu Deus! O gado fugiu novamente. O pai vai matar-me! E todos dispersaram imediatamente, correndo monte abaixo, à procura dos animais que já andavam a destruir o labor nas terras de cultivo. Os donos iam virar feras e crucificar-nos (simples força de expressão). Para piorar, meu pai passava no momento junto às lameiras do dono das terras onde o gado andava a roer o milho e as videiras. Ai, Deus… Que me estaria reservado naquele fim de tarde? Nem queria imaginar… Era sexta-feira, dia em que o pai regressava a casa, depois de passar a semana inteira a trabalhar em Viseu. Para ajudar minha mãe na lavoura, ia abrir às poças das terras que ficavam longe da povoação. Como os dias eram grandes, visto estarmos no final da primavera e quase a acontecer o solstício de verão, sendo preciso regar, apesar de cansado, lá subia o monte de enxada ao ombro para ir abrir à poça da tapada da Juvenca, uma propriedade da família onde semeávamos milho e feijão e tínhamos videiras com

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uvas de qualidade. Quando vimos o meu pai a falar com o dono das terras para onde o gado fugira, e aquele a fazer queixas e a cobrar pelos estragos, meu pai desatou a correr pelo monte acima com a enxada empunhada nas mãos. Nós, “ó pernas para que vos quero!” Desatámos as duas a fugir, galgando mato e penedos, nem olhávamos para trás, enquanto ele, furioso, batia com a enxada no chão para nos assustar. Tenho a certeza de que nunca teve intenção de nos acertar, mas que estava muito zangado… lá isso estava. - Mana, foge! – gritava Mercedes a choramingar, apavorada. – O pai vai bater-nos quando chegar a casa e a culpa é tua. És sempre a mesma! - Cala-te queixinhas! Deixa-me pensar em como descalçar esta bota. Olha… Enquanto o pai abre à poça e rega o milho, nós reunimos o gado e vamos embora. E foi o que fizemos. Rapidamente atravessámos a aldeia e metemos os animais nas respetivas lojas. Os nossos e os dos outros. Cabras para um lado, ovelhas para o outro. Depois disto, corremos para casa e enchemos a barriguinha. Já a meio da aura crepuscular, pegámos numa capucha de burel e fomos sentar-nos nas escadas da casa de uma vizinha, bem ao lado da nossa, ali ficando embrulhadas no agasalho horas a fio. De vez em quando, minha mãe mandava Alice, minha mana do meio, chamar-nos, dizendo que o pai estava calmo e que não ia fazer-nos mal. Todavia, não entrámos em casa enquanto não foi ele a garantir que estava tudo bem e que desta vez não nos castigaria. No entanto, foi advertindo que nunca mais se repetisse cena idêntica, sob pena de se arrepender e nos

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castigar a dobrar. Mal ele sabia o que aconteceria pouco tempo depois e desta vez por causa do meu vício pela leitura…

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